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Destituição do Pensamento

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Escrito por Miguel Bruno Duarte








«Como ciência, saber sistemático e comunicável por conceitos, a filosofia dificilmente se expande fora do ambiente esotérico que lhe é próprio.» 

Álvaro Ribeiro 


À reflexão superna e profunda tem vindo, infelizmente, a sobrepor-se uma cultura superficial em que o saber, usualmente perdido por entre as peias do imobilismo bem-pensante, se esgota amiúde num rol interminável de livros, obras e autores ideologicamente aceites, assaz premiados e largamente incensados. Daí as sucessivas «vertentes culturais», ou as várias «correntes ou perspectivas» que geralmente se prestam à glória fácil da propaganda efémera, para já não falar no prestígio ou falso brilho que literatos e eruditos tão zelosamente procuram captar para si próprios no domínio sempre ilusório e volúvel do reconhecimento público. A este fenómeno designava José Marinho um «excesso de conteúdo», ao passo que Orlando Vitorino, recorrendo a um poeta nosso, concluía que é preciso tirar a roupa para atravessar o rio.

Nisto, minorada a filosofia propriamente dita, resta então aquela atitude de inevitável suspicácia e consequente negação dirigida a tudo o que normalmente escapa aos métodos de tortuosa análise e tarda interpretação veiculados por via universitária. Daí, não ser de estranhar o alegado carácter retrógrado e conservador, quiçá reaccionário atribuído à índole patriótica da filosofia portuguesa, como se a mesma tivesse alguma vez encerrado a «história a sete chaves no porão de um navio negreiro, atirando» não só «as chaves ao mar profundo», mas forçando ainda «os vindouros a abrirem-no através de sucessivas explosões sociais», entre elas a do «25 de Abril de 1974» (1), a que, aliás, conviria ligar, por razões jamais esclarecidas no ensino e nas instituições oficiais dominantes, a premeditada desagregação do Portugal uno, pluricontinental e plurirracial. E, nisto, também não há que estranhar o chavão abstruso com que se tem procurado classificar a obra-prima de António Telmo nos termos de uma actividade envolvida «por um espírito de suspeita e conspiração» (2), a ponto mesmo de, segundo se aduz, parecer pouco ou nada credível, sobretudo quando comparada com a obra erudita de Manuel Joaquim Gandra, cuja deontologia positivista, por mais consentânea ou mais estritamente afim do minucioso levantamento por assim dizer paleográfico, lhe confere a suposta capacidade de poder aferir e exibir «as suas conclusões em abalizados documentos» (3).

Assim, pois, se vê como, na esteira de Eduardo Lourenço, se vai sinuosamente delineando o perfil «imagológico» da cultura portuguesa. Aliás, quem assim procede, não se inibe ao ponto de também caracterizar os Portugueses segundo a «imagem idílica, lírica e exótica por que (...) se vêem a si próprios enquanto povo diferente dos povos europeus» (4). E que melhor artifício paroxísmico poderia haver senão o de simultaneamente se louvar e inscrever nesse perfil «imagológico» os criadores, por excelência, de «uma zona espiritual fantasmática que, se nos consola o coração enquanto povo, não deixa no entanto de elidir o esforço de no presente construirmos um futuro, não o ideal, mas o normal, em que não nos vejamos mais nem menos do que somos e com tal nos reconciliemos» (5).

Ora, sendo os tais criadores nada menos que Agostinho da Silva (6), Dalila Pereira da Costa, António Quadros e António Telmo, ficamos assim a saber que, pese embora o esforço inesperado «de espiritualização messiânica idiossincrática da cultura portuguesa nos finais do século XX», tudo isso não passa, afinal, de um «complexo mental traumático» de alguma forma comum à maioria dos nossos pensadores. Depois, ainda envolto nesta surpreendente logomaquia, surge o mito sebástico reduzido a «facto-resumo a preto e branco do nosso ser colectivo» (7). A par disso, parece até haver um enorme regozijo perante o desaparecimento de eventuais manifestações da cultura nacional, sobretudo quando se alude à «defunta revista Teoremas de Filosofia», fundada e dirigida por Joaquim Domingues e Pedro Sinde (8).

Entretanto, preconizada tem sido, até ver, a eventual existência de uma terceira via, no âmbito da qual, uma vez restrito o horizonte da cultura portuguesa a esquemas simplistas – de um lado os racionalistas e modernistas, como António Sérgio, do outro os espiritualistas e nacionalistas, como Álvaro Ribeiro–, se antevê a mais próxima ou remota «institucionalização» do perfil visionário de Agostinho da Silva com vista a uma ordenação transnacional ou comunitária dos chamados povos de língua portuguesa (9). Nisto, já uma ínfima parte da universidade se lançou, inclusive, no dito abalizar crítico-científico da reflexão livre e assistemática de um pensador jamais susceptível de ser integralmente apreendido mediante as mais variadas metodologias de maior ou menor incidência bio-bibliográfica e até de sequente, concomitante e ostensivo revisionismo ideológico no que ao Estado Novo nomeadamente se reporta nos termos da já recorrente quão estafada linha de propugnação política triunfante levada a efeito pelo regime oligárquico vigente (10). Seguem-se ainda, a próposito de Agostinho, as mais variadas vertentes, perspectivas e «visões» num ambiente, aliás, propenso às influências paradoxais que sopram ora do Oriente para o Ocidente, ora de Além-Reno para Aquém-Reno, ora ainda de Além-Pirenéus para Aquém-Pirenéus, tal qual uma crescente obsessão pela inversão da filosofia clássica, actualmente proposta e sugerida pela não menos crescente projecção mental do vazio e do nada enquanto artifícios dialécticos que mais comprometem e desactualizam o pensamento.




Os Pirenéus captados pela NASA






Excluída a razão, como decerto convém à idade do niilismo e do ateísmo, instala-se então o delírio dos místicos em sua aparente humildade, porém orgulhosa e sôfrega pretensão de imitarem a Deus. Neste mesmo sentido, tudo parece simplesmente coincidir ou convergir, com vista ao infinito esplendor, para a dissolução de todas as manifestações ilusórias da vida e da existência numa experiência que, desapropriada ou despojada de si, concorre, alfim, para uma culminante transfiguração de ordem mística (11). Por conseguinte, volvidos Deus, o mundo e o homem num espaço adimensional, eis que presumivelmente se nos oferece, qual sacrifício pleno e total, o «nada que é tudo», ainda em vista de sua respectiva superação enquanto via da libertação e do despertar supremos (12).

A par do nada existencialista, o nada trans-ontológico é um erro de sintaxe. Enquanto tal, promove e estimula a dialéctica dos contrários num jogo sem arte. E assim é porque «Deus», como Tudo-Nada ou Nada-Tudo, decai numa deveras sofisticada, pese embora verbosa quão perifrástica dialéctica ao supostamente vincular, transmutar e culminar todos os seres na mais absoluta inseparabilidade e indiferenciação de tudo.

Sabemos, em contrapartida, que quanto mais preciso, concreto e determinado for o verbo, mais o pensamento, penetrando e excedendo a realidade, se tornará presente e actuante. Além disso, manifestar-se-á por tríades, sabido que entre o mundo sensível e o mundo inteligível se encontra o mundo das formas. Aliás, só assim, respondendo às exigências apresentadas à razão pela experiência, o pensamento integrará o finito, o relativo e o particular no já de si sempre profundo, amplo e aberto caminho para a verdade.

Ignorando o núcleo operativo do pensamento categorial, há curiosamente quem hoje considere serem «orientações possíveis do espírito» todas as experiências «ateias, agnósticas ou anti-religiosas» que ao homem é dado manifestar e praticar (13). Tudo assim se torna, ontologicamente, expressão do «nada», num suposto jogo de fazer do mundo e do próprio pensamento uma ilusão ante a desindividuação do que, segundo reza a tradição iniciática, mormente se nos revela enquanto composto tripartido em espírito, alma e corpo. Porém, já o antiteísmo, repudiando e hostilizando a teologia e a filosofia, ameaça processar e desencadear todo um rol de consequências desastrosas no domínio quase sempre caótico, insano e irresponsável da habitual política dominante.

O ecumenismo também pode, eventualmente, produzir as mais flagrantes e contraproducentes ilusões. Entre elas, sobressai, pois, a preconizada defesa da igualdade entre todas as culturas, até porque, mesmo salvaguardando, ainda que teoricamente, o que de diferente, singular e único subjaz a cada cultura em particular, tudo o que ali se implica tenderá a ficar, mais tarde ou mais cedo, doravante sujeito à vitoriosa uniformização cultural e sociológica da humanidade (14). Portanto, em vez de igualdade, lícito nos seja antes optar pela analogia, por, de facto, consagrar enquanto «movimento intelectual para cima, para o logos», aquela «correlação que pressupõe uma relação inferior e uma relação superior» (15).

Já assim, de resto, preconizara Álvaro Ribeiro ao consignar que, traduzida em francês, inglês ou alemão, a Teoria do Ser e da Verdade, de José Marinho, «seria a demonstração perfeita da superioridade da filosofia portuguesa sobre todas as suas rivais estrangeiras» (16). Isto, não obstante estar a Teoria de Marinho imbuída de «uma dinâmica de intenção mística», e, portanto, atreita a revelar na inquietação do autor para alcançar a ideia pura, ora a superação da filosofia, ora «a transcensão infinita que ao homem como tal é possível falar, dizer ou escrever». Porém, na filosofia a haver, acharemos sempre, por mais grave, tentadora e sedutora que se nos afigure a mística teutónica, aquela imprescindível forma de decifrar e descobrir a palavra certa para admitir, dizer e exprimir todo e qualquer estado superior, mediano ou inferior de consciência.

A evitar, no ideal ecuménico, afigura-se-nos ainda quer o comunitarismo, quer a coerção igualitária que no limite extremo lhe poderá sempre corresponder. Ora, num sentido futurante, proclamara Agostinho da Silva que o «Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra, de Vieira e da Mensagem», tornar-se-ia «o Portugal das terras comunais», ou, se quisermos, o «Portugal de Santa Maria» (17). Quer dizer: Agostinho da Silva, embora fundamentalmente inspirado no comunitarismo agrário e pastoril do Portugal medieval, assim como na «descoberta», no Brasil, de comunidades bastante próximas do estado de natureza – onde não existia nenhuma espécie de propriedade, organização social ou religião organizada –, constitui certamente um caso singular susceptível da mais digna e reflectida atenção.























Primeiro, porque Agostinho da Silva parecia reconhecer existirem certas formas de servidão a que, política e economicamente, tanto podem conduzir, como conduzem, efectivamente, o socialismo e o comunismo. Segundo, porque pregando a sua espiritualidade ecuménica, marcada pela língua e pela cultura, fazia da singularidade da pessoa humana a pedra de toque de tudo o mais. No entanto, sempre o acompanhara, já desde os tempos socializantes da sua juventude sergista, uma atitude de certa suspicácia e negação para com a vinculação principial das formas jurídicas, quanto mais não seja pelo modo como censurou a propriedade nos termos que ora se seguem:


«(…) não há propriedade alguma que Deus possa abençoar; Deus só abençoa a não propriedade.» (18). 


Além disso, ao verberar o capitalismo, tal como o liberalismo, nomeadamente o económico (19), Agostinho da Silva encontrar-se-ia propenso à ilusão de que, num futuro mais ou menos próximo, estaríamos perante a possibilidade de uma sociedade da abundância, isto é, uma sociedade completamente diferente da actual, sem a obsessiva distinção de raças, nações, classes, castas, ou senão mesmo destituída de dinheiro e violência, bens materiais, escolas, livros, casamentos (20), etc. Dito isto, não queremos nem desejamos conjurar, afastar ou diminuir a presença santificante do Espírito Santo, mas desde logo afirmar a sua compatibilidade com aquelas formas institucionais que não passem forçosamente pelo triunfo da autocracia política e pela estreita e correspondente abolição da propriedade económica e espiritual de todos e de cada um em particular. Para o efeito, há-de então concorrer o pensamento sem o concurso do qual não será certamente possível saber serem justamente as formas jurídicas «dotadas de perenidade análoga às dos géneros naturais e às categorias do intelecto» (21).

Ou seja: «…tal como nenhum ser natural pode surgir à margem das formas genéricas dos animais, vegetais e minerais, tal como nenhum pensamento terá sentido lógico fora das categorias do intelecto, assim nenhuma relação activa dos homens entre si ou com o mundo é inseparável das formas do direito». Temos, então, a «presença», em forma jurídica, do que os romanos chamaram «mancipium, dominium, e, por fim, proprietas» (22). Uma relação, portanto, não somente económica, mas fundamentalmente religiosa.

Daí a propriedade entendida na forma de um vínculo indissolúvel, como seja o da perpetuidade do culto familiar. Disso, aliás, deu notável testemunho Teixeira de Pascoaes, ao ver na relação morganática o prolongamento da «lei avoenga» da 1ª Dinastia portuguesa. E mais dizendo, conclui ainda o poeta-filósofo de Portugal:

«Não há liberdade sem independência económica. O pobre é sempre um escravo do Estado, esse deus que aspira ao monoteísmo. O que é o comunismo senão um feudalismo em que existe apenas um senhor? Mas no cristianismo há só um pai e a irmandade.» (23).

De facto, sem a propriedade, não pode haver harmonia entre o homem e o mundo, tal como não pode haver uma ligação concreta e vivida entre os indivíduos e o Estado. Por conseguinte, sem a propriedade não poderão sequer existir, como já assim perfeitamente demonstrara Aristóteles, «as virtudes de carácter mais convivente: a amizade, que só se forma quando “se podem pôr à disposição dos amigos as coisas que se possuem e fruí-las em comum com eles”; o amor-próprio, que é preciso distinguir do egoísmo e é suscitado em cada um “por saber que é exclusivamente seu aquilo que lhe pertence”; “o prazer, que podemos qualificar de imenso, que o homem tem quando pode prestar um favor a alguém (…), coisa só possível quando se possuem bens pessoais”; a magnanimidade e a generosidade “que resultam do uso que fazemos dos nossos bens”» (24).


De Agostinho da Silva também não ignoramos a índole espiritual, propensamente libertária, à qual devia seguramente a possibilidade única e a vontade própria de conceber e experienciar um estado de pobreza franciscana totalmente avesso à propriedade capitalista. Referimo-nos, pois, à predisponibilidade com que, rejeitando o modelo de cooperativa inglesa ou sueca, tão ao gosto de António Sérgio (25), projectava para Portugal uma economia de fraternidade e cooperação de gente livre e associada para o «bem comum». Noutro sentido, Portugal, preparando o futuro, retomaria assim uma economia de não-concorrência, ou, melhor dito, uma economia que poria de lado a procura ostensiva e negativa do lucro cuja alegada origem estivera bem determinada «nos princípios do capitalismo comercial dos italianos» (26), e, desse modo, teologicamente marcado pelo protestantismo dos alemães.

Note-se, porém, que a proposta de Agostinho passava pela abolição de «todo o sistema económico» (27), que é sempre, à margem de toda a forma de governo e de organização religiosa (28), «um rateio da escassez». Logo, uma proposta já de si discutível, até porque, conforme já oportunamente reconhecera Ernesto Palma, «há claros vestígios nos Dispersos de como Agostinho tivera a ilusão de que o comunismo teria trazido a abundância aos povos que se lhe submeteram e hoje são alimentados a rações» (29). Vendo bem, a questão, tocando de perto o direito de propriedade, atenta no seguinte:

«O cooperativismo é uma forma de associação. Todas as formas de associação podem ser possíveis e são legítimas. O que se não pode é transformar um modo de associação particular no tipo de associação universal.» (30).

Por outras palavras, «o direito de propriedade é a categoria essencial da qual depende todo o desenvolvimento da economia e toda a propriedade dos povos». Em grande parte, provam-no, pela negativa, a economia mercantilista da França, da Alemanha e da Inglaterra no século XVIII, assim como, pela positiva, a prosperidade com que, nesse mesmo século, a Holanda e a Inglaterra, restabelecendo os direitos de propriedade, lograram desde logo alcançar em termos que foram depois erradamente atribuídos à chamada «revolução industrial» (31). Demais, Portugal, aquando da primeira abolição do «livre-cambismo», numa época dada à internacionalização do mercado que os Descobrimentos propiciaram, deixou de ter, no século XVI, uma aristocracia, já que, por razões cada vez mais estranhas à ciência da economia, fundamentalmente condenado ficara a uma linha de intervencionismo simultaneamente económico e político.

Mas vejamos ainda como, partindo da não-propriedade, se podem também desfiar alguns paralogismos na sequência do pensamento paradoxal de Agostinho da Silva. «Crente é pouco sê-te Deus / e para o nada que é tudo / inventa caminhos teus», expressa, sobremaneira, o que aqui mais particularmente importa salientar. Isto é: se Deus essente e existente, e, portanto, Deus uno simultaneamente transcendente e imanente, sujeito e objecto, ausente e presente, sugere e estimula a superação de toda a antinomia conceptual, também não deixa de no mais fundo de nós potenciar, por seu turno, a possibilidade de se puderem vir a tecer «véus coerentes que encobrem a mais pérfida geração do erro» (32).

É, por conseguinte, o que manifestamente ocorre quando fulano, beltrano ou sicrano, porventura envolto ou subsumido no paradoxal agostiniano, se deixa porventura iludir quanto à possibilidade efectiva de uma «vida plena», uma «idade do ouro» ou uma vida comunitária totalmente fundada no não-Estado, na não-família e no não-culto confessional a Deus. Nisto, subjacente, pois, se encontra a não-propriedade, condição, aliás, necessária para um movimento de vanguarda do espírito pautado pelo inobjectivável, ou, como deveras gostava de dizer Agostinho, pelo imprevisível. De uma ilusão, de facto, se trata no âmbito da existência geralmente experienciada e vivida, mesmo quando, eventualmente, «todos os portugueses chegassem a uma capacidade dessas de ser, não todas as coisas ao mesmo tempo, mas cada coisa na ocasião certa, que estivesse em harmonia com ela e com o tempo, de ser sinceramente todas as coisas…» (33).

Scuola di Atene, de Rafael Sanzio.

Seja como for, uma coisa é, antes de mais, conceber a verdadeira noção de infinito, outra conceber apenas «o indefinido, quer dizer, o negativo oposto ao positivo» (34). Por isso, da resolução deste problema nodal reside não só a caracterização da filosofia mediterrânea, como ainda e, sobretudo, a caracterização da filosofia atlântica. Aliás, o «exame dos documentos leva a crer que só Aristóteles, em alguns escritos, nos deixou indícios de haver concebido não só logicamente, mas também ontologicamente, o verdadeiro infinito».

Sabemos de que não só de certezas, provas e evidências vive o pensamento humano. Porém, afirmando a função lógica e psicológica da crença, a consciência, traduzindo-se em discurso interior ou exterior, «actualiza-se na distinção entre o sujeito que pensa e o objecto que é pensado, na distinção entre o eu e o não-eu» (35). Com isso, advém o verbo activo apto a qualificar não o sujeito mas o substantivo, mediante o qual se torna possível enunciar o conhecimento das substâncias segundo o princípio de actividade ora presente nos limites de um agere sequitur esse,ora nos de um agere sequitur formam.

Entretanto, tudo parece indicar estarmos prestes a assistir ao colapso definitivo da civilização ocidental ou ao que dela porventura ainda possa realmente subsistir ante o movimento mundialista de desagregação das várias, diferenciadas e distintas culturas nacionais. Tentar ou procurar «inverter o processo» (36), sabendo como, na já critica, irreversível e atormentada fase do ciclo que ora atravessamos, se aguarda, a todo o momento, o tremendo quão derradeiro impacto do globalismo invasor, parece-nos, no mínimo, uma atitude puramente ingénua (37).

Com inteira razão, aventara Ernesto Palma que «Agostinho da Silva é o que não é». Ou seja:

«(…) Agostinho da Silva não é manifestamente, e ele o diz, um escritor, embora tenha passado grande parte da vida a escrever. Tão pouco é, também ele o diz, um político, embora a iluminar políticos tenha em vão terçado suas armas. Não é, abrenúncio, um divulgador, embora se haja dedicado, com fama e excelência, a fazer saber ignorados clássicos e outros. E insiste, com suspeita insistência, em negar que seja o filósofo que muitos vêem nele e lhe chamam.» (38).

Ora, algo de espantoso e curiosamente idêntico se vai doravante perpetuando à imagem da «razão bastarda» de que já tão ironicamente nos falara Platão. Assim, entre os que prodigiosamente reclamam para si a assunção do modelo ecuménico de Agostinho da Silva, estão os que, aparentando estar à margem do saber académico, com ele se confundem e identificam enquanto profissionais que prestam serviço contínuo a universidades e instituições da «cultura oficial». Depois, estão ainda os que, pese embora porventura negando qualquer tipo de submissão mental às ideias pessoalmente expendidas e veiculadas por Agostinho, surgem, no entanto, como especialistas indefectíveis da espiritualidade agostiniana (39). Por fim, sobejam os que, relegando para segundo plano os vários movimentos sociais, políticos ou culturais para, nessa medida, supostamente se entregarem a uma relação mais íntima e profunda com o universo, acabam por, caso a oportunidade espreite, procurar desempenhar o papel de eventuais líderes ou protagonistas daqueles movimentos de inspiração fundamentalmente holística.

Já no declínio da vida, pudera, enfim, ver Agostinho da Silva a sua imagem recorrentemente plebeízada na televisão e na capa de revistas. Mas não só: a sua imagem também, de resto, a pudera ver ostensivamente usada, instrumentalizada e abusada por todos aqueles que, jornalistas e tratantes da política, aderiam mais directa ou indirectamente ao dogma indisputável do socialismo dominante. Entre eles, viria a sobressair, com sua «mentalidade republicana, jacobina e racionalista», o crítico, escritor e jornalista Baptista-Bastos, que, em conversa vadia com Agostinho da Silva, puxara, inclusivamente, pelo Professor no sentido de o dar a conhecer como sendo mais uma das badaladas vítimas do já tão acometido quão inexistente regime «fascista» de Salazar.








Ora, para seu espanto, a resposta de Agostinho, que, por pouco, quase parecia deixar-se levar na associação sub-reptícia do entrevistador, fora lapidar: «Eu fui favorecido, sabe, porque se não fosse a ditadura, eu provavelmente tinha aí ficado com o doutoramento e essas coisas todas, com uma vida bem tranquila, bem sossegadinho em Portugal, e estava hoje aborrecido da vida, porque não tinha visto o mundo…» (40). E, no ínterim, perante o interlocutor completamente atónito, mais diria o nosso estimado Professor: «De vez em quando, se o sujeito partiu a perna, o gesso é pouco», pois, na verdade, o português, «do 25 de Abril para diante, ainda continuou coxeando bastante».

De facto, «até no andar», houve quem dissesse, referindo-se a Álvaro Ribeiro, tratar-se de uma alma a quem a graça, relativa ao corpo, não lhe fora, infelizmente, dada. Mas a eu charis, a graça plena, obteve-a, sem dúvida, Álvaro Ribeiro, não só pela grandiosidade dos seus livros, mas sobretudo pelo modo como «falava sempre ao ser e ao saber relativo de cada um, (…) nem que fosse por breves palavras, ou até por silêncios, por expressões satisfeitas ou magoadas, por falas súbitas, inesperadamente inspiradas» (41). Porém, provavelmente haverá sempre, como é já deveras habitual no meio universitário, quem apressadamente conclua, na eventual sequência daquele sóbrio testemunho, ser ou constituir a filosofia portuguesa uma questão de grupo, mas, até nisso, se ilude redondamente.

A filosofia portuguesa, pelo contrário, é um processo ou movimento espiritual já de si profundamente associado ao sentimento e aopensamento. Poderá ela, evidentemente, manifestar-se na obra deste ou daquele pensador, mas, no limite, o seu ethos sempre se revelará íntimo e secreto. Nem mesmo, face ao predominante domínio acinzentado, soturno e asfixiante da cultura já feita e tortuosamente acabada das academias e das universidades, uma tal filosofia deixará de ser o que na sua funda essência e inteira liberdade verdadeiramente é, como, aliás, sempre foi e sempre fez e fará porventura questão de sublinhar. Assim, assaz caricato se nos antolha, por servil e parasitária obediência às penosas vicissitudes e exigências da cultura universitária, haver quem ainda procure espuriamente traçar o perfil da filosofia portuguesa mediante uma selecta de citações, como, aliás, dão profícuo mas enfadonho testemunho as dissertações sinópticas de Joaquim Domingues e Elísio Gala (42).

Elevar o sentimento ao pensamento como aventura perante o desconhecido equivale a prosseguir na via aberta por Álvaro Ribeiro e eventuais epígonos espirituais. Deixemos, pois, o domínio circunscrito da paleografia para quem já só demanda o porto seguro das provas bibliográficas e do saber monografista a que cada vez mais se entregam os espíritos sedentos de disciplina rigorosa e exacta. Até porque, no seguimento da meditação alvarina da arqueologia aristotélica, estamos perante um mestre do alvoroço, do alvor e da alvorada.


Notas:

(1) Cf. Miguel Real, Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa, Quidnovi, 2007, pp. 81-82.

(2) Ibidem, p. 136. «António Telmoé o que [para além de Agostinho da Silva, Dalila Pereira da Costa e António Quadros] mais se encerra no universo simbólico ocultista, totalmente fechado e incapaz de lançar pontes culturais com outras perspectivas do pensamento português. Atraído pela leitura ocultista e esotérica do mundo, todos os livros de António Telmo se encontram envolvidos por um espírito de suspeita e conspiração, próprios do seu universo simbólico, como os títulos o indicam explicitamente: História Secreta de Portugal, Gramática Secreta da Língua Portuguesa e Filosofia e Kabala [sic]. Trata-se de uma filosofia apenas acessível a “iniciados”, não integrada no pensamento filosófico comum, de que aqui fazemos eco.»

(3) Ibidem, pp. 157-158. «(...) Manuel J. Gandra tem procedido como um historiador positivista, fazendo um minucioso levantamento de listas bibliográficas e iconográficas como até então nunca se fizera em Portugal, nem Bruno, nem Quadros, nem Dalila Pereira da Costa, nem António Telmo: deste facto releva, mais do que a sua competência, a sua credibilidade: Manuel J. Gandra é, além de um pensador, um historiador, centrando as suas conclusões em abalizados documentos.»






(4) Ibidem, p. 135.

(5) Ibidem, pp. 135-136 (o itálico é nosso).

(6) As maiores perplexidades ou confessadas dificuldades de Eduardo Lourenço quanto à articulação polémica subjacente à meditação agostiniana, nomeadamente a que perpassa entre o Portugal Quinto Império na qualidade provável de pura ficção pretérita ou vigente, e a Europa histórica e o Mundo em geral – ou ainda entre o Portugal menino-jesus-das-nações enquanto sujeito de uma história ideal («uma história sobretudo futura») e «uma Europa prisioneira dos demónios da cobiça, da violência e do egoísmo» –, podem certamente encontrar-se labirinticamente condensadas neste seu palavrório de tonalidade semi-sapiente: «Poucos o sonham e vivem com uma paixão e uma lucidez iguais às de Agostinho da Silva. Mas quem melhor do que ele sabe ou pode pressentir a confusão que a assimilação do Quinto Império a Portugal fatalmente gera? Provocá-la é deixar de ler Portugal histórico (ou sua sonhada ampliação) onde Agostinho da Silva pensa Portugal Quinto Império ou, pior ainda, ler Quinto Império onde de algum modo se pode ler Portugal. Assim, o real seria medido pelo ideal, o que seria excelente, mas o irreal podia ser medido pelo real, o que é nefastíssimo.

A leitura da Reflexão já nos mostrava como Agostinho da Silva resolve o equívoco: por uma transfiguração muito sua do real, pela assunção mítica de tudo quanto na história nacional são gérmens ou emblemas do Quinto Império futuro. Como Herculano, como Américo Castro, como Otero Pedrayo, Agostinho da Silva privilegia a época histórica, do nosso nascimento e adolescência, hora solar de um Portugal unido sob Santa Maria, o Menino Jesus e o Espírito Santo, heterodoxa trindade da nossa vida divina. Esta mitologia, mais ou menos partilhada por uma série de espíritos de primeira ordem, é, em suma, a da vocação franciscana da raça, oposta ao egoísmo e à eficiência utilitaristas da Europa, a do nosso missionarismo visceral no sentido do “fazer cristandade” como equivalente do tornar fraternas todas as relações humanas. É inegável que tão maravilhoso ideário encontrou sempre entre nós um eco profundo e exemplos vivos. Mas quem como nós, pátria eternamente negreira [itálico nosso], tão tristemente o traiu também? Não é a Agostinho da Silva que podemos ensinar o processo desse esquecimento. Da traição de Portugal a Portugal ele ocupa o centro e A. da Silva não o lembra por não o ter nunca esquecido. O mesmo se pode dizer da grande traição da “Lusitana antiga liberdade”, obrigada a atravessar mares e fronteiras para se guardar do vento caseiro. Deste abandono da nossa vocação, Agostinho da Silva culpa, com unamunesca generalidade, a Europa inteira. Não é uma condenação cega e suspeita como a que [de ordem salazarista] pulula agora entre nós, soprada ao mesmo tempo por um complexo de inferioridade às avessas e uma atmosfera de autocontentamento nacional nauseante e nauseabundo. Mas pode parecê-lo.

Os motivos do autor de Reflexão são de melhor metal. Infelizmente, nem ele nem ninguém pode impedir que sua pura meditação vá alimentar a coorte funambulesca do portuguesismo grotesco e delirante que se tornou moda nacional. Por isso convém insistir no carácter super-histórico da imagem de Portugal por Agostinho da Silva por fugir à tentação de a confrontar a cada passo com a existência efectiva dessa imagem bem-amada. Não fiquemos, porém, nesta simples atitude defensiva. O mesmo devemos nós fazê-lo para a mesma Europa (e o mundo inteiro), separando a vocação celeste de cada configuração histórica da sua encarnação temporal. Por que motivo Afonso Henriques será uma constelação humana superior a S. Luís? Por que razão vamos buscar à Europa o que nos avantaja e melhora, por comparação: o mercantilismo inglês, o libertinismo francês, a avidez protestante, etc? É nesta articulação polémica, subjacente à meditação de Agostinho da Silva, que nós encontramos as maiores dificuldades.» («Eduardo Lourenço: Um Extra-Ordinário Fernando Pessoa», In Memoriam de Agostinho da Silva, Organização de Renato Epifânio, Romana Valente Pinho e Amon Pinho Davi, Zéfiro, 2006, pp. 125-126).

(7)Cf. Miguel Real, ibidem, p. 77.

(8) Ibidem, p. 78.

(9) Neste contexto, vale, pois, a pena registar aqui a faceta iconoclasta do Professor Agostinho, consoante nos permite aferir o curial testemunho de Pedro Moacir Maia: «Rossi e Agostinho confiavam muito em mim. Antes de eu ir para Dakar, Agostinho pediu uma audiência, uma audiência não, que ele não era dessas coisas, ele disse que queria conversar. A primeira coisa que disse foi: “É preciso enterrar Portugal”. Porque ele achava que Portugal era um país do passado, que não deveria atrapalhar o Brasil na África. Sugestões: aproximar Cabo Verde; ele dizia “que haja um dia uma cidadania de todo o mundo de língua portuguesa”; não se ligar a Portugal, “deixar que este cumpra o seu destino”, quer dizer, se afundar. Isso ele disse em 1961.» (cf. «Agostinho da Silva e a Política das Relações Brasileiras com África», In Memoriam de Agostinho da Silva, p. 389) E, no entanto, por ironia do destino, foi preciso chegar o 25 de Abril de 1974 para que um bando arregimentado de facínoras, instalados em Lisboa, deitassem tudo a perder numa onda premeditada de acontecimentos revolucionários conducentes a uma situação de miséria, morte e sofrimento inimagináveis no Portugal metropolitano e ultramarino.



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(10) Sem nenhuma base de sustentação histórica, pululam, a propósito, juízos ideológicos do tipo: «E o Agostinho I? Aquele dos seus trinta anos, quando na flor da vida foi professor (...), na Faculdade de Letras do Porto, que Salazar se apressou a fechar logo após ter ascendido ao poder (1928)...» (Victor de Sá, «Agostinho da Silva – Trinta e tal anos de idade», extraído de In Memoriam de Agostinho da Silva, p. 435). Numa nota da organização do referido volume, incorre-se praticamente no mesmo erro de palmatória: «Mais precisamente, Agostinho da Silva licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1928 e, em 1929, doutorou-se pela mesma instituição. No entanto, devido ao encerramento compulsório daquela Faculdade, decretado em 1928 pelo Governo de Carmona, no qual António de Oliveira Salazar figurava como Ministro das Finanças [sic], não chegou a exercer ali a docência universitária. Ainda que precariamente, a Faculdade de Letras funcionou até 1931. [N.O]». Ora, em seu rigor e esmero paleográfico, Pinharanda Gomes põe os pontos nos ii: «Em diversos lugares, os mais prestigiados, tem-se afirmado que a primeira Faculdade de Letras do Porto, criada em 1919, pelo então ministro da Instrução, o filósofo Leonardo Coimbra (que para tanto extinguiu a venerável faculdade coimbrã), foi extinta por Salazar em 1928. No 4º volume do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, 1998, a páginas 360-361, na biografia do Poeta Adolfo Casais Monteiro, lá se escreve: “Frequentou a antiga e famosa Faculdade de Letras do Porto, que a ditadura de Salazar extinguiu” (sic). Ora, o que se considera um erro cronológico sem importância, torna-se um juízo ideológico condenável do ponto de vista do conhecimento histórico, e ainda mais grave, do ponto de vista ético, porque: a) se atribui a um sujeito um predicado que lhe não inere, como se afirmássemos que a água é vinho; b) se ensina, a leitores não necessariamente informados, um erro como se verdade fosse. Não me incumbe a defesa de Salazar, nem disponho de poder e de saber para refutar as exegeses que o situam no palco, como principal actor de todos os malefícios. E também, ele, decerto, não precisará de testemunhos exógenos, porque os documentos de chancelaria testificam a verdade. Julgo eu!

Basta prestar atenção à cronologia oficial, documentada pelo Diário do Governo e pela história, para se verificar que, entre os malefícios de que o Porto se pode queixar, o relativo à Faculdade de Letras não se confirma, a saber:

O decreto que extingue a Faculdade de Letras tem o n.º 15 365, a data de 12 de Abril de 1928, e foi publicado no Diário do Governo, n.º 85, 1.ª série, no dia 14 do mesmo mês e do mesmo ano, a páginas 922-923. O Governo tinha tomado posse dias antes, sob a presidência do general José Vicente de Freitas (falecido, 1952). O Ministério da Instrução fora entregue ao médico minhoto, portuense adoptivo, Alfredo Mendes de Magalhães (falecido, 1957), que chegou a presidente da Câmara do Porto em 1933. Salazar não fez parte deste governo, porque, e caminhando à retaguarda:

Em 1 de Junho de 1926, Salazar é indigitado para o Governo. Vai a Lisboa, e, no dia 3, o seu nome aparece no Diário do Governo como nomeado ministro das Finanças. Recusa a nomeação e, no dia 4, regressa a Coimbra. Após diversas tentativas de Mendes Cabeçadas, que chegou a deslocar-se a Coimbra, para obter de Salazar um “sim”, consegue o que desejava, e Salazar tomou posse do Ministério das Finanças no dia 12 de Junho, mas, no dia 17 desse mês de 1926, solidário com os demais membros civis do Governo, que estavam descontentes com o filme governativo, renunciou e regressou de novo a Coimbra. Lá viveu, com pouco frequentes deslocações a Lisboa, na qualidade de presidente da Comissão de Contribuintes e Impostos, cargo que aceitara e lhe deu, sem dúvida, prática na análise das contas do Estado. E a situação de Salazar manteve-se até 27 de Abril de 1928, data em que, no seguimento de um processo cujos aspectos são irrelevantes para o caso, o Presidente Carmona, tendo obtido o “sim” de Salazar, o nomeou ministro das Finanças (Decreto n.º 15 409, de 27 de Abril de 1928, no Diário do Governo, n.º 95, 1.ª Série de 28.4.1928, a páginas 1075).

O decreto que extingue a faculdade portuense tem a data de 12 de Abril de 1928; o decreto que coloca Salazar nas Finanças tem a data de 27 de Abril de 1928. Presidente do Governo, general Vicente de Freitas; ministro da Instrução, José Alfredo Mendes de Magalhães. Salazar não fazia parte, nem teria ideia nessa data.» (cf. «Os Malefícios de Salazar ao Porto», in o Diabo, 4 de Julho de 2000).


A par disto, abunda igualmente uma torrente preconceituosa de juízos ideológicos amiúde viciados e as mais das vezes tendenciosos acerca do Estado Novo, correntemente espalhados aos quatro ventos pelas mais variadas instituições vigentes, entre as quais prevalece a máquina universitária como não podia deixar de ser. No mais, aqueles juízos condenatórios incidem sobretudo no chamado “colonialismo português”, de que o regime de Salazar teria sido particularmente responsável no sentido de perpetuar o racismo, a opressão, o genocídio como objectivo político, a miséria, o atraso medieval e outros dislates do género. Temos, inclusivamente, deparado com algumas teses universitárias engendradas no Brasil, as quais, procurando abordar a oposição política ao Estado Novo através de algumas figuras emblemáticas como António Sérgio, Jaime Cortesão e Agostinho da Silva, entre outros, reflectem uma ignorância assaz surpreendente, tacanha e atroz, a par de um processo de intenções que muito deixam a desejar sobre as implicações nacionais e internacionais que rodearam o regime político do último monarca (ver, por exemplo, Gilson Brandão O. Junior, «Agostinho Neto e Agostinho da Silva, Exílios. Encontros e desencontros entre intelectuais no Atlântico Sul», Tese de Doutoramento em História, Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, 2017). De resto, já Franco Nogueira, em momento oportuno, averbara uma estranha propensão demagógica e um certo primarismo na forma de “pensar”, por ora não menos presente e actuante no terreiro revolucionário e terceiro-mundista da lusofonia, acerca da multissecular quão universal mundividência do português, a saber: «Roma, 29 de Junho [de 1963] - Jantar na embaixada do Brasil. Fico à direita do Presidente João Goulart. Não encontrei conversa que valesse com um homem que é chefe do Estado do Brasil. Primarismo das ideias, ignorância de pasmar quanto a coisas elementares, vocabulário tosco, conceitos demagógicos e infantis - e tudo isto envolto na inconsciência e na irresponsabilidade. Disse-me assim:"nós somos anticolonialistas, Portugal é colonialista, e o Brasil é contra, e pronto". E pronto: que se responde a isto? Como se argumenta neste caso?» (in Um Político Confessa-se. Diário: 1960-1968, Livraria Editora Civilização, 1986, p. 68).

(11) Sobre a transformação mística da pessoa, assenta Agostinho da Silva, ele próprio: «(…) é muito curioso que quando um místico fala dos seus transportes místicos, desiste da descrição, aniquila-se como pessoa. Quando Santa Teresa dizia que nos seus actos místicos via Cristo sem ser com os olhos, estava-se abolindo como pessoa, não era mais gente, porque nós vemos com os olhos, não de outra maneira.» Contudo, a ser verdade o fenómeno de levitação testemunhado pelas freiras, nem «aí, porque ela estava viva enquanto se levantava do chão, ela tinha atingido o tal plano da verdade absoluta, porque na verdade absoluta nem sequer estaria com os pés no chão, nem com eles no ar, mas sim numa posição que para nós é completamente inimaginável» (Vida Conversável, Assírio & Alvim, 1988, pp. 37 e 72).

(12) Assim, por exemplo: «Tu [Agostinho], que anunciaste o Tudo para Todos, serás capaz de te dar todo para que todos tenham e sejam Tudo!?» (in Paulo Borges, Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva, Ésquilo, 2006, p. 45).

(13) Cf. Miguel Real, op. cit., pp. 197-198 e 203.

(14) Digamos, a propósito, que a uniformização cultural e sociológica da humanidade, tão característica do internacionalismo vigente, corresponde precisamente àquele sentido meramente humano da história segundo o qual se presume que existe um progresso espiritual linear e essencialmente englobante das civilizações, posto que já havido em si mesmo como total, sem fim e puramente exteriorizado. Em todo o caso, a igualdade, se ampla e devidamente considerada no que decisiva e incessantemente se ergue para além da finitude e caducidade do homem, tanto na sua singularidade como na sua humanidade em devir, e, portanto, para além da finitude e caducidade naturalmente presentes em toda a obra, toda a cultura e toda a civilização dele mesmo decorrentes, é algo a que não devemos ser de todo insensíveis se para o efeito tivermos em conta o pensamento cosmoantropológico de Leonardo Coimbra, a saber: «Sob o ponto de vista do eterno que contenham, todas as civilizações se igualam, não participam do progresso...». Logo: «O que é certo é que o Universo é diverso e igual; e, se a espiritualização do planeta pode crescer e cresce, a parte do eterno, a involução nodal, é sempre presente no próprio sentido social da vida, que é um dramático esforço de compreensão e mérito.» (cf. José Marinho, O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Livraria Figueirinhas, Porto, 1945, pp. 158-159).

(15) Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, Livraria Bertrand, p. 101.

(16) Idem, «Homenagem a José Marinho», in As Portas do Conhecimento, p. 344.

(17) Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa, Guimarães Editores, 1996, p. 31.















(18) Idem, «Considerando o Quinto Império», in Dispersos, Lisboa, ICALP, 1988, p. 193.

(19) Idem, Um Fernando Pessoa, p. 31.

(20) Ressalvando a aspiração comunitária de Agostinho da Silva, de alta perfeição moral e espiritual, devemos relembrar que o comunitarismo das mulheres fora, desde sempre, «preconizado por quase todas as utopias que têm advogado o comunitarismo dos bens». Esta última expressão, de Orlando Vitorino, vem, entretanto, acompanhada de uma afirmação que desde já se impõe: a de que, entre aquelas duas formas de comunitarismo, «uma implicação existe de que não temos nem a evidência intuitiva nem o nexo lógico». (cf. Refutação da Filosofia Triunfante, Teoremas, 1976, p. 188). Aliás, Leonardo Coimbra, tornando patente, no contexto da Rússia bolchevista, «as catastróficas consequências da libertinagem erótica», averba que esta «deu, de pronto, a angústia, a fome trágica de uma maternidade normal», ao ponto mesmo de os próprios dirigentes, legitimando os casamentos de facto, fazerem «uma campanha, mascarada de higiénica», para pôr fim a tantos clamores.

Daí que: «Os casamentos de facto são a porta aberta aos incestos, à poligamia, a uniões em qualquer idade e em quaisquer condições fisiológicas.

As atenuações só poderão vir de regulamentações de ordem higiénica, pois que a família é um dos inimigos do Monismo Comunista.

“O Partido comunista é o nosso Pai, a secção feminina dos sovietes é a nossa Mãe…” canto dos pioneiros vermelhos ou crianças bolcheviques.

“A família é uma instituição burguesa inventada pela Igreja”

“É preciso destruir a família”, dizem as mulheres nos congressos.

O próprio casamento registado é como se não existisse, visto que o divórcio se pode fazer – e até sem registo – pela simples cessação de relações e por desejo ou capricho de um só cônjuge.

Os filhos são livres da autoridade paterna, pois que o pai é, segundo o Código [de 1926], um simples delegado do Estado.

E os Mandamentos Vermelhos recomendam aos jovens o exclusivo respeito aos pais que tenham pontos de vista revolucionários, que defendam consciente e energicamente os interesses da classe proletária.» (in A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Livraria Tavares Martins, 1962, pp. 402-403).

Resumindo, a relação sexual, abandonada que seja a uma fugaz satisfação dos instintos individuais ou da espécie, decairá depressa em imoral e consequente tragédia. De modo que, só o casamento, tomando a forma jurídica de uma união em liberdade, possibilite, pela sua transcendência, a realização de um vínculo indissolúvel e independente da procriação. Ou ainda, se quisermos, independente da necessidade própria do instinto natural.

(21) Cf. Orlando Vitorino, Refutação da Filosofia Triunfante, p. 153.

(22) Ibidem, p. 179.

(23) Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português, Assírio & Alvim, 1998, p. 37.

(24) Cf. Orlando Vitorino, op. cit., pp. 183-184.






(25) Victor Mendanha, Conversas com Agostinho da Silva, Editora Pergaminho, 1994, p. 43.

(26) Cf Agostinho da Silva, Vida Conversável, p. 87.

(27) Cf. «Segunda Carta de Agostinho da Silva», in António Quadros, A Arte de Continuar Português, Edições do Templo, 1978, p. 193.

(28) No entanto, perante a possibilidade de algum homem viver fora de toda a sociedade, Agostinho da Silva, não obstante o que eventuais anarquistas possam advogar, deixou bem claro que há sempre, pelo menos, um poder de coordenação inerente a toda a existência humana. Pode até, a seu ver, constituir-se, de algum modo, como um poder de repressão, que não deixa, por isso, de ser menos necessário. «Porque isso é o mínimo. É como uma coisa que está presa por vários fios a um centro… Ou como eu posso estar em liberdade num grupo de animais que pulam e saltam numa certa liberdade, a que dou um certo raio de acção. Ou como aquelas brincadeiras das feiras em que se lançam coisas girando à volta de um mastro, para fazer com que pela força centrífuga subam alto e as pessoas tenham a sensação que vêm voando mas nunca se soltam. Ou como a força da gravitação universal. Não há nada mais livre no espaço do que a terra voando nele. Mas está presa ao Sol. E se não está presa ao Sol por uma corda invisível, se formos para Einstein, ela está presa como a bola da roleta, nunca pode sair de lá.» (Vida Conversável, pp. 36-37).

(29) Ernesto Palma, «Agostinho da Silva, filho pródigo», in Leonardo, Ano I, n.º 4, Dez. de 1988, p. 41.

(30) Orlando Vitorino, «O socialismo não é o único caminho» [entrevista], in Diário do Minho, Ano LXVI, n.º 20888, Braga, 1 Jun. de 1985, p. 10.

(31) Cf. idem, Exaltação da Filosofia Derrotada, p. 38.

(32) Cf. Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, Guimarães Editores, p. 49.

(33) Agostinho da Silva, Vida Conversável, p. 19.

(34) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Portugália Editora, 1955, p. 81.

(35) Ibidem, p. 54.

(36) Cf. Paulo Borges, «Agostinho da Silva: Precursor de um mundo a descobrir», in Agostinho da Silva e o Espírito Universal, Biblioteca Municipal de Sesimbra, 2007, p. 22.

(37) Atente-se, notadamente, no seguinte trecho, publicado há mais de um decénio a propósito da virtual visão planetária de Agostinho da Silva: «Em particular, o papel fundamental de Portugal na Europa, após a haver levado ao mundo, seria agora o de inverter o processo, trazendo a ela a diversidade das culturas e paradigmas e sabedorias planetárias, convertendo-se na porta de “novas invasões bárbaras” que venham afinal insuflar uma nova vitalidade humana e espiritual no ainda demasiado autocentrado Velho Mundo, provocando-lhe uma metamorfose redentora do iminente esgotamento e catástrofe» (ibidem, p. 22). Mal podia então entrever o seu signatário, não obstante o euro-mundialismo já então inteiramente patente em suas iminentes formas autocráticas, que as “novas invasões bárbaras” viriam, curiosamente, a ser doravante promovidas, coordenadas e conduzidas por poderosos internacionalistas instalados nos principais centros de poder mundial, a fim de, sob a retórica dos direitos humanos e da suposta protecção humanitária dos “refugiados”, minar por completo os remanescentes alicerces espirituais, políticos, sociais e económicos dos Estados-nação já prévia e historicamente consolidados no quadro da civilização cristã ocidental. Numa palavra: o super-governo mundial, com todas as horrendas consequências daí advenientes.

(38) Ernesto Palma, «Agostinho da Silva, filho pródigo», p. 40.

(39) Neste sentido, leia-se: «Futura bíblia da espiritualidade agostiniana, Tempos de Ser Deus, de Paulo Borges, constituir-se-á doravante como a súmula de uma visão interiorista, metafísica e espiritualista da obra e vida de Agostinho da Silva.» (Miguel Real, op. cit., p. 192).

(40) Sobre a «corrente do Brasil sem armadura portuguesa», cf. Vida Conversável, pp. 99-102.

(41) Retrato do mestre, por António Quadros, in Pinharanda Gomes, A “Escola Portuense”, Edições Caixotim, 2005, pp. 161-162.

(42) Ver, respectivamente, Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional e A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, editados pela Fundação Lusíada.





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