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Holocausto em Angola (ii)

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Escrito por Américo Cardoso Botelho





Estátua de Félix Dzerzhinski, fundador da polícia secreta soviética (CHEKA)










 Félix Dzerzhinsky


















«O KGB (komitet Gosudarstvennoy Bezopastnosti - o Comité para a Segurança do Estado) é o mais recente nome para uma organização fundada por ordem do Conselho dos Comissários do Povo, em 20 de Dezembro de 1917, como agência de investigações sob o nome de CHEKA (Comissão Extraordinária de Todas as Rússias para o Combate à Contra-Revolução, Especulação e Sabotagem). Como o título sugere, a CHEKA foi inicialmente encarregada de missões defensivas, apontadas para a vigilância e penetração nos movimentos anti-soviéticos, domésticos e no estrangeiro. Transformou-se muito depressa numa força política destinada ao extermínio dos opositores domésticos do sistema soviético e de subversão no mundo não-comunista. O primeiro dirigente da CHEKA, Félix Dzerzhinsky, considerado na Europa Oriental como um dedicado e pouco escrupuloso revolucionário, declarou em 1918: "A CHEKA não é um tribunal... A CHEKA é obrigada a defender a revolução e conquistar o inimigo, mesmo que às vezes, e por acaso, a sua espada caía em cima da cabeça de inocentes". Apesar de protestos de funcionários do partido, afirmando que a CHEKA andava a recrutar muitos sádicos, criminosos e degenerados, tanto Lenine como Trotsky aprovaram os métodos terroristas de Dzerzhinsky.

Ao longo dos anos a CHEKA foi rebaptizada várias vezes e conhecida por GPU, OGPU, NKVD, NKGB, MGB e finalmente por KGB. Oficialmente subordinado ao Conselho de Ministros, mas directamente controlado por dirigentes do Partido Comunista, o KGB é uma agência de espionagem, uma organização de contra-espionagem e uma polícia de segurança interna com o seu próprio ramo militar uniformizado. Com oficiais administrativos em todas as cidades e operacionais ocupando lugares na polícia regular, exército, governo, fábricas, universidades e meios de comunicação, controla efectivamente toda a estrutura soviética.

De acordo com estimativas feitas por organizações de informações americanas e da Europa Ocidental, o KGB envolve aproximadamente 500 000 pessoas, das quais 90 000 se pensa que estão directamente ligadas à recolha de informações e ao trabalho de contra-espionagem. Muitos membros do pessoal do KGB dirigem prisões e campos de trabalho, guardam fronteiras soviéticas e asseguram a segurança pessoal de dirigentes governamentais e partidários. O orçamento do KGB tem crescido constantemente, até um cálculo estimado de 10 mil milhões de dólares em 1977, comparados com os 7 mil milhões de dólares gastos pelos Estados Unidos no mesmo ano, com a CIA, NSA e outras agências de informações, todas juntas.











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Os serviços de informações dos EUA no estrangeiro e os de contra-espionagem internos estão divididos por várias agências para evitar uma poderosa acumulação de poder, mas o KGB acumula os dois. Encontra-se dividido em vários "directorados", cujo número e funções variam de tempos a tempos. O Primeiro Directorado Central, composto por cerca de 20 000 funcionários, é responsável pela espionagem no estrangeiro e pelas acções clandestinas e é dirigido pelo tenente-general Aleksander M. Sakharovsky. De 1967 a 1982, todo o aparelho do KGB foi comandado pelo general Yuri Vladimirovich Andropov, que se tornou membro efectivo do Politburo em 1973. No ano seguinte recebeu a Ordem de Lenine pelos seus serviços revolucionários. Um homem de contradições, Andropov era mais inteligente e informado a respeito do mundo ocidental do que qualquer outro membro do Politburo. Abandonou a chefia do KGB em Maio de 1982 depois de nomeado para o Secretariado de dez membros do Partido Comunista, encarregue de gerir os problemas do dia-a-dia do partido. Seguiu-se uma sequência de várias mudanças importantes. Vitaly Fedorchuk foi nomeado novo dirigente do KGB mas só se conservou nesse lugar durante sete meses. Pouco depois da morte de Leonid Brezhnev em Novembro de 1982, Yuri Andropov sucedeu-lhe no cargo de secretário-geral do Partido Comunista e Fedorchuk foi nomeado ministro dos Assuntos Internos. Viktor Chebrikov, um dos primeiros adjuntos do KGB e grande apoiante de Andropov, passou para a chefia do KGB.

O Primeiro Directorado Central do KGB não é a única organização clandestina que recolhe informações militares no estrangeiro. Um serviço de informações militar conhecido por GRU (Administração Central de Informações) constitui uma organização altamente profissional e muito eficiente, dependente do Estado-Maior. Durante cerca de duas décadas depois da sua criação em 1918, o GRU manteve uma considerável independência do predecessor do actual KGB, que se expandia gradualmente e que acabou por tomar uma clara precedência em 1937 à custa do GRU. Com cerca de 10 000 funcionários, o GRU é muito mais pequeno do que o Primeiro Directorado Central do KGB, e os seus operacionais são principalmente oficiais de carreira do exército, marinha e força aérea que completaram cursos de pós-graduação na Academia Diplomática Militar, em Moscovo.

A transferência ocasional de funcionários experientes do KGB para o GRU, como reforço profissional e como cães-de-guarda políticos garantem um substancial controlo do KGB sobre o seu competidor doméstico. De 1959 a 1963, por exemplo, o chefe do GRU foi o general Ivan Serov, ex-dirigente do KGB. Tal como outros serviços nacionais de informações militares, o GRU recolhe e analisa principalmente informações militares, mas o campo das suas operações é muito mais amplo, pois procura também com grande interesse descobertas tecnológicas e científicas com implicações militares, bem como desenvolvimentos económicos e políticos que possam afectar as percepções e decisões militares estrangeiras. Como é natural, há uma considerável duplicação de tarefas com o KGB, que conduz talvez três quartos de todas as acções soviéticas de espionagem no estrangeiro.



Emblema do GRU




Quartel-General do GRU em Moscovo


Quando a imprensa ocidental relata actividades clandestinas soviéticas, em geral confunde o GRU com o KGB, apesar de um considerável volme das informações públicas se referirem a operações do GRU. Entre as mais notáveis redes do GRU podemos citar a existente nos EUA nos anos 30, dirigida pelo coronel Boris Bykov, a do Canadá em meados dos anos 40, dirigida pelo coronel Nikolai Zabotin, a da Europa Ocidental durante a Segunda Guerra Mundial sob o nome de Rote Kapelle, e as de Xangai e Tóquio nos anos 30, orientadas por Richard Sorge. Os espiões atómicos - Funchs, Pontecorvo, os Rosenberg, na América e Inglaterra, e o coronel Stig Wennerstrom, preso na Suécia em 1963, eram também operacionais do GRU.

Excepto no que se refere aos poucos primeiros anos após a Revolução, as operações soviéticas de espionagem no estrangeiro funcionavam por detrás de uma muralha de segredo oficial, e os líderes soviéticos recusavam-se até a admitir a sua existência. Ainda em 1962, Nikita Khrushchev afirmava que a "espionagem só é precisa para aqueles que preparam a agressão. A União Soviética está profundamente dedicada à causa da paz, não pretende atacar ninguém. Portanto, a União Soviética não tem qualquer intenção de se dedicar à espionagem". Contudo, nos princípios de 1964 os soviéticos publicitaram alguns casos de espionagem no período de antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, como parte de uma campanha para melhorar a imagem do KGB. As aventuras de Richard Sorge no Japão, a missão do coronel Abel nos Estados Unidos, e os serviços de Kim Philby como espião soviético em Inglaterra, são notáveis exemplos. Quando em 1976 Ivan Udaltsov, o embaixador soviético na Grécia, foi acusado de fornecer 25 milhões de dólares ao Partido Comunista Grego, convocou uma conferência de imprensa onde declarou, entre outras coisas: "Não fiquei preocupado com os relatos das ligações ao KGB. O KGB é uma organização altamente respeitada, criada por Lenine para proteger a revolução socialista e o Estado soviético".

(...) Todos os serviços de informações, e os soviéticos em particular, são influenciados pelos sistemas políticos que servem. Nos países comunistas o aparelho das informações é um aliado ideológico dos elementos mais conservadores do partido e do Governo, pois estes parecem oferecer-lhes uma maior protecção. No entanto, ao lidarem com os seus contactos no Ocidente, os funcionários do KGB em geral expressam pontos de vista mais liberais do que os diplomatas soviéticos normais, mas essas tácticas são usadas de propósito para conseguirem ganhar a confiança da vítima, e não para exprimirem um desvio ideológico da ortodoxia marxista-leninista. Os operacionais do KGB são na sua maior parte profissionalmente competentes e cínicos, e como declarou Donald Jameson, antigo especialista da CIA em acções clandestinas: "Temos também de notar a diferença entre eles e os seus avós profissionais, os agentes do Comintern. Os avós acreditavam, os jovens não acreditam. São agentes profissionais da espionagem soviética. Procuram o poder. Os seus avós - na sua maioria - pensavam estar a servir a humanidade".

Um dos factores que motiva mais os operacionais do KGB do que o marxismo-leninismo é o nacionalismo russo. O orgulho nacionalista e a sensação de estarem a contribuir de um modo especial para o bem-estar e para o crescimento da Mãe Rússia legitimam o poder dos operacionais do KGB e simplificam a sua identificação com a política externa expansionista do Kremlin. Um posto militar, altos salários, acesso a dinheiro estrangeiro e uma reforma mais rápida, são privilégios do KGB, apreciados por muito poucos outros profissionais da União Soviética.





Emblema do KGB




(...) Um artigo publicado na revista Time em 6 de Fevereiro de 1978 analisava comparativamente as forças e fraquezas das operações de espionagem soviéticas e americanas, e incluía o KGB e as organizações da Checoslováquia e da Polónia entre as dez maiores do mundo. No entanto os autores substimaram o serviço de informações da Alemanha de Leste, que é o segundo maior, a seguir ao KGB, na Europa Oriental. Durante a primeira década, depois da sua criação em 1949, os serviços de informações da Alemanha Oriental trabalharam principalmente contra a República Federal da Alemanha e contra as forças de ocupação ocidentais. O crescente reconhecimento diplomático da República Democrática Alemã pelos países desenvolvidos, a partir dos anos 60, aumentou a força e a influência dos serviços de informações da Alemanha de Leste nesses países. Durante alguns anos a Alemanha Oriental desempenhou um papel com a União Soviética e Cuba, de fornecimento não apenas de assistência técnica e militar a alguns países africanos, mas também de auxílio na segurança interna e de apoio aos movimentos negros de libertação.

(...) Nos anos 60, os serviços de informações búlgaros eram ridículos mesmo entre os seus aliados comunistas, por serem primitivos e ineficazes, mas dez anos mais tarde eram já o mais impiedoso e agressivo serviço de espionagem dos países do bloco comunista. Os soviéticos têm-se servido dos búlgaros num certo número de acções políticas dissimuladas e muito sensíveis, tal como o envio de armas para insurgentes esquerdistas na África do Sul e Angola, o contrabando de armas para o Líbano e de drogas para a Alemanha Ocidental, ou o assassínio de proeminentes activistas políticos entre os exilados da Europa do Leste nos países do Ocidente. Com mais de 1000 funcionários conhecidos pela sua lealdade e obediência a Moscovo, dá uma especial atenção aos países vizinhos, Grécia, Turquia e Itália, e aos países árabes. A tentativa de assassínio do papa João Paulo II foi talvez a acção mais visível, cuja culpa recaiu sobre os búlgaros.

(...) Os soviéticos sofreram uma série de reveses durante a sua ofensiva mundial dos anos 70. Na Europa Ocidental, Portugal emergiu como principal alvo soviético. Depois do golpe da junta militar do general António de Spínola, em 1974, Álvaro Cunhal, o secretário-geral do pequeno mas bem disciplinado Partido Comunista pró-Moscovo, tornou-se ministro sem pasta do novo Governo. Os soviéticos esperavam que o Partido Comunista Português ganhasse gradualmente uma influência dominante e que o país se associaria ao bloco soviético, mesmo que não o fizesse de um modo muito íntimo. A autorização para o estabelecimento de bases soviéticas em Portugal daria ao Kremlin uma grande vantagem estratégica em relação aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Apertada e ameaçada pelos soviéticos por dois lados, o resto da Europa não-comunista viveria sob crescente tensão psicológica e política e eventualmente cortaria completamente com os Estados Unidos. Apesar de intensas manobras diplomáticas e maciças operações clandestinas, os soviéticos foram incapazes de quebrar o alinhamento de Portugal com o Ocidente. Em África, o balanço soviético é um misto de êxitos e falhanços. Com a ajuda dos países satélites e de Cuba, expandiram a sua influência em Angola, Etiópia e Moçambique, mas sofreram grandes reveses no Sudão, Somália, e muito particularmente no Egipto, outrora considerado como a chave para controlar o Norte de África e o Médio Oriente. A derrota americana no Vietname e o golpe comunista no Cambodja surgiram durante algum tempo como vitórias soviéticas, mas o sangrento regime de Pol Pot preferiu a China à União Soviética, como principal protector. A invasão vietnamita do Cambodja, em 1978, resolveu o problema mas impôs pressões adicionais sobre a economia soviética.
























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Henry Kissinger em Portugal



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(...)In Search of Enemie - A CIA Story, um livro de 285 páginas publicado por John Stockwell em 1978, trata das operações da CIA em Angola. Ex-tenente da marinha e amigo de Frank Snepp, Stockwell passou doze anos na agência, demitiu-se em 1977 e tal como Snepp publicou o livro sem a autorização da CIA. A sua principal acusação era a de que eram os Estados Unidos e não a União Soviética os principais responsáveis pela escalada da guerra em Angola. De acordo com Stockwell, a CIA tentara abrandar o progresso do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), pró-moscovita, apoiando dois outros grupos de guerrilheiros, a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Stockwell afirmou que foram gastos 31,7 milhões de dólares em fornecimentos militares através do Zaire para a UNITA e FNLA, mas que em vez de fazer parar o MPLA esses esforços apenas incitaram a assistência soviética e cubana ao MPLA, para este ganhar a guerra. Stockwell declarou que a agência ou deveria ter-se mantido fora de Angola, ou então deveria ter entrado com muito mais força logo desde o princípio.

Tal como Marchetti e Snepp, Stockwell propunha uma confusa mensagem política. Advogava uma CIA mais eficiente mas rejeitava o segredo, o mais importante ingrediente de quaisquer serviços secretos eficientes. De acordo com Stockwell, "o segredo dá lugar à arrogância e ineficiência. A CIA tornou-se descuidada mesmo a respeito da sua própria segurança no estrangeiro, e as suas operações clandestinas foram tão desajeitadas que quase se podem considerar cómicas". Sentiu-se culpado das actividades que levou a cabo durante os anos que permaneceu na CIA, mas admitiu que os seus sentimentos seriam diferentes se as operações em Angola e no Vietname tivesse obtido êxito.


"Nos últimos setenta anos, esquecemos a nossa herança constitucional, e criámos tanto o Federal Bureau of Investigations como a CIA, garantindo-lhes carta branca para executarem operações no país e no estrangeiro. Tivemos os resultados que merecíamos. Tanto a CIA como O FBI violam seriamente as nossas liberdades civis, e nenhuma foi notavelmente eficiente contra os seus adversários teóricos, a Máfia e o KGB".



















(...) Em Julho de 1964 o público da América Latina recebeu "provas" adicionais sobre as actividades subversivas americanas, sob a forma de duas cartas falsas assinadas por Edgar Hoover. Eram ambas dirigidas a Thomas Brady, um funcionário do FBI. A primeira, datada de 2 de Janeiro de 1961, era uma mensagem de parabéns pelos vinte anos de serviço de Brady no Federal Bureau of Investigations, e a sua única finalidade era dar mais credibilidade à segunda carta, datada de 15 de Abril de 1964, dirigida à mesma pessoa.


Washington, D. C.
15 de Abril de 1964

PESSOAL

Meu Caro Brady

Quero servir-me deste meio para exprimir o meu apreço pessoal a cada agente estacionado no Brasil pelos serviços prestados na realização da "Rectificação".


A admiração pela maneira dinâmica e eficiente em que esta operação em grande escala foi levada a cabo, num país estrangeiro e sob condições difíceis, levou-me a exprimir-lhes a minha gratidão. O pessoal da CIA cumpriu bem a sua parte e concretizou muita coisa. Contudo, os esforços dos nossos agentes foram especialmente valiosos. Estou particularmente satisfeito com o facto de a nossa participação no caso ter sido mantida secreta, e por a Administração não ter necessitado de desmentidos públicos. Podemos todos sentir-mo-nos orgulhosos do papel vital que o FBI está a jogar na protecção da segurança da Nação, mesmo para lá das suas fronteiras. Tenho a plena consciência de que os nossos agentes fazem frequentemente sacrifícios pessoais no cumprimento dos seus deveres. As condições de vida no Brasil podem não ser as melhores, mas é na verdade encorajador saber que, por lealdade e pela compreensão de estarem a contribuir de maneira vital, mesmo que pouco visível, para o serviço do país, não abandonais o vosso trabalho. É esse espírito que permite hoje o vosso trabalho. É esse espírito que permite hoje ao nosso Bureau cumprir com tanto êxito as suas muito importantes responsabilidades


Sinceramente vosso


J. E. HOOVER


Tal como o texto implica, a intenção da falsificação era provar o envolvimento directo americano no derrube do Governo brasileiro de João Goulart. Os serviços de informações checoslovacos teriam preferido atirar todas as culpas para a CIA, mas a razão para a inclusão do FBI na conspiração americana foi muito prosaica... o serviço não tinha, naquele momento, qualquer amostra de papel da CIA. A falsificação e uma das circulares mencionadas acima surgiram a público em 23 de Julho no jornal argentino Propositos. Seguiu-se uma reacção em cadeia na imprensa latino-americana, quando diversos jornais divulgavam aquela "nova onda de actividades subversivas americanas"».

Ladislav Bittman («O KGB», 1985).














«O ordenamento jurídico era claro no tocante à estrita dependência da DISA em relação ao Presidente da República. Em termos operacionais, a DISA era superiormente orientada pela Comissão Nacional de Segurança do MPLA, orgão que, naquelas circunstâncias, era um parente muito chegado do Presidência da República. Isto é importante para que se perceba que o genocídio que manchou o solo angolano não poderia ter aquela dimensão sem o empenhamento de Agostinho Neto.

O testemunho de Carlos Macedo, ex-Presidente do Tribunal Militar, é a este respeito eloquente. Confessou-me que Neto e Onambwe discutiram com ele muitas vezes acerca do modo mais eficaz de realizar as execuções sumárias. Ambos dispensaram as suas próprias assinaturas para que tudo fosse mais rápido (e certamente para se livrarem de qualquer vestígio indesmentível). Aqui se terá enraizado o conflito entre Macedo e Neto. É que o Presidente do Tribunal Militar sabia que, sem a assinatura de Neto, não tardaria que aquele tribunal se visse obrigado a carregar a culpa daqueles autênticos crimes de guerra. Nestes jogos políticos muitas vezes se pretende que a culpa morra solteira ou caia sobre a cabeça de algum bode expiatório. Outra coisa não fez Neto quando a situação angolana foi referida na Conferência Africana de Monróvia: apressou-se a dar seguimento a uma daquelas vulgares operações de coméstica política, demitindo a Direcção da DISA e nomeando uma comissão de inquérito, como se ele não soubesse da natureza e extensão dos crimes de guerra que eram perpetrados em terras de Angola.

De facto, muitos comentavam que a DISA era o suporte principal da acção de Neto. Mesmo no que toca às deslocações pelo país. Sempre que Neto projectava uma viagem a determinada cidade ou um certo percurso numa das províncias, pedia à DISA um sumário da situação. O cálculo da proporção de descontentes era realizado a partir do número de presos e da estimativa de mortos sob o fogo das forças governamentais. Assim se previa uma visita mais demorada, uma visita-relâmpago, ou se suspendia pura e simplesmente uma deslocação para evitar constrangimentos ao Presidente.

Os Ministros do governo do MPLA reafirmavam pública e frequentemente a sua confiança nessa força sempre leal ao poder do MPLA. Talvez fosse essa confiança que legitimava os agentes quando proclamavam, por tudo e por nada, que tinha ordem do Presidente para matar.






Foi a propósito de discursos como este que ouvi falar do caso de Nzambi (que, eloquentemente, quererá dizer "Deus"), o condutor daquela ambulância que nós sabíamos ser o carro da morte, que outras vezes será referida noutros passos destas memórias. Contava-se que, passando por Miramar [onde Savimbi terá residido antes dos acontecimentos de 1992], zona chique onde a Diamang possuía várias moradias, disparou sobre um angolano por causa de uma futilidade qualquer. O agente resolveu a situação com as costas protegidas. Foi à Casa de Reclusão buscar uns homens que o ajudaram a colocar o cadáver no carro e a depositá-lo, sem qualquer explicação satisfatória, na Casa Mortuária de Luanda. O caso foi muito falado na Casa de Reclusão. Os disas aprovavam o sucedido porque a vítima era certamente um burguês explorador do povo. Mas os presos estavam convencidos de que eles não conheciam sequer a identidade daquele que foi baleado.

A DISA encontrou um precioso auxiliar no sistema de vigilância da opinião e da propaganda noticiosa. Controlada por manobras de propaganda, a imprensa angolana é um bom espelho do regime de opressão que foi implementado em Angola:

Foi necessário extirpar o fraccionismo dentro do MPLA para que a revolução continuasse. Não houve tolerância em relação aos criminosos, e foi impedido o desenvolvimento da sua desagregadora acção [Jornal de Angola, 27.05.77].

No discurso de 12 de Junho de 1977, em Luanda, Neto observava:

O fraccionismo não começou a existir ontem, nem na semana passada. O fraccionismo existe desde a fundação do MPLA. Tivemos que combater vários grupos fraccionistas, que hoje estão totalmente entregues ao imperialismo. Em 1962/63, Viriato da Cruz conduziu uma ala fraccionista, ainda quando nós nos encontravámos no exílio no Congo Kinshasa [ibid., 27.02.82].


Frequentemente a imprensa era o palco dos recados do regime para as nações inimigas - mesmo servindo-se das referências aos direitos humanos. Em Angola, a retórica dos Direitos Humanos servia para agredir as nações "inimigas" e não para corrigir as práticas políticas internas. O Jornal de Angola, de 6 de Agosto de 1982, dá conta de uma reunião de uma equipa de peritos da Comissão para os Direitos do Homem, na sede do MPLA, na "Assembleia do Povo". Os jornais dos dias seguintes abriram as suas páginas às acusações de muitos dos que ali ouvidos se insurgiam contra as iniciativas da África do Sul. Mas nem uma palavra sobre as constantes violações dos direitos humanos dentro das fronteiras de Angola. Não que isto nos espante, mas recorde-se que já em 1978 a República Popular de Angola fez correr um selo postal que comemorava, precisamente, o trigésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Entre os angolanos abundavam comentários acerca deste gesto - num país onde as violações destes direitos se repetiam diariamente.











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(...) Os agentes da segurança que vinham parar à laje das prisões angolanas - muitos deles formados na ex-URSS, em Cuba e na antiga RDA - eram uma voz subterrânea de revolta, sempre pronta a confessar o horror semeado por terras de Angola.

Eles exprimiam a convicção clara de que o MPLA tinha falta de apoio popular. Os seus simpatizantes ficavam-se pela margem do sul do Cuanza-Norte, pela margem norte do Cuanza-Sul, nas províncias de Luanda, Lunda e Malange. Todas as outras províncias, exceptuando Benguela, eram feudos de implantação de outros movimentos. Em particular, todo o centro e sul de Angola garantiam à UNITA um vasto apoio. Cada uma das deslocações de Neto pelo país era precedida de um relatório que avaliava com rigor a situação. Dois soviéticos dirigiam tais estratégias de segurança - e não era difícil medir o descontentamento e a revolta que tal gerava. Frequentemente, Neto tinha, pois, de se sujeitar a visitas-surpresa para que a população descontente não tivesse tempo de se organizar.

Aqueles agentes referiam, ainda, que Agostinho Neto, depois de semeado o medo e a morte por todo o país, era alvo de ódio em qualquer das províncias angolanas: ódio surdo às vezes, verbal outras. Só com a ajuda das forças estrangeiras, cubanas e soviéticas, pôde Agostinho Neto silenciar aquela raiva que tinha no rosto a memória de tantos desaparecidos, de tantos extermínios na calada da noite e no despudor da luz do dia. O silêncio sobre essa barbárie foi certamente favorecido pelo êxodo da maior parte dos estrangeiros em Angola. Era o terror sem o olhar do testemunho estrangeiro. Estou convicto de que esse êxodo não foi apenas uma consequência da conjuntura, mas, também, uma maquinação estratégica de Agostinho Neto.

Entre esta população prisional tornou-se proverbial o relato daquela visita que Neto fez à província de Malange, algum tempo antes de conhecer a morte. Aí encontrou a face da desolação e da destruição, da qual ele era o principal responsável. A sua intenção era, talvez, persuadir a população de que se tratava de um sacrifício necessário para que a revolução prosseguisse. Isso mesmo deve ter querido dizer aos sobas que com ele se reuniram - as testemunhas disseram-me que esses chefes locais se apresentaram perante o Presidente sujos e rotos, emblema da pobreza extrema em que viviam. Mas depois das suas palavras encorajadoras, prenhes de ideologia, veio a palavra alimentada de sabedoria. Um dos sobas, mais velho, não pôde conter a pergunta: "Camarada Presidente, quando acaba a independência?" A sabedoria desarmou a ideologia. Os comentários sublinhavam que esta visita de Neto a Malange correu tão mal que cancelou a viagem que se seguiria até à província do Zaire. E regressou a Luanda.












(...) Em muitos dos presos informados que contactei se encontrava a convicção firme de que o próprio Agostinho Neto manteve grande proximidade com todas as acções repressivas que fui conhecendo naquele fórum de discussão sobre Angola: a Cadeia de São Paulo e Casa de Reclusão.

Talvez por isso, numa das conversas com Marciano, fui surpreendido pela sua fúria. O móbil era a notícia de que iam erguer um monumento ao camarada Agostinho Neto: "só se for em memória de todos os seus crimes".

(...) Acerca do comandante Monstro Imortal, outro nome de quem se falava, dizia-se que tinha sido encarregado da missão de prender Agostinho Neto no quadro dos planos do 27 de Maio. Conheceu torturas da pior espécie no forte de São Miguel. Não lhe perdoaram, entre outras coisas, o que, junto de amigos, havia dito sobre Neto. Monstro Imortal gabara-se de, na mata, ter sido ele quem havia carregado frequentemente a mochila e a arma de Neto, pois ele não podia "com uma gata pelo rabo". Recebeu o pior: o n'guelelu, instrumento de tortura já descrito, que levou muitos à loucura, Contaram-me que o comandante Xietu esteve presente nestas sessões de tortura, e que o comandante Monstro Imortal lhe cuspiu na cara para exprimir a sua revolta.

(...) Após a sua morte [de Agostinho Neto] o MPLA, com o apoio da URSS, lançou um projecto tipicamente leninista - a construção de um mausoléu para o corpo de Agostinho Neto. Para esse projecto em ordem à entronização do corpo do Presidente angolano foi constituído um consórcio com os russos e os cubanos. O local escolhido: Praia do Bispo. Segundo as informações recolhidas, foi um escoadouro de dinheiros e um amontoado de suspeitas de corrupção. Refira-se que foi necessário importar, imagine-se, areia da Lituânia - aliás, a mesma que fora usada no mausoléu de Lenine. O projecto não correu bem quanto às suas finalidades: a edificação não chegou a ser concluída e o corpo embalsamado de Agostinho deteriorou-se inesperadamente. Mas os dólares gastos terão certamente confortado muitos».

Américo Cardoso Botelho («Holocausto em Angola»).


«É inquietante o que se lê na declaração do Bureau Político do MPLA de 2002 a respeito dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Angola. O documento claramente se perfila como uma tentativa de escamotear responsabilidades sobre o que foi o plano criminal executado pelo Estado angolano entre 1977 e 1979, que teve por finalidade prender, sequestrar, torturar e exterminar de forma sistemática e generalizada cidadãos nacionais e estrangeiros supostamente considerados adversos ao regime de Agostinho Neto.






Para quem em todos estes anos de Independência nacional exerce o controlo e a gestão do aparelho de Estado, é caviloso e injusto vir agora dizer que a actuação das forças militares e policiais, apesar dos excessos, se ficou a dever simplesmente à [...] incipiente organização e funcionamento das instituições e [ao] zelo dos seus principais agentes; além de que esses episódios, mitigados pelo tempo, são hoje uma página da História definitivamente encerrada.

As cúpulas do MPLA, na verdade, parecem ofuscadas pelas teias do seu próprio poder e incapazes de entender que nem tudo foi esquecido, nem as pessoas se deixaram afundar numa amnésia colectiva total. As famílias continuam a lembrar os seus parentes desaparecidos no decurso desses anos de terror e a interrogar-se por que razão as autoridades não lhes dão uma satisfação. Elas precisam saber o destino dos seus entes queridos, onde param os seus restos mortais. Uma parte dos desaparecidos morreu devido a torturas sofridas em centros de detenção. Outros foram passados pelas armas e os seus corpos jogados em fossas clandestinas. Todavia, houve vítimas cujos cadáveres se torna impossível recuperar. Os exterminadores cremaram os despojos ou lançaram-nos ao mar. Mais de mil desaparecidos se acham sepultados no fundo do oceano. Uma chacina inominável.

(...) Com efeito, foi com base [em métodos clandestinos e ilegais] que altos mandatários do poder civil e militar conspiraram e planearam, muito antes do 27 de Maio, a "eliminação e o desaparecimento sistemático de pessoas" que ideologicamente contrariavam os seus desígnios totalitários. Desde o princípio a conspiração contou com a ajuda de um certo orgão de imprensa governamental, o Jornal de Angola, através do qual se espalharam notícias insidiosas contra um grupo rival no Partido, que foi acusado de golpista e de anti-Neto; e não menos responsável pelo desastre iminente do país. No entanto, o passo estratégico mais importante foi a acção em bloco dos conspiradores que, agrupados nas Forças Armadas e nos serviços de inteligência, e sob a omnipotente orientação do Presidente da República, passaram a comandar a repressão.

(...) Durante muito tempo criou-se a impressão de que as acções monstruosas do 27 de Maio foram da exclusiva responsabilidade de um grupo - com Lúcio Lara à cabeça - que se aproveitou do facto de o chefe estar adoentado para deste modo o enfraquecerem e bloquearem nas suas decisões e chamarem a si a tarefa de neutralizarem os rivais. A credibilidade desta versão é nula, a cumplicidade de Agostinho Neto nos assassinatos na qualidade de seu primeiro mandante está hoje sobejamente documentada.














(...) A destruição do sistema educativo, contudo, foi notoriamente dos actos mais bárbaros de que há memória. Desarticulou-se toda a rede de estabelecimentos do ensino público e as primeiras escolas a desaparecer foram as de formação comercial e industrial, indispensáveis à preparação de quadros técnicos intermédios. Nem a Universidade sobreviveu ao delírio. Se até à Independência as suas unidades funcionavam em Luanda, Huambo e Lubango e se distinguiam por um palamarés de ensino e de investigação científica que concitava a admiração da comunidade académica internacional, em que se destacavam as Faculdades de Medicina e Ciências, em poucos meses os "revolucionários" da potência dirigente do MPLA, guiados por um extremismo ideológico e por políticas disparatadas, mergulharam a Universidade na anarquia.

Supremamente ridículo foi Neto coroar-se reitor da Universidade e, acima de tudo, baptizá-la com o seu próprio nome. Por ser elucidativo, transcreve-se o precioso testemunho do jornalista e professor Leston Bandeira acerca desses trágicos anos vividos na Universidade:

Agostinho Neto não queria aquela Universidade e, por isso, não dava dinheiro, isto é, não havia orçamento. Quando fomos fazer uma reunião com o então ministro da Economia, Carlos Rocha ["Dilowa"], foi-nos negado, inclusive, a utilização do orçamento que não tinha sido gasto no ano anterior. Estávamos em 1976. Depois que os sul-africanos abandonaram o território angolano (27 de Março de 1976) tudo se complicou. Por exemplo, no Lubango, para onde eu tinha regressado em Fevereiro a fim de iniciar as aulas na Faculdade de Letras e fazer outras coisas [...] começámos a lidar com uma dificuldade impossível de superar; a qualidade dos professores que nos mandavam de Luanda. Gente que fazia a carreira docente pela via política, gente com cursos tirados na Patrice Lumumba, em Moscovo. Nenhum dos nossos pedidos para o recrutamento de professores foi atendido e a qualidade do ensino foi-se degradando de forma irreversível. Mais tarde aquela Faculdade foi transformada num instituto de formação pedagógica, mas os resultados não parecem ter sido brilhantes. Entre dificuldades de toda a espécie iam acontecendo peripécias inauditas. Uma delas foi o aparecimento de diplomas falsos trazidos por estudantes do ex-Zaire, que, de resto, foram, aos poucos, tomando conta do sistema. Quando saí de Angola, a "nossa Universidade" era uma caricatura, com professores que nem a língua conheciam e traduziam do russo para o francês, para, depois, alguém traduzir para português.












No capítulo da cultura livresca o desprezo e o assassínio não foram menores e nem sequer se pouparam as bibliotecas enquanto paradigmas da liberdade de pensar. Do arcebispo André Muaca (1924-2002) ouvi relatos dolorosos de como a tropa do MPLA assolou, em 1975, diversos templos, entre os quais a Missão da Muxima [no Concelho da Quissama], cujo santuário, afamado desde o século XVIII, passava por ser um dos principais lugares de devoção das populações, ao qual acorriam até peregrinos do Congo-Kinshasa a venerar a sua imagem. Além de alfaias e imagens em número e valor incalculável, a igreja albergava uma biblioteca e um precioso arquivo documental. A turba de uniforme, possuída de um "criminal desejo", como diria o poeta nicaraguense Rubén Darío, reduziu a cinzas todos os papéis e pilhou os objectos sacros, de nada valendo o esforço daquele dignitário para impedir tamanha profanação e a destruição da história: ameaçaram-no sob a mira das espingardas.

Neto e os da sua facção, na verdade, imbuídos de uma concepção hegemónica e partidarista do exercício do Poder, mataram todas as manifestações de pensamento, mataram a liberdade intelectual, mataram a liberdade de imprensa [só o Partido tinha as respostas] e mataram todos os progressos materiais gerados pelo processo colonial. Movia-os tão-só o afã de demolir toda a ordem existente. Eles não tinham a menor percepção dos problemas do país e da sua complexa estrutura social e económica. Vindos da guerrilha tão-só embebidos de palavras de ordem e com uma falsa ideia de Angola, passaram a governar com exortações e com quadros políticos de nenhuma envergadura e sem idoneidade moral e técnica. Mas em Setembro de 1975, Neto considerava esses quadros políticos "a vanguarda de todos os explorados e de todos os trabalhadores e, por isso, a mais apta a gerir o desenvolvimento nacional pela via socialista em íntima conexão com as massas populares.

(...) O centro nervoso de toda a trama do 27 de Maio esteve sempre localizado no palácio presidencial, Neto do princípio ao fim comandou todas as acções, transmitiu instruções sobre o que se deveria escrever no Jornal de Angola contra os chamados fraccionistas e nenhum fuzilamento se levou a cabo sem o seu beneplácito. De forma a exonerar-se de responsabilidades futuras a respeito destas mortes, obrigava os subalternos a assinar as listas com os nomes dos indivíduos a abater, um método que vinha dos tempos da luta armada. Valendo-me de uma frase de Ósip Mandelstam, diria que nada acontecia nesse "jardim de ervas daninhas" sem a sua aprovação.










(...) Pois bem: no Congresso de Lusaka a 12 de Agosto de 1974, celebrado no campo Vitória Certa, onde estiveram presentes quatro centenas de militantes, esperava-se de Neto uma posição clara vinculada a uma concepção multicultural de luta, e até uma formulação teórica sobre os fundamentos pluriéticos em que deveria assentar o futuro Estado emancipado. Mas tal não aconteceu. Na matéria relativa à "posição do MPLA face aos portugueses nascidos em Angola", ele limitou-se a afirmar o princípio do jus sanguinis. Ou seja, somente os indivíduos de raça negra mereciam ser chamados de angolanos, porque eles, sim, é que eram os "nacionais puros". Quanto aos brancos e mestiços a combater no MPLA, eles desde logo se haviam tornado credores de tal estatuto. Princípio diverso se aplicava aos grupos étnicos minoritários que integravam a sociedade angolana no seu todo; questão relacionada com o princípio do jus solis, a seu ver, por ser mais complexa remetia para uma outra ordem de valores, cuja discussão devia ser postergada para depois da Independência nacional. Quer dizer, os brancos, e também os mestiços, nascidos no país teriam que requerer o direito a estarem em Angola ou o direito de serem reconhecidos como filhos da terra».

Carlos Pacheco  («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).






HOLOCAUSTO EM ANGOLA



Os acontecimentos

A madrugada da revolta



Os acontecimentos relacionados com o 27 de Maio estão no centro de muita da violência que conheci nas cadeias angolanas. Reagindo a essa tentativa de golpe, o MPLA e os seus diversos "braços armados" lançaram uma campanha de repressão escrevendo a página mais negra da história angolana, memória de desumanidades entre as piores que as nações alguma vez conheceram. Em consequência, muitos angolanos foram sumariamente executados; imensos os que sofreram violências indescritíveis; sem conta os que desapareceram, sem deixar rasto. Os angolanos conheceram, como nunca, os efeitos de uma política de perseguição sobre toda e qualquer discordância política. Os que eram associados a tentativas de derrube do regime tornavam-se objecto de vitupérios públicos e torturas, até à solução final. Muitos familiares não puderam sequer chorar os seus mortos, ignorantes que permaneciam acerca do destino dos seus. Sobre todos eles, tal como na narrativa de Caim e Abel, a história perguntará ao fratricida: onde está o teu irmão? A linguagem política do momento escondia-se no jargão revolucionário da época:

"Apliquemos a Ditadura Democrática Revolucionária para acabar de vez com os sabotadores, com os parasitas, com os especuladores" (Bureau Político do MPLA, 12.07.77).






Recordo bem esse dia. Era eu um caloiro no circuito de selvajarias das prisões angolanas quando a Cadeia de São Paulo foi assaltada pela revolta nitista, de 27 de Maio de 1977. A madrugada rompeu sob o ímpeto das rajadas de metralhadora, de dentro para fora, de fora para dentro, em todas as direcções. Por vezes, os estrondos agravavam o estremecimento - pelo visto e ouvido, havia tanques na linhas de confronto. Os muros que cercava a prisão ameaçavam ruir, as telhas desfaziam-se quando atingidas pelos projécteis, e algumas portas metálicas estavam já de tal forma perfuradas que, dir-se-ia, eram agora uma frágil rede. O medo tinha invadido as celas, pois todos temiam o momento em que uma bala entrasse perdida e, com ela, a desgraça. Foram quatro horas de combate intenso. Todos viam a morte por perto. Entretanto, diminuía o som dos disparos e crescia a vozearia da multidão que cercava agora a Cadeia de São Paulo. Um tanque tinha devassado a entrada, a força atacante parecia levar a melhor.

As informações acerca da morte de Hélder Neto eram nessa altura díspares. Essencialmente, existiam duas versões acerca do que lhe teria acontecido naquele assalto a São Paulo, no dia 27 de Maio. O soldado Cardoso, reclamando para si a categoria de testemunha, dizia que assistira, escondido, ao seu suicídio, vendo-o disparar sobre o tórax, num cubículo que servia, ao tempo, de refeitório (local onde se tinha refugiado). Uma outra versão falava de assassínio e baseava-se no facto de, depois de ouvirem aqueles três tiros, terem visto o capitão Tino a fugir do local (era conhecida a ambição que Tino alimentava no sentido de tomar o lugar de Hélder Neto).

O desacordo quanto ao destino de Hélder Neto não podia pois ser maior. Mas a unanimidade acerca da sua, já proverbial, fuga diante do avanço dos revoltosos era incontestável. Falava-se do facto de Hélder Neto ter sido "um dos primeiros oficiais a abandonar o navio". Mais tarde, todos os outros oficiais acabaram por o acompanhar num esconderijo contíguo à cela F.

Principiámos a ouvir aquele som que sempre denunciava a abertura das celas. Era o agente Norberto Pereira, com uma espécie de tabuleiro repleto de chaves que entregava a um militar da força vencedora. Assim que abriram a porta da minha cela, saí, para tentar perceber melhor o que se passava, e encontrei logo o Dr. Vieira: "é um golpe nitista", explicou-me.











Uma imensa multidão de presos começa a ser objecto de uma triagem. Todos são diferenciados, os americanos e ingleses da FNLA, os da "Revolta Activa", e os da OCA, além de outros grupos que não consegui identificar. Uns são imediatamente postos em liberdade, mas alguns têm o entusiasmo no dedo do gatilho e querem, ali mesmo, fuzilar os "mercenários" e os da "Revolta Activa".

O furor da multidão parecia cada vez mais perto de se abater sobre a cadeia; era já possível distinguir o nome daqueles de quem era pedida a cabeça: Onambwe, Hélder Neto, Carlos Jorge, e outros que não retive na memória porque ainda não conhecia toda a bateria dos torturadores e carrascos.

Quando os ânimos se acalmaram e senti que podia percorrer as partes descobertas da prisão pude deter-me diante do que antes apenas vislumbrava ou adivinhava. Impressionou-me em particular o estado em que ficaram as paredes da enfermaria, agora um edifício esventrado pela violência das balas - horas antes tinha lá estado para me tratar das mazelas que estigmatizaram o meu corpo durante os interrogatórios.

A cadeia parecia entrar na normalidade, as portas de novo fechadas, mas com uma população algo diferente. Já a tarde ia pela sua metade, quando chegou um grupo de vinte e cinco militares cubanos: vinham reeditar a antiga ordem, tomando o lugar da guarnição que tinha debandado perante a força dos nitistas.

Principia então a dança do terror. Nessa noite não tiveram tempo sequer para nos dar o jantar. Começam a chegar vários grupos de novos presos. As celas vão-se apinhando. Alguns, como eu próprio e o José Mingas, são mudados (foi nessa altura que conheci a "cela C"). Entre os recém-chegados reconheci o Comissário Provincial de Malange. Se muitos são os que chegam, muitos são os que partem nas ambulâncias nocturnas, e mais ainda os que gritam de tanta tortura, lá para as bandas do Comando.

As notícias do pior começam, entretanto, a chegar. Diz-se que os fuzilamentos se multiplicam em várias zonas do país, alguns falam de massacres, outros contam que muitos dos militares da 9.ª Brigada estavam a ser metidos dentro de aviões e lançados ao oceano. Surgem também informações sobre os fuzilamentos na barra do Cuanza e sobre julgamentos sumários no Ministério da Defesa.







Na sede da DISA


No rescaldo dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, inúmeros agentes da DISA conheceram os rigores da cadeia de São Paulo - ocasião que me foi propícia a muitos encontros com indivíduos bem informados acerca da máquina de represálias que, entretanto, tinha sido activada. Entre eles estava aquele tradutor da DISA que me deixou algumas informações do que se passara no dia 27 de Maio.

A madrugada acordou agitada por entre o tiroteio e a grande movimentação de populares nas ruas de Luanda. Na sede da DISA, encontra-se apenas o pessoal operativo menos qualificado. Mas depressa chegam os representantes das altas esferas. José Mingas (que chegou a estar ao meu lado em São Paulo), Chefe de Departamento, na companhia do major Kamu de Almeida (mais tarde nomeado Encarregado de Negócios no Zaire), foram os primeiros a chegar. Mas logo vieram, também, os assessores soviéticos, cubanos e norte-coreanos e, um pouco mais tarde, o director nacional, Ludi Kissassunda. No edifício, a azáfama crescia de minuto a minuto e, com ela, o clima de suspeição invadia os olhares, anunciando o medo que, qual máscara, velava os rostos.

Neste clima de crescente tensão, caía a primeira vítima: um angolano aponta uma pistola à cabeça e dispara mortalmente; o corpo caiu, ali mesmo, entre as mesas e papéis da secretaria. O comentário dos responsáveis era inevitável: "Este estava comprometido!" O cadáver foi removido perante o terror dos outros funcionários.

Entretanto, começavam a chegar, em quantidade cada vez mais assinalável, prisioneiros feitos no campo dos conflitos; Kamu de Almeida coordena o seu acolhimento. São recebidos no Ministério por duas filas de soldados que improvisam um túnel de violência e humilhação; depois de lhes desnudarem o tronco, são amontoados numa sala. Entre eles estava o Procurador do Tribunal Militar, a quem, antes de despirem, arrancaram as estrelas do seu posto militar.

Os «pretos» da Segurança, cujos lugares virão a ser ocupados por «mulatos», terão sido as vítimas privilegiadas. Aliás, constava que o "número dois" do partido, Lúcio Lara, um mulato, tinha já dito a todos os mulatos que não dormissem em casa naquela noite do 27 de Maio.


Fidel Castro, Agostinho Neto, Jorge Risquet e Lúcio Lara em Angola


A multidão dos presos não parava de aumentar, e a DISA viu-se impelida a confiscar edifícios para albergar tanto detido. Os interrogatórios eram sumários e, logo nessa hora, muitos foram despachados para o fuzilamento; aqueles a quem a sorte sorriu um pouco vieram fazer-nos companhia. Por entre toda esta movimentação circulava Onambwe, um dos estrategos da dizimação quase total da 9.º Brigada e da 1.ª Região Militar.

Aquilo que se passava na sede da DISA era apenas um ensaio do que se pretendia fazer à escala do pais. Os "técnicos" cubanos, soviéticos e norte-coreanos estudavam já uma estratégia nacional, mas não sem a proximidade do Ministro da Defesa, Iko Carreira, que permaneceu, ali na sede, bem no centro de todas estas operações.

Era clara a intenção de tornar todo este processo rápido e devastador. No Ministério da Defesa, eram às dezenas os gabinetes constituídos para os inquiridores - e, segundo, o testemunho de Moisés, não faltavam garrafas Johnny Walker para ir regando o cansaço daqueles interrogatórios sumários. Não era, pois, de estranhar que algumas cenas começassem a evidenciar a presença de álcool, catalisador de anormalidades ainda mais aberrantes. Disso dá testemunho a cena em que Rasgado grita para um torturador de serviço: "Camarada! Não batas mais... ele é meu tio". O rosto do oficial que estava a ser agredido deu lugar, por entre feridas e sangue, ao espanto e ao reconhecimento. Mas por pouco tempo. Depois de um trago de Whisky, as palavras de Rasgado tornaram-se mais claramente irónicas: "Coitadinho!" Lançou-se ao oficial com pontapés e murros da mais variada espécie, até à sua própria exaustão. Mas estas cenas repetiam-se em cada gabinete, onde iam circulando corpos nus ou semi-nus numa exibição de violência exacerbada.

Num dos gabinetes estava, também, Carlos Jorge, conhecido já em São Paulo e na Casa de Reclusão pelo requinte das suas agressões. Esta cena é disto mesmo um exemplo perfeito. Um oficial estava a ser interrogado, mas não estava a dizer aquilo que o inquiridor pretendia. Furibundo, Carlos Jorge ordenou-lhe que abrisse a boca; quando a viu aberta escarrou-lhe para dentro. A expressão de repulsa no rosto do oficial foi imediata, mas Carlos Jorge, gritando "...engole...engole..." e desferindo golpes rudes no rosto já desfigurado, não deixou sequer que o oficial cuspisse para fora da boca aquele escarro nojoso. Um outro oficial viu a sua boca invadida por algo bem mais perigoso. O grito foi o mesmo: "Abre a boca! Abre mais..."; mas agora, era a vez de Carlos Jorge introduzir uma pequena granada de mão na boca daquele oficial, perante o terror daqueles que estavam por perto. A estas barbaridades juntavam-se outras, como a torção dos testículos, além de outras violências exercidas também na região genital. Não era difícil obter confissões com tais métodos.









Limpeza militar


Esta é uma das páginas mais sangrentas da história de Angola: refiro-me às acções de "limpeza" militar coordenadas a partir do Ministério da Defesa no seguimento do golpe de 27 de Maio que eliminaram muitos angolanos na força da vida, negros sobretudo, já que os mestiços foram frequentemente poupados. Os militares entravam pelas traseiras do Ministério e ficavam amontoados no antigo Liceu Paulo Dias de Novais. Despojados das suas fardas, aí permaneciam conhecendo a fome - por dia, tinham apenas direito a uma lata de carne do tipo corn beef - e a humilhação. Como me informaram Moisés, Mingas e Dédé (20), viam-se obrigados a urinar e a obrar para latas e a deitar pela janela, depois, o seu conteúdo. Numa das janelas estava uma metralhadora apontada para dentro. Não havia espaço para todos se sentarem, revezavam-se na ocupação do chão para repouso. Quando, à noite, os oficiais entravam nas salas seleccionavam imediatamente aqueles que levantavam a cabeça. "É este já! Levantou a cabeça, chegou hoje".

À medida que o edifício do Ministério ia ficando livre novos grupos eram para lá deslocados, em fila indiana, mãos atrás das costas e sob vigilância. Aqui, tiveram oportunidade para experimentar uma tortura conhecida no Leste de Angola mas adoptada pelos cubanos: uma corda atava atrás das costas as mãos e os pés; passando pelo pescoço, fazia dos seus corpos verdadeiros arcos. A esta forma de tortura chamavam chincualho. Levantavam o preso até cerca de um metro e deixavam-no cair em seguida, isto até obterem uma confissão. Este meio de tortura levou muitos à loucura e à morte por deficiente irrigação do cérebro. Não são poucos os casos daqueles que foram queimados com pontas de cigarros. E muitos outros chegaram a ser agredidos, à coronhada, com cinturões e pontapés, num mesmo momento, por cinco torturadores. Eu próprio vi, em São Paulo, os corpos mutilados de muitos destes militares. Enquanto isto, outros eram ali inquiridos para que os gritos de uns aterrorizassem os outros. Frequentemente se acusaram uns aos outros de tal maneira que quase toda a 9.ª brigada de Luanda acabou por ser condenada, ou porque haviam participado no golpe, ou porque eram amigos destes ou, ainda, porque alguém importante desejava as suas mulheres (21). Das salas de torturas, os presos iam, na maioria dos casos, para o fuzilamento, sem assinar qualquer auto. O principal campo de extermínio, como iremos reconhecer, situava-se bem perto de Luanda.



























































Marginal de Luanda (1974)













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Renegando a tradição penal portuguesa que havia séculos tinha abolido a pena de morte, o MPLA institucionalizou-a com a lei 1/78. No preâmbulo fala-se da necessidade e das vantagens dessa medida:

A República Popular de Angola tem não só o direito, como o dever de defender a revolução firme e decididamente dos seus inimigos, tanto internos como externos, salvaguardando as conquistas já implantadas em benefício do Povo e as que futuramente venham a ser alcançadas. Assim, os elementos que participam em actividades contra-revolucionárias e criminosas que atentem contra os interesses fundamentais da revolução devem ser exemplarmente punidos com a maior severidade, sempre que os factos que cometeram e as circunstâncias das mesmas lesem gravemente a segurança e a tranquilidade do Povo angolano e o normal desenvolvimento da actividade das instituições do Partido e do Estado. A introdução no sistema penal comum da pena de morte por fuzilamento não deixa de vir na sequência e de representar afinal um aperfeiçoamento jurídico de um instrumento que o povo angolano, o MPLA-PT e o seu braço armado das FAPLA, já algumas vezes tiveram de aplicar à luz da legalidade revolucionária, na luta de libertação nacional e, posteriormente, na implantação e consolidação da RPA.

Afirmam os artigos desta lei: "artigo 1.º - o n.º 1 do artigo 55.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção: as penas maiores são a pena de prisão maior de 20 a 40 anos, ou a pena de morte por fuzilamento; artigo 7.º - A pena de morte será executada por um pelotão de fuzilamento nas vinte e quatro horas após a notificação ao réu da não comutação da pena.

Não chega recordar a brutalidade da pena de morte executada por fuzilamento. É necessário recordar que esses condenados não beneficiaram sequer de um julgamento que possa ser digno desse nome. A leitura da letra fria destes regulamentos não pode deixar de me emocionar quando penso em tantos que foram condenados à morte sem que alguma vez os mecanismos de defesa fossem postos em andamento.

Tibério, uma testemunha dessa "morte à pressa"


Tibério (22) - uma das testemunhas privilegiadas do sucedido no Ministério da Defesa - falava-nos, frequentemente, das tragédias que, no pós -27 de Maio, se viveram naquele edifício. A pressa era o único método - julgamentos e condenações à velocidade de um minuto cada; uns desciam, de seguida, para as caves do Ministério, outros eram deslocados para o antigo Liceu Paulo Novais - era ali mesmo ao lado.






O trânsito para o fuzilamento também não tardava. Num carro, os condenados, noutro o pelotão de fuzilamento, num ritmo de roleta russa que aviltava até a dignidade dos laços familiares. Na memória de Tibério - como na de tantos luandenses - permanecia a visão daquele teatro de horror, no qual pais, filhos e irmãos se encontravam inesperadamente em lados opostos: de um lado os que matam, de outro os que são mortos.

A precipitação dos acontecimentos não conseguia garantir que, nos pelotões de execução, não fossem incluídos familiares dos condenados. Em tais circunstâncias era frequente que, já no próprio terreno de fuzilamento, se levantassem vozes de desespero, de um lado e do outro, diante do insuportável que é matar um irmão, um pai ou ser fuzilado por um qualquer familiar próximo.

Esta engrenagem de violência era alimentada pela praga da denúncia. Num discurso de Maio de 1977, o próprio Agostinho Neto fez a apologia da denúncia e da perseguição de todos os fraccionistas. Quando o medo toma o lugar da dignidade humana, até os laços mais enraizados podem estiolar - sucedia que muitos chegavam a denunciar os seus próprios irmãos na miragem de obter, com isso, algum benefício.

Este é um período da história angolana em que as execuções se amontoaram à pressa, ao abrigo do decreto de Agostinho Neto, gravado em letras gordas naquele cabeçalho do Jornal de Angola: "Não vamos utilizar o processo habitual, que não seria justo. Nós vamos ditar uma sentença!"


Uma noite no Ministério da Defesa


Era uma dessas noites pós-27 de Maio. No Ministério da Defesa encontravam-se Onambwe, Director Nacional Adjunto da DISA, e Dimuca, que chefiava as investigações gerais da Comissão Militar de Inquérito. Também lá estava o conhecido torturador Carlos Jorge.

À noite é enviada uma ordem para a sede da DISA: "Preparar viaturas para missão muito importante na barra do Cuanza". Na sede da DISA seguem cinco jipes para o Ministério da Defesa. Entram pelas traseiras (23) que dão para o edifício da Missão Militar Soviética. Aí aguardam. A chefia pertence ao futuro capitão Tino. As viaturas levam bidões de gasolina e os soldados estão armados com automáticas akas (24). Desta missão toma parte Moisés, ex-aluno da Casa Pia de Lisboa, cuja família era oriunda da Guiné-Bissau e que me informou de grande parte destes acontecimentos.



AK-47


Onambwe e Dimuca vêm à porta confirmar que tudo está como foi pedido. Dirigem-se a uma das salas do rés-do-chão do edifício onde esteve a antiga Companhia de Comandos do QG português. As portas abrem-se. Dentro estão cerca de trinta oficiais descalços, de mãos amarradas atrás das costas e em roupa interior. Todos eles apresentam ferimentos graves. Há caras tão inchadas que já não é possível ver os seus olhos. O "espectáculo" surpreende os próprios agentes da DISA.

Como se poderá adivinhar, eram militares acusados de participar no golpe de 27 de Maio. A selecção para o fuzilamento era da responsabilidade de Carmelino Pereira. Mas tal correspondia à política do MPLA: o extermínio de toda a oficialidade de Luanda e da 1.ª Região Militar foi a maneira de garantir que nenhum dos traidores escapasse. Isto apesar de os oficiais terem insistido na sua inocência e esclarecido que apenas cumpriram ordens superiores. Não esquecer, em relação a estes factos, que Neto havia, precisamente, anunciado que não seria justo "utilizar o processo habitual" e que, portanto, iria ser ditada uma sentença adequada. Estes processos sumários foram, por conseguinte, sancionados ao mais alto nível (cf. Jornal de Angola, 05.06.77).

Pelas 22 horas, são prontamente deslocados para as viaturas. O cheiro a gasolina anuncia a morte. Eles têm agora a certeza de que vão morrer. Solta-se, então, o seu desespero e um coro de choro e gritos invade aquela noite: "Deixem-nos, ao menos, despedir das nossas famílias... das nossas mulheres... dos nossos filhos". Entre os gritos ouvem-se os nomes das mães, das mulheres, dos filhos. Já as viaturas haviam passado o plano marginal do muro alto do Ministério e ainda se ouviam estas vozes do desespero. Alguns agentes da DISA choram, entre os quais o próprio Moisés que partirá com muita renitência. Os 70 km que separam Luanda do local escolhido na barra do Cuanza foram desgastantes: o choro, as súplicas, os gritos. O rosto dos militares que os acompanhavam exprimia a sua estupefacção e o seu silêncio não iludia o constrangimento e a inominável repulsa que os habitava. Ontem, eram disciplinados e valentes chefes militares; hoje, condenados que choram como crianças. Um dos militares tinha mesmo um primo entre os condenados, facto que ilustra bem a arbitrariedade desta execução (25).

Em São Paulo, no pós 27 de Maio, as noites que eram vandalizadas por vozes de chamamento traziam um medo impronunciável. Não só porque esse horizonte pendia sobre a cabeça de quase todos, mas também porque, na organização destas procissões de condenados, reinava frequentemente a arbitrariedade. Pense-se nos casos em que as vítimas foram levadas e assassinadas por engano, ou naqueles outros casos em que, sobrando espaço nas viaturas, os carrascos regressavam às celas para, a olho, seleccionar mais algumas vítimas (é viva em mim a memória do sucedido com o Augusto Inglês, preso no 27 de Maio, que foi levado para a ambulância da morte em vez de um tal José Inglês, acabando por ser salvo in extremis daquela confusão).






Por vezes o requinte era tal que alguns dos algozes vinham para São Paulo contar com pormenor o que se tinha passado nos fuzilamentos. Refira-se um exemplo. Kapakala e mais uns dezasseis condenados foram fuzilados por ordem do Tribunal. Ora, no dia seguinte, aquele mesmo que tinha ordenado o fuzilamento estava em São Paulo a contar como tudo se tinha passado perante o horror estampado no rosto dos ouvintes - diziam que esse método era do agrado dos dirigentes máximos do MPLA.


Na barra do Cuanza


Chegam, por fim, ao local destinado. É noite cerrada. Uma clareira perto da estrada, uma barraca de apoio aos militares, que guardam esta zona, e tudo o mais é deserto. Os prisioneiros são descidos das viaturas e a gasolina descarregada. As viaturas são dispostas de forma a iluminarem o sítio indicado pelo guarda militar local. Este policiamento local e permanente justificava-se pela frequência destas execuções (26).

Tino levava instruções para fazer sofrer os condenados até aos limites da sua imaginação e experiência. E, de facto, Tino revelou-se um notável executor de tais instruções. Este é, sem dúvida, um dos testemunhos mais eloquentes da violência arbitrária e brutal que o MPLA fez perpetuar no território angolano.

Com o pelotão de execução já alinhado, dirige a palavra aos condenados, como se de um julgamento se tratasse:

- Camaradas, houve um golpe em Luanda. Determino que vocês, aqui perante mim, digam a verdade - e acrescenta - Quem não disser a verdade será imediatamente abatido!

De seguida aponta para o primeiro e pergunta:

- Fizestes parte do levantamento?

- Camarada, eu fazia parte da 9.ª Brigada... - responde este com a voz inundada de medo.

- Camarada, eu não tomei parte em nada - afirma o segundo.

- Ah! Não tomaste parte! muito bem! - Ordena que este oficial seja colocado de costas para o mar e grita:

- Fuzilar!









Os militares disparam. O Barulho é ensurdecedor (por isso procuraram um local como este, descampado, com uma única testemunha isenta, o oceano). O terror aumenta no rosto dos oficiais. O corpo fuzilado cai no chão trespassado de balas. Sob as ordens de Tino o corpo é regado com gasolina e incendiado. Arde como um archote e incha como se de um balão se tratasse. Por fim rebenta, ardendo até ficar reduzido a cinza. O arrepiamento estampa-se no rosto dos próprios militares da DISA. Mas o aviso está feito.

- Digam a verdade, caso contrário vai já acontecer o mesmo - vocifera Tino.

Seria difícil imaginar um processo de execução mais violento, sádico e, sobretudo, mais eficaz na fermentação do medo na consciência daquelas vítimas seleccionadas para este "abate". A noite, a completa  irracionalidade do interrogatório, os tiros, o sangue, a gasolina... adensaram o terror, fazendo desta antecâmara da morte um verdadeiro inferno. De facto, diante de tudo aquilo que viram e ouviram, todos optaram por confessar o que lhes era pedido. Porém, quando o último se acusou, logo recomeçou a execução; a morte tinha sido adiada por poucos minutos. Foram mortos um a um, para que cada um fosse obrigado a ver na morte dos companheiros, prelúdio da sua própria. No fim, depois dos "ritos" da bala, seguiu-se o banho de gasolina e a respectiva cremação dos corpos num autêntico gesto de ostentação do horror. A pá lançou os últimos resíduos ao mar, selando o destino trágico desta geração angolana de oficiais e procurando calar qualquer evidência que denunciasse estes fuzilamentos.


O tribunal popular revolucionário


27 de Agosto de 1975: um julgamento popular em Luanda

Alguns sectores da população angolana acreditaram facilmente nos ditos da política fácil, "que tudo era do povo", "que era ele quem mandava". Nisto se incluía a capacidade judicial nos tribunais. O Tribunal Popular tornou-se o emblema de um sistema que queria iludir os cidadãos com o rebuçado do "poder popular". Entre os presos circulavam frequentemente informações sobre este instituto popular, julgamentos com execuções imediatas, entre outros, no Huambo, no Dundo, no Bié e em Luanda.

Esta política estava ao serviço de uma estratégia desesperada de perseguição de apoios, que rareavam. Para tal, não faltou, também, o recurso aos arcaicos mecanismos de desfiguração diabólica do inimigo - diziam que os da FNLA comiam corações humanos e não poupavam as crianças.

O MPLA quis mostrar ao povo, de forma concreta, o modo de exercício daquele "poder popular". Estava-se em meados de Agosto, no ano de 1975, antes ainda da proclamação da independência. Aproveitando o facto de existirem queixas contra os militares de uma unidade militar denominada "4 de Fevereiro de Luanda", constituída por lupens recrutados nos bairros mais pobres de Luanda, Neto anuncia um julgamento popular. Aqueles militares eram acusados de terem praticado vários crimes na zona do Cacuaco - não pude perceber como se chegou a essa acusação.



Bandeira do MPLA



Quando deslocados para esses julgamentos "populares", os presos eram frequentemente revestidos com um fardamento próprio, acentuando todos os traços da desfiguração. Apreciei muito o arrojo de Armando Monteiro. Ele conseguiu trazer para Portugal um daqueles humilhantes fatos que impunham a todos quantos iam a julgamento. Os presos ficavam de tal forma parecidos com seres de um outro mundo que o desenho daquele fato macaco parecia concebido com a clara intenção de os achincalhar. Por precaução, Armando Monteiro retirou-lhe o P que em pano branco cobria as costas, pois temeu que fosse identificada aquela peça de vestuário nalgum controlo antes da saída de Angola.

Entre os acusados de que aqui falo está o próprio comandante da unidade, o Virgílio Sottomayor (veio a saber-se que ele não podia encontrar-se no local dos crimes de que era acusado pois, nessa altura, estava numa festa de casamento, mas nem essa evidência lhe devolveu o reconhecimento da sua inocência). A propaganda do MPLA tinha um objectivo claro - convencer todos de que o destino daqueles acusados dependia do veredicto soberano do povo.

João Faria (27), meu vizinho de cela em São Paulo, ao tempo repórter da Rádio Nacional Angolana, deixou-me o testemunho da sua observação. De facto, Agostinho Neto, de conluio com Carlos Macedo, presidente do Tribunal Popular Revolucionário, já tinha traçado o destino daqueles acusados - dizia-se que os caixões já estavam feitos, que estavam de reserva para os lados do "Morro da Luz" e que, na altura propícia, foram deslocados para o local do abate.

Naquele "julgamento popular" terão estado umas dez mil pessoas que constituíam uma multidão mobilizada pelos novos poderes que a propaganda do MPLA tinha produzido para mascarar os seus próprios desígnios políticos. O tribunal reuniu num campo de futebol - o da Académica - a quatrocentos metros da praia.

Fizeram parte daquele "tribunal popular" Henrique Abranches (28) (Comissário da Polícia Militar), Manuel Pacavira (29) e José Van Dunen (Membros do Comité Central do MPLA), Nado (Comissário Político das FAPLA), Betinho (representante das comissões populares do Bairro de Luanda) - alguns destes viriam a ser fuzilados no pós-27 de Maio. Pacavira, que havia estado preso ao lado de Virgílio Sottomayor, no Tarrafal (na Ilha de São Tiago, em Cabo Verde), no tempo colonial, fez o discurso da pedagogia do "poder popular" e explicou ao povo o funcionamento do tribunal. Depois, tomou a palavra o tenente Carlos Macedo. Os acusados são confrontados com a notícia dos autos que os acompanham - confissões obtidas sob a violência de um tal Bom dos Bons. Uns confirmam a confissão, outros, como o comandante Sottomayor, negam tudo. A confusão é grande entre os populares: "esse, sim... esse, não...". Acabaram por condenar ao fuzilamento os sete já designados. Bastaram uns trinta minutos. Os condenados subiram, então, para uma carrinha aberta Datsun, pintada de vermelho, que os levou para um descampado, dito das "antigas barrocas do sambizamba", junto à esquadra "Brinca na Areia" - ficava nas proximidades do campo do "julgamento popular".

A tragédia seguiu os ritos habituais. Fizeram-nos descer, colocaram-nos em fila. Dois deles eram, ainda, de tenra idade, tinham dezasseis e dezanove anos. Ordenaram-lhes que corressem na direcção da praia. Por uns momentos, como que se suspendeu a respiração da multidão que tudo observava. Mal os sete condenados começaram a correr, os cinco atiradores apontaram e cumpriram a sua missão (entre eles estavam alguns nomes bem sonantes: o Estrela, conhecido por bazuqueiro das FAPLA; o Tirola, reputado criminoso de delitos comuns). Os tiros não foram, em certos casos, imediatamente fatais. Mas aquelas armas soviéticas, as PPXAH - cujo código é EE (x)7Z -, de tambor redondo, não permitiam que o serviço ficasse a meio; apontadas à cabeça dos moribundos, antes que chegasse qualquer socorro, não deixaram dúvidas sobre o desfecho desta trágica cena.

O horror era agora insuportável naquela exibição dos corpos abandonados e violentados pelas balas. De acordo com os testemunhos que anotei, algumas mulheres terão desmaiado, acabando nas urgências do hospital. Uma coisa é certa, a turba ali reunida deixou de confiar tanto no seu "poder popular". O MPLA deve ter percebido esse sinal de desaprovação, uma vez que abandonou as práticas dos julgamentos populares em Luanda.








(...) "Temos ordem do Presidente para matar"


Quando, com os portugueses que estavam em São Paulo, fui à Casa de Reclusão para ser recebido, com os outros compatriotas, pelo Cônsul de Portugal, conheci aí um desgraçado cuja história espelhava o absurdo da justiça angolana.

Em meados de 1979 terá sido levado perante o Tribunal Popular Revolucionário, com o aparato do costume, vestido com aquela espécie de fato-macaco com um P cosido nas costas, em pano branco. Foi numa altura em que o Tribunal estava muito activo no despacho de gente para a morte - ainda recentemente tinham dali saído mais de uma dezena de unitas luandenses condenados à morte.

Quando o referido preso entrou no Tribunal, todos perceberam que apresentava sinais de alienação mental - os meus informantes sublinhavam que essa loucura era uma consequência das torturas que lhe tinham imposto.

O julgamento começou como habitualmente com a sua identificação. O estado do preso fazia perceber que ali não era lugar para resolver aquele caso. O presidente do Tribunal, Adolfo João Pedro, mandou que ele desenhasse com giz, no chão, um quadrado, depois um círculo. Não sei que tipo de teste era este, mas é certo que o preso nunca deu conta do recado.

O tribunal ordenou o seu internamento no Hospital Psiquiátrico de Luanda, instituição dirigida por um médico muito estimado pela população, o Dr. Africano Neto. Mas a segurança não cumpriu a ordem do tribunal, encarcerando-o de novo na Casa de Reclusão. Em Janeiro de 1980 ainda esperava pelo internamento no Hospital. Ao que apurei, o agente Cansado não concordava com o acórdão do Tribunal, tomando assim a liberdade de corrigir tais deliberações. Quando era invectivado a responder pelas razões do seu comportamento, respondia: "Aqui em Angola quem manda é a DISA. Temos ordem do Presidente para matar".


Agosto de 1980: fuzilamento de "unitas"


Eram dezasseis luandenses. Foram presos carregando a acusação que os apontava como autores de vários atentados bombistas nas instalações soviéticas em Luanda. Degredados em São Paulo, dormiam no cimento, na "automotora", sem direito ao conforto mínimo de um colchão ou de uma manta. A comida que lhes serviam era sempre acompanhada de ameaças de morte "para levantar o apetite", diziam. Todo o processo evidenciava que talvez houvesse já um qualquer destino para estes luandenses. Eles próprios, quando nos encontravámos na tomada de sol, insinuavam esta preocupação. Nestes encontros, sob o auspício solar, eram bem visíveis aqueles edemas que lhes cobriam os membros, rasto da agressividade que os corpos suportavam no contacto com os pavimentos frios e sujos.


"Memorial Dr. Agostinho Neto" (mausoléu), inaugurado a 17 de Setembro de 2012


A evidência desta situação desenvolvia cada vez mais solidariedades entre os presos. Tal ficou patente naquele dia em que o Comissário Provincial Mendes de Carvalho visitou São Paulo. As queixas eram muitas. Logo nas primeiras celas, ouviu os presos falarem daqueles seus companheiros que estavam na "automotora". Esta foi mesmo a derradeira etapa desta visita. Aí viu e sentiu aquilo de que, certamente, já tinha ouvido falar: o cheiro nauseabundo das latrinas entupidas, a densidade dos corpos, as feridas fétidas, as mutilações, os rostos entre o medo e a revolta. Chegando junto dos unitas presos pôde observar que a miséria era ainda mais insuportável, mas justificada, na sua óptica, pela condição dos presos: "Ah! Mas isto aqui é tudo Kwachas" [assim eram chamados os unitas pelo MPLA]. Estava tudo explicado, esta casta não merecia mais do que lugar fedorento, sem mantas ou colchões.

Mendes de Carvalho não foi embora sem ouvir, ainda, o grito incontido do alferes Colino Ricardo Wandalika: "Vocês são uns criminosos. Hão-de prestar contas, um dia, diante do povo angolano. A mim, já quase me destruíram a boca". Os gritos deste unita não fizeram deter o desdém do Comissário (algum tempo depois o alferes conheceria, como outros, o fuzilamento no Humbo).

Estes unitas eram, no entanto, demasiado conhecidos para desaparecimentos sumários. Chamados ao Comando tentaram convencê-los, por artes de maquinação e simulação, de que tudo não passava de um engano, de um lamentável erro que era necessário redimir. Só que, para tal, era necessário que eles assinassem uns papéis, uma formalidade para justificar institucionalmente a sua estadia na cadeia - "um pró-forma", disseram, por entre aquela amabilidade de Fausto. Todos estavam preocupados com aquela situação: "até o senhor Presidente" [referia-se a José Eduardo dos Santos], insistiram (nesta, como noutras situações, o agente Puati, acolitado por um cubano, era o principal engenheiro destas investidas para a obtenção de autos).

Regressados às celas, a desconfiança e a incredulidade foram cedendo lugar à esperança de que o tormento poderia estar perto do seu termo. Alguns dias depois começaram a ser chamados. A engrenagem vitimária estava em pleno funcionamento.

Não pude reconhecer os contornos de cada um dos autos, mas pude apurar que muitos dos presos se recusaram a assinar tais documentos. Foi António Kapakala, enfermeiro e estudante de medicina, quem se lançou numa cruzada - se calhar, tão crédulo quão desesperado - para os convencer a todos da bondade daquela proposta, pois só assim poderiam ver concretizada a prometida liberdade. O ardil acabou por funcionar.

Os autos estavam assinados. Mas a almejada libertação tardava. A desumanidade das condições de vida nas celas não sofreu qualquer brandura, a não ser que se tenha em grande consideração o facto de terem passado a ter a permissão de ver televisão com os outros presos, novidade que teve pelo menos o mérito de nos fazer conhecer um pouco da história de desespero que lhes preenchia os olhos e as palavras.

Foi assim que descobri que alguns tinham sido presos em razão de tal ou tal amizade e que outros eram acusados de terem ligações com colocação de bombas, em Luanda, na Aeroflot (URSS) e na Balkan (Bulgária). Pelo que pude perceber, daqueles dezasseis, talvez apenas uns seis seriam, de facto, simpatizantes da UNITA.






Na minha memória retenho, ainda, os olhares de fadiga e desespero do Victor Chama, o Fortuna Machado, o Bento Salomão e, por perto, a palavra pronta de Kapakala com a missão de não deixar morrer nos seus companheiros a promessa de liberdade.

Só a visita do Ministro do Interior, Kundi Payama [veio a ser Ministro da Justiça], em Novembro de 1979, os fez chocar com a evidência da mentira que ajudaram a fabricar. Nesse dia foram todos chamados para fora dos edifícios das celas; aí puderam falar com o Ministro que, aliás, se revelou uma pessoa de trato amistoso. Por entre as queixas habituais também a voz de António Kapakala se fez ouvir, interrogando o Ministro acerca da data em que lhes seriam abertos os portões de São Paulo. Ele respondeu que não podia tomar qualquer iniciativa, pois, agora, o seu caso e o de todos os seus companheiros da UNITA só poderiam ser resolvidos no Tribunal Popular Revolucionário.

Não tardou que chegasse um dos dias mais sombrios na minha memória. Nele assisti a algo que não conhecia ainda. Numa espécie de procissão de penitentes, os unitas estavam ali diante dos nossos olhos, envergando o tal fato-macaco, que pouco descia abaixo do joelho, com um enorme P branco cozido nas costas. Arrastavam-se com o peso da humilhação e o medo de adivinhar o que lhes iria acontecer.

Esperava-os o Tribunal Popular Revolucionário. O tal "pró-forma" dava, afinal, lugar ao simulacro de um julgamento montado sobre as suas assinaturas, colhidas com a promessa aliciante de liberdade. Funcionou a máquina da mentira e a condenação à morte surgiu como a palavra inequívoca de um destino de morte sem recurso.

O regresso a São Paulo foi de júbilo para os carrascos, mas de indizível dor para os condenados, fechado que estava, cada vez mais, o horizonte. Restava agora a espera pouco confiante de que o Presidente comutasse a pena.

E o fim aproximou-se sem pedir licença. O seu anúncio chegou a São Paulo pela mão de um funcionário do Tribunal Popular Revolucionário. Entrou no Comando. Minutos passados, chamaram um a um aqueles dezasseis acusados. De lá saíram com um papel na mão, um bilhete para a morte, por entre lágrimas e gritos. Alguns tiveram mesmo que ingerir calmantes para que os minutos fossem suportáveis. Nesse dia não pudemos já contar com a sua presença na televisão. A consternação era geral.

O alarme tinha já soado antes. É que, na véspera, a DISA havia comunicado aos seus familiares que poderiam trazer, no dia seguinte, comida com fartura para os seus. Ora, por aqui, a fartura e a benesse escondem, quase sempre, o engenho e a arte da tortura e, por vezes, profetizam o fim.

No dia da matança não faltou o Carmelino Pereira. Esse mulato de Benguela trazia um monte de cuecas ("cuecas cubanas", diziam) que, com a ajuda de outros, distribuiu aos condenados, chamados que foram, um de cada vez, à sua presença. À boleia desta reduzida indumentária vinha a notícia, já adivinhada, de que o camarada Presidente Eduardo dos Santos não perdoava.



Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos







José Eduardo dos Santos e Fidel Castro


Depois de receberem a indumentária e a confirmação do veredicto, regressaram às suas celas. Passaram junto de mim, bem como de outros presos. A palavra "morte" surge como se de um subterrâneo nascesse, traduzindo-se, de forma cada vez mais pungente e intolerável, em gritos mais afiados do que facas (recordo aqueles de Cristovão Elias "Cristo"). Um dos condenados gritava de tal maneira que lhe tiveram de dar uma qualquer droga.

Uma hora antes do sol-posto, aparece Carmelino Pereira com um grupo de dezasseis soldados da Casa de Reclusão - vinham juntar-se ao pelotão de São Paulo (30). Os condenados são conduzidos pelo tenente Miranda até a alguns metros da ramona que está na porta de armas. Aí começou o fim, como puderam testemunhar os presos da SIGA (31) e o português Ventura, que neste momento por ali passava.

Os pulsos foram-lhes atados com um cordel, atrás das costas, até que a dor se tornasse grito (Tira-Ranho era presença habitual nestas condições), e assim prosseguiram com pontapés, coronhadas, entre outras agressões, acompanhadas de uma cacofonia torpe de insultos. Descobriram alguns, ainda, como Mendes Augusto, força para resistir à violência dos carrascos. Mas o exercício da agressão era já indiferenciado e irracional sob a sombra da morte - tal pancadaria pretendia ser, naquela ironia sem pudor, um "suplemento" de coragem para os mais hesitantes e desesperados. Foi uma visão do inferno, aqueles corpos quase nus, sulcados de feridas, descalços, empurrados uns contra os outros, o choro, os gritos, o desespero estampado no rosto. Foi, ainda, sob pontapés, murros e todo o tipo de golpes baixos, que subiram para a ramona aqueles corpos já desfalecidos, numa quase nudez, disfarçada com uma espécie de cueca - a já referida «cueca cubana».

Dirigiram-se para o Campo Militar do Grafanil. Ali estavam dezasseis postes ladeados de outros tantos caixões, monumentos de morte, visão do horror. Ainda descalços, indumentados apenas com as "cuecas cubanas", cada um dos condenados é preso a um dos postes, mas sem qualquer venda nos olhos - nada os devia poupar ao terror daqueles momentos.

O pelotão está a cerca de sete metros dos condenados. Neste frente a frente, adensa-se o assombro com algumas perguntas da praxe: "Angola é independente?... Camarada Neto é o guia imortal da revolução angolana? [note-se que nesta altura já Agostinho Neto estava morto]... É o camarada José Eduardo dos Santos o grande timoneiro do povo angolano e o nosso presidente?"... Apenas a primeira pergunta obteve resposta afirmativa; as seguintes foram acolhidas por um silêncio de revolta e acusação, salvo o caso daquele preso que aproveitou para gritar a sua revolta, acusando Neto de ter vendido a sua pátria à União Soviética e a Cuba.

Os tiros não tardaram, mas não segundo a figura do fuzilamento comum. Não houve qualquer ordem para que os executores disparassem simultaneamente, foram disparando sucessivamente para regiões não vitais do corpo - pés, pernas, braços -, levando ao paroxismo o horror dos corpos estilhaçados, corpos em pedaços que voam pelos ares. Cada um dos condenados, sem qualquer venda nos olhos, podia ver o seu corpo e os dos seus companheiros desfazerem-se em sofrimento por entre gritos, até que a morte chegasse. O horror chegou mesmo ao rosto de alguns dos militares que ali estavam observando as execuções (a situação tem tais contornos que mesmo a mente mais perversa e cruel condenaria).

De acordo com o testemunho do André e do português Luís Lopes, ainda demorou meia hora até que a morte habitasse por completo aqueles cepos hirtos, dependurada em corpos desfigurados. Para que não restasse qualquer dúvida, estenderam os corpos no chão e sobre eles despejaram mais algumas munições: "Aqui está a certidão de óbito", afirmou um dos dirigentes (32).

A visão delirante da morte tornada espectáculo trouxe o sentimento de repulsão a uns tantos executores da Casa de Reclusão, que se apressaram a fugir do local (houve até quem o fizesse durante o massacre). Alguns dos seleccionados eram quiocos, homens de sensibilidade pouco conforme a tal horror (33). André, da guarnição de São Paulo, nesse dia, não conseguiu sequer jantar. Trazia as botas cobertas com um pó avermelhado, vestígios do local da tormenta; logo que pôde falou connosco, e foi nas suas palavras que encontrámos as notícias daquela inaudita execução, que mais se assemelhava a um ritual sádico de celebração da morte. O Comando veio a saber que este soldado "tinha dado com a língua nos dentes". Alguns dias depois, arranjaram-lhe um qualquer serviço no exterior... morreu num "acidente de viação".

Esta acção parece ter pretendido adquirir o estatuto de exemplaridade. Para saber como tudo se passara não faltou o Presidente do Tribunal Popular Revolucionário, Adolfo João Pedro, que, ainda neste Agosto de 1980, se deslocou a São Paulo para aí se reunir com os agentes e militares que tinham estado presentes naquelas execuções - juntaram-se para conferenciar naquela espécie de rua entre o edifício do refeitório e a cela da Revolta Activa (34). Os presos estavam convencidos de que Adolfo João Pedro queria levar, o mais depressa possível, notícias frescas a José Eduardo dos Santos (in ob. cit., pp. 85-99 e 102-107).




José Eduardo dos Santos e Nelson Mandela






Notas:

(20) Tinha um irmão ou irmã em Lisboa. A sua mãe lutou com vigor pela sua libertação.

(21) Em S.Paulo esteve também encerrado, mais de três anos, um tenente de nome Preto - era ele que me dava água, quando fiquei incomunicável - que depois de libertado foi imediatamente aconselhado a não regressar à sua terra, no Kunene, pois a sua mulher já tinha um filho de um alto dignitário do MPLA.

(22) Era um dos responsáveis pelo Sector do Pessoal do Ministério da Defesa e tinha tido ligações com vários sectores militares.

(23) Neste edifício funcionou o CCS do tempo colonial.

(24) Referência à arma mais célebre no conflito angolano, a AK.

(25) Inferno, motorista e amigo de Agostinho Neto, dizia que por várias vezes militares haviam sido forçados a matar os seus familiares. Inferno tinha pertencido ao MPLA no tempo da guerrilha pela independência. Depois passou a trabalhar no Palácio Presidencial.

(26) Carlos Pacheco refere-se desta forma aos acontecimentos trágicos que aqui se descrevem: "Neto de certeza nunca soube quem, de facto, matou Bula, Nzagi e outros dirigentes encontrados dentro de uma ambulância; e também o que aconteceu com duas brigadas de elite, cujos soldados, durante a noite, em praias distantes de Luanda, foram trucidados um a um, na presença uns dos outros, num espectáculo de inenarrável terror, em que as vítimas, trespassadas pela loucura do medo, chocaram até ao último instante, suplicando que as poupassem". Repensar Angola, Lisboa: Vega 2000, 118.

(27) Licenciado em Direito. Veio a ser correspondente do Diário de Notícias, em Luanda.

(28) Algum tempo depois, foi retirado destes processos e empurrado para um sector administrativo. Era branco, e quando cresceu o descontentamento perante o que se havia passado nesse julgamento popular, tornou-se presa fácil do dito: "é um branco que anda a dizimar pretos".

(29) Manuel Pacavira exerceu funções de governação provincial no Cuanza-Norte; mais tarde tornou-se Embaixador de Angola, em Itália.

(30) Remédios, mecânico português sempre muito bem informado, disse-me que tinha sido difícil conseguir estes soldados para o pelotão de fuzilamento - ao que parece, foi necessário recorrer a alguns elementos do exterior. Tirando alguns "profissionais", o fuzilamento era uma missão que enfrentavam com repugnância. Notícias semelhantes e complementares recebi do Barreto e do Carreiras.

(31) Esta secção da cadeia de São Paulo tomou o nome da empresa SIGA porque aí foram enclausurados os seus trabalhadores. À SIGA foram parar muitos elementos da segurança angolana, como o José Mingas, alto responsável da DISA. Na memória de todos os presos pesava a lembrança daquelas noites em que o choro tomava conta do silêncio da noite e invadia todos os cantos da SIGA. Nesse ano de 1977, saíram daí muitos angolanos para as noites dos fuzilamentos.

(32) Algumas das circunstâncias desta execução serão facilmente verificáveis quando um dia os familiares destes condenados quiserem levantar os corpos destes seus entes queridos, depositados em vários cemitérios de Luanda.

(33) Sabino dos Santos C. Matos, são-tomense que me visitou em 26 de Novembro de 1981, não deixou de me referir o caso de um tenente, seu amigo, que nunca mais foi o mesmo depois destes fuzilamentos. Graças ao testemunho deste tenente, conhecemos alguns dos pormenores destas execuções.









Continua



Holocausto em Angola (iii)

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Escrito por Américo Cardoso Botelho













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«Durante a Segunda Guerra Mundial, os simpatizantes pró-soviéticos nos Estados Unidos incluíam várias pessoas que detinham cargos médios no Governo. Entre eles encontrava-se Nathan Witt, do Departamento da Agricultura, Alger Hiss, do Departamento da Justiça (mais tarde Departamento de Estado), e Victor Perlo, do Departamento do Tesouro. A história de Alger Hiss, que trepou até uma alta posição dentro da hierarquia do Departamento de Estado enquanto trabalhava como espião soviético, foi um caso típico dos esforços soviéticos para se servirem do Partido Comunista Americano como campo de recrutamento. Um outro simpatizante comunista e espião soviético nas fileiras do Departamento de Estado foi Noel Field. Apanhado nas purgas políticas da Europa do Leste depois da Segunda Guerra Mundial, Field passou vários anos numa prisão húngara, sob suspeita de ser um espião da CIA. Foi libertado durante a revolução húngara de 1956, e no princípio dos anos 60 trabalhou mais uma vez para os serviços de informações em especial como tradutor e como editor de falsificações antiamericanas. Julius e Ethel Rosenberg foram sentenciados à morte em 1951, e executados dois anos mais tarde como sendo espiões russos e por passarem segredos atómicos para Moscovo. Julius Rosenberg, um comunista muito dedicado, prestara esses serviços voluntariamente.

(...) Apesar do julgamento dos Rosenberg haver sido posto em causa pela Comissão Americana para Garantia de Justiça no Caso Rosenberg, e por numerosos jornalistas, advogados e pelos filhos dos Rosenberg, nenhum deles conseguiu fornecer elementos novos que provassem a inocência dos Rosenberg. De acordo com uma declaração pública de Robert L. Lamphere, em 1982, que trabalhara no FBI de 1941 a 1955, este tinha conhecimento do envolvimento dos Rosenberg com os soviéticos, por intermédio de mensagens do KGB, descodificadas.

(...) O último grande grupo de espionagem composto por membros do Partido Comunista Americano foi o de Jack Soble. Inicialmente um admirador e apoiante de Trotsky, Soble foi recrutado em 1931 e instruído para penetrar no círculo íntimo de Trotsky. Quando este ficou desconfiado, Soble foi para os Estados Unidos em 1941 e organizou uma rede de espiões que recebeu uma grande variedade de missões, desde o roubo de documentos secretos do Governo americano até à penetração em organizações sionistas e trotsquistas. Depois da sua prisão, Soble declarou-se culpado e foi sentenciado a sete anos de prisão, e em 1961 o seu irmão foi condenado pela mesma ofensa. Vários membros do grupo Soble, avisados pelos soviéticos, conseguiram escapar-se para a Europa.








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(...) As agências internacionais, incluindo as Nações Unidas, são também coberturas favoritas para o KGB. De acordo com Arkady N. Shevchenko, o principal diplomata de Moscovo nas Nações Unidas, que desertou para os Estados Unidos em 1978, cerca de metade da delegação soviética de cem pessoas, junto das Nações Unidas, são espiões. Os especialistas dos serviços de informações da Europa ocidental calculam que existem cerca de 130 agentes do KGB nos diversos serviços das Nações Unidas instalados na Europa. Os sensível posto de director pessoal da sede europeia das Nações Unidas, em Genebra, por exemplo, está desde 1978 ocupado por Geli Dneprovsky, um operacional do KGB. A posição dá aos serviços de informações soviéticos um acesso directo às fichas confidenciais de cerca de 3000 funcionários das Nações Unidas.

(...) As Nações Unidas são uma organização internacional que merece uma atenção especial pelo papel que desempenha nas campanhas de propaganda pública ou clandestina conduzidas pelos soviéticos. Sendo uma organização que ajuda a formar a opinião pública mundial e joga um papel vital na manutenção da paz, as Nações Unidas são um grande campo de batalha para a União Soviética e os Estados Unidos. Entre os 32 000 membros da comunidade diplomática das Nações Unidas em Nova Iorque, a União Soviética, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, França e Alemanha Ocidental, Israel, República Popular da China e outros países têm grandes contingentes operacionais das informações. Porém, é a União Soviética que mantém a mais impressionante organização, que consiste na maior concentração de espiões soviéticos em qualquer ponto do Ocidente. Um operacional americano calcula que a rede soviética, incluindo agentes do KGB e GRU e colaboradores ideológicos entre os funcionários soviéticos empregados no Secretariado das Nações Unidas, atinge um total de cerca de 1000 pessoas. Espiar em Nova Iorque é tão habitual que alguns diplomatas se referem às Nações Unidas como sendo a "bolsa de valores das operações globais de espionagem". A espionagem e contra-espionagem electrónica são não apenas óbvias como toleradas. A maior parte dos delegados às Nações Unidas rejeita protecção contra a espionagem porque tal daria a impressão de uma vigilância policial.

Uma hábil diplomacia soviética, a propaganda e as campanhas de desinformação alteraram grandemente a direcção política das queixas do Terceiro Mundo. O tradicional carácter Norte contra Sul das discussões das Nações Unidas (países desenvolvidos contra países menos desenvolvido, foi reorientada pelos soviéticos, transformando-se num conflito Leste contra Oeste. Na Assembleia Geral de 1982, as nações do Terceiro Mundo votaram ao lado da União Soviética uma média de 83,4 por cento do tempo, e o mesmo grupo votou uma média de 20,4 por cento do tempo com os Estados Unidos.













A maior parte da desinformação propagandística emprega a simples técnica da falsificação de um documento com um conteúdo ultrajantemente comprometedor, e da sua entrega anónima nos meios de comunicação de massas. 

(...) Para aumentar a sua colecção de cabeçalhos e assinaturas de proeminentes personalidades ocidentais, os serviços de espionagem soviéticos usam um método simples mas eficiente. Os operacionais estacionados no estrangeiro sob a cobertura oficial de diplomatas, jornalistas ou representantes de várias organizações comerciais, enviam um grande número de saudações aos seus equivalentes estrangeiros e a personalidades importantes todos os Natais. Tal como manda a boa educação, recebem mensagens assinadas e por vezes até escritas em papel timbrado.

(...) Na terça-feira, 16 de Setembro de 1980, um certo número de estações de rádio sensacionalistas, várias redacções de jornais em Washington e Nova Iorque, e representantes diplomáticos nas Nações Unidas de países da África Negra, receberam a cópia de um documento com consequências políticas potencialmente explosivas. No dia seguinte, um grupo de ministros negros convocou uma conferência de imprensa na sede das Nações Unidas em Nova Iorque para exporem "a política externa racista americana para com a África Negra". Os ministros exigiram uma série de acções administrativas, entre elas a demissão imediata de Zbigniew Brzezinski, Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Carter e líder do Conselho de Segurança Nacional . O Rev. William A. Jones, dirigente da Convenção Nacional Baptista e participante na Conferência Nacional dos Pastores Negros, apresentou as provas: uma cópia do que parecia ser um memorando presidencial de treze páginas, com o carimbo de "Secreto" em todas as páginas e ostentando a assinatura de Brzezinski. Quando lhe perguntaram como obtivera o documento, Jones afirmou que recebera uma cópia de "uma fonte fidedigna" e que as suas implicações seriam ponto de discussão prioritária para a Conferência Nacional de Pastores Negros, a realizar mais tarde nesse mesmo ano. As mesmas revelações comprometedoras foram discutidas nesse mesma noite em várias estações de rádio de Nova Iorque e da área de Washington.

A Casa Branca foi alertada quando um certo número de jornalistas telefonou para o secretário de imprensa Jody Powell, para verificação da autenticidade do documento. Numa conferência de imprensa rapidamente organizada, em 17 de Setembro de 1980, Powell distribuiu uma cópia do documento aos jornalistas "a fim de acabar com esta história" porque, afirmou, "o documento é na realidade uma falsificação, e disseminada de modo calculado". Intitulado "Memorando Presidencial da Recapitulação, NSC 46", o comprido documento fazia-se passar por um estudo das relações entre o movimento negro nos Estados Unidos e a África Negra e fora solicitado por  Brzezinski em Março de 1978. Estava dirigido ao Secretário de Estado da Defesa e ao Director da CIA.

O conteúdo era na verdade embaraçador para a administração Carter, pois pedia o apoio americano à África do Sul e a vigilância dos líderes negros africanos. Recomendava também acções contra "actividades coordenadas dos movimentos nacionalistas em África e do movimento negro nos Estados Unidos", e sugeria que as agências de espionagem americanas deveriam controlar e recolher informações sensíveis sobre os representantes negros à ONU que se opusessem à política americana para com a África do Sul. Além disso o documento propunha "um programa especial destinado a perpetuar as divisões no movimento negro", a neutralizar "grupos de orientação radical esquerdista" e a simular "dissensões e hostilidade" entre as organizações negras. Era óbvio que o autor da falsificação pretendera virar os negros americanos contra o Governo, prejudicar a imagem pública de Zbigniew Brzezinski, e virar a comunidade diplomática negra das Nações Unidas contra os Estados Unidos.























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Doze documentos sobre a segurança nacional foram desclassificados durante a administração Carter, em resposta a pedidos feitos sob o Acto da Liberdade de Imprensa. Pelo menos um deles caiu nas mãos do autor da falsificação, que se serviu dele como modelo para fabricar o pseudodocumento NSC 46. Os funcionários da Casa Branca familiarizados com o formato dos memorandos NSC salientaram que o documento usava linguagem governamental utilizada durante a administração Nixon mas abandonada pela equipa de Carter. Em vez de se referir ao Comité de Revisão Política, um termo usado na administração Carter, o documento referia-se a um Grupo interdepartamental do NSC em África, designação utilizada durante a era de Nixon. O verdadeiro memorando NSC 46 era um documento datado de 4 de Maio de 1979 e focava uma revisão das políticas dos Estados Unidos para a América Central. Quando interrogado a respeito do possível autor da desinformação, Jody Powell disse que não era claro se a falsificação era obra de uma potência hostil, ou de oponentes domésticos hostis ao presidente Carter.

A falsificação do NSC apresentava todas as características de uma falsificação feita pelo bloco soviético, mas nenhum dos jornais diários que relataram o incidente o relacionou com a ofensiva de falsificações analisada num muito completo relatório da CIA e distribuído à imprensa em Fevereiro de 1980. Apesar da denúncia do documento por parte da Casa Branca, aquele deixou resíduos de suspeitas entre os diplomatas negros instalados nos Estados Unidos, e entre os líderes negros americanos. Randall Robinson, director da Transáfrica, um grupo de pressão para uma mais agressiva política para com a África do Sul, comentou: "É certamente possível que a administração seja responsável pelo documento". A possibilidade de que o documento fosse produto das fábricas de desinformação soviéticas foi considerada apenas por alto, mas na opinião dos funcionários de Washington que foram entrevistados na altura, a falsificação fora produzida por um grupo doméstico, de esquerda ou de direita.

A falsificação do documento NSC exemplifica mais ou menos o problema da identificação das prolíferas falsificações soviéticas para assim ser revelado ao público o verdadeiro rosto que se encontra por detrás dessa ameaça internacional. Por causa das suas fortes tendências políticas, os meios esquerdistas americanos aceitam as falsificações com facilidade, sem darem uma grande atenção aos procedimentos elementares de verificação. Jornais politicamente ao centro e tão proeminentes como o New York Times e o Los Angeles Times em geral relatam os incidentes de maneira séria e sem se comprometerem, mas na ausência de provas verificáveis do envolvimento soviético mantêm-se cautelosos. Talvez os grandes custos em tempo e dinheiro não justifiquem as suas próprias investigações em profundidade. Por outro lado, publicações e críticos dos media do campo ultraconservador devotam muito tempo e energias ao perigo da penetração comunista, mas os resultados não são consistentes. Um considerável volume de suspeitas sem fundamentos e de acusações lança dúvidas até sobre as revelações de intervenções soviéticas. Entretanto, os soviéticos prosseguem com o jogo da desinformação.










(...) A União Soviética dispõe de uma vasta gama de meios de propaganda ao seu dispor: as agências noticiosas TASS e NOVOSTI, as emissões internacionais de rádio tal como as da Rádio Moscovo e a mais pequena mas mais agressiva Radio Paz e Progresso; emissoras clandestinas instaladas na Europa Oriental, tal como a Voz Nacional do Irão a a Voz do Emigrante Italiano; grande número de livros e revistas distribuídos em todo o mundo em mais de cinquenta línguas e cerca de setenta e cinco partidos comunistas pró-soviéticos fora do bloco soviético.

Para dar credibilidade e interessar as massas pelas suas políticas internas e externas, a União Soviética estabeleceu também uma rede de organizações internacionais que servem de fachada para as suas operações. Entre elas encontram-se a Federação Mundial dos Sindicatos, a Federação Mundial da Juventude Democrática, A União das Mulheres e o Conselho Mundial para a Paz. Estas organizações são utilizadas para influenciarem o comportamento público de vários grupos sociais a favor das políticas soviéticas e para fornecerem uma útil cobertura aos serviços de informações comunistas.

O movimento para a paz, por exemplo, é um dos mais importantes veículos soviéticos de decepção. A política soviética a longo prazo de utilização da paz e de falsas reacções espontâneas contra a política externa militarista dos EUA foi iniciada em Setembro de 1947 pelo representante soviético Andrei Zhdanov, numa reunião do Comintern que teve lugar na Polónia. O Conselho Mundial para a Paz foi fundado em 1949, e operou da sua sede em Paris até que o Governo francês expulsou a organização em 1951, por aquilo que denominou de "actividades de quinta-coluna". Desde o primeiro Congresso do Conselho Mundial para a Paz, realizado conjuntamente em Paris e Praga em Abril de 1949, as reuniões e assembleias foram organizadas mais ou menos de três em três anos, nas seguintes cidades: Varsóvia, 1950; Viena, 1952; Helsínquia, 1955; Estocolmo, 1958; Moscovo, 1962; Helsínquia, 1965; Berlim Oriental, 1969; Budapeste, 1971; Moscovo, 1973; Varsóvia, 1977; Sofia, 1980; Praga, 1983. Todas estas reuniões, cuidadosamente encenadas para atingirem os seus objectivos políticos e militares, em regra apoiam a política externa soviética e atacam as políticas dos Estados Unidos e de outras nações ocidentais. O KGB participa como um operador silencioso e invisível, ligando às escondidas as linhas quebradas e instruindo ocasionalmente os seus agentes para participarem nas campanhas.

Os grupos internacionais de fachada escondem-se atrás de uma máscara de independência financeira e política e de instituições não comunistas, mas em 1978 receberam apoios financeiros da União Soviética no valor de 63 milhões de dólares. Reflectem a política externa oficial soviética e espalham grandes temas de propaganda soviética para criar uma sensação de maciço apoio público às políticas soviéticas em todo o mundo. Além disso, as organizações de fachada são de vez em quando utilizadas como canais de desinformação ou propaganda clandestina.




O amplo uso das organizações de fachada revelou muitas delas como sendo instrumentos da política externa soviética e forçou os soviéticos a procurarem novas formas de cobertura. Nos anos 50, por exemplo, a União Internacional dos Estudantes, com a sua ênfase na solidariedade internacional, cooperação e justiça social, atraiu muitos estudantes ocidentais que se revoltaram com o que entendiam como um sistema social altamente explorador e competitivo. Vinte anos mais tarde a União Internacional dos Estudantes é ainda um útil veículo de manipulação nos países do Terceiro Mundo, mas os soviéticos começaram a aplicar tácticas diferentes no Ocidente. Em vez de criarem uma nova organização internacional que lhes sirva de frente, tentam penetrar e manipular um certo número de organizações nacionais e internacionais legítimas, como fundações e outras.

(...) O Directorado Científico e Técnico (Directorado T) do Primeiro Directorado Central do KGB é o mais lucrativo componente dos serviços de espionagem soviéticos. Os operacionais do KGB afirmam que, em termos de dinheiro, a contribuição do Directorado Científico e Técnico para a economia soviética ultrapassa largamente o custo da manutenção de todo o sistema de espionagem soviético. Foi-lhe confiada a tarefa de roubar os segredos industriais, científicos, tecnológicos e económicos do Ocidente, incluindo dados sobre pesquisa nuclear e espacial. Com mais de quinhentos operacionais, quase todos licenciados por universidades e institutos tecnológicos soviéticos, e com um grande número de consultores, conselheiros e agentes nos principais centros soviéticos industriais e de investigação, o Directorado Científico e Técnico tem sido, nos últimos vinte anos, o sector operacional de mais rápido crescimento em toda a espionagem estrangeira soviética. A missão do Directorado é fornecer, tanto à economia soviética como aos militares, dados científicos que custariam biliões de dólares ao país se tivessem de os desenvolver com os seus próprios recursos. Coopera intimamente com o Comité Científico e Técnico (GNTK), que coordena e regula as pesquisas científicas básicas e dita prioridades cientificas de acordo com directivas do Comité Central do Partido Comunista.

Pouco depois da Segunda Guerra Mundial, vários importantes agentes soviéticos colocados entre a elite científica americana e britânica (Pontecorvo, Fuchs e os Rosenberg), entregaram aos soviéticos as mais valiosas informações que estes já haviam recebido: o segredo do fabrico da bomba atómica. Com esse segredo, os soviéticos obtiveram um estatuto de igualdade como superpotência na arena internacional. Entre os cientistas, especialistas tecnológicos e investigadores ocidentais são recrutados agentes que se dedicam à recolha no estrangeiro de informações de natureza científica e tecnológica, e que levam a cabo medidas activas capazes de fortalecer a economia soviética e a sua ciência, e enfraquecer as dos seus opositores. A maioria dessas operações envolve o contrabando de tecnologia ocidental para a União Soviética. Entre 1981 e o fim de 1983, os funcionários das alfândegas dos EUA confiscaram mais de 2330 carregamentos ilegais no valor de quase 150 milhões de dólares. Em 1983, por exemplo, os soviéticos compraram em segredo um gigantesco computador VAX 11/783 fabricado nos EUA pela Digital Corporation, de Maynard, Massachusetts, para possível uso em mísseis guiados e para a localização permanente de tropas. Foi apreendido em Hamburgo, pouco antes de ser transportado para a União Soviética, via Suécia.


Sede do KGB











O desenvolvimento da desinformação científica demonstrou tratar-se de uma área muito mais difícil do que as outras para os serviços de informação. Enganar os mais altos cientistas do campo inimigo envolve muito mais do que alguns slogans propagandísticos ou falsificações habilidosas. Requer um alto nível de especialização científica que só pode ser obtida junto dos melhores cientistas soviéticos, e nem todos eles se mostram preparados para pôr em risco a sua reputação. Uma excepção, é a área das ciências sociais. As doutrinas marxistas-leninistas justificam a mistura das ciências sociais com a política, e como requerem uma intensa luta ideológica contra o capitalismo internacional simplificam a tarefa do KGB no recrutamento de auxiliares entre os cientistas sociais soviéticos. O KGB tem mais autoridade, confiança e liberdade de acção na arena política do que nos jogos económicos e científicos. O falhanço das medidas activas na obtenção de objectivos políticos é facilmente justificado no Politburo com a desculpa de "existência de obstáculos objectivos", mas o KGB perde muita da sua confiança e agressividade quando estão em jogo enormes quantidades de divisas ocidentais sempre que levam a cabo medidas económicas ou científicas. Uma perda de vários milhões de dólares numa complicada campanha internacional pode ser interpretada como um arriscado desperdício dos bens do Estado, e os autores podem ser enviados para a prisão por prejuízos para a economia soviética.

O rápido crescimento da tecnologia de computadores oferece aos agentes da desinformação comunista oportunidades que eram totalmente desconhecidas há alguns anos atrás. Se uns quantos estudantes liceais americanos, de mentes brilhantes, conseguem decifrar os códigos de computador e manipular sofisticados negócios e computadores de universidades, operacionais do KGB, bem treinados e com a ajuda de especialistas em computadores, podem levar a cabo o mesmo efeito. Extrair dados importantes de um computador ou introduzir dados desinformativos cuidadosamente planeados numa rede de computadores é um novo desafio. Em pequena escala, pode irritar continuamente a instituição ou companhia que estiver a servir de vítima, mas o potencial é muito mais amplo. A penetração com êxito num centro de computadores pode desorientar parcialmente ou até paralisar as defesas militares da nação: pode levar um grupo de cientistas a chegar às conclusões erradas num projecto importante; pode interromper o comércio entre companhias ou entre países.

Ladislav Bittman («O KGB», 1985).




«... Após a última reunião secreta que tivemos com os camaradas do PCP, resolvemos aconselhar-vos a dar execução imediata à segunda fase do plano. Não dizia Fanon que o complexo de inferioridade só se vence matando o colonizador? Camarada Agostinho Neto, dá, por isso, instruções secretas aos militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos, matando, pilhando e incendiando, afim de provocar a sua debandada de Angola. Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos para desanimar os mais corajosos. Tão arreigados à Terra estão esses cães exploradores brancos que só o terror os fará fugir...». 


Carta de Rosa Coutinho dirigida a Agostinho Neto 





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«Foi o almirante Rosa Coutinho quem primeiro ordenou o desarmamento dos brancos, em Outubro/Novembro de 1974, segundo declarações do capelão João Dimantino em Memórias da Revolução. O protagonismo do "almirante vermelho" em território angolano terminou com o Acordo de Alvor, embora continuasse a intervir na sua função de membro do Conselho da Revolução, de 11 de Março a 25 de Novembro de 1975.

Em certas noites, mesmo que não houvesse recolher obrigatório, os tiros e morteiros que cruzavam os céus de Luanda, a "cidade branca", destinavam-se a encobrir acções subversivas ao Acordo de Alvor, afastando, com o ruído das armas, o menor laivo de curiosidade sobre o que se passava fora de casa. Assim aconteceu numa das madrugadas de finais de Abril de 1975, num caso tornado público. Para que o MPLA conseguisse descarregar o armamento do navio jugoslavo atracado ao porto de Luanda, rodeado de faplas para impedir qualquer aproximação, o céu de Luanda cobriu-se de luzes e explosões, com as miras apontadas para o alto, assustando sem causar danos».

Leonor Figueiredo («Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola»).


«Muitos dos responsáveis pelos interrogatórios, pela tortura e pelos massacres angolanos foram, por sua vez, torturados e assassinados. Muitos outros estão hoje vivos e ocupam cargos importantes. Os seus nomes aparecem frequentemente citados, tanto lá como cá. Eles são políticos democráticos aceites pela comunidade internacional. Gestores de grandes empresas com investimentos crescentes em Portugal. Escritores e intelectuais que se passeiam no Chiado e recebem prémios de consagração pelos seus contributos para a cultura lusófona. Este livro [«HOLOCAUSTO em ANGOLA] é, em certo sentido, desmoralizador. Confirma o que se sabia: que a esquerda perdoa o terror, desde que cometido em seu nome. Que a esquerda é capaz de tudo, da tortura e do assassinato, desde que ao serviço do seu poder. Que a direita perdoa tudo, desde que ganhe alguma coisa com isso. Que a direita esquece tudo, desde que os negócios floresçam. A esquerda e a direita portuguesas têm, em Angola, o seu retrato. Os portugueses, banqueiros e comerciantes, ministros e gestores, comunistas e democratas, correm hoje a Angola, onde aliás se cruzam com a melhor sociedade americana, chinesa ou francesa».

António Barreto (Jornal Público, 13.04.2008).




António Barreto



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«Rosa Coutinho teve, também, um papel fundamental na mobilização do apoio cubano. Alguns relatos dão testemunho de uma deslocação de Rosa Coutinho a Cuba, num avião que Fidel Castro dispensou para o efeito. Rosa Coutinho terá estado durante três dias em La Habana para negociar com o Presidente cubano o apoio militar ao MPLA (Rosa Coutinho sabia que a UNITA era mais poderosa militarmente). Para tal acenou a Fidel Castro com as riquezas de Angola, mormente o cobiçado petróleo.

O papel de Rosa Coutinho neste percurso de traição ao povo angolano tem sido frequentemente referido por literatura muito diversificada: "Rosa Coutinho veio em segredo a Cuba [...]. O almirante chegou num avião que Fidel enviou a Luanda e permaneceu em Havana três dias. A sua visita ocorreu num momento chave, em Setembro de 1975, quando na mesa de negociações com os grupos guerrilheiros se chegava a um acordo com vista à convocação de eleições. António Rosa Coutinho sabia que os comícios iam ser ganhos por quem controlasse Luanda e que a UNITA era a organização com mais presença militar [...]. Rosa Coutinho descreveu a Fidel as imensas riquezas de Angola [...], e apresentou-lhe como inevitável o facto do país cair nas mãos da UNITA se Fidel não enviasse tropas". Santiago AROCA, Fidel Castro, El Final del Camino, Barcelona: Planeta, 1992, 275s. Também Juan F. Benemelis chama a atenção para o papel de Rosa Coutinho: "Em Julho de 1974, o governo de Spínola designa como Alto-Comissário em Angola o vice-almirante Rosa Coutinho, que tem fortes ligações com o PCP. A partir do momento em que assume funções, Rosa Coutinho bloqueia tanto a FNLA de Holden Roberto como a UNITA de Savimbi e designa, para cargos-chave do governo de transição, pessoal de confiança que facilita o transporte de contingentes estrangeiros de confiança e de armas soviéticas para o MPLA, que se iniciaram nesse mesmo mês, provenientes da URSS, via Congo-Brazzaville [...]. O vice-almirante Rosa Coutinho favorece a entrega ao MPLA de uma força necessária composta por 6000 catangueses que figuram no exército colonial e pelos angolanos que servem no mesmo. Estes contingentes são enquadrados por conselheiros militares cubanos e checos que se instalam na base de Massangano". Castro, subversão e terrorismo em África, Lisboa: Europress, 1987, 222s.


Encontro do Luso, 18 de Dezembro de 1974. Agostinho Neto, Rosa Coutinho (atrás Lúcio Lara) e Jonas Savimbi







Fidel Castro e Otelo Saraiva de Carvalho em Cuba (Julho de 1975)







Rosa Coutinho e Otelo Saraiva de Carvalho











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Uma amostra do que se ensina nas escolas em Portugal e por esse mundo fora



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Destruição de Angola















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(...) Os direitos que cubanos e soviéticos gozavam no território angolano contrastavam com as privações impostas aos angolanos; desde a liberdade de circulação, dentro do país e para fora do país, até às condições de assistência ao nível da saúde ou da alimentação. Nada revoltava mais os estudantes e intelectuais que habitavam as prisões angolanas. Esta condição de povo refém nas mãos de um partido que se impôs como o único legítimo era, para eles, insuportável.

Estes presos tinham o discernimento suficiente para perceber que se tratava de uma nova colonização que pretendia apenas gerir, na região, uma determinada hegemonia política e retirar, deste país naturalmente rico, os dividendos possíveis. O próprio Lúcio Lara terá dito, quando em 1981 visitou Portugal, que 50% dos recursos angolanos acabavam por permanecer hipotecados em razão da aliança com Cuba e a União Soviética. Com o investimento que era necessário para alimentar a máquina de guerra, nada podia restar para qualquer melhoria das condições de vida do povo angolano. Acrescente-se a isto o facto de, como observa Félix Miranda, os cubanos terem desmantelado grande parte das infra-estruturas industriais angolanas para as transferir para Cuba. Tal foi o que aconteceu à fábrica da Catumbela-Benguela e da açucareira do Bom Jesus no Caxito-Bengo, forçando, assim, Angola a passar de exportador a importador de açúcar (de Cuba, claro).

(...) "São palpáveis os lucros estratégico-militares obtidos pela URSS e por Cuba com a vitória angolana. Isto torna-se evidente nos conflitos etíope-somália e yemenita, assim como nas Malvinas. Quanto a planos a longo prazo estes têm a ver com o petróleo de Cabinda, o uso do porto de Luanda pela frota pesqueira cubano-soviética e o aproveitamento de Angola como base, em circunstâncias anómalas. É demasiado simplista pensar que Castro implementa a sua ajuda internacionalista em Angola apenas para pagar a assistência que recebeu do campo socialista nos primeiros anos. A intervenção castrista apoia o expansionismo soviético ao mesmo tempo que contribui para o êxito das suas ambições pessoais no sentido de ser o centro da política internacional" Juan Benemelis, Castro, subversão e terrorismo em África, Europress, 1986, 257.

(...) Muitos não compreendiam como podiam os cubanos ser tratados com benesses que estavam vedadas aos angolanos. Bastante comentado era o assunto do hotel de luxo do Lubango, capital da Huíla - hotel de cinco estrelas, um dos melhores de Angola. Foi nele que recaiu a escolha de aquartelar os amigos cubanos, depois de uma ocupação legitimada pela violência do mais forte, logo a partir de Novembro.

Outros privilégios se descobriam. Com acesso prioritário ao sistema de comunicações da aviação, a partir da base aérea do Saurimo, os cubanos tinham conhecimento da chegada dos aviões que, ao serviço da Diamang, chegavam ao Dundo com bens diversos, sobretudo alimentares. Assim que um Hércules aterrava, apareciam os camiões de origem soviética, conduzidos por cubanos, em busca de géneros alimentares. Queriam também aves e outros animais para consumo, que na Cacanda eram produzidos com grande eficiência.

Estas chegadas "oportunas" dos cubanos acabavam por atrasar os serviços, impedir a rápida colocação dos produtos, e privavam a companhia de uma boa parte das suas compras realizadas fora de Angola. Entre os trabalhadores, indignados com a obrigação de sustentar este exército estrangeiro, abundavam os comentários: "O Fidel Castro não se esquece de mandar as balas, mas esqueceu-se de mandar comida para os seus internacionalistas".
















Recordo um incidente. Nesse dia, Bernardo Reis tinha-se deslocado a Luanda e eu havia voado para os Camarões. Não estava, assim, ninguém que assinasse as requisições dos bens alimentares que os cubanos queriam. Na Cacanda, o responsável pela exploração disse-lhes que não podia abastecê-los sem as habituais guias. Os cubanos, furibundos, desataram aos tiros em todas as direcções. Foi de tal maneira assustador que os trabalhadores fugiram para os campos vizinhos. O medo era tal que não foi fácil convencê-los a regressar ao trabalho na Cacanda.

(...) Gostava de ouvir as conversas dos presos que, entre outras proveniências, vinham do sul. Muitas delas eram sobre cubanos, pois estavam em quantidade ali na fronteira. Neste dia estava comigo o Paixão, sempre ávido de notícias novas.

O nosso interlocutor vinha do sector da SIGA (onde, aliás, estava grande parte destes homens do sul). Falava do que se havia passado perto da fronteira de Angola com a Namíbia: um cubano decidiu treinar a sua pontaria quando, por perto, um grupo de crianças brincava. As crianças pararam estupefactas quando ouviram um tiro e logo viram abandonado ao chão o corpo de um companheiro que segundos antes ali brincava.

A notícia espalhou-se quase na proporção das dimensões do crime, e a população juntou-se para fazer justiça com as suas próprias mãos. Valeu ao cubano a protecção da força das faplas. O porta-voz desta força militar procurou ultrapassar o conflito declarando: "Isto são acidentes da Revolução".

(...) De entre as queixas que se repetiam entre as paredes da prisão, avolumavam-se as que diziam respeito aos roubos - mesmo se lhe chamavam outra coisa - perpetrados pelos cubanos. João Faria falava com indignação do que havia sucedido, sob os seus olhos, numa grande empresa, a CADA. Ao que parece o exército de Fidel precisava de um equipamento que a empresa possuía. A solução adivinhava-se simples: era só chegar e pegar, sem dar contas a ninguém, mesmo se tal gesto imobilizasse a empresa (recorde-se o que se noticia noutro lugar, envolvendo o roubo da central eléctrica de emergência do bloco operatório do Hospital do Lubango). Comentavam os presos que este material ia frequentemente de viagem até terras de Fidel Castro. Como foram milhares de toneladas de madeira numa área de 500 hectares, provocando em Cabinda desequilíbrios de monta advindos daquela ampla desflorestação [cf. Expresso, 24.11.90]







(...) Serve, também, este testemunho - para além de mostrar mais alguns retalhos de vidas maceradas pelas violações dos mais elementares direitos humanos - para dizer algo acerca do estado da saúde na Angola dominada pelos cubanos. Dos episódios que [os] enfermeiros me contaram acerca da sua experiência hospitalar retive, em particular, os que diziam respeito à mais crassa incompetência dos médicos cubanos. Registei, por exemplo, o que se passou naquela noite de 28 de Maio de 1977 com um soldado, um jovem de vinte e três anos. Estava casado há três meses. Como não havia sido circuncidado, as relações sexuais traziam-lhe algum sofrimento e, em tais circunstâncias, o médico aconselhou-o a submeter-se a uma pequena cirurgia, a qual lhe traria o conforto almejado. Mas o cirurgião cubano que ficou responsável pela intervenção achou que a solução era a amputação do pénis. Os enfermeiros tinham bem vivo na memória aquele momento em que o soldado se deu conta do resultado da cirurgia, momento de raiva e loucura cujos gritos invadiram de dor toda a enfermaria».


Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).


«Como expressaria Álvaro Vasconcelos:

"...A partir de 1974, com a demissão do primeiro-ministro Palma Carlos e do ministro de Estado Francisco Sá Carneiro, o PCP consegue tomar em mãos a descolonização de Angola, conseguindo que para primeiro-ministro seja escolhido Vasco Gonçalves e para presidente da Junta Governativa, seja escolhido um fiel seguidor das suas teses, o almirante Rosa Coutinho. Este fez tudo quanto podia para reforçar o MPLA, o único que considerava 'progressista', em detrimento dos outros movimentos nacionalistas, a FNLA que era considerada como de 'direita', e a UNITA, considerada de 'centro'. Prova evidente do papel que Rosa Coutinho desempenhou é, por exemplo, ter imposto aos mercenários catangueses, anteriores servidores do exército português, a transformação em servidores do MPLA. Fá-lo em Dezembro de 1974, nas vésperas da assinatura dos Acordos de Alvor para a independência entre os três movimentos nacionalistas (FNLA, UNITA e MPLA) e o governo português..."

Enquanto o MPLA e FNLA se vêem envolvidos em contactos com as autoridades portuguesas, a UNITA acelera e generaliza a contenda guerrilheira, uma vez que recusa as propostas de uma confederação portuguesa. A razão assenta em que o MPLA e a FNLA necessitam de apoio exterior para se consolidarem no poder, face ao crescimento e popularidade da UNITA. Quando, posteriormente, fracassa a manobra do MPLA com Portugal, este decide jogar a carta cubano-soviética.


















































A descolonização ultramarina portuguesa não encontrará a URSS mal preparada como acontecera quinze anos antes quando da descolonização franco-britânica. Isto terá muito a ver com a posição do PCP de que a URSS e Cuba iniciem a partir de 1974 a introdução de armas e homens para beneficiar o MPLA, aproveitando a instabilidade metropolitana.

Enquanto ao longo de 1974, a FNLA continua operando nas regiões nortenhas de Angola, Agostinho Neto procura desesperadamente tomar o poder pela força. É conhecido em Moscovo, em Havana e entre os marxistas portugueses, que apenas através da superioridade militar poderá o MPLA inclinar a balança a seu favor, especialmente após a cisão das forças comandadas por Daniel Chipenda.

(...) A administração Nixon, influenciada por Henry Kissinger, estimava que os movimentos angolanos eram extremamente débeis, não possuindo os Estados Unidos alternativas para um processo de descolonização. Sem dúvida, a URSS estava a par destes critérios da burocracia norte-americana e de que Washington não afrontaria uma escalada em Angola, mas que apenas procuraria entorpecer as operações. Fidel Castro, por seu lado, seguiria pormenorizadamente os acontecimentos em Portugal e Angola.

Procurar-se-ia a fortalecer Agostinho Neto com o apoio cubano-soviético, para evitar que Jonas Savimbi ou Holden Roberto ficassem com o controlo do vital porto de Luanda. Em Outubro de 1974, a URSS inicia o seu envio massivo de armamentos ao MPLA, através do Congo-Brazzaville, ao mesmo tempo que Holden Roberto recebe assistência técnica e militar da Roménia e da China, contando com mais de cem assessores chineses, incluindo um general.

Durante esse lapso de tempo, o denominador comum em Angola é a divergência entre as organizações que se haviam oposto ao colonialismo. Savimbi propõe, então, a união dos três movimentos, o que não se concretiza apesar de vários estados e líderes estarem de acordo com esta mesma manifestação.

Em 1975, entra em funções o governo de transição angolano nascido dos Acordos de Alvor, Portugal, a 5 de Janeiro, conseguidos no final do ano anterior, com a participação equilibrada de Lisboa, da UNITA, da FNLA e do MPLA, com o compromisso da realização de eleições em Novembro de 1975.

Segundo os termos deste Acordo, visa-se o desarmamento das tropas "especiais" formadas por catangueses e zambianos, ao serviço do exército colonial português. No entanto, grande parte desses dois exércitos, assim como as unidades auxiliares de angolanos, seriam "trespassadas" ao MPLA, em Janeiro de 1975, por ordem do Alto-Comissário Rosa Coutinho, que autoriza o MPLA, para além do mais, a proceder a recrutamentos na zona de Luanda. A introdução de armamento soviético e instrutores cubanos a favor do MPLA continua, uma vez que se inicia a assistência prestada pelo Zaire e Estados Unidos ao FNLA, desencadeando-se a guerra civil.

Com as tropas cedidas ao MPLA, por Coutinho, e com o armamento proveniente da URSS, além de certos arsenais portugueses generosamente postos à disposição, Neto disporá dos recursos necessários para bloquear o governo provisório, evitar as eleições e levar a disputa ao plano militar.








Encontro de membros da Junta Governativa de Angola com Jonas Savimbi e directório da UNITA no Outono de 1974 no Leste. Da esquerda para a direita na primeira fila, os elementos da comitiva portuguesa: Ferreira de Macedo, comandante da Região Militar de Angola; António Silva Cardoso, comandante da 2.ª Região Aérea; Rosa Coutinho, presidente da Junta Governativa e Altino de Magalhães, comandante do Comando Militar de Luanda. Na segunda fila do lado direito, Pezarat Correia, coordenador do MFA de Angola.


As queixas da FNLA e da UNITA, a partir da própria Conferência de Alvor, a respeito da parcialidade de Rosa Coutinho, levam Lisboa a substituí-lo por Silva Cardoso que, por sua vez, é rapidamente substituído como Alto-Comissário pelo chefe da Marinha de Guerra Portuguesa em Angola, o comandante Leonel Cardoso, outro conhecido simpatizante do MPLA, que consolida a reorganização militar deste movimento.

A partir dos últimos meses de 1974, os soviéticos incrementam o seu apoio militar ao MPLA. Em Outubro, Neto recebe através do porto do Lobito, carregamentos de armas soviéticas procedentes de Brazzaville, ao mesmo tempo que coloca no velho forte português de Massangano, cem milhas a sul de Luanda, um grupo de instrutores cubanos. A presença destes é descrita por um oficial do exército de Castro que participou directamente na campanha angolana:

"...Dezasseis cubanos especialmente treinados em guerra de guerrilha e sabotagem, todos os membros das chamadas Tropas Especiais, ajudaram a insurreição angolana contra o Governo Central de Lisboa e as suas forças armadas. Seguiram via Guiné-Bissau, sob as ordens do comandante Estebanell, convertendo-se assim na união entre a União Soviética e o chefe Guerrilheiro Agostinho Neto..."

Esta conexão angolana entre o MPLA e as altas autoridades portuguesas é facilitada por Álvaro Cunhal e o seu partido. Em África conta com o apoio de Marien Ngouabi no Congo-Brazzaville, Samora Machel de Moçambique, Sékou Touré da Guiné e no Yémen do Sul com Abdul Fattah Ismail. Por trás desses movem-se as sombras de Fidel Castro e Leonid Brezhnev.




(...) Em Fevereiro de 1975, Holden Roberto denuncia os planos soviéticos de instalar, pela força, o MPLA no governo, com a conivência das autoridades portuguesas em Angola, a presença de instrutores cubanos em território angolano e o equipamento militar que o MPLA vinha recebendo da URSS via Pointe Noire e Lobito. À medida que as forças de Holden Roberto se deslocam para a capital iniciam-se os choques com o MPLA que, por sua vez, não se faz rogado para destruir o governo de unidade nacional.

Nesse mesmo mês de Fevereiro, as forças de Daniel Chipenda, que haviam contado com o apoio soviético, as únicas dentro do MPLA com verdadeiro treino militar, rompem com Agostinho Neto e deslocam-se para Sul. Este facto decide a URSS e Castro a aumentar o envio de pessoal militar cubano, sobretudo à medida que os confrontos entre a FNLA e MPLA ganham maior envergadura.

Como tanto o MPLA e a FNLA dependiam de aprovisionamentos logísticos provenientes do exterior e do apoio de certos países, reforça-se a internacionalização do conflito, obrigando a UNITA a procurar ajuda externa. Assim, o Zaire transforma-se no veículo de apoio norte-americano à UNITA. Dá-se então a escalada do envolvimento exterior em que tanto Moscovo, Havana, Washington, Pretória, Lisboa e Kinshasa terão conhecimento cabal dos movimentos das partes contrárias.

Em Março de 1975, a URSS aumenta visivelmente o volume da sua ajuda bélica ao MPLA, por via aérea, e inicia uma escalada que o Zaire e os Estados Unidos não podem superar. Os AN-12 e AN-22 fazem escala em Brazzaville, onde deixam a sua carga, a qual é imediatamente transportada em pequenas embarcações e aviões para as zonas controladas pelo MPLA.

Inicia-se assim a chegada ao enclave petrolífero de Cabinda de um enorme grupo de conselheiros militares cubanos e guineenses que não é incomodado pelo exército português, por ordens expressas de Leonel Cardoso.












Ainda no mês de Março, as reservas militares de Cuba são integradas ampliando o contingente efectivo. Já nessa altura existe um número de instrutores cubanos em solo angolano que ronda os 500 homens. Um número não identificado destes é detectado e é denunciada publicamente a sua presença na zona sul de Benguela e Lobito, e nos finais do seguinte mês confirmam-se a chegada de mais soldados a solo angolano.

(...) A intervenção cubano-soviética em Angola, desde os inícios de 1975, e a sua posterior escalada, desmente a visão de que ela é produto de uma reacção à presença sul-africana [o sublinhado é nosso]. O vice-ministro das Relações Exteriores de Castro, Ricardo Alarcon, declara à imprensa estrangeira em Dezembro de 1975, que o envio de tropas cubanas para Angola havia começado na Primavera de 1975, para a base de Massangano.

Em Agosto, as baterias cubanas abrem fogo no Bié sobre o avião que transporta Jonas Savimbi. A 9 de Agosto, a UNITA decide declarar guerra ao MPLA e aos seus assessores cubanos; por essa mesma altura, a presença cubana começa a activar-se após a chegada do general Raul Dias Arguelles, que assume o comando das operações e estabelece uma "testa de ponte" em Angola, preparando a massiva irrupção posterior.

À medida que se aproximam as eleições, o MPLA, incentivado pelos conselhos do PC português, atiça a guerra civil em todas as frentes [o sublinhado é nosso], e em especial contra a FNLA, nas imediações de Luanda. Mesmo assim, a luta estende-se também contra a UNITA. Os colonos de origem portuguesa ameaçam ser alvo do MPLA e inicia-se o êxodo».

Juan F. Benemelis («Castro, subversão e terrorismo em África»).


«Em meados de 1976, Lúcio Lara, em reunião do BureauPolítico, afirma que Sita Valles fora mandada pelo Partido Comunista Português para controlar o MPLA, logo acrescentando haver vários portugueses com a mesma missão.

Na sequência desta intervenção, o Bureau Político delibera afastar os portugueses do MPLA. A medida visava Sita Valles. Só que esta nascera em Angola. De modo que, pouco tempo depois, são afastados todos aqueles que anteriormente tinham militado noutras organizações políticas. O que podia levar à exclusão de Lúcio Lara e do próprio Agostinho Neto. Este contorna o problema declarando-se membro do MUD Juvenil. E recomenda à sua assessora, também ela antiga militante do PCP, que escreva precisamente isso na ficha que lhe entrega.






Contudo, militantes de outras organizações, como a UDP ou o MRPP, não são atingidos. A medida tem carácter pessoal. Visa apenas Sita Valles, que é afastada do MPLA.

Mais ou menos por esta altura, foram buscar Sita Valles. Lúcio Lara queria falar com ela. Facto é que desapareceu durante muito tempo. O marido moveu céu e terra para encontrar a mulher.

A nível militar são afastados vários combatentes com provas dadas.

João Jacob Caetano (Monstro Imortal) é colocado no Estado-Maior das FAPLA na dependência de combatentes menos capazes.

José Van Dunem é afastado de comissário político do Estado-Maior General, passando a comissário político da Frente Leste. E é substituído no cargo pelo comandante Balakov, com elevadas qualidades operacionais, mas uma menor capacidade política.

E são, ainda, suspensos da suas funções os responsáveis do Departamento de Alfabetização de Quadros do Comissariado Político Nacional das FAPLA.

Em fins de Setembro de 1976, um tal Pedro Skifer, da DISA, afirma, alto e bom som, que Juca Valentim, José Van Dunem e outros eram uma camarilha que iria desaparecer.

E em finais do ano, numa reunião do sector intelectual no DOM Regional, Lúcio Lara ameaça:

- Venho dizer-vos que o Presidente Neto já afirmou, por mais de uma vez, que não admite que se diga que ele ou que eu fomos membros do Partido Comunista Português. Participámos sim em células de luta anti-colonial, ligada ao PCP. Mas se insistem em dizer que fomos do PCP, será muito fácil resolver o problema de vez. Encosto-vos ao "paredón".

O fuzilamento, método radical de solução dos problemas».

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus («Purga em Angola. O 27 de Maio de 1977»).








Lúcio Lara


«...a esposa do Eng. Valles, quando voltou à cadeia, encontrou um muro de silêncio acerca do destino do seu marido. Procurou-o em São Nicolau, na Kibala, mas evidentemente as suas buscas não poderiam ter sucesso.

O destino da sua irmã, Sita Valles, não tinha sido mais feliz. Depois dos acontecimentos de Maio de 1977, refugiou-se numa aldeia do Norte de Angola, Kaleba. Ela sabia que todos os seus companheiros de luta estavam a ser presos e sumariamente entregues à morte. Assinou a sua sentença de morte no dia em que arriscou enviar uma mensagem para a família Van Dunem através de um filho daquele que a recebia em Kaleba, Francisco Karicukila. A mulher que recebeu a missiva enviada por Sita Valles, tendo o marido preso, ensaiou em desespero de causa uma troca, denunciando Sita Valles junto do Director-adjunto da DISA. A carta visava a preparação de uma fuga sob a protecção dos soviéticos. O mensageiro foi preso, torturado e, assim violentado, conduziu os militares ao esconderijo de Karicukila. Aquelas que recordam Sita falam de uma mulher destemida. Quando alguém lhe oferecia comida respondia: "A um comunista não se dá leite, dá-se porrada". A extrema-esquerda, em Portugal, acusava Sita de ter sido a mentora política da tentativa de golpe, qual Mata-Hari que tinha partilhado a cama de, pelo menos, dois dirigentes do MPLA: Nito Alves e Van Dunem.

O fim terá chegado pelas cinco da manhã, no dia 1 de Agosto de 1977, sem qualquer julgamento, depois de torturas e violações às mãos de vários disas. Kilombelombe falou-me dessa execução: Sita Valles, jovem de 26 anos, depois de recusar a venda nos olhos, foi morta com um tiro na cabeça, não sem antes ter recebido um tiro de raiva na vagina, bem sublinhado pelo comentário circunstancial do carrasco: "A cabra parecia que não queria morrer". Com ela foram fuziladas outras quatro mulheres, num cemitério próximo da Cuca. Não se conhece o local exacto onde foram sepultadas - de certeza numa das inúmeras valas comuns abertas durante este período.








Mata Hari



Ver aqui










(...) Era sabido que as ordens de Neto estavam por detrás de todas as grandes acções repressivas - da leitura de Iko Carreira pode concluir-se o mesmo. Ludi, Carlos Jorge, Kambulucusso, Pitoco e Luisinho não poderiam pôr em marcha tantas atrocidades sem a confiança política das cúpulas do poder.

Entre os nomes que mereciam mais atenção nessas informadas conversas encontrava-se o de Sita Valles. Como já atrás se referiu foi fuzilada num cemitério próximo da Cuca, na companhia de outras quatro mulheres, num ritual de sadismo indigno da nossa humanidade. Os fuzilamentos foram antecedidos de violações e torturas, processo vergonhoso que conheceu a presença dos agentes Carlos Jorge e Inácio, além de outros (um deles fez fotografias do "espectáculo")».

Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).


«Nós faremos de Angola a pátria dos trabalhadores e a revolução continuará a sua marcha ao lado dos povos que seguem o mesmo caminho».

Camarada Presidente Dr. Agostinho Neto, Jornal de Angola, 27.02.82





«Nunca pensámos que a independência seria o país convertido numa imensa prisão e num cemitério».

Luís Fernandes do Nascimento
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HOLOCAUSTO em ANGOLA




Doença e fome


Tenho já poucas palavras para definir as condições de saúde nas prisões angolanas. Mas a situação era ainda mais degradante nos campos prisionais como a Kibala. A este propósito, recordo o Dr. Vidigal, um perfil de desassombro... As minhas notas de 3 de Março de 1978 não omitiram a admiração que por ele sentia. Médico na cadeia de São Paulo, era chamado a fazer relatórios sobre a situação dos presos, e não calava os sinais das piores agressões e das mais vis torturas, ele que por pouco escapou a uma dessas marchas nocturnas para o fuzilamento. Mas não escapou a uma dessas caravanas de degredados para o campo da Kibala. Entre os presos ninguém duvidava de que esse era o castigo pelo desassombro dos seus relatos acerca do estado de saúde dos presos e do desastre sanitário que se vivia na prisão.

Os doentes eram aqueles que mais sofriam. É que, como diziam os cartazes, "é proibido adoecer". Aliás, quando chegavam ao campo, era-lhes, imediatamente, dado a conhecer o "regulamento": "ninguém pode adoecer mais do que um dia por mês".

De acordo com os testemunhos que colhi, muitos doentes eram submetidos a trabalhos mais pesados com o objectivo de os levar a "superar" a doença para poderem voltar ao regime de trabalho manual. A tuberculose pulmonar era a doença mais fatal. Todos recordam o caso dos cerca de trinta presos, num estado avançado de tuberculização, que, pelo Natal de 1978, foram transferidos para o hospital de Ngunza, ou pretensamente transferidos, uma vez que jamais houve qualquer informação sobre o seu paradeiro.

Castro Lopo lembra-se, entre outros, de Pascoal (34), que encontrou no dia 30 de Julho de 1979 no Hospital Militar; o homem de robusto que era, tinha-se transformado num ser débil, vítima de tuberculose pulmonar. Era da FNLA, mas entregou-se sob a promessa de perdão e integração. O resultado da integração está à vista.






Castro Lopo tem, também, presente o caso do filho do Vicente (35), exemplo claro da ausência de qualquer escrúpulo por parte do MPLA. Este filho do Vicente era epiléptico. As crises que sofria impressionavam deveras todos os seus companheiros em São Paulo. Também ele foi mandado para a Kibala. Não era, de facto, possível imaginar um lugar pior para alguém nestas circunstâncias. O Campo tinha um médico principal, Areias, que comia com o Comando. Mas os presos tinham com ele uma relação difícil. De facto, nenhum doente podia contar com ele para obter a confirmação de que não estava apto para o trabalho, mesmo no caso das crises de paludismo. O outro médico, Vidigal, mais estimado pelos presos, tinha pouca influência junto do Comando.

A água era um dos veículos principais para a transmissão de doenças. Luís Lopes, que tinha como colegas o engenheiro Macau e o estudante de medicina José Reis, procurava constantemente obter medicamentos que depurassem a água. Ora, certo dia, numa inesperada rusga, foram-lhes apreendidos tais medicamentos. Imediatamente foram acusados de possuir comprimidos de cianeto para envenenar o Campo. O Dr. Areias confirmou que se travava de produtos para depuração da água. Não convencidos disso, os responsáveis pelo campo enviaram os comprimidos para serem analisados em Luanda. Nunca tiveram viagem de regresso. Os presos viriam confirmada a convicção de que tudo aquilo era uma farsa; que afinal teriam ficado com eles para tratamento da sua própria água.

O Germano (36) contou-me que, pelas quatro e trinta da madrugada, davam um pão muito pequeno acompanhado de água "chalada". Até ao almoço - por vezes só às quatro da tarde, depois do trabalho nos campos - era esta, normalmente, a "dieta" - porque muitas vezes não havia sequer mata-bicho. Depois vinha aquele espectáculo degradante: a multidão dos presos, andrajosos, descalços, sentados no chão, a comer, com as mãos, os seus quarenta gramas de arroz, sem sal nem gordura, servidos numas indescritíveis latas de óleo. Alguns, mais habilidosos, conseguiam fabricar colheres a partir de latas usadas ou de pedaços de plástico. Por vezes davam aos presos o tradicional funge, acompanhado de peixe, melhor, de espinhas de peixe; a carne, essa, não era conhecida dos reclusos, não porque não existisse, mas porque o resultado das caçadas era reservado para o Comando, para os seus capangas e para os presos bufos. Acontecia, por vezes, que lhes subtraíam a comida enviada pelos familiares. Luís Lopes, Nonato, José Reis e Macau tinham por hábito juntar a comida que lhes era enviada (37). Quando, numa rusga, viram tal quantidade de comida concentrada, fabricaram de imediato uma acusação: "Esses géneros são para corromper a guarnição!". Era um conluio para se apoderarem dos mimos da Páscoa - amêndoas, passas, etc. - vindos de Portugal. Aliás, já tinham sido invejados no controlo de entrada.

Com frequência não havia sequer jantar, mas era proibida e reprimida toda e qualquer reclamação. Não faltavam sequer os cartazes com os avisos: "Proibido reclamar por falta de comida!". Barata, um português, disse-me mesmo que os portugueses, na Kibala, se viram obrigados a comer erva para poderem sobreviver. Tendo em conta outras informações que obtive, esta situação não me surpreendia. Uma das primeiras experiências dramáticas para os presos era, precisamente, este recurso ao capim para enganarem a fome (38).






Fome é, portanto, uma palavra bem nutrida de realidade nos campos da Kibala. Barata não se esquece daquele dia em que lhe deram duas marmitas grandes cheias de comida que a família de um preso havia deixado: comeu tudo de uma só vez, o que trouxe complicações graves ao seu aparelho digestivo, habituado que estava ao regime de fome da Kibala. A alimentação era, pois, duma precariedade absoluta; tal conduzia, evidentemente, a um estado, cada vez mais agravado, de vulnerabilidade à doença.

Por vezes, os atentados à saúde dos reclusos conseguiam, ainda, ser mais explícitos. Como daquela vez em que deslocaram um grupo de presos para outro sector do campo fazendo crer que iam ser fuzilados. Aí, deram-lhes a beber a água que estava dentro de um bidão que tinha servido como depósito de gasolina. O português José Maria Magalhães, que estava neste grupo (39), contou-me que a água cheirava inequivocamente a gasolina e que quase todos os que a beberam ficaram com as barrigas inchadas.

Outros factos agravavam, no entanto, esta situação. Apesar de ser um dos climas mais agradáveis de Angola, os seus 1200 m de altitude tornavam-se muito penosos para quem vivia naquelas condições. O frio era fatal para estes prisioneiros que, sem casa e dormindo no chão térreo com metade da manta por baixo do corpo e a outra metade por cima, não tinham sequer roupas e calçado. Nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março vinham as chuvas. Era, então, frequente ficarem muito molhados quando regressavam dos campos. Já no campo, despiam-se e punham a secar a única roupa que possuíam. Mas tal prática não era bem vista pela direcção do campo que mandava confiscar as roupas estendidas o que obrigava os presos a terem de as pedir novamente. Quando as recebiam, vinham com um prémio acrescido: mais um turno de trabalho com as mesmas roupas molhadas. Estas circunstâncias tornavam-se uma espécie de tortura permanente que conduzia a problemas de saúde graves. O português Luís Rodrigues viu umas das suas pernas paralisadas durante muito tempo devido ao frio e à humidade. Pelas mesmas razões Germano tinha lesões sérias num dos pés, o que lhe dificultava a locomoção; quando chovia não tinha possibilidade de acompanhar os companheiros, chegava a demorar quatro horas no percurso de regresso.

As condições de alojamento eram indescritíveis. Isso mesmo pôde constatar o Procurador Antero de Abreu aquando da sua visita ao campo a 8 de Janeiro de 1980. O barracão não tinha qualquer pavimento; as instalações sanitárias, essas, por falta de coragem, nem sequer foram mostradas. Mas lá foram dizendo que estavam projectados melhoramentos.

De acordo com o testemunho de Luís Lopes e de outros portugueses o armazém de sisal em que dormiam era, todo ele, um perigo constante. Não só estava em ruínas como os obrigava a conviver com os mais variados espécimes zoológicos. As cobras passeavam no travejamento e, não raras vezes, sobretudo quando se envolviam em lutas com os ratos, caíam, provocando o pânico. Por cima dos corpos, que no chão procuravam o descanso, passavam procissões de bicharada: ratos, osgas, lagartos, baratas. Mas o pior eram certos insectos que provocavam doenças e lesões graves: moscas, matacanhas, o mosquito provocador do katalotolo, etc. Tanto o Luís Lopes como o Lara foram mordidos pela matacanha. Trata-se de um parasita hematófago, conhecido por bicho dos pés, que se aloja na pele causando inchaços e ulcerações por via das cavernas que abre perfurando a pele. O insecto tinha de ser retirado imediatamente; na falta de outros instrumentos, a agulha era o utensílio indicado.










Como não existiam balneários, os presos tinham de se deslocar ao rio para tomar banho. Aí tinham de se banhar junto da cascata, onde as águas eram mais agitadas, pois os jacarés afastavam-se delas, preferindo as águas mais calmas. Mas, não poucas vezes, aconteciam quedas que provocavam fracturas ósseas - como aconteceu a Luís Lopes - ou, pior ainda, tombos que conduziam os presos às áreas de ataque dos jacarés. Apesar de tudo, este banho era um dos poucos momentos de alguma satisfação para os reclusos. Alguns até já conheciam os peixes que sempre por ali andavam e adoptavam um ou outro como mascote do grupo.

Algumas das vítimas desta crueza passaram por São Paulo, como aquele jovem que se arrastava doente, esfarrapado e magríssimo. Era filho do Vicente, aquele que pertencia à Banda Musical da Cidade do Dundo, e eu tinha-o visto com frequência no hospital daquela cidade, por motivo da epilepsia que o afligia.

Nesta prisão, tinha-se cruzado já várias vezes comigo, mas as barbas que me acompanhavam eram-lhe estranhas. Falou-me, então, das condições de completo abandono com que acompanhavam a sua doença, e confessou-me a suspeita de que todos os outros jovens que com ele haviam sido presos já tivessem sido fuzilados.

Numa daquelas madrugadas de má memória foi despachado, numa camioneta de bancos de madeira, para a Kibala, numa viagem de dor inenarrável, nos seus trezentos e cinco quilómetros intermináveis. Na Kibala, sem qualquer tipo de assistência médica, não lhe podíamos augurar grande futuro.

A São Paulo chegavam também notícias da morte de conhecidos e desconhecidos. Desta vez a notícia veio com a ex-secretária de Nito Alves, a [...] Dina que, regressada da Kibala, anunciava a morte de uma mulher chamada Stela, também ela secretária de Nito Alves quando este era Ministro da Administração Interna. A notícia confirmava os ditos vários acerca daquele degredo sob o mando de Lopo Loureiro e desvelava mais uma vez o facto de se morrer de fome na Kibala.



Desenho ilustrativo de um conto de Pepetela: a víbora tem a cabeça de Nito Alves



Assim que me foi possível abordei o Bravo da Rosa, primo daquele Lopo Loureiro, para juntar mais algumas notas aos meus escritos. Esse encontro proporcionou alguma desconfiança, uma vez que, pouco depois, se acercou de mim um soldado, um tal Bumba, para me pedir um lápis, uma caneta, qualquer coisa que escrevesse. Mas tarde veio o tenente Miranda e o soldado Ambrósio com uma cantilena semelhante. Provavelmente estava a acumular-se alguns resíduos de desconfiança, mas certo é que nunca olhos alguns me viram escrever, durante aqueles longos três anos e meio.

Todas as notícias confirmavam que as migrações para a Kibala anunciavam sempre resultados trágicos. O prognóstico confirmava-se quase sempre quando, por coincidência, algum dos presos de São Paulo se cruzava no hospital com um antigo camarada de cela, agora deslocado para o campo da Kibala.

Este caso diz respeito a um homem de uns vinte e sete anos de idade que, em 1978, foi levado de São Paulo para a Kibala. Quando mais tarde alguns companheiros da sua antiga prisão reviram no Hospital Psiquiátrico aquele homem, outrora forte e saudável, tiveram mais uma confirmação do que se passava no campo da Kibala. Apresentava agora sinais preocupantes de demência e uma magreza que não deixava lugar para qualquer mentira sobre o que acontecia na Kibala - diziam que, aí, a morte era a "conta gotas" (apesar destas circunstâncias, na propaganda do MPLA, e em concreto nas palavras de Carlos Jorge, este campo era uma verdadeira estância de turismo).


O campo de concentração da Sapu


Situada nas proximidades da cidade de Luanda, esta era uma grande exploração no tempo colonial. Aí desenvolveu a sua actividade uma das maiores empresas agro-pecuárias, tornando-se mesmo no principal fornecedor de leite de Luanda. No interior podia encontrar-se uma enorme lavra com cerca de mil e duzentas galinhas poedeiras e com umas quatro centenas de porcas reprodutoras.

A empresa dispunha de um conjunto vasto de equipamentos - posto médico, escola, carpintaria e oficinas de electricidade, etc. - bem como uma vasta e diversificada área residencial. Ocupada pelo MPLA, logo nos primeiros meses de 1975, foi a morada, durante algum tempo, de Agostinho Neto e da sua família próxima. A residência principal foi ocupada por este. Mas aí instalaram outros nomes da elite do MPLA, entre eles, Ludi, Nzagi e Loy - membros do bureau político do Comité Central do MPLA. O pouco que passou a ser produzido era distribuído, em primeiro lugar, pelas casas dessa elite. Mas foi também nos terrenos dessa exploração que se veio a instalar o campo de concentração da Sapu - herdando o nome dessa propriedade nos arredores de Luanda.






Já antes de 11 de Novembro de 1975, data da independência, o MPLA tinha começado a fazer deste local reservado um campo profissional para os fnla's capturados. Eu conheci alguns destes militantes da FNLA na Casa de Reclusão. Os destinos desse campo estiveram sob o comando, até Fevereiro de 1977, de um mulato de nome Fernando Jesus Leitão Coelho Fortes, conhecido por Kilombelombe.

Em Janeiro de 1978, Kilombelombe - antigo director do campo da Sapu - estava já junto de mim; a proximidade acabou por dar várias oportunidades à conversa. As informações acerca daquele gulag - o primeiro instituído pelo MPLA em Angola - coincidem com alguns ditos dispersos já registados. Em certos dias, chegaram a entrar quatrocentos presos naquele campo; vinham do centro de Angola, particularmente do Bié, Moxico e Huambo. Muitos deles, os combatentes da mata, caíram no engodo das promessas do MPLA: todos os arrepesos da UNITA ou da FNLA se poderiam apresentar, pois o MPLA apenas pretendia a reconciliação em ordem à reconstrução nacional. Chegavam ao campo da Sapu com as marcas da fome traçadas no corpo, rotos, descalços e infestados de parasitas. Mesmo nestas condições, tinham que estar disponíveis para o teatro da "reeducação" - pelas três da madrugada já estavam de pé para cantarem hinos revolucionários.

Com uma improvisada enfermaria e um enfermeiro, nem sequer podiam dispor de um carro para transportar os doentes - aliás, as orientações iam no sentido de não prestar demasiada atenção aos problemas de saúde. Kilombelombe referiu que todas as alterações a este regime de desumanidade dependiam das ordens explícitas de Carlos Jorge, que adiava, permanentemente, qualquer decisão que visasse diminuir a precariedade das situações. Este cenário não era diferente daquele em que vivíamos em São Paulo: até esta data nenhum doente baixou ao Hospital Militar sem a autorização de Carlos Jorge.

A conversa fugiu, pois, naturalmente, para aqueles casos gritantes de horror que ali, ao nosso lado, se mostravam. O Manuel Campos, com um traumatismo craniano, o Fernando Correia, a quem romperam a membrana do tímpano. Cai-Cai, a autoridade sanitária deste antro, é aquele que maiores responsabilidades tem no terreno. Os seis médicos presos só podem intervir quando a sua colaboração é solicitada, mas as suas indicações passam sempre pelo crivo de Cai-Cai, simples agente sanitário.

Entre as informações que fui coligindo, destaque-se um facto; a primeira geração de presos e torturados foi constituída por portugueses e fnla's. Entre os portugueses retive alguns nomes: Manuel Magalhães Linares, que ali acabou por ser morto, um tal Lazeiro, técnico agrícola algarvio, que ficou cego e paraplégico em consequência de torturas, e que nesse estado acabou por ser transferido para a Casa de Reclusão e daí para Lisboa.

Antes de o campo da Kibala ter ganho a preponderância conhecida, foi para o campo da Sapu que enviaram grupos enormes de gentes do centro do país, que ali chegavam já num estado de penúria tal que não iludia o que antes haviam passado. A proximidade da residência de Neto acabou por obrigar a transferir muitos dos presos para a Kibala.


















Algumas das práticas repressivas que os presos experimentavam neste campo de concentração foram-me assim descritas nas palavras de um dos seus autores. A Sapu, segundo a descrição de Kilombelombe, tinha-se tornado num autêntico campo de trabalhos forçados. Chegavam continuamente presos, cuja magreza era iniludível, depois de longas caminhadas, muitos provenientes do Bié. Trabalhavam no que restava do empreendimento agro-pecuário. Dali, os produtos seguiam para as casas dos dirigentes do MPLA, mas lá morria-se de fome. Kilombelombe recorda-se do casamento do chefe de gabinete de Ludi - foram requisitados uns dez porcos, umas boas dezenas de galinhas e ainda umas centenas de ovos. Lembro, também, as palavras de Kilombelombe que se referiam ao facto de os presos serem obrigados a levantarem-se logo pelas três da madrugada para, durante pelo menos uma hora, cantarem hinos heróicos pelo MPLA.

Moisés, também preso em São Paulo, tinha sido um dos coadjutores de Kilombelombe. Ao castigo e doutrinação pelo canto heróico ele acrescentou que frequentemente a música era acompanhada pela "caixa" - não nos equivoquemos, trata-se de um exercício de flexões forçadas. Quando se descobria que alguém, distraída ou intencionalmente, se abstinha de cantar, chovia coronhada - parece ter sido essa a sorte de um português que por ali passou. Acontecimentos semelhantes preenchiam alguns rituais civis como o hastear da bandeira do MPLA. Na memória de alguns presos estava o sucedido com o grupo de catorze mulheres que foram mobilizadas para uma dessas formaturas. Tudo terminou com o regresso às celas por entre um arsenal de pancadaria pesada, simplesmente porque um grupo delas de recusou a cantar. E tudo podia ser muito pior se Kilombelombe e os seus assistentes estivessem bêbados.

Certo dia, anunciaram que iam ser executados trezentos unitas. O comando da operação estava nas mãos de Miguel. A guarnição da Sapu estava bem apetrechada de armas para o "serviço". Depois de dispostos na configuração devida para o massacre, os trezentos presos são chamados. O Director discursa lembrando que a morte é paga por tantos faplas mortos com o fogo das armas da UNITA.

O medo foi crescendo entre aquela multidão (chegou a ter 2000 presos), sob um mando de gritos, súplicas, intercessões, pedidos de uma última comunicação com a família. Já o pavor tinha derrubado alguns desses corpos comidos pela fome, quando uma voz de comando sentencia: "Hoje ficamos por aqui... vamos pensar nos vossos pedidos". Hoje alguns dos sobreviventes sabem que estas encenações tinham a finalidade de sustentar o clima de terror que pesava sobre o quotidiano do campo.


(...) Clamoroso silêncio

A história repete-se


Algumas das notícias recolhidas ao longo dos últimos anos indiciam que a situação das prisões angolanas não deverá ter sofrido grandes alterações. Veja-se esta notícia do Correio da Manhã de 27 de Novembro de 1997:

Dez prisioneiros, incluindo membros da UNITA, sufocaram até à morte numa prisão governamental, onde estavam acomodados em condições sub-humanas, 50 presos - afirmou ontem um alto responsável da ONU, que condenou com veemência aquele 'acto bárbaro e cruel' das forças policiais angolanas.








Segundo David Wimhurst, porta-voz da missão da ONU em Angola, a Polícia governamental deteve no passado dia 12 cerca de 50 pessoas na província de Malange, tendo-as alojado numa única cela de uma prisão onde não existiam condições mínimas de sobrevivência, incluindo suficiente ar.

Os estrangeiros, que não portugueses, salvo algumas excepções que eu próprio refiro, não puderam sequer entender o que se passava, limitados que estavam pelo facto de não compreenderem a língua portuguesa. Os gritos, a violência das armas, não eram indicadores suficientes para perceber, com alguma profundidade, o drama que atravessava o destino dos angolanos.

Por outro lado, tenha-se em conta a dificuldade que quase todos os presos teriam se quisessem registar, na prisão, algumas das suas experiências, em razão da falta do material imprescindível e da ausência da privacidade necessária.

De facto, quando chegou o fim daquele inferno angolano e regressei a Portugal, espantaram-me os repetidos sinais de completa ignorância acerca da real dimensão das violações dos direitos humanos em terras angolanas. Muitos foram os colóquios internacionais que se preocuparam, por exemplo, com os "desaparecidos" dos regimes autoritários da América Latina, mas nunca se ouvia uma palavra sobre Angola. No entanto, pelas informações que me foram transmitidas, sabemos que algumas províncias como o Huambo, o Bié e Benguela sofreram um clamoroso banho de sangue. Em tais condições, crescia em mim o mais deslavado desencanto, pois, na comunidade internacional, não se ouvia uma palavra sobre os crimes de guerra que devassavam a população angolana.


A Casa de Reclusão e a "cela 14"


Manuel Garcez, técnico português da Diamang, tinha passado pela Casa de Reclusão. Na sua memória permanecia uma cena, registo indelével do terror que ali viveu. Lá conhecera um angolano que tinha, num dos braços, uma tatuagem com cerca de 8 cm por 2,5 cm. Vendo a violência que selvaticamente se abatia sobre os presos da FNLA e da UNITA, não hesitou em fazer desaparecer a marca que no seu braço denunciava a sua pertença política. Com uma colher em brasa procurou danificar a tatuagem provocando, no braço, uma queimadura tal que ninguém ficava indiferente perante a visão das lesões.

Na "cela 14" da Casa de Reclusão se resume o inferno das prisões angolanas. Os portugueses Jaime Barata dos Santos e Luís Oliveira Lopes, entre outros, conheceram aquele horror fétido e escuro onde a vida parecia já morte e o ar era quase irrespirável.



Américo Cardoso Botelho na prisão



Em primeiro plano e da esquerda para a direita, Américo Cardoso Botelho, enquanto Presidente da Câmara Municipal da Azambuja, aparece na companhia de Henry Ford (II) e do Embaixador dos EUA em Portugal, Almirante Anderson, na inauguração de uma fábrica da Ford na Azambuja, em 1964.


A densidade era tal que cada vez que alguém se queria movimentar acabava por pisar os outros, os pratos, ou os montes de fezes e as manchas de urina perdidos pelo chão, pois raramente eram autorizadas saídas para os sanitários. Luís Lopes confessa que estas circunstâncias acabavam por o paralisar no chão deitado sobre o seu casaco, esperando, de cada vez, ser poupado pelas ratazanas que se passeavam no escuro entre os corpos.

Da Casa de Reclusão trazia-se o rasto da violência sem medida. Machado, mais um entre tantos, passou por aquela fábrica de violências. Pelo que me contaram, este era um antigo funcionário da Coca Cola em Luanda. O Machado tinha sido preso logo em 1975. Na Casa de Reclusão conheceu a pior das violências, em Outubro desse ano foi transferido para São Paulo. As torturas foram vincadas no corpo com cabos de aço, daqueles que se usam nos mastros dos navios. Os companheiros que agora estavam com ele em São Paulo confirmaram que, de facto, o seu corpo apresentava monstruosos vestígios daqueles cabos de aço.

Quando no dia 6 de Agosto de 1980 fui posto em liberdade conduziram-me à Casa de Reclusão, com mais três colegas da Diamang. Pretendiam fazer uma última revista. Eu tremi porque tinha por baixo das palmilhas dos sapatos correspondência vária de presos ingleses, americanos e sul-africanos para enviar às respectivas famílias. Mas um facto chamou-me a atenção: já não se encontrava lá ninguém daqueles que ali tinha visto em 1977 - incluindo a própria guarnição. Segundo o conhecido que me levou daí para o aeroporto, esses militares e agentes estavam presos ou tinham sido fuzilados.


Direitos humanos?


Era noite avançada, pelos finais de 1978, os presos da Casa de Reclusão foram acordados com os gritos lancinantes de um preso que, adivinhava-se, estava a ser torturado no primeiro andar (o sector do Comando). No meio daqueles gritos, ouvia-se uma voz aflita e revoltada clamando pelos "direitos humanos". Mas de acordo com as informações conseguidas, cada reclamação arrastava atrás de si mais pancadaria, e um esclarecimento: "Direitos humanos é levares nos cornos!". Depois da sessão saiu do Comando um vulto ensanguentado, rolando pelas escadas à força de pontapé: "Parto-te os cornos, filho da puta!", ecoava pela Casa de Reclusão.

Esse homem agredido foi para a cela dos portugueses, onde foi possível saber alguma coisa da sua história (40). Era técnico da televisão angolana e tinha sido destacado para um serviço no aeroporto 4 de Fevereiro de Luanda. Segundo as suas palavras, ter-se-á encostado a um vidro que cedeu e se partiu, trazendo-lhe o incidente a prisão e o espancamento na Casa de Reclusão, onde passou dois meses. A violência e a humilhação experimentadas na prisão mostraram-lhe uma realidade que, para ele e para a maioria da população de Luanda, era desconhecida. A experiência teve nele um impacto enorme, a medir pelo descontrolo psíquico que apresentava na hora da saída.



Onambwe, carrasco e Director-Adjunto da DISA



Cardápio de torturas


A recolha e a acumulação de testemunhos permitiram-me constituir uma espécie de cardápio da tortura, repertório que daria para programar um autêntico museu de horrores.

O n'Ghelelu era também conhecido como "tortura do Leste", precisamente porque se diz que seria usada, já em tempos mais recuados, no leste de Angola. Trata-se de algo parecido, com um capacete ajustável, com uma dobradiça atrás, que é colocado à volta da cabeça, com um dispositivo de aperto. A pressão, segundo as descrições, causava uma dor imensa na cabeça e quase insensibilizava o resto do corpo. Esta insensibilidade era, aliás, testada com fósforos acesos e pontas de cigarro em várias partes do corpo. Para além desta violência, amarravam os braços a uma corda e puxavam-na até que os cotovelos tocassem atrás um do outro. Depois do suplício, muitos presos demoravam a recuperar a sensibilidade em alguns dos seus membros.

As coronhadas constituíam um importante lote de recursos. Nas palavras do próprio Primeiro-Ministro, Lopo do Nascimento, que foi membro do Bureau político do MPLA, "era preciso partir os dentes à burguesia". As faplas, os disas e a ODP cumpriram com desenvoltura essa indicação. Elas podiam atingir os maxilares, o nariz ou uma qualquer outra região do rosto, a garganta ou o estômago.

As matracas de karaté eram usadas com frequência contra o tronco dos presos quando interrogados. As lesões estavam na origem de problemas respiratórios subsequentes.




De entre a panóplia de torturas, as agressões aos orgãos sexuais estavam entre as mais temidas. Rodeavam os testículos com filamentos de aço, amarravam com os mesmos o pénis e, depois de dar um nó corrediço, puxavam violentamente. Os gritos eram lancinantes, mas não chegavam para o tamanho da dor. Em alguns casos, segundo as informações recolhidas, as lesões e as perturbações prolongavam-se no tempo.

Devem indicar-se ainda as agressões com barrotes, daqueles que são usados na construção civil. Usavam-se sobretudo para atingir as articulações, causando fracturas, deslocamentos e derrames internos com graves consequências.

As chicotadas de mangueira deviam ser a tortura mais universal. Todos a conheciam nos fatídicos interrogatórios. Eram usadas mangueiras de cerca de uma polegada de diâmetro, muitas vezes enriquecidas com um arame enrolado para aumentar os danos. A mangueira era substituída, em alguns casos, pelas correias das ventoinhas dos automóveis ou mesmo por chicotes propriamente ditos. Estas agressões podiam provocar todo o tipo de danos, como lesões nos olhos ou, como já aqui referi, na membrana do tímpano.

Recolhi também informações acerca do uso de prensas de madeira, para comprimir as mãos e os pés, sobre o uso de agrafadores para perfurar o corpo dos interrogados, bem como sobre outro tipo de penetrações, como as esferográficas ou os pregos no ânus.

A cinqualha era, como o n'Guelelu, um clássico da tortura. Com uma corda atavam os braços e os pés, para depois a puxarem de modo a curvar para trás a coluna vertebral do preso. Como se não fosse suficiente essa pressão, elevavam o corpo do chão e deixavam-no cair desamparadamente.

Depois de os Cubanos terem deixado São Paulo, o tenente Nelo e o seu primo Lopes tornaram-se os grandes especialistas na tortura de descargas eléctricas nos testículos. Não me saem da cabeça as imagens daqueles presos que, depois de sofrerem tamanhas agressões, ficavam com os testículos do tamanho de abóboras. Fernando Costa deixou-me um testemunho sobre o caso de Sousa - um familiar de Nito Alves. Certo dia foi chamado ao Comando. Mandaram-no despir. Entretanto José Vale, maliciosamente, passa-lhe a mão pelo corpo com o intuito de o humilhar perante os presentes. De seguida, coadjuvado por um outro agente, atingiu o sexo de Sousa com choques eléctricos - os gritos que se seguiram ecoaram em toda a cadeia. Esta tortura repetiu-se, frequentemente, nos militares que estavam isolados no "comboio". Muitas vítimas conheceram o fuzilamento; os sobreviventes, em consequência dos maus-tratos, perderam a capacidade de erecção.

As torturas abriam golpes que perduravam no tempo. Não me refiro apenas àquelas feridas inscritas na carne, refiro-me àquelas que sobrevivem no carácter - pois é sabido, como o vêm lembrando os relatórios da Amnistia Internacional, que as torturas têm devastadoras consequências psicopatológicas.


Aviões B-26 americanos bombardeando depósitos de munições inimigas em Wonsan, Coreia do Norte, 1951



Fuzileiros americanos avançando pela Coreia do Norte



Tanque americano atira contra norte-coreanos (10 de Janeiro de 1952)


Para além das agressões, eram frequentes os interrogatórios ininterruptos, durante vários dias, até que o cansaço vencesse o discernimento - muitos comparavam este regime de tortura ao que se dizia acerca do calvário a que foram submetidos os prisioneiros de guerra americanos, e outros, na Coreia do Norte, em 1952.

No caso do inferno angolano, os efeitos da tortura eram prolongados nos atalhos da humilhação quotidiana. Quando as sessões de tortura eram ornadas com o macabro indecente, isso era permanentemente recordado sempre que os torturadores se cruzavam com as vítimas: assim as mulheres cujas vaginas tinham sido violentadas com canos de metralhadora, assim os homens cujo ânus tinha sido agredido por canetas e outros objectos igualmente adaptáveis ao flagelo. Estas eram também feridas abertas, por vezes mais graves que aquelas que os corpos semi-nus passeavam ao sol.


(...) Um terço, uma cruz e um presépio


Era o dia 18 de Março de 1978. As horas iam noite dentro. Os "conduzes" vieram buscar um preso a uma das celas - o destino era um desses interrogatórios de pancadaria (qualquer motivo podia sustentar o exercício da violência e do ódio). Entre as mãos o preso apertava um terço, vestígio indesmentível da sua religiosidade. O "inquisidor", de boa escola "revolucionária", não suportou a visão: "Mas que é isso de vires para aqui com o Cristo, seu traidor!". O preso justificou-se com o seu catolicismo, o que não impediu de ser penalizado como mais uns golpes.

Os motoristas do aparelho do poder eram fontes de informação proveitosas. Em meados de 1977 conheci um português que tinha exercido essas funções ao serviço de António Garcia. De entre as suas memórias destacava-se aquele episódio tecido na Caala, próximo do Huambo, que exaltou os fervores da população. Tratava-se de um grupo de faplas, deixando um rasto de provocações, insultos e outras violências. No curso destes desvarios, encontraram uma igreja rodeada de uma pequena multidão. Içaram as suas akas e desataram aos disparos sobre a cruz e o templo. O crucifixo desmoronou-se e caiu no chão. Os populares dispersaram-se e os militares gritaram a sua fanfarronice: "Matámos o Cristo, matámos o Cristo!". Alterados pelas emoções reentraram na viatura e partiram, com grande alarido. Não se sabe em que circunstâncias, mas é certo que, uns quilómetros à frente, acabaram por mergulhar nas águas do rio. A população que se deu conta do sinistro correu para o local, mas os militares tinham sido levados pela corrente. Afrontados pela violência daquele grupo, a população fez explodir o seu regozijo - depressa se começaram a ouvir ritmos de festa.

Refira-se que na Caala estava instalada uma guarnição muito odiada porque, para além de tudo o resto, contava com muitos cubanos. O povo, que já tinha sido agredido muitas vezes por causa do seu catolicismo (os cubanos diziam à boca cheia "mi cago en Cristo"), aproveitou o incidente para mostrar o seu descontentamento. E ele foi de tal forma visível que o comandante daquela unidade achou por bem fazer um comício para alardear a sua resolução: nunca mais incomodariam as populações por causa do seu cristianismo.




Por vezes a invenção coloria de novidade e contraste o cinzento dos horizontes da prisão. Foi o caso daquele Natal de 1979. Socorrendo-se de pedaços de papel de restos de embalagens de pasta de dentes, os mercenários ingleses e americanos moldaram várias figuras alusivas àquela época festiva. Mesmo sob a perplexidade e a desconfiança dos militares da guarnição, a obra tornou-se um lugar de visitação muito frequentado pelos presos.


(...) "Limpeza política"


Ao longo do itinerário que estamos a fazer tem-se tornado cada vez mais evidente a descomunalidade do regime de terror, em Angola, de Cabinda ao Cunene. Pode falar-se de uma autêntica geografia do terror, uma vez que as operações militares foram particularmente violentas em algumas regiões.

Note-se que o primeiro grande objectivo político do MPLA foi destruir os Movimentos que consigo negociaram a independência de Angola, seguindo a via de uma violenta estratégia de limpeza política. Desenvolveram-se campanhas à escala nacional com o fim de efectivar tal intento político. Juntos, a UNITA e a FNLA tinham em suas mãos cerca de 80% do território angolano. A área de implantação dos movimentos correspondia, precisamente, à geografia dos seus apoios. O MPLA só pôde fazer face a esta situação com o auxílio militar da URSS, de Cuba, e de outros países do pacto de Varsóvia. A revolta de 27 de Maio de 1977 é disso evidência. Toda a guarnição de Luanda se revoltou. Mas a intentona logo foi esmagada com o total apoio das forças de Fidel Castro.

Os crimes do MPLA só adensaram o ódio generalizado. O povo angolano recusava-se a trabalhar nos campos porque tinha de vender tudo ao governo que não pagava a tempo nem a preço justo. Por outro lado, pouco tempo e dinheiro sobravam depois de passar horas e dias nas filas tentando conseguir alguns bens essenciais Neste contexto, qualquer reclamação, qualquer grito de insatisfação de um angolano depressa se tornava uma traição.

O massacre que decorreu entre Setembro e Novembro de 1976 é, sem dúvida, um dos maiores crimes políticos da história de Angola. A operação, Tigre de seu nome, tinha como objectivo desmantelar a UNITA no Moxico e no Bié - operações semelhantes foram estendidas a outras regiões angolanas. Um contingente de vinte e cinco mil homens, helicanhões pilotados por alemães da RDA, Migs pilotados por soviéticos, alemães e cubanos, artilharia e tanques - arsenal apropriado ao extermínio indiscriminado - foram mobilizados para esta operação. As verdadeiras vítimas são as populações, pois só capturaram uns cinquenta guerrilheiros da UNITA. O MPLA sabia que estas populações davam guarida aos guerrilheiros da UNITA, pois muitos deles eram seus familiares.









Conhecendo os métodos das FAPLA, as populações fugiam para fora das aldeias e cidades. Mas o MPLA tinha alguns "truques na manga"; obrigava alguns nativos a tocar no tantã uma qualquer fórmula de chamamento, organizava comícios fictícios. Objectivo único: prender todos os homens, incluindo velhos e rapazes, As mulheres e as crianças eram então reunidas e levadas para as "aldeias da paz". Estas "aldeias" não passavam de campos de concentração situados nas proximidades das vilas. Os homens e rapazes, esses eram transportados para as cadeias das capitais de província e daí deslocados para os campos de café, como os do Cuanza Norte ou do Uíge. Os mais rebeldes tinham um tratamento "especial" nos campos da morte de São Nicolau ou da Sapu. Muitos conseguiram fugir para as matas, mas aí acabavam por viver em condições infrahumanas, sem roupa para se protegerem e subnutridos (41). Alguns camponeses anciãos foram acusados de serem guerreiros da UNITA e, apesar do protesto das populações, eram fuzilados publicamente em campos de futebol. Mas havia um grupo mais numeroso do que aquele dos prisioneiros, deslocados e fugidos: era o grupo dos simplesmente assassinados. Os testemunhos recolhidos da prisão apontavam para o número de 150 000 angolanos mortos no contexto desta acção repressiva sustentada por uma aliança firmada entre o MPLA e exércitos estrangeiros.

Estes angolanos eram apelidados pelo MPLA de contra-revolucionários, simplesmente porque, seguindo aquilo que é tradicional em África e à luz dos acordos de Alvor, escolheram o movimento que entre eles estava enraizado. A esta legítima opção respondeu o MPLA com uma política de "terra-queimada", prendendo, deslocando, queimando haveres. Desapareceu grande parte da população de Andulo, Camacupa, Catabola, Nhareia e outras.

A DISA tinha no Bié uma cadeia com 9 celas. Como não havia espaço suficiente, enviava muitos para a cadeia da comarca. Steiman contava-me que, entre Dezembro de 1977 e Janeiro de 1978, seriam uns 1000 presos, de entre os quais morreram 50, só nesse curto período.

Moxico: o terror concentrado


Quando na Província do Moxico começaram a aparecer, por todo o lado, cadáveres que denunciavam a morte violenta que os havia vitimado, os circuitos de vingança foram reactivados. Durante as três primeiras semanas de Junho de 1976, o território foi palco da mais sanguinária barbárie (como já foi referido, a chamada operação Tigre tinha como alvo principal desmantelar a UNITA no Moxico e no Bié). Foram mobilizados uns vinte e cinco mil homens. Angolanos recrutados noutras províncias e catangueses, com a colaboração de soviéticos, alemães e cubanos, apoiados por aviões a jacto, helicanhões, atacaram uma área vastíssima, com o objectivo de neutralizar a guerrilha da UNITA, acabando por dizimar as populações daquelas províncias: o chão coberto de cadáveres, as povoações destruídas (nas matas, os kimbos foram arrasados com a acusação de darem apoio aos guerrilheiros da UNITA). A situação tornou-se caótica. Grupos militarizados diversos "emboscavam-se" com frequência deixando atrás de si um rasto de sangue. Os comandantes militares, que estavam no Moxico, Manhinga e Dembo, revelavam-se incapazes de controlar a situação (42).

Armando Dembo, a mando de Neto, liderou uma nova vaga de violência que tinha como objectivo liquidar uma boa porção de "fraccionistas". Ao que parece estariam seleccionados uns vinte e quatro, mas Dembo acabou por mandar executar  umas seis dezenas. Esta violência acompanhou o regime de opressão generalizada que habitou Angola no pós 27 de Maio (43). A limpeza política, seguindo os interesses de Agostinho Neto, encontrou uma boa tradução no linguajar de Sapilinha, um dos responsáveis do MPLA no Moxico: "É só riquidar! É só riquidar!".






A situação no Moxico tornou-se explosiva, exigindo que Agostinho Neto fizesse deslocar de Luanda para aquele palco de chacinas uma comitiva militar de peso: Xietu (Vice-Ministro da Defesa), Fito, Jamba Ya Mina (Comissário Provincial do Bié). Viram-se, assim, envolvidos num fogo que eles próprios tinham ateado e não sabiam agora como apagar.

O Moxico foi, também, um destino de morte para "fraccionistas" condenados. Como já se referiu, eram penosas aquelas descrições das marchas que os torturados eram forçados a empreender, do edifício do antigo Liceu Paulo Dias de Novais para o Ministério da Defesa, exercícios de humilhação que exibiam homens torturados, os pés descalços, o tronco nu, as mãos atrás da nuca, visão angustiante de um fim que se anunciava.

Numa dessas marchas, alguns recém-chegados a São Paulo pelos finais de Maio de 1977 contavam que tinham visto Amadeu Azevedo Amaral, preso logo após o 27 de Maio de 1977, e que depois do tratamento de choque no Ministério da Defesa foi transferido para a Casa de Reclusão (este foi um dos poucos a quem, nestas circunstâncias, pouparam a vida).

Muitos destes militares foram mortos numa qualquer chana por ali perto. Outros beneficiaram de uma daquelas viagens nos aviões Boeing 737 para Luena (Moxico), cuja descrição não é senão uma tímida aproximação da realidade. Retiravam aos aviões todos os bancos e amarravam os presos às argolas que faziam parte do dispositivo que fixava as cadeiras (era necessário prevenir qualquer insurreição dentro do avião). Os aviões saíam do aeroporto de Luanda, da zona militar, na direcção de Luena.

O piloto português da TAAG António Praça, ainda hoje em actividade numa empresa de aviação, em Portugal, fez um destes voos no 737. Doía-lhe a memória daquele dia em que, quando tomava o seu lugar, ouviu uma voz familiar, mas distorcida pelo desespero: "Comandante Praça!... Sou eu". Reconheceu imediatamente aquele amigo de infância. "Diz à minha família que fiz esta viagem", pediu-lhe aquele amigo de longa data. Os militares armados que iam a bordo estavam atentos a todo e qualquer movimento - o piloto foi imediatamente advertido de que não poderia estabelecer qualquer comunicação com os presos.

Estas aeronavegações terão deslocado de Luanda para Luena cerca de dois mil e seiscentos prisioneiros - a quase totalidade conheceu a morte como destino.








(...) Angola sovietizada

Uma amizade com um preço elevado


No seu programa de implementação de um poder a ferro e fogo - perseguindo os estrangeiros, os jovens universitários, os quadros angolanos a trabalhar no exterior, sob a capa da reconstrução nacional, bem como vastos sectores da população angolana - o MPLA procurou agradar aos seus parceiros de conveniência. Esse é o contexto, por exemplo, daquele discurso de José Eduardo dos Santos, em Moscovo, no XXVI Congresso do Partido Soviético, realizado em Fevereiro de 1981:

Ao longo de 15 anos de luta libertadora e dos cinco de trabalho para o ressurgimento do país temos recebido constantemente o apoio e a ajuda da pátria de Lénin [...]. Permita-me camarada Leonid Ilitch Brejnev sublinhar especialmente a contribuição que nos é dada pelos valorosos internacionalistas cubanos que, ombro a ombro com os combatentes do MPLA sem regatear a vida marcham ao combate para que Angola possa salvaguardar a sua independência e dar início à construção da sociedade nova [...] Ao Partido Comunista de Cuba, a todo o povo cubano, encabeçado pelo querido camarada Fidel Castro, eu quero exprimir... desta elevada tribuna, os nossos profundos sentimentos de amizade, de solidariedade e gratidão [Pravda, 27.02.81].

O preço desta amizade parece ter sido elevado para o povo angolano. O poder do MPLA sustentou-se sobre uma política neocolonial que foi tornando o povo refém de uma "solidariedade" e de uma "gratidão" devastadoras. Numa nota do célebre The Kissinger Transcripts, os editores referem que a 12 de Novembro de 1975, estavam em Angola cerca de 60 conselheiros militares soviéticos. Na sua obra sobre a política expansionista de Fidel, Benemelis refere:

A aversão da população aos soviéticos é profunda pois o comportamento destes contribui para isso, sobretudo a sua descriminação racial, o seu isolamento em bairros e hotéis reservados, a sua ausência total no contacto com o resto da comunidade internacional no país. O centro das cidades novamente se povoa de estrangeiros e os angolanos mantêm-se nos seus musseques e quimbos. Os cubanos, soviéticos e alemães orientais ocupam vivendas e fazendas que haviam pertencido aos portugueses (44).









São muitos os testemunhos que permitem perceber que a presença de russos e cubanos no território angolano se tornara um fardo pesado, expressão de um neocolonialismo. Apesar de viverem em residências que lhes permitiam um certo isolamento do conjunto da sociedade angolana, os oficiais russos estavam presentes em todas as chefias militares e das regiões militares, e estavam presentes nas mais altas esferas políticas (45).

Sanga e Faria, que tinham com eles contactado, respectivamente, no comando de tropas e no curso de militares juristas (aqui eram já proverbiais as provocações que os alunos dirigiam aos técnicos russos), não calavam aquele sentimento negativo. Sanga conhecia bem o general Yury, que trabalhava permanentemente na Escola Gika (46), em Luanda - era um homem experiente em missões no exterior, pois, já anteriormente, tinha estado no Egipto, na Líbia e no Vietname. De acordo com alguns testemunhos, terá sido este o estratega da expulsão da FNLA do norte de Angola.


Memórias da URSS


Os pedaços de experiências contados por todos aqueles que haviam passado algum tempo de formação na URSS interessavam-me sobremaneira. Recordo as peripécias de que deu testemunho Didi que, com outros colegas da DISA, tinha estado em Moscovo num curso de formação na área da segurança, ministrado na KGB.

Didi falava de como puderam descobrir que os seus quartos estavam sob escuta segundo um sistema de vigilância rigoroso. Certo dia, comentaram entre si que os lençóis estavam muito sujos - há muito tempo que não eram mudados; no dia seguinte, receberam a visita da empregada como se aquele comentário tivesse sido imediatamente ouvido pela direcção da residência. Poderia ter sido coincidência, mas a reincidência dos acontecimentos, alguns dias depois, viria a dissipar qualquer dúvida: era indesmentível que os quartos tinham um qualquer sistema de escuta. Munidos de aparelho de rádio em FM, sem que estivesse sintonizado com qualquer posto emissor, no máximo do seu volume e com antena levantada no todo da sua extensão, percorreram as paredes do quarto. Descobriram então o sinal de vários aparelhos retransmissores, quer nas paredes quer em objectos como os candeeiros.

A partir desse momento, deixaram de passar tanto tempo nos seus aposentos, o que os levou a conhecer melhor algo do que Moscovo lhes poderia oferecer, para além da formação técnica. Foi numa dessas deambulações que encontraram, num amplo jardim, um "parque de diversões" - daqueles que têm várias bilheteiras para uma diversificada oferta de entretenimento. Compraram bilhetes para a sala de dança. Estava repleta de gente. Notaram alguma perplexidade por parte dos moscovitas e das moscovitas - não era vulgar terem por aqueles lugares grupos de africanos. Mas a festa e o entretimento acabam por derrubar alguns muros. Ficaram convencidos de que as raparigas moscovitas tinham gostado daqueles passos de dança que experimentaram com os africanos.

Foi esta convicção que os levou lá, de novo, alguns dias depois. O excesso de entusiasmo não lhes permitiu perceber que, enquanto dançavam, grande parte dos soviéticos havia abandonado a sala, e foi com o mesmo entusiasmo que ficaram com as suas parceiras de dança até ao encerramento da casa.




Quando saíram para a rua, encontraram uma grande comitiva de moscovitas zangados. Munidos de objectos vários, os moscovitas lançaram-se sobre eles numa carga de agressões tal que a única saída era tentar a fuga. E foi isso mesmo que os angolanos procuraram; mas um deles, já sob o efeito do álcool, não conseguiu acompanhar o ritmo nem a direcção da fuga. Viu-se obrigado, assim, a esconder-se o mais depressa possível - serviu-se da estação de metropolitano mais próxima. Entretanto, a direcção que tomou, quando entrou para dentro do comboio, não conduziria à zona da sua residência; quando saiu do metropolitano já estava a 80 km do centro de Moscovo.

Tinha começado, assim, uma noite de peregrinação sem norte, na procura de uma possibilidade de regresso. A impossibilidade de uma comunicação eficiente conduzia-o a lugares cada vez mais remotos. Encontrou, então, um coronel soviético que na troca impossível de gestos e palavras acabou por concluir que aquele angolano desejava ir para a terra natal de Lenine. A prolongada ausência do angolano chegou, é claro, ao conhecimento do KGB, que imediatamente destacou um grande número de agentes para lhe procurarem o rasto. Não deixaram o crédito por mãos alheias; era já madrugada quando devolveram à residência o angolano transviado.

Retalhos do quotidiano, como este, eram contados entre nós, não como se de anedotas se tratasse, mas como testemunho de uma certa imagem que muitos angolanos conservavam daquela potência neocolonial. Recordo, neste contexto, as expressões de indignação de Mendes de Carvalho que, integrado na comitiva presidencial, em 1977, visitou a URSS. Tinham sido deixados a 60 km de Moscovo sem qualquer transporte para aí se deslocarem, apenas podiam fazer as deslocações e os percursos que os próprios soviéticos deliberavam. Esta mesma indignação foi servida por Mendes de Carvalho a Agostinho Neto num banquete oficial, diante de todos os comensais. O amargo de boca e o embaraço não ficou por aqui, pois num dos anos que se seguiram, talvez 1981, Mendes de Carvalho foi passar férias aos EUA - onde chegou mesmo a visitar familiares de presos como o George Gause -, alegando que se fosse para a URSS apenas poderia ir para onde o levassem.

Entre os presos, aqueles jovens que tinham sido recambiados da URSS, de Cuba, da Roménia, entre outros países, havia uma lúcida consciência crítica acerca da realidade do neocolonialismo que se escondia por detrás do "internacionalismo proletário". Essa consciência tornava-se ainda mais amarga quando eram confrontados com a situação interna dessas nações-messias do comunismo. O comentário repetia-se: "São estes novos senhores que vêm fazer progredir Angola? Na casa deles vive-se pior do que aqui, antes de eles terem chegado!"






Os mesmos estudantes faziam eco de uma "catequese" que lhes enchia os ouvidos: o Ocidente imperialista seria destruído e todos os países socialistas seriam beneficiários das riquezas desses povos. Um desses estudantes referia-se explicitamente ao caso de uma escola russa que tinha um mapa indicando com clareza a geografia dos países socialistas e, por exclusão, a distribuição dos povos a serem vencidos, sob a mira do saque final. Esse mapa mostrava as conquistas do império comunista. Mas o olhar didáctico fixava-se nas riquezas do Ocidente não sovietizado, com a promessa de que um dia aquelas riquezas "seriam do povo".


Contestatários da intervenção cubana em Angola


A nível das altas patentes militares cubanas havia quem discordasse da intervenção cubana em Angola. Eis o caso de dois generais que ilustram essa discordância. O primeiro chamava-se Rafael del Pino. Como atrás referi, conheci-o na base aérea de Saurimo que por vezes se abastecia na Diamang, no Dundo.

Farto das loucuras de Fidel e da sua crueldade, este general, máximo responsável da força aérea cubana e segundo chefe do Estado Maior do Ministério da Defesa, na Primavera de 1987, apoderou-se de uma avioneta militar e, na companhia da esposa e dos seus três filhos, fugiu de Cuba, voando para Miami, nos Estados Unidos. Aí escreveu um livro, Proa a La Libertad, sobre a sua actividade como general, que é bem esclarecedor do extermínio em Angola.

O outro, também já por mim referido, chamava-se Arnaldo Ochoa e era o comandante supremo em Angola.

Perante a onda de destruição que avassalou este país, este general sugeriu a Fidel Castro que pusesse fim à missão militar em Angola, pois estava convencido de que os angolanos não queriam aquela guerra e que tão logo chegassem a um acordo os cubanos se veriam obrigados a sair de lá. A mesma opinião fez chegar a Raul Castro, que não só discordou como o intimou a cumprir até ao fim as ordens de Fidel. Como insistisse nas suas objecções àquela intervenção ordenaram-lhe, a ele e ao seu adjunto, General Patrício de La Guardia, que regressassem a Havana.

A hostilidade com que foi recebido prenunciava-lhe um futuro incerto. Ainda assim não fugiu de Cuba pois estava convencido de que tendo procedido correctamente, explanando, dentro dos preceitos militares e com toda a franqueza e frontalidade, a sua opinião, Fidel não o mandaria eliminar. Puro engano. Nem Fidel nem o seu irmão lhe perdoaram a ousadia de pôr em causa as suas ordens. Pouco depois da sua prisão, quando esperava ser libertado, o fuzilamento foi o preço da sua discordância. Melhor sorte teve o seu adjunto que acabou por ser libertado. O leitor interessado poderá confirmar o que aqui é dito lendo a este respeito a obra Fidel Castro - El Final del Camino, de Santiago Aroca...






Ainda sobre a tragédia angolana valerá a pena citar mais um passo da obra de Juan F. Benemelis, Castro - Subversão e Terrorismo em África (várias vezes referenciada neste meu livro, onde, na página 241, ele faz uma descrição da batalha de Quifandongo: [...] a unidade 3051 (do exército cubano) compunha-se de oficiais do exército regular e tropas reservistas. Para o caso destes eventualmente falharem no momento de disparar contra uma massa de civis (integrada por guerrilheiros mas, sobretudo, por mulheres e crianças) foi posto no comando de cada bateria um membro das tropas especiais.

A 19 de Setembro desembarcaram em Luanda as tropas cubanas a bordo do navio Almirante Sierra Maestra. Embora muitos dos homens tivessem sofrido enjoo durante toda a travessia puseram-nos de imediato atrás dos tanques T-34 e T-35 que deviam reforçar as defesas da capital, sem lhes dar tempo a recomporem-se. Por sua vez a infantaria começou a cavar trincheiras em redor da cidade. 

Os simpatizantes da FNLA nada podiam fazer. No dia seguinte, pelas dez da manhã, começou a ouvir-se o rufar dos tambores misturados com gritos e disparos isolados dos avançados cubanos. Uma enorme multidão corria, sem saber, os últimos metros que a separavam de uma morte segura. Sem lhes dar tempo para compreender o que acontecia, uma chuva de projécteis incendiários caiu sobre a multidão e produziu grandes clareiras nas suas fileiras. Simultaneamente, os tanques disparavam projécteis de fragmentação de tiro directo.

Os cadáveres caíam destroçados, praticamente partidos em dois pelos disparos dos tanques soviéticos que os faziam saltar pelo ar. Presa de pânico, aquela massa humana retrocedia como podia, deixando atrás de si um caminho coberto de cadáveres. A cerca de dois quilómetros começou a ouvir-se por cima das suas cabeças o sibilar dos mísseis de 122 mm, seguido de uma série interminável de explosões que acompanhavam a sua fuga ao longo de 20 quilómetros. Os aviões de reconhecimento permitiam ajustar os tiros indirectos e, para o cúmulo dos horrores, os MiG-21 desciam em picada e disparavam contra os fugitivos como se fossem coelhos.







Angola como país invasor


Para um ocidental como eu, ido para Angola para trabalhar naquela que foi, durante anos, a maior companhia daquele território, a cuja competência estava subordinado o equipamento aéreo, constituído por aviões próprios e arrendados a uma empresa canadiana que ao serviço da companhia voavam dentro de Angola e para vários países estrangeiros, sempre em missões de abastecimento, foi um verdadeiro mundo de surpresas aquele que se me deparou.

Em primeiro lugar por ver que Angola, após a independência, pelo braço do MPLA, se transformara num país invasor. Com excepção da Namíbia, quase todos os outros países começavam a ser invadidos.

À boa maneira hitleriana principiaram essas invasões pela ocupação de S. Tomé e Príncipe que, para maior agravamento, foi coadjuvada pelas forças militares soviéticas e cubanas. Seguiu-se o Congo Kinshasa que por três vezes foi alvo desse intento. Duas em que Angola o invadiu com o auxílio dos cubanos - invasões que se saldaram pela expulsão dos ocupantes graças à acção dos países amigos do presidente Mobutu; e uma em que Angola colaborou com outros países para invadir novamente o Congo, substituir todos os seus orgãos de soberania, nomeadamente o presidente Mobutu que foi expulso e substituído por outro presidente da confiança do MPLA.

Esta terceira invasão teve consequências trágicas para o Congo já que se traduziu na perda de milhões de cidadãos nos anos de total anarquia que decorreram até ser recuperado, em eleições recentes, uma vida que se espera democrática e duradoura.

o Congo Brazaville também não escapou a esse tipo de intromissão violenta tendo sido invadido pelas forças militares angolanas e visto os seus orgãos legítimos, presidente e governo, serem substituídos por outros, congoleses, da simpatia totalitária do MPLA.

Como é óbvio todas as intromissões se mantinham escondidas na política do MPLA.


Crimes de guerra contra a humanidade


Desde os primeiros meses que, devido às minhas frequentes viagens aéreas dentro de Angola e do contacto com as povoações, me fui apercebendo de que a vida humana em Angola não era respeitada. Havia mortos e desaparecidos por todo o lado.

Bem cedo me dei conta de que só em Quifandongo teriam sido eliminados milhares de angolanos pelos soviéticos e pelas forças afectas ao MPLA. A cidade de Luanda, durante os dois dias anteriores à independência, ouviu imensos estrondos provenientes de bombas disparadas para os lados de Quifandongo e viu múltiplos jeeps, com cubanos negros, atravessarem Luanda a caminho do Hotel Presidente. Ocupado pelo MPLA este hotel iria servir para alojar uma parte dos 7000 cubanos que já se encontravam em Luanda.



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Avenida Marginal, Luanda (1970). Ver aqui


Depois do movimento de libertação mais antigo e internacionalmente conhecido, que iniciou a luta contra o colonialismo, Quifandongo, que com a UNITA representava 80% das etnias do povo angolano, seria a grande vítima dessa repressão vendo o seu solo imerso num imenso mar de sangue dos seus naturais, mulheres e crianças incluídas.

Outro drama, ainda maior do que esse, estava porém para surgir na província do Moxico. Com uma área de cerca de 200.000 quilómetros quadrados, área semelhante a metade da área do Japão, essa província iria ser vítima de uma das maiores devastações da história do mundo.

Estando eu no Dundo tive conhecimento de que o MPLA levara a cabo nesta província uma operação militar denominada Operação Tigre, em que predominavam as forças armadas cubanas, soviéticas e outras, com o objectivo de a destruir.

A minha presença nessa região devia-se ao facto de ter sido nomeado pela minha Administração para receber uma comissão militar do MPLA que no Dundo vinha exigir o empréstimo de material circulante e outro muito diverso e importante para uma missão secreta no Moxico. A Administração entregou o que pôde e, tempos depois, soubemos que aquela enorme área tinha sido objecto de uma total destruição acerca da qual pouco se sabia dado que o MPLA a classificou como uma "área interdita". Só muitos meses mais tarde soubemos o que aconteceu. Que a quase totalidade das grandes áreas daquela província tinham sido incineradas bem como as suas populações cujo número se estimava em cerca de 50.000/60.000. É que tudo havia obedecido ao objectivo de fazer desaparecer para sempre, sem deixar o mínimo vestígio, todas as povoações: habitações, animais e tudo quanto tivesse vida ou pudesse servir de testemunho vindouro.

Refiro-me a este extermínio por o considerar como um dos maiores crimes de guerra e contra a humanidade que se cometeram neste planeta nestes últimos trinta anos e por achar que ele exige, a nível internacional, um inquérito exaustivo não só para julgar e punir os responsáveis que ainda forem vivos como também para saber onde estão essas povoações destruídas que existiam à data da independência.

Além de que algumas das pessoas que comigo falaram acerca desta tragédia, como os governadores do Kuanza Norte, António Gaspar da Conceição - com quem muito falei até ele ser fuzilado -, e do Bié, Jamba Ya Mina, me disseram que efectivamente houve dos cubanos (o General Rafael del Pino terá tomado parte nessa carnificina) e soviéticos uma acção de verdadeira destruição das habitações e populações que aí existiam antes da independência. Acções cujo único móbil era destruir todas as populações desta província que não eram da simpatia do MPLA.



Da esquerda para a direita: general Arnaldo Ochoa, general Senén Casas, Fidel Castro, general Rafael del Pino, o general chileno Anaya Castro  e Victor Drake


Embora as três províncias, Moxico, Huambo, Bié, tenham sido também profundamente atacadas e o saldo de duas delas se cifre em 100.000 mortos, como expressamente referiu o governador do Bié, cuja província esteve ocupada pelo mesmo exército da Operação Tigre, nenhum acto de destruição se pode comparar ao da província de Moxico.

Os dois governadores acima citados disseram-me que, entre outros graves aspectos, havia que investigar o que teria sido feito dos ossos de todas as populações dizimadas. Tê-los-iam levado para outro local? Ou terão, o que se afigura mais provável, sido enterrados? Neste caso a investigação irá descobrir onde estiveram todas as povoações e populações destruídas. Porque o Moxico pode ser descoberto pelo índice dos anuários que se publicavam no tempo colonial (edições ABC). Através delas se poderá saber onde existiam efectivamente, nessa época, essas populações.

Moxico tem também outro problema para investigar. É do nosso conhecimento que foram destacados para o Moxico, em aviões da TAAG, cerca de 2.500 presos, conotados com o 27 de Maio, que na sua maioria foram mortos e enterrados numa vala que teria umas centenas de metros de comprimento. Tal foi, aliás, afirmado na prisão de S. Paulo, por um dos seus últimos responsáveis, que se gabava de ter matado uma boa parte deles. Também aqui se impõe uma profunda investigação a fim de se ficar a saber quantas pessoas foram mortas no semestre posterior à independência de Angola e, depois, a seguir ao 27 de Maio. Reclama-o a verdade e muitas famílias que ainda não sabem onde param os corpos dos seus parentes (in ob. cit, pp. 170-183; 242; 273-277; 351-358).



Notas:

(34) Estivera na caserna C de São Paulo e fora transferido posteriormente para a Kibala.

(35) Eu tinha contactado com este Vicente no Dundo.

(36) Tinha sido mandado para a Kibala sem culpa formada. Lá permaneceu cento e vinte dias. Em virtude de pressões internacionais, incluindo a imprensa de Lisboa, veio a ser julgado e absolvido pelo Tribunal Popular Revolucionário, mas depois de dois anos de prisão.

(37) Estes alimentos que, em certas ocasiões, os presos possuíam eram cozinhados num fogão a lenha também conhecido na Casa de Reclusão e em São Paulo. Tal fogão era assim engendrado: marcava-se, na parte superior de uma lata, com um prego e um cordel, um círculo. Em seguida, cortava-se pela linha do círculo, não esquecendo uma abertura lateral para entrada do ar. Depois, era necessário soldar, na parte superior, uma outra lata. E estava o fogão pronto. A lenha obtinha-se a partir de caixotes desaproveitados, de ramos secos e outras pequenas peças de madeira.








(38) Capim designa um conjunto de plantas forraginosas, com uma variedade muito grande, que em Angola apenas os animais comem.

(39) Existia um outro preso, esse negro, com o mesmo nome.

(40) Na Casa de Reclusão estavam vários portugueses: Joaquim Manuel dos Santos Brizida, Fernando Nunes Maria, Gilberto Almeida Ribeiro, Manuel Moreira Garcez, Manuel Pires da Mota, António João Pires.

(41) Estas fugas para a mata eram frequentes. Numa batida feita pelo MPLA, nos primeiros meses de 1980, foram encontrados cerca de cinquenta mil angolanos que haviam fugido em virtude das constantes perseguições.

(42) Os comissários de Benguela, Cuanza Sul e Malange, presos em São Paulo, falavam de um resultado vergonhoso: cento e cinquenta mil mortos.

(43) A consciência do holocausto angolano tem-se erguido timidamente, mas começa a lançar os seus sinais. Numa carta aberta dirigida ao Presidente da República Angolana, no Público de 27.05.03, um grupo de angolanos reivindicava a construção de um memorial, que recordasse a vida daqueles que foram sumariamente executados e assassinados em 1977 e 1978, e o sofrimento de tantos que sobreviveram mas transportam dentro de si os traços de uma reclusão violenta e injustificável e foram, depois, em alguns casos, obrigados a viver no exílio.

(44) Juan Benemelis, Castro, subversão e terrorismo em África, Europress, 1986, 264.

(45) Estava-se num período em que se expandia ainda a política dos "dois blocos". Grande parte da humanidade viu nas promessas comunistas, representadas por um dos blocos, a redenção possível. Mário Soares descreveu essa ilusão com argúcia: "A Revolução, com R grande, revolução comunista dos amanhãs que cantam como a suprema utopia que anunciou a igualdade entre os humanos e a libertação das pessoas dos constrangimentos impostos pelo exterior, atraiu e mobilizou milhões de seres humanos em todo o Planeta - revoltados, famintos de pão e de justiça, generosos, idealistas - que por ela se sacrificaram, combateram e frequentemente morreram. Foi um fenómeno universal, quase uma nova religião anunciadora da felicidade na Terra, um colossal embuste, como se viu depois, em função das odiosas realidades a que se deu origem em toda a parte em que se implantou. Alastrou por três continentes, durante mais de 70 anos (1917/89) e aluiu por dentro, numa espécie de implosão incontrolável", Expresso, 30.12.98.

(46) Tratava-se de uma escola de formação militar.




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O "Gulag Angolano" (i)

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Escrito por Miguel Bruno Duarte






Revolução Comunista de 1974



Uma amostra dos "homens sem sono"









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Mário Soares e Freitas do Amaral


«Mas julgo justo e exacto afirmar: a revolução [de 1974] começou por ter um âmbito muito restrito quanto à sua origem e objectivos, que se diriam quase disciplinares e de grupo; dado o estado em que se encontrava a sociedade portuguesa, todavia, forças políticas e ideológicas exteriores logo compreenderam a oportunidade que podiam aproveitar ou provocar, e tomaram em mão um processo que foi rapidamente conduzido sem que a massa do povo português se apercebesse do que se passava».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


«O Partido Comunista Português e o seu líder [Álvaro Cunhal], vivendo e agindo no isolamento e na clandestinidade, estavam, no momento em que o golpe dos capitães os empurrou para a área do poder, prontos a serem a vanguarda da revolução no assalto ao Estado.

Nesse Verão de 1974, com os Estados Unidos de Nixon a braços com a guerra do Vietname e o Watergate, com o Ocidente a pagar as consequências do embargo árabe e da subida do petróleo, a URSS de Brejnev aparecia como uma superpotência que avançava à conquista do mundo, empurrada pelos ventos da história. Já era, então, um império de pés de barro, como o demonstrariam as profecias de Emmanuel Todd e Hélène Carrère D'Encausse, mas poucos tinham ainda dado por isso. Os soviéticos estavam a construir uma frota de alto mar, alimentavam focos de dissidência e revolução por todo o mundo e dispunham, na Europa, das quintas colunas dos partidos comunistas: na legalidade, como em França e Itália, ou na clandestinidade, como na Grécia, em Espanha e em Portugal.

Deste modo, O PCP, que já integrava muitos elementos da classe média, mas que mantinha a imagem de marca de partido operário e camponês, aparecia na linha da frente da conquista do poder. Ajudavam-no (...) uma razoável quantidade de "submarinos" e de companheiros de caminho entre os militares do MFA e o pessoal político e jornalístico.

(...) O principal interesse da União Soviética em relação a Portugal e à revolução portuguesa eram os territórios do Ultramar. Continuando Yalta em vigor no Hemisfério Norte e considerando que qualquer alteração brusca do poder no rectângulo lusitano afectaria uma evolução liberalizante em Espanha, Moscovo entendeu sempre como parte interessante da "revolução dos cravos" os potenciais ganhos nas áreas coloniais. E estas, claramente, iam entrar num processo de independência acelerada, quer por vontade dos militares do MFA (que queriam o fim da guerra e para isso tinham feito o golpe), quer pela das forças políticas que traziam para a área do poder.

(...) Desconhecia-se o que se passava no interior do corpo de oficiais, as contradições, divisões e ressentimentos acumulados que iriam tornar possível que um soviete de capitães liderasse a marcha para o fim do secular império português. O processo ia ser também uma comédia ou uma tragédia de enganos, em que várias personagens apareceriam para serem usadas e manipuladas por ambição, oportunismo, vaidade, convicção, boa fé ou ingenuidade.

O general Spínola foi atirado para a liderança na tarde do golpe. Num gesto de solidariedade e desespero, Marcelo Caetano entendeu chamá-lo, depois de paralisar uma eventual resistência. Para os conspiradores do MFA, Spínola era útil e conveniente: era preciso que a descolonização fosse anunciada, não por um obscuro major ou capitão, mas por alguém que se tivesse distinguido no terreno e cujo patriotismo e coragem fossem conhecidos. Só um símbolo da defesa do Império poderia anunciar ao país o seu abandono. Spínola cumpria os requisitos, como De Gaulle com a Argélia.






Tomada de posse do General António de Spínola como Presidente da República, conferida pelo General Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e membro da Junta de Salvação Nacional (imagem de O século Ilustrado, 18 de Maio de 1974).




















Charles de Gaulle
























(...) O que unia as forças políticas permitidas pelo MFA depois do 25 de Abril era a sua convergência com a sociedade internacional, as Nações Unidas e os ventos da História, no que tocava aos territórios ultramarinos. Este objectivo ficara claro nos programas dos principais partidos políticos, organizados sob a vigilância e controlo do MFA.

Ao quase meio século de monopólio autoritário da direita sobreviera o domínio ideológico da esquerda. E porque a direita impusera as suas concepções e valores, o novo regime iria recusá-los em bloco; nenhum partido se atreveria a inscrevê-los nos seus ideários. Os programas partidários eram agora ou um catálogo de aspirações retóricas e libertárias e de propostas maximalistas, ou uma resenha tímida e asséptica de medidas liberalizadoras e reformistas.

O interesse nacional, identificado com o nacionalismo salazarista, foi banido da política externa e de defesa, que passaram a rever-se na satisfação dos desejos da "comunidade internacional". O combate ideológico travava-se entre as forças da esquerda marxista-leninista e as do socialismo e democratismo moderados, identificados com o PS e o PPD: a escolha era entre o socialismo radical e o "de rosto humano". O PS adoptara, quanto à economia, uma linguagem semelhante à dos comunistas, em que alinhavam outros grupos, como os próprios liberais desiludidos. Os chamados monopólios, os grupos privados nacionais - CUF, Champalimaud, Espírito Santo, Banco Português do Atlântico - eram, para todos eles, os principais culpados do atraso português. O contributo destes grupos para a inovação industrial e tecnológica seria, assim, ignorado, facilitando o clima anti-iniciativa privada que se instalou a seguir ao 25 de Abril e que teve o seu apogeu no dia 11 de Março de 1975.

A prioridade do MFA e do PC fora a neutralização e proibição dos movimentos, partidos, jornais e pessoas, que, quer no sector militar, quer no sector civil, se opunham à descolonização. Com o pretexto do 28 de Setembro, as forças de esquerda, os comunistas e ala radical do MFA aproveitaram a ambiguidade e a inexperiência política de Spínola e dos spinolistas para perseguirem, prenderem e forçarem ao exílio os quadros da direita militante.

A luta passou então a ser entre a esquerda de obediência soviética e seus satélites e as chamadas forças moderadas, que iam dos soaristas ao CDS. Grupos como o MRPP, por vezes manipulados pelos Serviços ocidentais através de alguns dos seus dirigentes, ajudaram à confusão.








Mas todos estavam unidos na descolonização. A Guiné já se tinha tornado independente por decisão das Nações Unidas, independência que Portugal reconhecera logo em Setembro de 1974, deixando que fossem fuzilados, ainda sob soberania portuguesa, muitas dezenas de comandos africanos do exército português. Em Lourenço Marques, consumou-se a entrega do poder à FRELIMO, depois de falhado o golpe de 7 de Setembro. Em Luanda, Rosa Coutinho seguiu a táctica dos factos consumados para aterrorizar os "colonos reaccionários", e quando o FNLA, o MPLA e a UNITA foram autorizados a instalar-se na cidade com 600 homens armados para protecção dos respectivos líderes e sedes, estavam criadas as condições da guerra civil.

Os governos provisórios, depois da assinatura dos Acordos de Alvor, em Janeiro de 1975, consideravam-se desresponsabilizados do seu cumprimento. Documentação recentemente revelada veio confirmar que, para este como para outros pontos obscuros da história do 25 de Abril, os detentores do poder provisório - capitães do MFA, líderes comunistas e socialistas - agiram com secretismo maquiavélico, ocultando dos cidadãos o que entenderam perigoso para os seus objectivos políticos finais. Foi o caso de uma série de concessões e pré-acordos que, a serem conhecidos, seriam rejeitados pela opinião pública. Assim se dissimularam o sentido e o alcance das medidas que se iriam tomar ao longo desses meses e que seriam decisivas para Angola. A falta de directivas de Lisboa para o poder executivo em Luanda, também derivada dessa agenda secreta, levou a que as guarnições portuguesas abandonassem, às vezes em debandada, o interior do território. Daí o êxodo dos colonos, decapitando a administração e a economia do país e contribuindo para precipitar a guerra civil. Esta indiferença do poder político de Lisboa seria alvo de muitas queixas, passadas e presentes, de angolanos de todos os quadrantes, incluindo do MPLA.

Com excepção dos comunistas, que procuraram sempre favorecer a posição dos que, no quadro internacionalista, viam como os seus correligionários, a falta de atenção e decisão em relação à questão africana foi geral e notória. A classe política tratou com desprezo, desinteresse e leviandade a situação de Angola e o papel de Portugal como parte e garante dos Acordos de Alvor.

Assim, ficariam em Angola, como em Moçambique, as sementes de longas guerras civis. Em Timor, um território sem movimentos independentistas, os enviados do MFA desencadearam uma guerra que iria levar à ocupação indonésia. Em Cabo Verde, anexado à Guiné do PAIGC, e em São Tomé, deixaram governos de partido único e modelo socialista.












Vala comum de antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas assassinados às ordens de Luís Cabral (1980)









Autor: Neves Anacleto. Ano de edição: 1974













Ramos Horta, à esquerda (1975)




Noam Chomski e Ramos Horta nas Nações Unidas (24 de Outubro de 1979)










O MFA, o Governo Provisório, o presidente da República e os principais partidos resolveram assim o problema do Ultramar. Abandono puro e simples, como forma de contrariar a política de integração de Salazar; fazer o contrário do que fizera o Estado Novo seria sempre um bordão inspirador das políticas de Abril.

Mas as ideias têm consequências, e o modelo de marxismo arcaico vagamente subjacente ao espírito de Abril interpretava "o fascismo" e o "nazismo" como formas extremas de capitalismo monopolista financeiro. Esta teoria, do famoso Dimitrov, adoptada por conveniência por Estaline, teve a sua versão nacional: o 28 de Maio e o Estado Novo eram "obra do grande capital e dos grandes latifundiários", que tinham usado a força do exército e da repressão, não só para sufocar o movimento operário nascente, como para "arruinar a pequena e média burguesia".

Esta versão, mais ou menos oficializada nos manifestos e documentos do PC e da extrema-esquerda, encontrou eco no resto da oposição, dos socialistas aos liberais e aos católicos-progressistas. Contra a "aliança" entre o Estado Novo e os grandes grupos eram necessárias "soluções socialistas e socializantes", como já o admitira, em 1972, o próprio Sá-Carneiro.

Este clima cultural e político iria reforçar e legitimar a política centralista e socialista que se instalaria com a intentona de 11 de Março e o consequente assalto ao poder pelos elementos radicais do MFA e dos partidos de esquerda».

Jaime Nogueira Pinto («Portugal: Ascensão e Queda»).


«...O cravo vermelho foi inicialmente símbolo do trotskismo, mas quando este movimento e o seu líder, Trotski, foram aniquilados por Lenine, este passou a adoptar o cravo vermelho como símbolo do comunismo...».

General Silva Cardoso («25 DE ABRIL DE 1974. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA»).


«Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.

(...) Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco».

António José Saraiva («O 25 de Abril e a História», in Diário de Notícias de 26 de Janeiro de 1979).












«No espectro angolano pairava outra entidade militar, criada no primeiro trimestre de 1975, como símbolo do "espírito" do Alvor. Eram as Forças Militares Mistas (FMM), que deveriam garantir a manutenção da ordem até 11 de Novembro de 1975, com metade dos seus efectivos portugueses e a outra metade dividida entre os três movimentos.

Tudo isto acontecia numa altura em que, diariamente, se sentiam os efeitos da guerra em todas as regiões do território, onde cabiam vinte países da dimensão de Portugal. Luanda ficava cada vez mais sitiada. O Coplad [Comando Operacional de Luanda] pedia homens com urgência aos nacionalistas angolanos, para ter mão nos actos de vandalismo, roubo, assassínio e outros, provocados por marginais, contra os quais não eram tomadas "as medidas mais convenientes".

As Forças Militares Mistas também viriam a falhar. Desmantelava-se a "entidade abstracta" que devia ter sido a força no terreno do apoio ao Comando Operacional de Luanda. Ainda desenvolveram algumas acções, mas eram "inexequíveis". Lisboa bem pressionava para a sua efectiva implementação, impossível de concretizar. As queixas eram muitas. "Elementos da UNITA integrados nas FMM afirmaram abandonar as viaturas daquela força, pois tinham ordens do seu comandante para o fazer se o tiroteio recomeçasse", dava conta um relatório militar sobre o acampamento das FALA [Forças Armadas para a Libertação de Angola], as forças armadas de Jonas Savimbi.

Os desabafos de desagrado sobre estas forças, de Leonel Cardoso, comandante naval de Angola, faziam-se ouvir na Comissão Nacional de Defesa. Na reunião em que se propôs o reforço das patrulhas das FMM, quando chegou a sua vez, afirmou simplesmente: "Não adianta!". O que viria a ser o último comissário de Angola argumentava que, quando as FMM se aproximavam de um incidente, ou tiroteio, aquele cessava. Mas logo que as patrulhas saíam do local o fogo recomeçava. Nem mesmo com a situação "dramática" em Luanda o comodoro (actualmente contra-almirante) concordava que recorressem às FMM. Era a elas, explicava, que "competia começar aos tiros (...) mas quando é preciso ficam só as Forças Armadas Portuguesas". Além disso, achava "utópica" e de "duvidosa imparcialidade" a actuação de forças de um movimento contra elementos desse mesmo movimento. Mais tarde, em Agosto de 1975, apenas com o MPLA em Luanda, as FMM foram extintas no papel.








Os comentários de Leonel Cardoso punham o dedo na ferida. Como era possível acreditar numa força que integrava elementos dos três movimentos angolanos, se essa mesma força tinha de exercer acções repressivas contra os provocadores de distúrbios, constituídos por grupos ou simpatizantes dos próprios movimentos? O mesmo raciocínio pode estender-se às comissões, grupos de análise e inquérito que foram brotando, no Governo de Transição e Comissão Nacional de Defesa, mas sem resultados práticos. Houve excepções, mas o ambiente entre os três movimentos transpirava ódio mútuo, sobretudo entre o MPLA e a FNLA, talvez por pertencerem a etnias distintas.

Da Polícia Militar portuguesa, outra força presente neste jogo de poder, há muito poucos documentos. Era a única força, em Luanda, que entrava nos muceques, onde se verificaram muitos incidentes. Fazia um pouco de tudo. Incluindo, segundo testemunhos, missões importantes para o MPLA, nomeadamente na detenção de civis portugueses, que seriam encaminhados para as prisões clandestinas que o movimento de Agostinho Neto implantara em Luanda. O comandante da Polícia Militar na altura, Moreira Dias, nega, contudo, que elementos da corporação tenham contribuído para encher as prisões do MPLA. "Nem pouco mais ou menos", afirmou-me, em entrevista, o coronel de 67 anos, que em 1975 foi um operacional em Luanda, e protagonista de acontecimentos relevantes. Que me confirma o esvaziamento da autoridade, e a ausência progressiva de informação.

"As tropas foram regressando. Deixámos sair os elementos da guarnição, porque havia o pressuposto de serem substituídos, o que não veio a acontecer. Chega-se a uma altura em que a nossa unidade mais importante da Polícia Militar era um esquadrão de viaturas blindadas, os Dragões, com uma enorme capacidade de fogo e grande impacto psicológico. O problema é que não tínhamos pessoal para as guarnecer. A PM mantém-se até ao fim, mas cada vez com menos elementos. De 500 homens, ficaram 150. Então, tive de desmembrar uma companhia para guarnecer os Dragões, que foram fundamentais. E porquê? Porque depois do 25 de Abril de 1974 os movimentos não tinham efectivos, e fizeram uma corrida à incorporação. Os primeiros elementos disponíveis foram os bandidos. E eu senti isso em Luanda. Verifiquei que os assaltantes do passado recente continuavam, mas agora assaltavam armados. Todos os movimentos os incorporaram nas suas fileiras, mas com mais incidências o MPLA. Passámos com isso por problemas gravíssimos, em várias cidades". O MPLA teve de admitir que muitos elementos das FAPLA era provenientes do lumpenproletariat..."

(...) O relatório secreto da CCPA [Comissão Coordenadora para o Programa em Angola], de 79 páginas, propunha uma mudança de atitude. "Há que rever imediatamente o papel do MFA em Angola". Portugal não pode "andar a reboque dos acontecimentos, remediando mais do que prevenindo, pelo que nos arriscamos a perder por completo o controlo da situação, com graves e duradouras repercussões em Angola e no nosso próprio país. Era impossível, diziam os homens do MFA em Angola, a política de descolonização ser "mantida na actual forma", com o Governo de Transição "inoperante", e a CND [Comissão Nacional de Defesa], apesar de "satisfatória", "boicotada pelos movimentos". O convite à mudança foi radical. Propuseram a saída de Silva Cardoso, pois, consideravam, o MFA em Angola só seria reforçado com um novo alto-comissário, evidentemente militar, mas de "preferência do Exército, que se integre na nova linha política".




Os movimentos nacionalistas não davam tréguas. Como necessitavam de armamento (porque ainda não tinha chegado em número suficiente dos países que os apoiavam), os depósitos de armas eram alvos continuados de assaltos. Em duas investidas ao Grafanil desaparecem 50 morteiros, 400 G3 e 20 mil munições 7,62, e dois mil camuflados das FAP [Forças Armadas Portuguesas] que se destinariam a desorientar o inimigo. Desconheciam-se os autores dos furtos.



(...) Altino de Magalhães:
a ponta do icebergue, por acaso


Telefono ao general Altino de Magalhães, 86 anos, cujo contacto me fora aconselhado. Combinámos o encontro, e dias depois recebia-me em sua casa, apesar de convalescente, num simpático quarto andar, frente à Fonte Luminosa, em Lisboa. Antes da entrevista, fez questão de me mostrar as pinturas de flores espalhadas pela casa, da autoria da mulher, já falecida, e da qual me falou carinhosamente. Expliquei-lhe ao que ia, falámos durante umas horas dos seus tempos de Angola. Contou-me, então, uma estranha história na qual, involuntariamente, se tinha envolvido.

O general do Exército estava em Angola no 25 de Abril. Quando se forma a Junta Governativa de Angola, a 24 de Julho de 1974, presidida por Rosa Coutinho, Altino de Magalhães passa a pertencer-lhe, na sua qualidade de comandante da Região Militar de Angola. Fica adjunto do "almirante vermelho", como era conhecido Rosa Coutinho. Faziam parte da Junta o comandante da Região Aérea, Silva Cardoso, e o comandante naval de Angola, Leonel Cardoso. Mas havia um quinto homem: o representante do MFA, na pessoa do oficial de engenharia Emílio da Silva, assessor político de Rosa Coutinho, com direito a voto. "Teoricamente, devíamos decidir por votos, mas a junta nunca funcionou assim. O Rosa Coutinho e o Emílio da Silva é que diziam como era, embora quem mandasse fosse o Rosa Coutinho. A nossa palavra não tinha peso", recorda o general.

Certo dia de Outubro, ou Novembro de 1974, quando chegou ao comando, o ajudante comunicou-lhe que o aguardava uma senhora. Recebeu-a.

"Fiquei perante uma jovem grávida, a chorar, que estava no limite, sob o efeito de calmantes. Coitada, passou um péssimo bocado. Então, o que sucedera? O marido, que trabalhava num atelier de desenho, desaparecera havia uma semana. Ela estava à espera dele apara almoçar, mas ele não chegou e ela nunca mais o viu. Telefonou para o serviço, disseram-lhe que tinha ido almoçar a casa. Nessa noite, falou com várias pessoas, mas ninguém sabia dele. E ao fim de oito dias, depois de perguntar com quem podia falar, alguém lhe indicou o meu nome".

"Contou-me, então, que nessa noite lhe tinham colocado um papel escrito pelo marido, por debaixo da porta, onde ele lhe dizia que não podia ir para casa, mas que ela estivesse tranquila, nada lhe aconteceria. Foi seriamente avisada pelos raptores para não dizer nada a ninguém, porque só lhe podia complicar a vida. A senhora a dizer-me isto, grávida e a chorar, pedindo-me para eu não dizer nada a ninguém. Ao fim da tarde, fui para a reunião da junta. Estávamos os cinco, e eu perguntei: 'Ó almirante, já sabia que havia prisões privadas em Luanda, enfim, de boatos' - porque o assunto era secreto. E prossegui: 'Mas agora estou perante um caso concreto. Um desaparecimento, e comandado de tal maneira, que manda avisar a família para estar quietinha, porque senão matam-no'. Depois virei-me para o Rosa Coutinho e disse-lhe: 'O homem tem de aparecer - e já! -, senão eu vou denunciar isto. E não fico mais num governo em que isto se passa...'Falei com ar muito a sério. Lembro-me que o Silva Cardoso me apoiou".




"Sabe qual foi a reacção do Rosa Coutinho? Virou-se para o Emílio da Silva e disse:'O homem tem de aparecer. O homem tem de aparecer...' E eu acrescentei: 'Se não aparecer até amanhã de manhã, faço o que disse, vou para os jornais, vou-me embora, vou denunciar o que está a acontecer'. O Rosa Coutinho voltou-se de novo para o Emílio da Silva e repetiu:'O homem tem de aparecer'. O outro reage.'Ó senhor almirante, que tenho eu com isso?', ao que o Rosa Coutinho repete: 'Tem de aparecer'. Perguntei: 'O senhor almirante toma essa responsabilidade? Que o homem vai aparecer? Então espero até amanhã, mas depois disso não passo...' Ora bem, quando o Rosa Coutinho se virou para o Emílio da Silva e disse que o homem tinha de aparecer... o Rosa Coutinho sabia dessas coisas, e o outro também estava por dentro".

"No dia seguinte, pouco depois de ter chegado ao quartel-general, o Rosa Coutinho telefona-me e diz: 'O homem já está localizado! E vai aparecer, mas não pode ser já. Agora você tem de escolher: ou há uma bronca muito grande, ou confia em mim. Não aparece em 24 horas, mas aparece daqui a 48 horas. Dou a minha palavra de honra'. Ele estava entre a espada e a parede. E se eu denunciasse o 'sistema' que o tinha prendido podia linchá-lo. A mulher estava numa posição desgraçada, e já arrependida de ter chegado 'lá acima', não fossem descobrir que tinha sido ela. Nem me deu a morada, nem telefone. Poucos dias depois chego ao briefing e dizem-me que comunicaram da Polícia Militar, dizendo que estava um homem nu, amarrado a uma árvore, na estrada do aeroporto. Era ele, o marido. Foi quatro dias depois. Na altura não liguei uma coisa com a outra, mas nessa tarde recebe um telefonema, da mesma senhora.'Muito obrigada, o meu marido já cá está'. Depois foram os dois ao quartel-general agradecer-me".

"Pedi ao marido para relatar o que se tinha passado. Contou que foi apanhado no trajecto para casa, à hora do almoço, por fuzileiros navais, da nossa Marinha, fardados, que andavam num jipe militar. Meteram-no num carro e levaram-no até à porta do cemitério de Luanda, onde um carro do MPLA os aguardava. Passaram-no para o carro civil, deitaram-no no chão e levaram-no preso para os arredores. Taparam-lhe os olhos, andaram às voltas com ele, conduziram-no para um apartamento que ele não sabia onde ficava. Meteram-no numa casa de banho e interrogaram-no. Queriam saber quem era da FRA, Frente de Resistência de Angola (inimiga do Rosa Coutinho), a que ele não pertencia.








«Constava que a FRA andava a recrutar comandos. Ora bem, ele não foi comando, mas sim administrativo no departamento de pessoal dos comandos, de forma que eles pensavam que tinha uma relação de todos os que passavam à disponibilidade. Ele dizia que não tinha relação nenhuma, que os arquivos estavam nos serviços. Os indivíduos, armados com metralhadora e à paisana, diziam que ele fornecia comandos que passavam para a FRA, aliciando-os para uma força de combate. Foi maltratado, era bofetada por tudo e por nada. Davam-lhe banana, pão e água. Teve furunculose, de não tomar banho nesses dias".

"Foram os fuzileiros que o apanharam e o entregaram ao MPLA. O senhor Emílio da Silva sabia. Mais tarde, nos Açores, voltei a encontrar o casal, por acaso. Falámos, tentei ficar com o contacto deles, mas o susto foi tal, que evitaram dar-mo. Agora estou a contar isto à vontade, porque não há perigo nenhum. Mas, na altura, calei-me. Tive muito cuidado. Nem quis averiguar quem foi o responsável, porque, se começasse a mexer nesse caso, se calhar era mais um dos desaparecidos..."

O general Altino de Magalhães assistiu às prisões políticas de Rosa Coutinho. "Com certeza que as confirmo. Havia presos. Oficialmente não sabíamos, eram bocas de rua. Mas o Rosa Coutinho metia-os no avião e chegavam aqui no pino do Inverno com a camisinha em cima do pêlo. Faziam tropelias de todo o tamanho, eram uns fanáticos. Aos civis que se opunham ao jogo com o MPLA, prendia-os. Se eram militares, passava uma guia de marcha militar para regressarem. Fazia isto na Marinha, no Exército e na Força Aérea. Entrava nos batalhões e mandava embora os homens. Os comandantes passavam as guias de marcha porque era o comandante-chefe que ordenava".

"Constava nessa altura, na rua, que desapareciam pessoas e que havia prisões privadas em Luanda. Na informação militar nós não tínhamos conhecimento de casos concretos. Nem nada transpirava. Tudo se passava fora daí. Fiquei a saber aquela história com a denúncia da senhora. Este caso foi a ponta do icebergue. Nos briefings com o serviço de informações, eu perguntava: 'Que diabo, andam para aí a dizer que há prisões privadas, e tal...' Quem tinha vocação para descobrir estas coisas era a PIDE, mas tinha sido transformada em Polícia de Informação Militar, e era só para se ocupar de informações militares. Estávamos muito limitados a nível de informação".

O general Altino de Magalhães seria "corrido" em Dezembro de 1974 por Rosa Coutinho. Mas, antes, protagonizou um episódio revelador de certa faceta do "almirante vermelho", que vale a pena conhecer. "Numa altura em que se dizia mal do Rosa Coutinho nas ruas de Luanda, e ele andava fulo, ordenou-me, porque eu era o comandante da região, para atacar a sede da FNLA, porque o movimento o tinha criticado. Perguntei:'E depois, como vamos resistir, se a FNLA nos atacar, com as nossas tropas todas desmotivadas?' E ele respondeu. 'Já o informei. Vamos ocupar a sede da FNLA'. Eu era defensor dos princípios militares; quando o chefe manda, obedece-se. Ainda peguei no telefone e comuniquei aos Comandos:'Preparem uma companhia, vamos ocupar a sede da FNLA'. E diz-me de lá o comandante Diniz, que não era de esquerda: 'E depois?'. Então, percebi que o meu raciocínio estava correcto. E disse:'Desculpa, Diniz, não cumpras essa ordem'. Fui ter com o Rosa Coutinho, que estava numa sala cheia de militares progressistas. Quando lhe comuniquei: 'Não cumpro essa ordem!', ele pegou naqueles oficiais todos e levou-os para outra sala, para decidir o que ia fazer comigo. Daí a pouco abriu-se a porta, veio um capitão, que também foi ministro da Administração Interna, e que se me dirigiu e revelou: 'Meu general, nós dissemos ao nosso almirante que quem tem razão é o meu general. Fica tudo assim'. Até hoje, o Rosa Coutinho nunca mais tocou no assunto".



O 'almirante vermelho' e António de Spínola









Contentores dos retornados no porto de Lisboa (Outono de 1975)





















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A entrega de civis portugueses por parte de "patrulhas de marinheiros e fuzileiros" para os cárceres piratas do MPLA foi salientada em Memórias da Revolução, no depoimento do piloto-aviador Alcino Roque, um coronel que também esteve preso à ordem de Rosa Coutinho, por discordar de decisões do MFA de Angola».

Leonor Figueiredo («Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola»).


«Como observava Juan Benemelis, o poder militar da aliança cubano-soviética, apesar da quantidade de homens e equipamentos, revela alguma lentidão e rigidez na sua operatividade perante as condições específicas do conflito angolano. Por seu turno, os alemães de Leste, sendo muito metódicos, apresentavam muitas dificuldades quanto à capacidade de improvisar face às acções de guerrilha. A força militar do MPLA era muito heterogénea e, apesar do equipamento, não tinha as condições de mobilidade necessárias.

O conflito militar inviabilizará qualquer solução de desenvolvimento para o país e obrigará a aumentar os níveis de repressão sobre a sociedade angolana:

Tendo em consideração que antes da independência, em termos de Produto Nacional Bruto, per capita, Angola era o segundo país de África (depois da África do Sul e antes da Nigéria), a situação económica actual considera-se próxima do desastre, ao ponto de 80% das suas necessidades alimentares serem importadas e não existir liquidez financeira.


Estava em marcha uma história de dor e sangue. Do princípio ao fim do conflito, Angola ganhou um milhão de mortos, cem mil mutilados, cinco milhões de deslocados, vinte milhões de dólares de dívida pública e um ódio fratricida difícil de superar. Note-se que a violência da afirmação do MPLA sobre os outros movimentos independentistas terá continuidade dentro do próprio MPLA. Incapaz de gerir a pluralidade interna, o presidencialismo absoluto de Agostinho Neto usará da mesma violência para reprimir a Revolta Activa de Joaquim Pinto de Andrade e a Revolta de Leste de Daniel Chipenda. A partir daqui os símbolos partidários do MPLA transformar-se-ão em símbolos nacionais.




Acordo do Alvor (Algarve, Janeiro de 1975). Em primeira linha, da esquerda para a direita: Melo Antunes, Rosa Coutinho, Agostinho Neto, Costa Gomes, Holden Roberto, Jonas Savimbi, Mário Soares e Almeida Santos


























(...) A política de "unanimismo" pela força que Neto implementou no MPLA acabaria por conduzir à perseguição e liquidação de muitos fundadores do MPLA. Viriato da Cruz, por exemplo, viu-se obrigado a fugir para a China com a esposa e um filho. Segundo os testemunhos de Xibias e Castro Lopo, tudo se terá agravado por altura das negociações de Kinshasa, altura em que Viriato da Cruz terá sido mesmo agredido e Mário Pinto de Andrade forçado a abandonar o cargo de presidente do MPLA.

Chegou o momento em que o facto de quase não existirem fundadores no núcleo central do poder do MPLA era apontado como um autêntico escândalo - apenas restavam Neto e Lúcio Lara. Na tentativa de calar as vozes descontentes foi buscar a Portugal Ilídio Machado, um fundador já muito afastado da actividade do MPLA.

Juntando os fragmentos do que se dizia, do que se denunciava ou falava entre dentes, é fácil concluir que, no contexto das cisões do MPLA, Moscovo estaria do lado de Nito Alves. Alguns diziam que era disso sinal o facto de, no Museu da Revolução de Moscovo, ainda antes do 27 de Maio, estarem expostas fotografias de Nito Alves e esquecidas as de Neto. O progressivo recuo do apoio soviético terá sido a razão que levou Neto, na companhia de Iko Carreira e Lúcio Lara, a Moscovo, logo após o 27 de Maio. Segundo a opinião de alguns, aquelas circunstâncias levaram a que Angola se tornasse ainda mais dependente das estratégias soviéticas, que passaram a jogar com a arma da chantagem.

Num ambiente de conspiração e descontentamento, Neto apoiava-se cada vez mais na protecção militar cubana, facto que desagradava a muitos angolanos. Recordo bem aquela noite de 10 de Janeiro de 1978. Eu estava já na cama procurando o sono. Ouvi um grande sururu entre os presos que habitavam as celas vizinhas. Fui até à porta saber o que se passava. Descobri que o objecto de discussão era uma fotografia numa edição do Jornal de Angola. A fotografia exibia as figuras do Presidente da República Federal da Nigéria e o Presidente angolano - este visitava oficialmente a Nigéria. Mas os comentários dirigiam-se à presença, na foto, de um tal Burgo, oficial cubano que ali estava na qualidade de chefe de segurança do Presidente - segundo as informações que obtive, este cubano teria acompanhado Fidel Castro na visita oficial que realizou a Angola e, depois desse acto oficial, ficou em território angolano. O facto exibido no jornal fazia ferver de indignação os angolanos que comentavam a notícia. Escandalizava-os o facto de o Presidente não confiar nos angolanos. Não lhe perdoavam que tivesse entregue a sua segurança pessoal a estrangeiros (este episódio não era singular. Como eu próprio pude verificar, no quadro das relações entre a Diamang e a Presidência, os assuntos administrativos eram tratados com dois soviéticos que falavam com fluência a língua portuguesa).

(...) Estamos perante mais um dos "notáveis" do MPLA. Irmão do Juiz Manuel Bento do Tribunal Popular Revolucionário, (...) o major Tonton, quando foi preso, era vice-chefe do Estado-Maior da 1.ª Região Militar, a qual havia sido comandada por Nito Alves, líder da intentona de 27 de Maio de 1977 contra o presidente Neto.
















Em finais de Junho tinha já confirmado que quase todos os oficiais da 1.ª Região Militar haviam sido fuzilados. Ele era um dos poucos sobreviventes. Aguardava a todo o momento a sua detenção embora alimentasse a esperança de que tivessem em conta o facto de ser conterrâneo de Agostinho Neto.

O Major Tonton esteve a meu lado na cela C. Ele, o José Mingas e tantos outros.

(...) Estes meses que se sucederam ao golpe de 27 de Maio foram marcados em São Paulo por medidas de estrita vigilância. Todas as noites havia "despachos" para a morte. Durante esse tempo eu era o único que estava autorizado a ir todas as manhãs à cozinha buscar pão, leite e açúcar que partilhava com o Major, com José Mingas e dois colegas de degredo. A este menu juntávamos, antes de 27 de Maio, cacau ou Ovomaltine, que o Antonino Rodrigues tinha consigo. Depois desta data, nada mais se conseguiu fazer entrar - por alguma razão o perímetro da minha cintura acabou por diminuir 20 cm.

Este contacto com altos quadros da estrutura político-militar do MPLA possibilitou-me conhecer aquilo que era a vida e as preocupações da elite angolana. Tonton tinha sido enviado para Cuba para ser instruído no seu ofício militar. Por várias vezes me referiu o desencanto que para ele constituiu o contacto com a pobreza do povo cubano. Soube mesmo de alguns aspectos anedóticos: os militares eram aconselhados a levar muitas mudas de roupa, pois cada vez que tinham relações de intimidade com uma cubana - mesmo que fosse nalgum espaço exterior -, a roupa era-lhes frequentemente roubada, às vezes com a colaboração de outros cubanos.

Através de um frequente diálogo pude perceber que estes militares tinham, em Cuba, um determinado acompanhamento "pedagógico" que procurava inquirir acerca da sua fidelidade à URSS, à RDA, a Cuba e a Agostinho Neto e instruí-los no ódio aos países capitalistas. No entanto, muitos angolanos conservaram lucidez suficiente para discernir que Cuba tinha intenções oportunistas e que era uma espécie de "cavalo de Tróia" da URSS. Eles percebiam isto logo que chegavam a Cuba e viam a quantidade de soviéticos ali presentes: era uma base estratégica e logística. Aliás, percebiam, também, que a potência soviética estava a utilizar Cuba para pôr Angola ao serviço do seu império [Tanto Tonton como José Mingas me asseguraram que em Cuba existiam várias escolas de formação destinadas a intervir noutros países da América Latina]. A proximidade linguística entre os dois países facilitava muito. Facilitava, por exemplo, o controlo destes militares em formação: muitas carreiras foram abortadas, promoções retidas e outras benesses retiradas, devido a conversas "indevidas" surpreendidas pelos cubanos.








Em Cuba chegaram mesmo a ver veículos com matrícula angolana quando não havia qualquer comércio de viaturas entre Angola e Cuba. Nos hospitais, em Angola, eram frequentes os roubos de material pelos cubanos: "eram despojos de guerra pertencentes aos colonizadores fascistas portugueses e não património angolano". Provavelmente os soviéticos dariam a mesma desculpa para os roubos que faziam aos fartos mares angolanos.

Mas a razão mais forte para o crescente mal-estar dos oficiais angolanos era, com certeza, o facto de os cubanos, soviéticos ou alemães serem, quase sempre, seus superiores hierárquicos. A relação entre eles não era a de camaradas de armas, o que feria necessariamente a sensibilidade angolana. Aliás, estes oficiais estrangeiros não estavam sob o controlo do Alto Comando Angolano; eles próprios é que fiscalizavam as acções e as palavras dos oficiais angolanos. O agente Victor Geitoeira era, a esse propósito, uma das vítimas conhecidas. Vi-o uma vez na parada em São Paulo. Tonton apressou-se a esclarecer-me: "aquele homem deu o melhor de si ao MPLA". Em Abril de 1975, seis meses antes da independência de Angola, alojaram-se em sua casa os primeiros oficiais cubanos que vieram, depois de negociarem com Neto, ocupar as suas posições em Angola.

No entanto, era um facto que os oficiais angolanos tinham oportunidade de adquirir uma boa formação técnica nas Academias Militares de Cuba, da URSS ou da RDA. Tonton fazia parte desta elite angolana. Tinha um agudo sentido da situação dramática para a qual Angola caminhava. Lamentava, por exemplo, o que estava a acontecer  naqueles que eram autênticos campos de concentração: São Nicolau, Sapu, Kibala e Moxico, entre outros lugares onde se estava a cavar um fosso de ódio intransponível.

A nossa amizade foi crescendo assim, entre as conversas, deitados num farrapo sob uma nuvem de vapor criada pelos cerca de 120 reclusos que habitavam aquela cela.

José Mingas falava-me da total dependência da Segurança do Estado Angolano em relação à URSS e a Cuba. O caso da Casa de Reclusão era um bom exemplo, uma vez que, até há bem pouco tempo, estava sob administração dos cubanos, encarregando-se estes dos inquéritos e das condenações, como no caso de um americano e de quatro ingleses que Mingas recorda.

Uma das revelações mais dramáticas que me fizeram diz respeito ao massacre do Luso, acontecimento remetido para o silêncio. Morreram mais de 50 000 pessoas, povoações destruídas: um verdadeiro genocídio em que participaram militares soviéticos, alemães e cubanos, com aviação, helicanhões e uma gama muito variada de armamento pesado... - "Um massacre desnecessário", comentava Tonton. Tratava-se de uma acção militar para destruir as forças de Savimbi mas acabou por se concretizar num extermínio destas populações. O MPLA sabia que estas populações eram também simpatizantes da FNLA.



Cartaz de propaganda cubana (Daysi Garcia, 1968)




Submarinos soviéticos escoltando os comboios militares cubanos para Angola («Operação Carlota»)



Cubanos desembarcam em Angola



Cubano em Angola



Chegada à Luanda de Fidel Castro



Russos e cubanos doutrinando o MPLA



Elementos do MPLA armados pela União Soviética



Ver aqui



Lamentavelmente vim a perceber que a Diamang tinha contribuído, sem o querer, para este genocídio. Eu tinha recebido ordens do engenheiro Paiva Neto, administrador da Diamang, para entregar às forças militares todas as grandes vigas e alguns camiões. Foi com relutância que cumpri esta determinação dado que todo este material era necessário à vida da Diamang. Mas era politicamente impossível contornar este pedido das forças militares pois estas sabiam mesmo onde ele se encontrava. Foi-me dito por um oficial que este material seria utilizado para atravessar rios no Moxico, numa operação militar.

No meio de uma destas conversas, José Mingas vê, pelo buraco da fechadura, que estão a transferir todos os elementos da DISA para o lado da SIGA. Tonton pede-me uma folha de papel. Quer escrever uma carta ao irmão e pede-me que a faça sair da prisão logo que possa.

22 de Agosto de 1977. Cerca da meia-noite o Major Tonton é chamado. Muitos de nós ficámos convencidos de que o tinham despachado para a morte. Por isso, foi entre o espanto e o susto que descobrimos o seu regresso à cela, umas horas depois. Vinha aterrorizado, o seu rosto dizia não o alívio, mas uma angústia até às lágrimas. Prostrado no chão da cela fez-me sinal para que não fizesse perguntas. Só de manhã me deu conta dos seus medos. A ocasião fez-nos, a mim e ao português Antonino Rodrigues, seus confidentes. Estava agora convencido de que, mais dia menos dia, o iriam matar. Chegou a pensar que isso aconteceria mesmo naquela noite quando viu um tenente seu amigo a ser conduzido, num estado deplorável, para um carro que estava no exterior - decerto a fatídica ambulância.

O major Tonton falou-nos das centenas de prisioneiros que estavam a ser torturados por agentes angolanos, com a prestimosa assistência cubana. Os corpos, quase nus, eram já irreconhecíveis entre o sangue e as escoriações, depois de tanto golpe. O instrumentário era diversificado: as coronhas das armas, os chicotes de aço, os murros e pontapés, e outros por demais referidos ao longo destas memórias. Pela primeira vez ouvi falar dessa torpe tortura que consistia em queimar os interrogados com electrogénio e ferro de soldar.

Vi depois um grupo deles, com fita adesiva na boca, prontos já para aquela viagem nocturna que, de ambulância, atravessava Luanda em direcção ao local de fuzilamento. Tonton exprimia este espanto doloroso porque, embora soubesse, como todos nós, que muitos dos presos que arrancavam às celas tinham a execução como destino sumário, não fazia ideia daquilo por que passavam antes de embarcar nessa viagem.

Naquele dia, eu voltei a chorar. Ouvi os gritos mais angustiantes da minha vida. Tonton disse-me que em todas as celas estavam a ouvir presos. Os gritos eram horríveis, alguns pareciam grunhidos de porcos porque tinham a boca cheia de fita adesiva, não faltando o barulho dos chicotes, dos cintos e dos paus quando atingem os corpos dos reclusos.

Entretanto, chega o Capitão Carvalho que me aponta a arma que tinha nas mãos e me ameaça de morte, logo secundado pelo Capitão Xavier que me disse já estar eu condenado à morte por ser amigo de Nito Alves. Nós conhecíamos bem estes militares, e também outros - angolanos e cubanos -, figuras de um triste ritual de tortura que anuncia a morte.



Fidel Castro e Agostinho Neto em Havana. Ver aqui



Noite de 25 de Setembro de 1977. Lá fora, as ambulâncias não tiveram descanso. Tonton sofre cada vez mais. Repete, frequentemente, com uma grande angústia, quão dramática é a ignorância dos angolanos acerca do que se está a passar. Em Luanda, como já se referiu, Iko Carreira, Ministro da Defesa, decretou o recolher obrigatório entre as vinte e uma e as cinco horas, isto já desde 7 de Junho de 1977. Desta forma, o trânsito dos condenados podia efectuar-se com uma certa discrição.

Na noite de 26 de Agosto de 1977, Tonton estava muito tenso. Foi fazer café porque tinha medo de que o viessem buscar enquanto dormia. O seu estado era tal que deixou cair a resistência usada para fazer essa bebida tão apreciada pelos presos. Mas os seus companheiros logo se apressaram a arranjar este equipamento essencial.

26 de Outubro de 1977. Um enorme movimento de viaturas. Entram agente da DISA na cadeia, investem em vários sentidos e abrem as portas de várias celas. Na minha cela, a C, entram dois militares que já conhecemos como emissários da morte. Vêm, de certeza, buscar alguém para a farra; "Tonton! Tonton!", chamam. Ele estava deitado ali mesmo, ao meu lado. Levanta a cabeça. "Veste, depressa". Tonton está lívido. Pega nas suas coisas. Todo o seu corpo treme. Despede-se de mim: "Botelho, não te esqueças de dar a carta ao meu irmão... Adeus para sempre". O seu irmão era juiz do TPR e nunca lhe transmitiu a ideia de que pendesse sobre ele qualquer acusação grave.

Junto das viaturas era possível distinguir Eduardo Adão Pascoal, Brito Júnior, Serras, Filinto e Kissanga. Contrariamente ao que é habitual, levavam consigo os seus pertences. Não houve ali qualquer cena de agressão. Toda a cadeia ficou suspensa, pois eram todos homens estimados. Terão ido para o fuzilamento? Para a Kibala? Dias depois soubemos que estavam todos na Casa de Reclusão.

Noite de 23 de Março de 1978. Tonton estava deitado no chão da sua cela na Casa de Reclusão. É surpreendido pela entrada abrupta de soldados e agentes: "O que é camaradas?". Um deles grita-lhe: "Veste depressa... já estás a chatear muito!". Tonton levanta-se e lentamente veste as calças. "Preciso de levar as minhas coisas?", pergunta. "Não, não. Para onde vais não precisas de levar nada. Há lá tudo com fartura". Tonton compreendeu que ia ser morto. Levam-no para fora da cela. Nesse momento já se ouvem aqueles gritos horríveis. Começou a farra.

Tonton é conduzido para junto das ambulâncias e da camionetas: aí espera pelos outros doentes. Ouvem-no gritar para não apertarem tanto as cordas. As cenas seguintes, já as conhecemos. Esta é, precisamente, a noite em que Bakalof foi também assassinado. Destinos cruzados numa história trágica de injustiça e arbitrariedade.








Em Janeiro de 1979, o Tribunal Popular Revolucionário, composto por Manuel Bento, irmão de Tonton, o Procurador Kafushi, o Presidente Adolfo João Pedro e um outro juiz, foi visitar a cadeia de São Paulo. Na cela G, Manuel Bento encontra Kongo, o Comissário Provincial, seu conterrâneo. Os prisioneiros queixam-se das torturas e maus-tratos e denunciam mesmo alguns dos carrascos como o Tenente Norberto Pereira, entre outros. O juiz Manuel Bento aproxima-se ali mesmo do seu conterrâneo, cumprimenta-o efusivamente e declara: "Olha, eles, estes bandidos até mataram o meu irmão!". "Estes bandidos" eram precisamente aqueles que acompanhavam o TPR nesta visita. Por exemplo, estavam ali o 1.º Tenente Carmelino Pereira que, no Ministério da Defesa, ditou as sentenças de morte, e o 1.º Tenente Pitoco, que comandou o fuzilamento de Tonton».

Américo Cardoso BotelhoHOLOCAUSTO em ANGOLA»).


«Não subsistem dúvidas sobre quem espalhou o hálito da morte pelo país, quem atentou contra a vida de milhares de pessoas e quem violou as leis e as instituições. De acordo com um plano rigorosamente definido muito antes do 27 de Maio, o intento de algumas camarilhas criminais do Governo e do MPLA [constituídas em tribunal superior] foi exterminar de modo sistemático uma boa parte dos seus oponentes internos, apelidados de grupo anti-Movimento [ou fraccionistas], os quais para isso açularam os seus fáctotuns [ou "cães de guerra") e espalharam o terror e a violência por todo o lado. Felizmente este plano homicida e horroroso por parte do Estado genocida de Neto acabou por não se consumar por inteiro, mas mesmo assim o que sobra dele - por desaparecimento de milhares de pessoas - constituem cinzas malignas e perturbadoras.

Logo, tratar estas coisas com condescendência ou querer mitigar a barbárie assassina ou convertê-la em inocência, quando o que "os homens fizeram a homens não tem nome", é no mínimo, da parte dos cabalistas da culpa colectiva, um gesto perverso, despudorado e criminoso. (...) O 27 de Maio, com as suas atrocidades, não é uma estória ficcional que se possa afogar no esquecimento e sim um drama nacional tão aviltante que o seu conhecimento se plasma como um imperativo para as novas gerações, sob pena de se estar a incorrer noutro delito maior que é a destruição da memória histórica, o apagamento do nome dos sacrificados e a imposição de um "passado único" [o dos verdugos].

Claro que depois das prisões e das matanças houve vida para algumas vítimas que estão aí para contar e testemunhar o que viram e sofreram. A despeito de terem sobrevivido, essas vítimas permanecem até hoje sem voz, relegadas da sociedade juntamente com as mães, as avós, as esposas e os filhos dos desaparecidos, como se fossem portadores de uma maldição; é certo que sobreviveram, mas os calabouços e os campos de concentração onde estiveram continuam a funcionar.








(...) Dentro das muralhas do partido de Neto não havia espaço para a liberdade de pensamento nem para a democracia, as tensões geradas pelo diálogo, em regra, esbatiam-se numa linguagem a que Koestler chama de "sim, sim, não, não", isto consoante as circunstâncias e o momento político. As respostas derretiam-se no subterfúgio, ninguém da massa amorfa de militantes ousava quebrar esta opacidade, a ditadura do medo imperava, inabalável; a ditadura do proletariado, como diria uma personagem de Anatoli Ribakov, "[...] é assim mesmo, indiscutível".

(...) Alguns aparatchiks ortodoxos, neo-estalinistas, da laia de um Lúcio Lara, em vez de estimularem os adeptos a expressar as suas ideias e a formularem críticas de modo a corrigirem-se erros e práticas distorcidas nas esferas da política e da organização, replicavam com uma linguagem sibilina e menos conspícua decalcada do receituário maoísta sobre o "ultra-democratismo". Segundo esses burocratas, que estavam habituados a emitir sermões, as directivas dos organismos dirigentes do Movimento eram para ser acatadas sem a mínima objecção pelos organismos inferiores e pelos militantes de base, de acordo com as normas do "centralismo democrático" e de acordo com a disciplina da subordinação da minoria à maioria. Não cumprir estes métodos plasmados no "espírito da linha justa do Partido", subentendia um desvio individualista e pequeno-burguês com respeito às tarefas da luta do proletariado e, desde logo, um atentado à revolução.

Aqui está um argumento de ferro com o qual se reforçava o inexorável verticalismo da organização e se arrasava toda e qualquer veleidade de diálogo e discussão interna. Toda a crítica não concordante com os cânones da oligarquia política [que controlava os organismos supremos do MPLA] era mal acolhida e tida geralmente como reveladora de tendências ideológicas individualistas ou de grupo e, por consequência, uma transgressão contra-revolucionária. Foi neste contexto saturado de dogmatismo que se acusaram os militantes mais críticos de desenvolverem um trabalho de corrosão do Partido e de sufragarem ideias putschistas.

Um exemplo desta cosmovisão autoritária inspirada na doutrina de que o "partido nunca se engana" e o presidente é um "ser superior e infalível", é ilustrado pelo seguinte episódio: no segundo trimestre de 1976, por convocatória do DOM-Regional, celebrou-se uma reunião no bairro Dona Amália, no Rangel, com a presença exclusiva de todos os membros das células do sector intelectual. A dado passo, o vice-director daquele Departamento, Carlos Alberto dos Santos Van-Dúnem [o "Beto"], ameaçou os militantes de medidas punitivas se alguém ousasse divulgar a notícia de que Agostinho Neto se evadira de Portugal em 1962, ajudado pelo aparelho clandestino do Partido Comunista Português. "O camarada Presidente" - disse ele em tom rebarbativo - "nunca fez parte do PCP e dizer o contrário é uma impostura, quem o livrou das garras da PIDE foram os nossos compatriotas".




Agostinho Neto recordando os 'bons velhos tempos' na prisão do Aljube



(...) Dizer que Neto exerceu um papel notável nos negócios da administração do país, é esquecer o desmantelamento anárquico a que procedeu nas estruturas intermédias do aparelho de Estado, nas unidades fabris e outros sectores económicos. A extinção das juntas de freguesia e das administrações civis é um exemplo entre muitos. Com a integração destes orgãos nas comissões populares de bairro, compostas por indivíduos analfabetos e irresponsáveis, logo adveio o caos; a maior parte dos arquivos desapareceu, roubados ou queimados. Pelo país fora centenas de arquivos conheceram a mesma sina provocada por restruturações irracionais. Nas unidades de produção confiou-se a direcção a Comissões administrativas que foram preenchidas por incompetentes, analfabetos, arrivistas e comissários políticos. Ou seja, cometeram-se responsabilidades aos piores, os mesmos que glosavam o estribilho da "unificação de todos os trabalhadores" enquanto, a par disso, se entregavam a uma rapina sistemática dos bens públicos. Diante desta desordem no interior do proclamado Estado proletário, Neto não se abalou e por certo terá ajuizado, como Robespierre durante a Revolução Francesa, que os operários e os camponeses [os sans coullotes] "não roubam, porque tudo lhes pertence".

Daqui resultou que quanto mais Neto perorava sobre a transformação da economia colonial numa economia ao serviço do povo mediante a aliança de todas as forças produtivas nacionais, mais o colapso económico e social de Angola se acentuava. No velho jargão leninista esta transformação significava prescindir radicalmente de toda e qualquer ajuda capitalista. Se os portugueses deixaram um estado e um sistema económico e técnico de produção que deu a Angola o estatuto de um dos maiores e mais diversificados exportadores de África, Neto arruinou tudo e substituiu este aparato pelo "caos autoritário" e por uma "ficção estatal". De cima a baixo inundou a máquina do Estado de funcionários políticos e espiões da polícia secreta que tinham por missão assegurar a fiscalização da "ordem revolucionária".

A isto somou-se o capricho político irresponsável de confiar o sistema agrário a "especialistas" búlgaros [os amigos revolucionários] que, mau grado as virtudes que pudessem ter, desconheciam as características geo-climáticas do país, bem como os hábitos produtivos dos camponeses locais. Ao fazerem ensaios extravagantes que ignoravam as tradições agrícolas e os parâmetros técnicos de cultivo, esses estrangeiros cometeram as maiores sandices. Uma delas, talvez a mais clamorosa, foi a proposta aceite e caucionada pelo ministro da Agricultura na altura, de se distribuírem máquinas aos camponeses tradicionais, o que levou a que se importassem milhares de tractores da União Soviética, que não tardaram a ser abandonados nos campos e viraram sucata. A tão prometida reforma agrária e a promoção das massas rurais consagrada nos documentos do MPLA logo nos alvores da luta armada contra o colonialismo português [COLONIZAÇÃO PORTUGUESA], afinal de contas não passou de uma farsa. Jogaram-se as promessas no limbo e os camponeses, como reservas fundamentais da revolução, foram esquecidos e espoliados. Um flagelo só possível mercê de uma governação nacional inepta, insensata, corrupta e ditatorial que não prestava contas a ninguém e tão-pouco conhecia as realidades do país. As consequências foram terríveis. A agricultura nacional arruinou-se e Angola empobreceu em recursos naturais.








Agostinho Neto e Eduardo dos Santos



Eduardo dos Santos e Fidel Castro


Outro fenómeno marcante de descalabro ocorreu no sector açucareiro, dos mais importantes da economia que ficou nas mãos dos cubanos. Se no passado colonial as fazendas do Dande, Bom Jesus [no Bengo], Cassequel e Dombe-Grande apresentavam bons indicadores de produção, os caribenhos depressa inverteram este desempenho com os seus métodos pouco eficazes de trabalho. A laboração praticamente caiu a zero e para atender ao seu consumo interno Angola passou a importar de Cuba todo o contingente de açúcar, com os custos adicionais que esta situação acarretou para as despesas do Estado. Em resumo, um desastre que fez o país abdicar da sua própria produção que vinha de longe, do segundo quartel do século XIX, e o fez remeter-se à condição de importador. A Neto interessava menos os indicadores económicos de Angola do que a ajuda militar de Fidel Castro da qual, aliás, dependia a continuidade do seu regime».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«O acontecimento da independência de Angola suscitou em muitos povos africanos, a sul do Sara, um enorme interesse - queriam conhecer este país recém-chegado à independência. Angola era conhecida pelas suas lindas e grandes cidades. E sabia-se que era um país naturalmente rico.

Muitos foram os que decidiram lançar-se na aventura de conhecer um novo país. Chegaram da Tanzânia, Zaire, Níger, Nigéria e de vários outros países. Ora fazendo a passagem por Luanda, a caminho da Europa, como aconteceu com tanzanianos e outros, ora procurando uma permanência mais prolongada em Angola. Eram, em geral, pessoas cultas.

Mas, no solo angolano, acabavam por conhecer, não as lindas cidades que procuravam, mas os muros das cadeias. Sem culpa formada ficavam ali meses. Alguns chegaram a enlouquecer.

As autoridades, logo à chegada destas visitas, roubavam tudo quanto elas traziam. Se reagissem, seguia-se logo o espancamento. Depois, iam parar à prisão, alguns já bem marcados.

Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).







O “Gulag Angolano” 


O livro Purga em Angola, de Dalila Cabrita e Álvaro Mateus, refere-se aos milhares de mortos do 27 de Maio de 1977, decorrentes da «depuração» feita no seio do Movimento para a Libertação de Angola (MPLA). Por outras palavras, foram arbitrariamente mortos, por fuzilamento ou execuções sumárias, membros do Comité Central, ministros, comissários ou governadores das províncias, pessoal do Departamento de Informação e Segurança de Angola (DISA), bem como das Forças Armadas de Libertação de Angola (FAPLA). Enfim, um sem-número inacreditável de mortos (1) num cenário apocalíptico caracterizado por decapitações (2), pessoas famintas que desenterravam os mortos para comer, pessoas sepultadas vivas em valas comuns, e outras que, depois de fuziladas, eram lançadas de avião ou de helicóptero para o mar ou para a mata. Demais, uma tal purga atingiu igualmente amigos, simpatizantes e familiares das dezenas de milhar de mortos presos, interrogados, torturados (3) e, por fim, executados sem julgamento.



Natália Correia


Na imprensa portuguesa da época, o Terror em Angola passara praticamente despercebido, salvo para a poetisa Natália Correia que o designara por Gullag Angolano (Jornal Novo). Passados mais de 30 anos após as atrocidades cometidas em Angola no 27 de Maio de 1977, os Portugueses pouco ou quase nada sabem desses acontecimentos tenebrosos. Por vezes, lá vem a lume um ou outro livro, como o que ora damos a conhecer no âmbito do que mais importa: o incêndio lançado ao Ultramar Português.

De resto, os co-autores de Purga em Angola têm um percurso ideológico de marcada feição socialista, a começar por Álvaro Mateus que, aquando do terrorismo em Angola em 1961, promoveu e coordenou «um jornal clandestino consagrado à denúncia do colonialismo e da guerra», assim como apoiou as alegadas lutas de libertação nacional nas províncias ultramarinas portuguesas. Aliás, os co-autores, já depois de incendiado e reduzido a cinzas o Ultramar português, leccionaram «na Escola Central do Partido da FRELIMO, colaborando na formação de professores». E mais confessam, pela pena de Dalila Cabrita Mateus: «Continuamos a manter-nos fiéis aos princípios e sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade, que sempre acalentámos». Em suma, continuam fiéis ao socialismo que tudo destruiu e hoje prega a felicidade e a prosperidade numa suposta sociedade livre e democrática, nomeadamente em Angola.

Por conseguinte, os co-autores abordam um assunto que, não obstante o conjunto dos factos relatados, surge ideologicamente enviesado como se poderá ver a propósito do seguinte trecho:

«Também alguns saudosos do antigamente, subitamente esquecidos da crueldade do colonialismo e do horror da Guerra Colonial, serão tentados a condenar as independências, para as quais não estariam preparados os políticos e povos. A estes gostaria de recordar uma pequena história. Vivi, no princípio da década de 80 do século passado, na cidade de Maputo, mais precisamente em frente da Cadeia de Somershild. Um dia, estando à varanda, assisti a um espectáculo insólito. Presos moribundos, vítimas da cólera, eram atirados para cima duma camioneta, como se fossem sacos de batatas. Perante o horror, dirigi-me ao Senhor Andrade, que me ajudava na limpeza da casa e no tratamento das roupas. E disse-lhe:

- Que horror, Senhor Andrade! 

E o Senhor Andrade, um homem sábio, respondeu-me:

- Sabes com quem aprenderam, não sabes, senhora?

Certamente que o sabia. Tal como saberão os leitores que se derem ao trabalho de meditar nos factos.

Dito isto, gostaria de acrescentar o seguinte. Mal se compreenderia que tivesse sido capaz de tirar do "nosso" armário do colonialismo e da guerra uns quantos esqueletos, mas não manifestasse em procurá-los noutros armários que nos foram indicados» (4).








Ao relatar isto, Dalila Cabrita usa e abusa de terceiros para acusar os Portugueses de terem inspirado as calamidades perpetradas na África portuguesa durante e após a descolonização (5). A autora tem igualmente livros escritos em que procura defender o indefensável, na medida em que, pese embora os excessos, as contradições e as imperfeições de uma Nação universal e multirracial, nada justifica uma insinuação que, à primeira vista, das duas uma: ou revela má-fé, ou é simplesmente fruto da mais lamentável ignorância.

No entanto, não é propriamente nem uma coisa nem outra, na medida em que aqui prepondera a mentalidade revolucionária que só aparentemente reconhece valores e princípios, porquanto incapaz de todo e qualquer senso das proporções. E assim é porque, tendo dados suficientes sobre o papel de pequenas e grandes potências na destruição do Ultramar português, Dalila não avalia as devidas consequências respeitantes ao fim histórico de uma das Nações mais antigas do Velho Continente. Ora, muitos desses dados incluem a preparação, financiamento e formação de movimentos terroristas nos países da Europa de Leste, assim como na China, mais particularmente em Pequim e Nanquim, onde líderes e quadros subversivos de origem africana frequentavam estágios onde aprendiam técnicas de organização sindical e de organização militar de guerrilha. Nisto, acrescente-se também a formação ideológica marxista na Checoslováquia, os cursos de guerrilha na Hungria e os centros de subversão dialéctica, militar e política na União Soviética, em Cuba e na Argélia (6).

Quer dizer: há toda uma atmosfera internacionalista de que Dalila não retira as devidas ilações quanto à razão de ser de acontecimentos como o de 27 de Maio de 1977, em Angola. De modo que, ao atribuir praticamente aos colonialistas a raiz de todos os males, a começar pelos portugueses, a co-autora perde realmente todo o senso das proporções quando, paradoxalmente, até colige alguns factos reveladores de como se processa a actividade revolucionária nos bastidores da política internacional:

«Em 1968, o armamento do MPLA, na sua maioria de origem soviética, era constituído por pistolas, metralhadoras pesadas e antiaéreas, espingardas Kalachnikov e Simonov, carabinas e bazucas, canhões sem recuo, minas anticarro e granadas.









Em 1969, assinalam-se canhões sem recuo de 102 e de 120 mm, de origem soviética.

Em meados de 1971, são descarregadas de navios soviéticos (e chineses) centenas de caixas de munições, morteiros de 82 mm e outras armas. O material foi armazenado na base de Dolisie.

Já em 1972, o navio soviético Daphinis descarrega, em Ponta Negra, armas e viaturas. E do cargueiro Pula saem carros blindados soviéticos do tipo BRDM 66.

Este material foi recebido por Jorge Tchimpuati, responsável pela residência de trânsito, situada próximo do mercado do bairro Mayumba, donde era encaminhado para Dolisie, onde entrava no Depósito Central, a cargo de Miranda Sebastião.

Também não se diga que o material era obsoleto.

Em 1973, num ataque realizado pelos guerrilheiros do MPLA a Lumbala, foi utilizado o foguetão de 122 mm. Tratava-se de uma arma particularmente sofisticada. De modo que a PIDE/DGS, tendo conseguido apreender um exemplar e admitindo que viesse a ser usado noutros teatros de guerra, se apressou a divulgar dados sobre a sua composição, características e modo de funcionamento.

Esta arma só chegou a Moçambique, meses depois. E estes foguetões só podiam ser levantados com uma requisição assinada por Samora Machel, o presidente da FRELIMO, e Alberto Chipande, o chefe do Estado-Maior» (7) .

Quanto aos americanos, a co-autora acentua a respectiva política no apoio à FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola) e à UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), que se opunham ao MPLA, para não dizer à África do Sul. «Em Julho de 1974, os EUA, através da CIA, fornecem ajuda militar à FNLA, em Agosto enviam-lhe grandes carregamentos de armas e, no Outono, continuam a dar-lhe apoio militar». Mais:

«Em Janeiro de 1975, durante uma reunião do Comité dos 40 (comissão interagências formada por 4 membros e presidida por Kissinger) (8), a CIA solicita que sejam dados 300 000 dólares à FNLA. Kissinger concorda com a atribuição. Contudo, o referido Comité rejeita a atribuição de 100 000 dólares à UNITA» (9).


Henry Kissinger











Os Estados Unidos, não obstante a normalização das relações entretanto pronunciadas com o MPLA, continuaram a enviar auxílio militar secreto para as forças da UNITA. O globalista Zbigniew Brzezinski, conselheiro do presidente norte-americano Jimmy Carter para a Segurança Nacional, pressionava, a par do Pentágono e da CIA, para «o envio, através da França, de armamento sofisticado à UNITA, em que se incluíam mísseis Red Eye (10)» . No entanto, perante a aproximação pragmática do MPLA aos Estados Unidos, ressalta o seguinte:

«A direcção do MPLA (ou pelo menos parte dela) ter-se-á convencido (ou tê-la-ão convencido) de que era possível obter, pelo menos, a neutralidade dos Estados Unidos, já que uma aliança estava, de momento, fora de qualquer conjectura. E simultaneamente poderiam acalmar os ímpetos agressivos dos governantes sul-africanos. Para tal seria necessário dar aos Estados Unidos e às potências ocidentais um sinal claro de que o MPLA nada tinha a ver com comunistas e de que não desejava uma alteração radical na correlação de forças da África Austral.

Ora, para dar tal sinal, nada melhor que a realização de uma grande purga no MPLA, uma purga que eliminasse os comunistas, ou melhor, hipotéticos comunistas, forjados à última hora, como os desgraçados estudantes angolanos nos países do Leste. Simultaneamente, a prisão de quadros do ANC [African National Congress] e da SWAPO [South West Africa People’s Organization], adversários convictos do regime de Pretória, mostraria o respeito pela situação existente na África Austral» (11).

Seja como for, esta aproximação puramente pragmática do MPLA aos Estados Unidos fracassou, de modo que Agostinho Neto e a direcção do MPLA permaneceram na órbita da União Soviética (12). E quanto ao Partido Comunista em Portugal, é um facto de que os respectivos dirigentes sabiam e conheciam perfeitamente o que se estava a passar em Angola aquando do Terror do 27 de Maio de 1977 (13). Talvez até seja verdade de que as relações entre o MPLA e o PCP não fossem as melhores por altura do 25 de Abril de 1974, e de que os responsáveis do PCP, por ocasião da Purga em Angola, tivessem recomendado a militantes seus que não entrassem em contacto com Sita Valles (14) e outros conhecidos membros do MPLA. E no entanto:

«Em Dezembro, o PCP, numa mensagem ao I Congresso do MPLA, afirma a sua disposição de combater firmemente quaisquer conspirações anti-angolanas que se desenvolvam a partir do território português e as campanhas de mentiras e calúnias dos inimigos do MPLA e da República Popular de Angola. E Sérgio Vilarigues [secretário do PCP para as relações externas], numa declaração ao Congresso, afirma que o PCP aprecia altamente as profundas transformações realizadas na República Popular de Angola nos dois anos percorridos desde a proclamação da independência nacional.






Luanda (1975). Ver aqui


Um ano depois [1978], no mês de Outubro, na I Conferência Nacional da Juventude do MPLA, Horácio Rufino declara que os jovens comunistas portugueses apreciam extraordinariamente e sentem regozijo pelas enormes transformações políticas, económicas e sociais operadas na República Popular de Angola, nestes quase três anos percorridos após a independência.

Aparentemente, o PCP e a sua juventude aplaudiam a «purga» que levara a que o MPLA baixasse de 110 mil para 32 mil militantes, provocando dezenas de milhar de mortos e atingindo em particular a juventude. E ao mesmo tempo que aplaudiam, castigavam militantes ou antigos militantes seus» (15).



Notas:

(1) Na «apresentação» do livro, os autores começam por dizer: «As proporções desta purga ressaltam de dados fornecidos em livro apologético de Agostinho Neto, no qual, presumivelmente com base em fontes oficiais, se afirma que "o número de militantes do MPLA baixou de 110 mil para 32 mil"». No capítulo quinto, intitulado “O Terror”, lê-se: «Os cálculos sobre o número de mortos variam. Um responsável da DISA, ouvido por nós, fala em 15 000. A Amnistia Internacional fez um levantamento e avançou com 20 000 a 40 000. Adolfo Maria, militante da chamada Revolta Activa, e José Neves, um juiz militar, falam de 30 000 mortos. O Jornal Folha 8 falou de 60 000. E a chamada Fundação do 27 de Maio foi até aos 80 000.

No meio – prosseguem os co-autores – estará a virtude. Quedemo-nos, então, pelos 30 000 mortos. Dez vezes mais mortos do que no Chile de Pinochet. Na própria família política. Sem qualquer julgamento. E em muitos casos sem qualquer relação com os acontecimentos» (in Purga em Angola, Edições Asa, 2007, pp. 9 e 140. Note-se bem: 30 000 porque no meio estará a virtude. Decerto, um estranho rigor no apuramento dos factos

(2) «Estudantes que estavam na União Soviética, na Bulgária, na Checoslováquia e noutros países do Leste foram mandados regressar. No aeroporto de Luanda foram presos. E muitos foram decapitados, sem saberem a razão» (ibidem,p. 142).

(3) «Já antes do 27 de Maio, havia pessoas presas e torturadas.

(…) Com base num documento da Amnistia Internacional e em depoimentos dos presos, é possível reconstituir um amplo leque de torturas a que os presos foram submetidos:

1. Severos espancamentos com martelos, barras de ferro, punhos, paus, cintos, folhas de catanas.

2. O açoitamento infligido com chicotes especiais ou com fios eléctricos.

3. A privação prolongada de alimentos e de água.

4. As queimaduras com cigarros.

5. A roleta russa e as execuções simuladas.

6. As torturas do sono e da estátua.

7. A chinkwalia, que consistia no amarrar de maneira apertada dos pulsos e dos tornozelos do preso nas costas e, por vezes, em suspendê-lo no ar, para logo o deixar cair no chão.

8. O nguelelo, uma técnica primitiva usada no Leste de Angola. Os pés e as mãos eram atados nas costas, por meio de cordas molhadas, ligadas aos testículos. A completar, um torniquete ligado a dois paus, junto às têmporas: o apertar do torniquete, reduzindo a irrigação do cérebro, causava fortíssimas dores.

9. Os choques eléctricos» (ibidem, pp. 118-119).





Neste contexto, há inclusivamente um preso, entre muitos outros, que diz «ter assistido a cenas apocalípticas de brutalidade. Presos atirados pelas escadas e, no pátio, brutalmente espancados. Berravam e pediam clemência. Quase desfalecidos eram atirados para dentro das viaturas. Um mercenário norte-americano comentava:

- Já vi muita coisa na minha vida. Mas nunca tinha visto tal coisa» (ibidem, p. 120).

(4) Ibidem, p. 12.

(5) Neste ponto, há que distinguir os portugueses propriamente ditos de todos aqueles fanáticos e criminosos que, traindo a História Pátria, foram os verdadeiros responsáveis por uma descolonização impelida por forças e poderes internacionais. Aliás, não é por acaso que a história dos vencedores, omitindo, distorcendo e apagando o que realmente esteve em causa na revolução comunista de 1974, prepondere nas nossas escolas, universidades e meios de comunicação social. Em poucas palavras, os portugueses passaram doravante a ser caracterizados como os colonialistas dos povos oprimidos, ao passo que os capitães de Abril e companhia limitada, se transformaram nos heróis da liberdade de aquém e além fronteiras. É, pois, assim que se deturpa a História sem que as novas gerações se apercebam em que circunstâncias fora, de facto, consumada a traição a Portugal por um bando de malfeitores que jamais serão dignos de serem chamados de portugueses.

Respeitantemente, referindo-se «aos campos de concentração» por onde teriam passado «patriotas angolanos», Dalila diz não se tratar de uma originalidade do «colonialismo português», já que, «mesmo em países ditos democráticos, medidas administrativas de internamento de presos políticos já tinham sido aplicadas, designadamente em situação de tipo colonial. Usou-as o Reino Unido na Irlanda do Norte. E usou-as, também, a França, durante a guerra da Argélia» («Nacionalistas Angolanos nas Prisões Coloniais», in Os Anos de Salazar, Centro Editor PDF, 2008, n.º 28, pp. 89-90). Porém, uma tal afirmação nem sequer permite reconhecer que, sem embargo de estádios inferiores de desenvolvimento e progresso social, económico e político, a colonização portuguesa, custeada com pesados sacrifícios, sempre se distinguira do colonialismo francês e inglês que só via os benefícios materiais dos seus territórios em detrimento da ligação afectiva e sentimental tão cara à Nação Lusa.

Depois, há ainda o facto deveras emblemático de Dalila Cabrita Mateus, referindo-se a Angola no início da Guerra (1961), salientar haver «um jurista, por sinal governador-geral», que mandou «presos com residência fixa para dentro de campos de concentração», alguns dos quais para o campo do Tarrafal. Ora, um tal campo fora extinto em 1954, onde, desde 1936, contaria 37 mortos. De resto, diz-nos ainda Oliveira Salazar: «Há bastantes anos o Governo estabeleceu numa das ilhas de Cabo Verde um estabelecimento prisional para delinquentes políticos e sociais, entenda-se comunistas. Por dificuldades de ordem local que se repercutiam no seu bom funcionamento, o estabelecimento foi extinto e abandonado há bastantes anos. Ora eu continuo a receber dos partidos comunistas e organismos afins instalados nos mais diversos países numerosos telegramas de protesto contra o "campo do Tarrafal". Isto quer dizer que as organizações comunistas receberam em devido tempo ordem das "centrais de comando" para manterem vivo o seu protesto contra a existência de um estabelecimento penal de repressão do partido. E quer dizer ainda que não se importaram de actualizar as ordens, visto que a grande Imprensa ocidental continua a segui-las sem se importar de verificar a sua exactidão. Teremos assim que os partidos comunistas manterão "vivo" o Tarrafal enquanto na guerra que nos movem o protesto der algum rendimento ou contribuir para o descrédito de um Governo que lhes é hostil. Para estes não importa a verdade, mas só aquilo em que se crê» («Realidades da Política Portuguesa», SNI, 1963, p. 13).

Consequentemente, Dalila Mateus referira expressamente o Tarrafal para dar uma imagem totalitária do regime de Salazar, quando, não obstante o carácter autoritário do mesmo, foi uma agulha num palheiro quando comparado com os regimes totalitários do nazismo, do fascismo e do comunismo. Não esqueçamos, pois, que o campo do Tarrafal surgiu numa altura em que o comunismo internacional estava no seu auge, mais particularmente aquando da Guerra Civil de Espanha. E não esqueçamos também que 1936 foi o ano em que começaram «os célebres julgamentos de Moscovo», cujos réus, dados como eventuais concorrentes de Estaline, «entre eles os companheiros mais fiéis de Lenine», desapareceram todos depois de, à «custa das mais atrozes torturas físicas e morais», “confessarem” os respectivos crimes de que eram acusados.



Campo do Tarrafal



















Ver aqui









Cadáveres profanados e dispostos numa rua de Barcelona durante a Guerra Civil Espanhola









Bandeira da Frente Popular



























Em suma: o comunismo é o maior flagelo contabilizado em bem mais de 100 milhões de mortos no século XX, e que, além disso, conta com um exército de intelectuais revisionistas prontos a silenciar os crimes de um movimento internacional que programou, com a conivência de grandes potências ocidentais, o anticolonialismo empenhado na destruição de meios e estruturas civilizacionais em África, na Ásia e na Oceania.

(6) De resto, a maioria dos movimentos e organizações ditos “independentistas” tiveram a sua origem para lá das fronteiras das Províncias Ultramarinas portuguesas. É, por exemplo, o caso da UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), criada na Rodésia do Sul, em Salisbury (1960). É também o caso da UNAMI (União Nacional Africana de Moçambique Independente), nascida na Niassalândia (actual Malawi), em 1961. Ou ainda o caso da MANU (Mozambique African National Union), fundada no Tanganica (actual Tanzânia), em 1959. Aliás, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), fundada em Dar-es-Salam (actual Dodoma, capital da Tanzânia), em 25 de Julho de 1962, é o resultado da fusão daqueles três movimentos.

Por outro lado, o apoio dos Estados Unidos à FRELIMO, ressalta no seguinte trecho: «Findo o Congresso [da FRELIMO, realizado entre os dias 23 e 28 de Setembro no Tanganica (1962)], Mondlane regressa ao seu cargo na ONU, deixando a FRELIMO, de acordo com [Malyn] Newitt [em sua História de Moçambique], «entregue a um americano negro chamado Aldridge, que de certa forma ganhara a sua confiança e se disfarçara de exilado moçambicano. As ligações americanas de Mondlane, o facto de sua mulher ser uma americana branca [Janet Johnson] e o fraco discernimento que evidenciava com frequência na sua escolha dos confidentes levaram à acusação de que era influenciado pelos Estados Unidos e que a FRELIMO estava a soldo da, ou pelo menos infiltrada pela Central Intelligence Agency (CIA)». E, assim, mais se adianta quanto ao terrorismo preparado e instigado do exterior contra Moçambique: «No início de 1963, Mondlane visita a URSS e a China. Portugal tem 60 mil soldados em África e os dois primeiros grupos de combatentes da FRELIMO partem para a Argélia para receber treino militar, regressando o primeiro em meados do mesmo ano, e o segundo, em começos de 1964. A 16 de Março, militantes da FRELIMO fogem para Dar-es-Salam com um avião da Força Aérea Portuguesa e em Agosto é descoberto um agente da CIA infiltrado, Leo Milas, segundo o movimento informa…» (in «Nasce a Frente de Libertação de Moçambique», in Os Anos de Salazar, Centro Editor PDA, 2008, n.º 19, pp. 53-54).

Como se vê, Eduardo Chivambo Mondlane não só manteve claros contactos com o bloco comunista, como também chegou a estudar antropologia e sociologia nos Estados Unidos, na Universidade de Oberlin, e, mais tarde, na Northwestern University. Nesta última chegou a ser assistente, sendo posteriormente investigador em Harvard. E uma vez demitido do cargo das Nações Unidas, foi finalmente professor na Universidade de Siracusa.



Eduardo Mondlane, no dia da sua formatura em Oberlin College, no Estado norte-americano de Ohio (1953)










Contudo, é preciso não esquecer que o jovem E. Mondlane também chegara a cursar Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa, a que se seguiram os contactos com Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral e tutti quanti. Além do mais, Mondlane receberia em Lisboa influências políticas e associativas quer na Casa dos Estudantes do Império (CEI), quer no Centro de Estudos Africanos (CEA), quer ainda no Clube Marítimo Africano (CMA) e na Casa de África (CA). Ora, fora precisamente nesse meio que ele e muitos dos futuros líderes de movimentos terroristas na África portuguesa, começaram por assimilar a propaganda anticolonialista tão cara à esquerda comunista enquadrada em organizações como o MUD Juvenil e o Movimento pela Paz.

Atribui-se à Polícia de Intervenção e Defesa do Estado a morte de E. Mondlane. Contudo, não existe nenhuma prova do alegado crime. Fica, no entanto, este trecho porventura sugestivo: «Dirigente da FRELIMO foi abatido em Dar-es-Salam por uma bomba de relógio e vítima […] de um elemento da própria organização pertencente à facção maoísta», anuncia o Diário da Manhã do dia 4 de Fevereiro de 1969, na primeira página, dando destaque ao assassinato do «[…] chefe terrorista Eduardo Mondlane…» («E. Mondlane, nacionalista moçambicano», in Os Anos de Salazar, Centro Editor PDA, 2008, n.º 25, p. 56).

(7) Purga em Angola, pp. 100-101. Ao longo deste trecho, Dalila Cabrita Mateus justifica estes factos com base em Arquivos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança.

(8) Numa outra passagem, é possível ver como Henry Kissinger sempre se moveu ao serviço de interesses financeiros internacionais: «Entretanto, Kissinger autoriza a Gulf Oil a encetar conversações para o recomeço da produção de petróleo. O Governo angolano levanta num banco suíço 125 milhões de dólares ali colocados pela Gulf Oil. E a produção petrolífera recomeça em Maio de 1976. Já em 25 de Março a Boeing fornecera dois 737 ao Governo de Angola, montando nessa Primavera equipamentos de controlo de tráfego aéreo. Em finais de 1976, Kissinger parece ter alterado a pressão sobre o MPLA e levado à retirada dos sul-africanos» (ibidem, p. 169).

(9) Ibidem, p. 168. De facto, já desde a Administração Kennedy existiam contactos secretos com a UPA – mais tarde designada por FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), que constituiu o GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio). E mais nos diz José Freire Antunes: «No final de Abril de 1961, consumando um debate intramuros, o National Security Council Special Group autorizou o financiamento secreto de Holden Roberto e da UPA. A personalidade decisiva por detrás desta atitude foi Robert Kennedy e a quantia inicial foi de 6000 dólares por ano. Como disse Henry Kissinger em 1976, pretendeu-se investir no futuro dos interesses americanos e a UPA era em 1961 “uma força de vanguarda na luta pela independência de Angola”. A CIA financiou directamente a UPA até 1969 e depois disso continuou a pagar 10 000 dólares por ano a Holden Roberto para manter a ligação. Holden Roberto, embora reticente em falar do assunto, confirmou a ajuda americana:“Davam-nos apoio sobretudo para a formação de quadros da UPA e em medicamentos, pagavam-me os bilhetes de viagem. Mas não davam o dinheiro que se diz. Onde estão os recibos para provar? Se nos tivessem dado uma ajuda substancial, nós teríamos ganho a guerra em Angola. Não foi nada comparável ao dinheiro que os americanos têm dado a Savimbi”. Em 1975, o chefe da task force da CIA em Angola, John Stockwell, referia-se ao líder da UPA:“Em Kinshasa, Roberto era o nosso homem”. (Kinshasa é o nome moderno de Léopoldville). As consequências desta associação secreta foram consideráveis e provocaram a médio prazo o descrédito da UPA entre muitos nacionalistas de África» (Kennedy e Salazar, Difusão Cultural, 1991, p. 238).








(10) Purga em Angola, p. 169.

(11) Ibidem, p. 171.

(12) Para um melhor esclarecimento sobre as relações porventura difíceis do MPLA com a União Soviética, leia-se o seguinte: «Tanto quanto se percebe, os Soviéticos conheciam as dissidências existentes no seio do MPLA e, no caso em concreto, teriam assegurado a sua neutralidade, assim como a dos cubanos.

No entanto, vale a pena procurar uma explicação para o anti-sovietismo de Agostinho Neto e dos que lhe estavam mais próximos. Sabe-se que Neto beneficiou, desde a primeira hora, do patrocínio do PCP e, em particular, de Álvaro Cunhal, junto dos dirigentes da União Soviética. Segundo Vassili Mitrokhin, Cunhal conseguiu que Neto fosse convidado a visitar a União Soviética, em 1964, tendo sido na sequência desta visita que Moscovo anunciou publicamente o seu apoio ao MPLA.

E já depois do 25 de Abril, Cunhal insiste com Moscovo para que seja retomado o fornecimento de armas ao MPLA. Contudo, as relações dos Soviéticos com o MPLA nunca terão sido particularmente amistosas. Estudantes africanos em Moscovo lembram-se do facto de Agostinho Neto, ao contrário do que acontecia com Amílcar Cabral, ser sempre recebido por figuras de segundo e terceiro plano na hierarquia do Partido Comunista da União Soviética.

Antigos dirigentes do MPLA atribuem a má vontade de Moscovo ao intransigente neutralismo de Agostinho Neto na querela sino-soviética. E até surgem ilustrações deste ponto de vista. Num livro recente sobre Neto, escreve-se que, em 1969, em Pequim, lhe fora pedido que assinasse um documento condenando a hegemonia soviética. E em Moscovo foi-lhe igualmente pedido que subscrevesse um documento de condenação dos hegemonistas chineses e das suas teses. E, como recusasse a solidariedade internacionalista, gelou. E antes que as coisas se complicassem ainda mais, resolveu ir-se embora, sem despedidas.

Ao que parece o abandono de reuniões seria um hábito de Agostinho Neto. Pois, em 1976, numa reunião com o senhor do Kremlin, terá igualmente abandonado a mesa da reunião, refugiando-se nos seus aposentos e jamais quis qualquer contacto» (Purga em Angola, pp. 98-99).








(13) Ibidem, p. 179.

(14) Nascida em Cabinda em 1951, Sita Valles frequentou a Faculdade de Medicina de Lisboa em 1971. Foi eleita para a Comissão Central da União dos Estudantes Comunistas (UEC) e, no 25 de Abril de 1974, «encontrava-se em Moscovo como representante da UEC no Congresso das Juventudes Comunistas Soviéticas (Komsomol)». Em 1975 regressa ao seu país natal avisada por Álvaro Cunhal de que teria de cortar todas as relações com o PCP cujos militantes não eram bem recebidos em Angola. Ingressa no MPLA, tendo um fim trágico e macabro: «Em meados de Junho [de 1977] é presa com o marido [José Van Dunem, membro do Comité Central do MPLA e comissário político no Estado-Maior-General das FAPLA]. Entra no Ministério da Defesa de mão dada com José. Um outro preso, Amadeu Neves, afirma que, quando lhe ofereciam comida, respondia:

- A um comunista não se dá leite, dá-se porrada. 

Terá ido para a Fortaleza de S. Miguel. Terá sido torturada e violada por elementos da DISA.

Uma prima dos Van Dunem, enfermeira, confidencia a alguém que José e Sita terão estado internados numa clínica de que a DISA tomara conta.

Várias fontes, entre as quais um responsável da DISA, declaram que se encontrava novamente grávida. Terão esperado que tivesse a criança, para depois a fuzilar. O bebé nunca foi entregue à família.

(…) Uma presa ouviu contar que, antes de a matarem, lhe deram um tiro em cada braço e em cada perna» (Purga em Angola, pp. 137-139).

Na versão de Américo Cardoso Botelho, consta o seguinte: «Depois dos acontecimentos de Maio de 1977, [Sita Valles] refugiou-se numa aldeia do Norte de Angola, Kaleba. Ela sabia que todos os seus companheiros de luta estavam a ser presos e sumariamente entregues à morte. Assinou a sua sentença de morte no dia em que arriscou enviar uma mensagem para a família Van Dunem através de um filho daquele que a recebia em Kaleba, Francisco Karicukila. A mulher que recebeu a missiva enviada por Sita Valles, tendo o marido preso, ensaiou em desespero de causa uma troca, denunciando Sita junto do Director-Adjunto da DISA. A carta visava a preparação de uma fuga sob a protecção dos soviéticos. O mensageiro foi preso, torturado e, assim violentado, conduziu os militares ao esconderijo de Karicukila. (...) A extrema-esquerda, em Portugal, acusava Sita de ter sido a mentora da tentativa de golpe, qual Mata-Hari que tinha partilhado a cama de, pelo menos, dois dirigentes do MPLA: Nito Alves e Van Dunem.

O fim terá chegado pelas cinco da manhã, no dia 1 de Agosto de 1977, sem qualquer julgamento, depois de torturas e violações às mãos de vários disas. Kilombelombe falou-me dessa execução: Sita Valles, jovem de 26 anos, depois de recusar a venda nos olhos, foi morta com um tiro na cabeça, não sem antes ter recebido um tiro na vagina, bem sublinhado pelo comentário circunstancial do carrasco: “A cabra parecia que não queria morrer”. Com ela foram fuziladas outras quatro mulheres, num cemitério próximo da Cuca. Não se conhece o local exacto onde foram sepultadas – de certeza numa das inúmeras valas comuns abertas durante este período» (in HOLOCAUSTO em ANGOLA. Memórias de entre o cárcere e o cemitério, Nova Vega, 2007, pp. 139-140).

(15) Ibidem, p. 177.








Continua


O "Gulag Angolano" (ii)

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Escrito por Miguel Bruno Duarte











«Tem a Rússia, desde os tempos dos seus grandes doutrinadores, uma política igualmente definida quanto à África: a sua subversão como meio de contornar a resistência da Europa. O trabalho de subversão e desintegração africana tem sido sistemática e firmemente conduzido pela Rússia e nesta primeira fase, que é apenas expulsar a Europa de África e subtrair quanto possível os povos africanos à influência da civilização ocidental, estão à vista os resultados obtidos.

Ora, talvez por força do seu idealismo, talvez também por influência do seu passado histórico que aliás não pode ser invocado por analogia, os Estados Unidos vêm fazendo em África, embora com intenções diversas, uma política paralela à da Rússia. Mas esta política que no fundo enfraquece as resistências na Europa e lhe retira os pontos de apoio humanos, estratégicos ou económicos para a sua defesa e defesa da própria África, revela-se inconciliável com a que pretende fazer através do Tratado do Atlântico Norte. Esta contradição essencial da política americana já tem sido notada por alguns estudiosos, mesmo nos Estados Unidos, e é grave, porque as contradições no pensamento são possíveis mas são impossíveis na acção».

Oliveira Salazar («O Ultramar e a ONU», SNI, Lisboa, 1961)


Em Agosto, o chefe do MPLA, "Iko" Carreira, desloca-se à URSS, para discutir a recepção de maior volume bélico. Dias depois, uma numerosa delegação de altos militares cubanos chega ao Congo-Brazzaville, onde é efectuada uma conferência com o MPLA. Aí decide-se que os assessores militares ainda em Brazzaville se desloquem para Angola para participar em combates. Cuba promete o envio de mais forças. Numa conferência preliminar dos Não-alinhados, que se efectua no Perú em finais de Agosto, o conselheiro cubano Isidoro Malmierca pede aos membros que actuem a fim de acelerar a descolonização em Angola. A 20 de Agosto, o Presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, autoriza uma verba de 10,7 milhões de dólares para a FNLA e UNITA, elevando o total da ajuda concedida por Washington para 24,7 milhões de dólares, a fim de manter o equilíbrio militar face à presença cubano-soviética, pelo menos até à data da independência, procurando assim a negociação entre os três movimentos angolanos.

Os soldados cubanos pertencentes às unidades de artilharia apoiam a "gendarmerie" catanguesa na ofensiva do MPLA sobre Quibala, Novo Redondo e Benguela. Aqui ocorre um feroz combate entre a UNITA e as forças do MPLA apoiadas por cubanos. As tropas da UNITA capturaram dois soldados cubanos.

Em Setembro, as tropas cubanas dirigidas pelos general Diaz Arguelles, apoiadas por tanques e "orgãos de Stalin", instalaram-se no Caxito. O exército colonial português estacionado em Angola, recebe instruções do seu Alto-Comissariado para facilitar o apoio estratégico ao MPLA, sobretudo às unidades aéreas e navais. Deste modo, o MPLA enterra o governo de transição nascido dos Acordos de Alvor. Começa a cristalizar-se a intrusão militar cubano-soviética em Angola de uma maneira alarmante, pelo menos antes da data da independência.


Lançador de foguetes Katyusha durante a Segunda Guerra Mundial 



































União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)






Cuba






Congo-Bazzaville






Guiné-Conacry









Em Setembro, o Presidente do Congo-Brazzaville viaja até Havana, com representantes do MPLA, para precisar os detalhes de uma escalada militar cubana, uma vez que Portugal cederia o aparelho administrativo do país ao movimento angolano antes da sua independência.

O Presidente de Brazzaville, Ngouabie, concorda em dar ao MPLA e ao general Diaz Arguelles o arsenal bélico do seu exército, especialmente o material bélico de reacção que os soviéticos prometem substituir. Utilizar-se-á o território do Congo-Brazzaville como local de trânsito para os soldados cubanos. O Presidente guineense, Sékou Touré, confirma o aeroporto de Conakry como ponte de trânsito e de reabastecimentos dos aviões "Britannia" e IL-18 que Cuba utiliza como transporte militar. O Yémen do Sul oferece o aeroporto de Aden para a transferência de vitualhas provenientes da URSS.

Um oficial do exército cubano, que esteve desde o início em Angola, relata-nos como se efectuou esse triângulo militar entre a URSS, Cuba e Angola:

"Eles (os soviéticos) enviaram tropas e armas para Cuba para compensar os envios de Fidel para Angola. Para este efeito os 'assessores' russos do regime cubano forneceram dois aviões quadrimotores da União Soviética que equiparam com depósitos adicionais para garantir a provisão de combustível indispensável para a grande travessia. Devido ao peso destes depósitos, a capacidade para as tropas teve de ser limitada a 45 pessoas por avião, cada qual com as suas armas e demais equipamento bélico necessário e incluindo ainda dois canhões.

Estes 90 homens desembarcaram em Luanda sob o fogo cruzado das hostes de Savimbi e [Holden] Roberto que haviam cercado e fustigavam as tropas de Neto..."

O governo português encabeçado pelo general Vasco Gonçalves, ordena às tropas coloniais portuguesas em Angola que apoiem o MPLA, oficializando o que já era uma prática consumada. A este respeito diria Holden Roberto:

"...podemos verificar a presença de tropas cubanas e portuguesas nessas batalhas de Luanda que terminaram com a derrota temporal da FNLA e provocaram a evacuação da capital. Tudo fazia parte de um plano cuidadosamente preparado com a assistência das forças expedicionárias cubanas..."












Vasco Gonçalves e Costa Gomes




Vasco Gonçalves, Álvaro Cunhal, Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo no 1.º de Maio de 1975



Vasco Gonçalves, Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo



































Ver aqui. Ver também Portugal e os Americanos
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A TAP antes do 25 de Abril de 1974 (Margarida Rouillé na entrada de ar do reactor dum Boeing 707, Aeroporto da Portela, 1968)



Ao centro, da esquerda para a direita: Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves



Ver aqui































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Ver vídeos 1,  2,  3 4 5 e 6











Vasco Gonçalves






































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Jornal A Rua, n.º 70, 4 de Agosto de 1977, Ano II

















Sem dúvida, o factor decisivo para a escalada Castro-soviética a favor do MPLA deve-se ao facto de que em Setembro, o governo de esquerda português, liderado por Vasco Gonçalves, cai, pondo em perigo o apoio que Neto vinha a receber das autoridades portuguesas em Angola, em especial, os desembarques impunes de material de guerra soviético e soldados cubanos.

A meados de Setembro, três navios da frota mercante cubana transformados em transporte de guerra, transportam material bélico e 480 instrutores militares de reforço para Angola, com a máxima urgência. O ex-guarda-costas de Fidel Castro, Rigoberto Milan, oferece-nos de novo uma descrição do transporte de tropas:

"...os navios mais rápidos e com maior capacidade de carga da marinha mercante cubana foram dotados de prateleiras nos porões com toldos onde se instalaram longas filas de camas estreitas, apinhadas e pouco ou nada confortáveis. Isso tornava possível o transporte de nada mais nada menos de 1800 homens por viagem, em condições sub-humanas, como as dos barcos negreiros..."

Em princípios de Setembro, o MPLA lança uma verdadeira ofensiva contra a FNLA, utilizando pela primeira vez a artilharia de 122 mm, cedida pela URSS. Os conflitos sucedem-se através do Caxito até às imediações de Ambriz. Colocadas em camiões, as armas de 122 mm são o elemento mortífero que fazem pender a balança para o lado do bando de Neto. A delicada situação da FNLA faz com que o Presidente do Zaire, Joseph Mobutu, envie com urgência, dois batalhões de reforço a Holden Roberto, que recupera Caxito e avança sobre Luanda e também sobre Cabinda, apoiando a FLEC, precipitando os choques contra os cubanos, no dia 2 de Novembro.

No sul, a UNITA enfrenta os catangueses no Luso e os cubanos no Lobito, de uma tal maneira que os faz retroceder para Nova Lisboa. O secretário de estado norte-americano, Henry Kissinger, pede que a África do Sul "responda"à solicitude da UNITA e dê sinal de presença na contenda.

A África do Sul considera que uma coluna móvel, com um alto poder bélico, apoiada por carros e artilharia, pode inclinar a balança a favor de Savimbi e Holden e, inclusivamente, com o tempo suficiente para abandonar Angola antes do dia da independência.

Jonas Savimbi, aceita a ajuda bélica da África do Sul, ao defrontar-se com uma difícil situação militar, e as pressões da Zâmbia, para que abrisse ao trânsito o caminho-de-ferro de Benguela antes do dia 11 de Novembro. Em troca, Kaunda promete a Savimbi, o reconhecimento diplomático da Zâmbia e não inicia negociações com o MPLA.

(...) A entrada em cena da África do Sul facilita grandemente ao bloco soviético a campanha que então enceta a favor do MPLA, a pretexto da "agressão racista" subjacente à escalada que se está planeando.



Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e o "Almirante Vermelho" (Rosa Coutinho)


A queda de Vasco Gonçalves em Lisboa e a entrada da África de Sul no Cunene podem ser nefastas ao projecto de concentrar o poder nas mãos do MPLA. Contra essa eventualidade, a União Soviética envia mais armamento e Cuba mais soldados. As forças cubanas pretendem derrotar e liquidar a FNLA e a UNITA como organizações militares, e aumentar o mais possível a influência do MPLA. Avançando para o norte, as tropas cubanas desarticulam a FNLA, enquanto barcos de guerra soviéticos tipo KARA abrem fogo contra as forças anti-MPLA nos arredores de Luanda.

A União Soviética apoia o plano de uma acção de maior envergadura enviando mais barcos, aviões e armamento. As unidades regulares cubanas são enviadas com mais frequência em apoio do MPLA, tornando cada vez mais possível o regime marxista de Neto em Luanda e empurrando Holden Roberto para o interior.

Havana e Moscovo estão convencidos que as potências ocidentais não dispõem de "forças de acção rápida" para contra-atacar em território africano, sobretudo por se estar tão perto do processo eleitoral norte-americano e por Washington pretender apenas uma "contenção" em África.

As forças sul-africanas movimentam-se para o norte, atacando a coligação MPLA-Cuba. O dispositivo combinado UNITA-África do Sul avança sobre as forças cubano-catanguesas, e em Novembro pouco falta para a queda do MPLA no sul.

É controverso o facto de as tropas cubanas, congolesas, moçambicanas e armamento soviético terem chegado a Angola anteriormente à insurreição em Pretória.

As tropas da África do Sul avançam contra Sá da Bandeira, Benguela, Lobito, Gabela e Novo Redondo, que haviam sido ocupadas em Agosto, por destacamentos cubanos.

Com excepção de Pequim, poucos são os que, nessa altura, denunciam publicamente a intervenção militar de Fidel Castro em Angola, a favor do MPLA.

A partir de Cabinda, Holden Roberto lança uma ofensiva contra a capital, com o objectivo de reforçar as suas forças, que ali lutam contra o MPLA, em condições desfavoráveis. Do Lobito também Savimbi envia, cautelosamente, forças suas.











Ao centro: Holden Roberto


Na noite de 25 de Setembro o barco cubano "Vietnam Heróico" chega a Pointe Noire, transportando 20 carros blindados, 30 camiões e 120 soldados cubanos, sendo aí tudo e todos transferidos para o navio angolano "Lunda-Luanda", com destino a Caxito, onde se espera uma ofensiva. Em princípios de Outubro, chega outro contingente de Castro para as forças armadas do MPLA, em barcos cubanos. A 6 de Outubro, as unidades de combate cubanas enfrentam as sul-africanas, em Norton de Matos, mas a artilharia anti-tanques de Pretória detém-os. As forças dizimadas pelos sul-africanos pertencem às "famosa" divisão "50", uma unidade de elite directamente comandada por Fidel e Raul Castro.

Embora existindo um apoio directo dos EUA, Zaire e África do Sul aos movimentos anti-MPLA, este é inferior quantitativa e qualitativamente ao ministrado pela União Soviética ao movimento de Agostinho Neto (400 milhões de dólares). Por outro lado, Fidel Castro expressa a intenção de ampliar a presença cubana face a um abrandamento da posição de Pequim. A 8 de Outubro, o porta-voz cubano na ONU, Ricardo Alarcon, afirma:

"...perante a escandalosa interferência dos imperialistas, colonialistas e racistas em Angola, é dever fundamental de Cuba oferecer ao povo angolano assistência efectiva de que aquele país necessita no sentido de preservar a sua independência e total soberania. Tendo em vista precipitar o processo descolonizador deverá implementar-se uma estratégia coerente com a participação de todas as forças progressistas.

Esta estratégia é essencial para enfrentar os colonialistas e os racistas nas suas maquinações contra os povos da Namíbia e do Zimbabwe, e deverá opor-se ao colonialismo em todas as suas forças e manifestações em cada canto do planeta..."

A 6 de Outubro, além de cerca de 600 soldados cubanos, desembarcam em Pointe Noire, de bordo do navio "Playa de Habana", 3 tanques, 400 camiões e artilharia. Parte das tropas são enviadas para a base de Dolissie, no Congo-Brazzaville, enquanto outros contingentes e armamento seguem para Massabi perto de Cabinda e para Banga. Uma semana depois desembarca uma representação do Partido Comunista de Cuba juntamente com uma delegação militar e mais reforços de tropas. Aquela delegação programa com o governo do Congo-Brazzaville pormenores sobre o pessoal técnico necessário para os MiG-21 enviados pela URSS.



Um dos Mig-17F enviados para Angola (1975)














"...um ou mais barcos cubanos desembarcaram tropas directamente em Porto Amboim, ao sul de Luanda, que partem dali para Benguela a fim de se juntarem às tropas do MPLA que se estendem do Lobito até Nova Lisboa, e que necessitam com urgência de pessoal especializado em tanques".

Nas noites de 16, 17 e 18 de Outubro, dois transportes soviéticos aterram em Brazzaville com 1000 soldados cubanos e uma equipa soviética AN-12, que, juntamente a três barcos cubanos, serão utilizados na ponte aero-naval entre Pointe Noire e Angola. Simultaneamente, pelo Lobito, chagam mais de 500 soldados cubanos com seis tanques. Uma semana depois desembarca outro contingente de 750 soldados de Fidel e grande quantidade de material de guerra, desta vez em plena luz do dia.

A imprensa ocidental denuncia a constante presença de um grupo táctico naval soviético junto do teatro de operações. Mas é Cuba quem arca totalmente com as responsabilidades das operações enquanto a URSS sonda as reacções das potências ocidentais.

Existe a versão de que a URSS empurra Castro para esta operação e que este inicialmente se mostrara reticente. Outros sustentam que a operação é totalmente assumida por Havana e que Moscovo apoiara a audácia de Castro. De qualquer forma a ordem do comportamento das participações não altera o balanço final: Castro decide enviar tropas equipadas pela URSS, o Congo-Brazzaville deixa usar o seu território e como ponte deste tráfico inflamável conta-se SékouTouré, Guiné-Bissau, Barbados e Açores.

Em meados de 1975, o ideólogo do PCUS, Mikhail Suslov, no VII Congresso do Comintern, expressa-se a favor de um apoio mais activo aos "movimentos de libertação", de acordo com os princípios do "internacionalismo proletário". Também P. I. Menchka e R. Ulyanovsky, respectivamente chefe do Departamento de África do Comité Central e vice-chefe do Departamento Internacional do CC, teorizam sobre a importância de uma "estratégia revolucionária" de ajuda material directa ao processo de libertação nacional e insurgem-se contra os defensores de um "evolucionismo".










A 5 de Novembro, dia em que as tropas especiais de Castro são enviadas por via aérea para Luanda, o diário PRAVDA anunciava a decisão soviética por uma solução armada em Angola e, consequentemente, a ruptura com os acordos de Alvor que estipulava a independência negociada:

"...ao proclamarem-se a favor de negociações pacíficas e do abrandamento das divergências os maoístas pretendiam sentar à mesma mesa o povo angolano, vítima da agressão armada, e as forças fantoches treinadas por mercenários especialistas da China e da CIA em conjunto com os racistas sul-africanos e rodesianos..."

O conflito dentro do Bureau soviético entre os que defendem a invasão cubano-soviética e os que procuram uma transição "evolutiva" reflecte-se na imprensa moscovita. Em 3 de Janeiro de 1976 um editorial do diário PRAVDA e outro do EZVESTIA, três dias depois, punham em destaque os pontos divergentes sobre aquela problemática. As divergências ressaltam durante o XXV Congresso do PCUS, em Fevereiro de 1976, evidenciando-se o papel gestor da URSS na invasão de Angola. Na realidade os planos expansionistas e o cometimento militar de Castro com os soviéticos, juntamente ao interesse estratégico e aos interesses do Partido Comunista Português, são os elementos actuantes da invasão de Angola. Em meados de Outubro, quando os sul-africanos tinham entrado em cena, já havia cerca de 7.500 soldados cubanos no campo de batalha.

O MPLA, apesar de contar com a assistência cubana, recua face à pressão das colunas da UNITA e da FNLA. No seu avanço para o norte, a UNITA consegue arrebatar algumas cidades ao MPLA e ao longo da fronteira sul destrói unidades cubanas e limpa a zona entre Pereira d'Eça e Porto Amboim. O MPLA sem a protecção da artilharia e dos blindados cubanos é dominado por Savimbi. No norte, a FNLA inicia a ofensiva a partir de Ambriz, fazendo recuar os cubanos e catangueses até às imediações de Luanda, deixando pelo caminho mais de trezentos mortos. A 23 de Outubro, uma força sul-africana e efectivos angolanos comandados por Daniel Chipenda iniciam o avanço do sul após ter facilmente ganho Sá da Bandeira e derrotado os cubanos quatro dias depois em Moçâmedes.

Estão envolvidos na luta mais de 4000 soldados cubanos, parte deles colocados entre Caxito e Lobito e 2500 estacionados em Luanda e Quifandongo.

Entre 26 e 29 de Outubro transportes aéreos soviéticos chegam à base aérea de Maya-maya, no Congo-Brazzaville, com mais de 1000 soldados cubanos e material bélico procedente da Guiné-Bissau com destino a Angola.















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Bandeira da UNITA






























A coluna UNITA-África do Sul, composta por 2000 homens, inicia uma ofensiva a partir da Namíbia em Outubro e enfrenta forças superiores de cubanos, catangueses e combatentes do MPLA. A 28 de Outubro, a UNITA toma Mocâmedes, a 12 de Novembro, Novo Redondo. Lobito e Benguela caiem a 16 e um dia depois Malange. Outra força da UNITA faz recuar os catangueses, expulsando-os do Luso, para depois se dirigir a Teixeira Sousa, tirando a estação ferroviária das mãos do MPLA. A operação "Zulu" parece conseguir os seus fins. Savimbi prossegue-a até ao norte.

A impossibilidade das tropas cubanas (comandadas pelo general Diaz Arguelles) e dos artilheiros catangueses deterem a coluna móvel UNITA-África do Sul, assim como as grandes baixas que sofrem, determinam a decisão de Fidel Castro e da URSS no que respeita a uma escalada militar em Angola. Numa reunião entre Castro e Henrique dos Santos do MPLA, realizada em Havana, é decidido declarar a independência unilateral que conceda a cobertura jurídico-política à escalada militar soviético-cubana. Nessa altura já todos os actores do drama angolano se acham presentes (Cuba, URSS, África do Sul, Zaire, EUA) para ajudar o "seu" protegido.

Na primeira semana de Novembro as forças de Holden Roberto aproximam-se de Luanda atravessando as planícies de Quifandongo apoiadas por peças de artilharia sul-africanas. O MPLA conserva uma estreita franja costeira ao norte e sul de Luanda e os seus dirigentes começam a evacuar a capital. Entre Caxito e Luanda os cubanos e os soldados do MPLA preparam a defesa. Há notícias da presença de Mig-21, tanto no Congo-Brazzaville, como em Luanda. As forças cubanas e do MPLA são colhidas por uma pinça mortal do norte ao sul. A coluna sul-africana, depois de derrotar os agrupamentos do MPLA no sul, corre para Benguela, onde choca com a artilharia cubana, que leva de roldão até Lobito, subindo depois para Luanda, ao longo do caminho-de-ferro de Benguela.


Ver aqui

A rapidíssima ajuda das unidades cubanas que formam as tropas especiais de Fidel Castro (saídas de Cuba a 5 de Novembro, via Cabo Verde) com o apoio das forças do general Diaz Arguelles, dificultam primeiro e imobilizam depois o avanço desta coluna sobre a capital, enquanto em Cuba se preparam outros meios de transporte para completar um primeiro contingente.

Rigoberto Milan, oficial do exército cubano e ex-guarda-costas de Fidel Castro revela que o dirigente cubano mantinha comunicação permanente com Angola mediante as instalações facilitadas pelos soviéticos:

"...os serviços de informação cubanos advertiram o general Diaz Arguellez que várias colunas de guerrilheiros e civis provenientes de Cabinda, num total estimado entre oito e dez mil pessoas avançavam sobre Luanda. Havia também sido detectado outro grupo, mais pequeno mas melhor organizado, formado pelos homens de Savimbi, que vinha do Lobito. O alto-comando cubano compreendeu que a capital ficaria entalada numa operação-pinça entre as colunas de Holden Roberto, pelo norte, e os homens de Savimbi, pelo sul. O seu papel de espectador havia terminado. Começava agora a verdadeira batalha de Luanda.

Era preciso conservar a qualquer preço o controlo da capital, até chegarem os primeiros navios com reforços. O general Diaz Arguellez comunicou a situação a Havana: a capital seria atacada dentro de poucos dias e os homens de Neto eram incapazes de manejar o armamento moderno que haviam recebido. Em resposta à sua mensagem, anunciaram-lhe a partida imediata, por avião, de especialistas em artilharia pesada de 122 mm. Por outro lado, os comandantes dos cargueiros cubanos que transportavam mais tropas receberam ordens para acelerar a marcha..."

Como bem observa Juan Vives na sua passagem sobre a invasão angolana, o bloco soviético retira dividendos da retirada norte-americana no Vietname, portanto os EUA limitam o seu apoio a Angola com a contribuição de 32 milhões de dólares para a UNITA e a FNLA, o que também se manifesta insuficiente face às injecções soviéticas. Esta limitação norte-americana no plano financeiro resulta da recusa do senado em Washington de ampliar em mais de 28 milhões a magra ajuda.

A rapidez e o segredo destas operações impedem inicialmente qualquer reacção ocidental, ou o reforço do campo contrário. Conhecedor deste detalhe táctico, Castro cuida apenas de não irritar os franceses no que respeita ao Zaire ou ao Gabão.








A decisão de intervir em Angola promete mais vantagens do que possíveis desvantagens a Castro. Além de aumentar o seu prestígio aos olhos dos soviéticos, Fidel sabe que Cabinda se apresenta como uma fonte petrolífera e que Angola é rica em minérios. Castro abranda o seu pesado aparelho burocrático, aplica a profilaxia ideológica e paralisa o processo descentralizador que evidentemente reduziria o seu poder.

Uma vitória em Angola significa uma base estratégica cubano-soviética no flanco sul-africano e a eventualidade de pressionar, com a sua presença militar, o Zimbabwe e a Namíbia. Por esta altura, o governo norte-americano estuda a possibilidade de desenvolver um programa com a FNLA e a UNITA a fim de modificar a situação no plano militar, considerando o envio de mísseis terra-ar "Redeye", anti-tanques, artilharia pesada, apoio aéreo táctico, etc. Ao mesmo tempo é também considerada a presença de assessores e unidades militares norte-americanas, o envio de um dispositivo naval e a realização de intimidações militares sobre Cuba para limitar Castro. Mas a administração não acolhe a ideia.

Sob a cobertura portuguesa em Angola, as forças de Castro são abastecidas por via aérea, a partir da URSS, em AN-22 que sobrevoam o espaço aéreo africano pelo corredor Argélia-Mali-Guiné, saindo para o Atlântico para fazer a escala final em Brazzaville. Como expressaria Mário Mesquita acerca do valor estratégico dos Açores:

"...No inverno de 1975-76, o aeroporto de Santa Maria, onde aterravam os aviões comerciais da Cubana Airlines, ao abrigo do acordo bilateral de navegação aérea entre Portugal e Cuba (assinado em Junho de 1951), terá servido de escala ao transporte de tropas cubanas e material de guerra rumo a Angola com paragem na Guiné-Bissau ou Cabo Verde. Reconhece-se no entanto que a maior parte do transporte de homens e armamento para reforço do MPLA se processou por via marítima...

...Enquanto os cubanos aproveitavam as infra-estruturas aeroportuárias de Santa Maria, na vizinha base das Lajes reabasteciam-se aviões americanos em trânsito para a África com auxílio militar à FNLA e à UNITA. Este exemplo, de dupla utilização dos Açores para intervenções militares antagónicas em Angola demonstrou a relevância estratégica do arquipélago na perspectiva do confronto soviético-americano em África..."

Em Novembro de 1975, a URSS incrementa o volume do material de guerra que armazena em Porto Amboim e Quizama. Por outro lado, intensificam-se esforços para formar uma pequena força aérea. No dia 24 desse mesmo mês o Departamento de Estado norte-americano afirma que há em Angola 15.000 soldados cubanos.








Arkady N. Shevchenko, o alto funcionário soviético que rompe com Moscovo em 1978, quando desempenhava as funções de secretário das Nações Unidas, oferece o seu testemunho sobre o problema angolano a partir de conversações com altos funcionários da "Nomenklatura" soviética sobre os assuntos africanos. Shevchenko revela que Moscovo considera a África o ponto mais débil e vulnerável do Ocidente. Shevchenko confirma o envolvimento da URSS com o grupo pró-soviético do MPLA muito antes de estalar a guerra. Assinala que Moscovo procedeu ao transporte das tropas cubanas e que juntamente com elas seguiam especialistas militares soviéticos. Revela ainda que no Outono de 1975 Neto solicitou a Moscovo mais ajuda militar.

De acordo com Shevchenko a operação militar do final do ano efectua-se pelo entendimento entre Moscovo e Agostinho Neto, pela ajuda em equipas militares, assim como pela informação de Castro à URSS quanto à sua disposição de enviar tropas para Angola. Segundo a mesma fonte, a URSS utiliza Castro no seu expansionismo em África.

Shevchenko relata a versão de Vasili Kuznetsov (alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros soviético) segundo o qual Agostinho Neto, apesar de estar totalmente controlado pela URSS, não oferecia o perfil ideal como dirigente de Angola, pelo que havia sido decidido escolher um melhor candidato, possivelmente "Iko" Carreira. Kuznetsov informou ainda Shevchenko de que os grupos pró-soviéticos no interior do MPLA tinham anteriormente, e segundo parece a instâncias do KGB, tentado eliminar Neto.

Face à escalada cubano-soviética, a CIA continua a pressionar no sentido de uma acção conjunta com a África do Sul, apoiando os pedidos de Pretória quanto ao envio de armamento sofisticado, aviões e combustível para desencadear um ataque surpresa através do Zaire, sobre Teixeira de Sousa. O receio de uma escalada internacional e o síndroma do Vietname paralisam a máquina do poder norte-americano, que deixa isolada a África do Sul.

A 10 de Novembro de 1975, o Alto-Comissário português para Angola, Leonel Cardoso, transfere oficialmente as funções governativas para o MPLA que, em Luanda, declara unilateralmente a independência. Por seu lado a FNLA e a UNITA declaram também a independência do país. Como explicaria Álvaro Vasconcelos:

"...No período que antecedeu a data fixada para a independência de Angola, 11 de Novembro de 1975, o PCP, através de uma sistemática campanha de desestabilização, torna o governo e as forças armadas portuguesas completamente inoperantes para impor, a quem quer que seja, o respeito pelos acordos de Alvor. É o período da Frente Unida revolucionária (FUR) e da aliança do PCP com a extrema-esquerda, que levaria à tentativa de golpe de 28 de Setembro de 1975..."

(...) Sem a logística, os serviços secretos e o consentimento soviético, Fidel Castro não se teria lançado numa operação militar de tão grande envergadura como a de Angola. Apesar de velada a profunda implicação de Moscovo existem provas de que o Alto-Comando militar soviético desenhou os planos estratégicos executados por ordem cubana, na sua ofensiva contra a FNLA. Posteriormente, tornou-se mais visível o papel da União Soviética, a qual ordenou por duas vezes uma paragem na ofensiva cubana contra a UNITA, visto que os seus serviços secretos, via satélite, mantinham informado o comando militar cubano e determinavam o rumo das operações no sul, tentando evitar confrontos com as forças da África do SUL.



Gabriel Garcia Marquez e Fidel Castro








Saragago e Gabriel Garcia Marquez


A versão oficial cubana dos sucessos em Angola está explícita num extenso artigo, escrito pelo Nobel da Literatura, Gabriel Gárcia Márquez, amigo íntimo de Castro, a quem o próprio Fidel forneceu os detalhes. Consciente ou inconscientemente, Márquez escreve um artigo desinformativo sobre a acção cubana em África, que serviu não só para aumentar a confusão cronológica, o número verdadeiro de soldados postos em Angola antes de 1975, os objectivos da operação, como também a natureza da ligação, que existia desde 1974, com a URSS:

"...O acto de solidariedade de Cuba com Angola esteve longe de ser um acto impulsivo ou casual, foi até ao fim, o resultado de uma contínua política em relação a África pela revolução cubana...

...Os Estados Unidos tinham acabado de se libertar do Vietname e do escândalo Watergate. Tinham um presidente que ninguém tinha eleito. A CIA encontrava-se sob fogo e muito por baixo na opinião pública. Os Estados Unidos precisavam de evitar parecer (não só aos olhos dos países africanos, especialmente aos olhos dos Negros Americanos) ter-se aliado com a racista África do Sul. Além do mais, encontravam-se no meio de uma campanha eleitoral, no seu bicentenário...

...A pedido de Neto, Castro tinha mandado previamente um contingente de 480 especialistas, os quais tinham seis meses para instalar quatro centros de treino, organizar dezasseis unidades de infantaria, e reunir vinte e cinco morteiros e baterias anti-aéreas. Uma brigada médica, 115 veículos, e uma equipa de comunicações faziam parte do primeiro contingente, o qual deixou Angola em três improvisados navios de carneiros..."»

Juan F. Benemelis («Castro, subversão e terrorismo em África»).


«Dizem que Agostinho Neto anda por aí, pela boca dos seus fiéis, a protestar contra os que "injustamente" falam mal dele; contra os que o acusam de graves violações éticas cometidas no período de luta de emancipação nacional e por sistemáticos atentados ao direito e à legalidade enquanto chefe de Estado. Dizem ainda que a mais aberrante das acusações com que o pintam é a de ditador, uma vez que destruiu os últimos resquícios de liberdade existentes em Angola antes da Independência e que instituiu uma cultura totalitária e de violência sobre os cidadãos.

De acordo com a razão dos seus sectários, nenhum destes absurdos resiste à contraprova da história que mostra o presidente desde muito cedo [nos tempos de estudante de Coimbra e em Lisboa] um activo paladino dos valores democráticos e um defensor das causas da paz no mundo, pelos quais, de resto, veio a expiar às mãos da PIDE. Mercê da sua coerência de pensamento, mercê do seu elevado grau de humanidade para com os companheiros de luta, a quem sempre reservou uma palavra de alento, e mercê especialmente da sua certeza na vitória final, foi possível chegar ao glorioso dia da Independência nacional.



















[Em] A Sacralização de um Déspota, julgo ter exposto com a máxima clareza e com factos históricos concretos o verdadeiro rosto deste político. Os seus glorificadores, ao invés, vão mais longe e repudiam as minhas asserções, carimbando-as de meros equívocos ditados, segundo eles, pelo ressentimento que me vai na alma por causa do 27 de Maio. É lícito perguntar: que equívocos escrevi eu que não possam ser testemunhados por ex-dirigentes que lidaram de perto com o "rei" e vieram a ser alvo de expurgos ao tentarem contestar a excessiva concentração dos seus poderes?

(...) que argumentos aduzi eu que não possam ser histórica e documentalmente confirmados sobre o que foi a conduta do "grupo de amigos" e áulicos de Neto que, com inteiro conhecimento deste, reduziram outros militantes, desde os tempos da guerrilha, a processos inquisitoriais, os mais ignóbeis? Que disse eu estar em contradição com o falar de milhares de cidadãos anónimos de Luanda, Malange, Carmona, Moxico, Bié e Benguela que, a seguir à Independência nacional, foram brutalizados e ainda hoje se calam por medo? Se houve o 27 de Maio e se fuzilaram tantas pessoas inocentes e se mantiveram outras ilegalmente encarceradas em campos de trabalho e em prisões, como poderia eu declarar o contrário sem mentir?

Alguns desses campos serviram, como é sabido, de depósitos de morte. Os métodos de assassínio aí praticados revelaram-se, é certo, pouco dispendiosos na medida em que bastava crivar as vítimas de balas e regar os seus corpos com amoníaco antes e a seguir enterrá-las. Um dos maiores campos foi o de Kalunda, no Moxico [distante da capital da província 800 km], inicialmente concebido como campo de trabalho. Era circundado por uma alta vedação de arame farpado, por guaritas e holofotes. Segundo testemunhos recolhidos, ao centro ficavam

[...] os dormitórios e a cantina, a cozinha, a sanita ao ar livre, o cheiro nauseabundo dos esgotos [misturava-se] com o odor forte dos cadáveres em decomposição. Depois, um pouco separado do resto do campo, a casa do chefe e do seu adjunto, que dispunham [...] de poder [...] de vida e de morte [sobre os presos].

Para despejar os intestinos ou a bexiga os prisioneiros iam ao ponto de se humilhar, tinham de pedir licença aos guardas; estes autorizavam ou não consoante o seu estado de humor. As matanças ocorriam diariamente, às dezenas. Abatiam-se as vítimas a tiro ou enterravam-nas vivas dentro de valas abertas por elas próprias. O principal agente carniceiro era um tal Mainga, responsável do campo, que se fazia acompanhar nessas orgias de sangue pelo seu adjunto, João Negro. Calcula-se terem perdido a vida em Kalunda cerca de 15.000 pessoas, entre civis e militares, todos do MPLA. Até adolescentes se sacrificaram, sendo de recordar a figura de António Ambriz, de quinze anos de idade -, o qual, segundo os seus assassinos, se tornara culpado em virtude de, num comício, não ovacionar Agostinho Neto com o necessário fervor.































Mas adiante mais uma vez: que disse eu da destruição económica do país que possa estar em contradição com o que os economistas mais abalizados e probos não tenham já analisado?

(...) No fim de contas o que restou dessa deificação revolucionária - de confisco e expropriação de terras, fábricas e outros bens dos antigos colonos - traduzia-se em menos direitos para a colectividade humana, que se via assim acorrentada, sem nenhuma opção individual de escolha, a um cabaz de compras garantido todos os meses pelo Governo. A quantidade de comida distribuída beneficiava toda a gente por igual, quer se tratasse de uma família de duas pessoas, quer de oito, situação que trazia a população presa aos aguilhões da fome.  De posse de uma ração tão escassa, os consumidores eram obrigados a recorrer ao mercado negro, ao passo que os principais dirigentes políticos, e até ministros e comissários, recebiam nas suas casas todas as semanas provisões opulentas de carnes, peixe, ovos, frutas importadas, verduras e vinhos de mesa das melhores marcas, além de whisky e bebidas licorosas. Recordo-me de entrar um dia na residência de um governante em Benguela e, perplexo, não saber se me encontrava numa sala de estar ou numa adega, tal a profusão de garrafas de whisky [da melhor qualidade] espalhadas pelo aparador e outros móveis. Comia-se à tripa-forra. Lá fora o povo formava filas intermináveis para conseguir um pedaço de pão.

Além disso, a deificação revolucionária na Angola de Neto traduzia-se numa maior concentração da propriedade privada dos meios de produção e de troca nas mãos dos novos senhores vindos da guerrilha. A fim de zelar por esta apropriação e esbater o alcance de tamanho crime contra o interesse público, criou-se um sistema rígido de controlo sobre toda a sociedade; aparelhou-se o Estado com uma burocracia tentacular cuja função era espiolhar os mínimos gestos dos cidadãos. A melhor caricatura desta burocracia e do seu papel omnipresente repousa no seguinte exemplo: ninguém podia deslocar-se de uma província para outra ou de uma cidade para outra, a menos que estivesse superiormente autorizado e munido de uma guia de marcha. Infringir tal norma acarretava prisão.

(...) Ao maquilhar-se Neto com as cores de um novo "revisionismo" pós-estalinista, pretende-se apresentá-lo como um construtor exemplar do Estado pós-colonial, um estadista preocupado com as "camadas mais exploradas" e ainda um amante da liberdade e da democracia. Ou seja, um indivíduo de esquerda e inspirador de políticas impregnadas de princípios humanitários.



Chegada de um contingente de cubanos a Angola


(...) Esta liturgia em torno das suas qualidades superiores é falsa e, acima de tudo, imoral quando se tenta humanizar a sua figura e o seu regime. Como é possível colar a Neto a imagem de humanista quando sob o seu império, e em nome da utopia socialista, se pulverizaram todos os axiomas de justiça e se ofereceu ao país o espectáculo da morte, da ruína e da barbárie? Pelos vistos, os seus aduladores desconhecem ou desprezam deliberadamente o que aconteceu no segundo semestre de 1976, quando um corpo de expedicionários cubanos, auxiliado por tropas angolanas, devastou povoações inteiras no Huambo, no Moxico e no Bié e sacrificou cerca de 150.000 pessoas. Esta acção militar ficou conhecida pelo nome de código Operação Tigre. Matar em Angola, como lembra o jornalista cubano Ulises Carbó Yániz, equivalia a uma façanha desportiva:

Aldeias inteiras desapareceram alegremente passadas a ferro e fogo pelos chamados "neocolonialistas" cubanos, representantes dos interesses pan-africanos da União Soviética, que ocasionaram o saque e o assassinato colectivo mais intenso e silencioso de que há memória na história do Continente. Ali também se experimentaram as primeiras armas bioquímicas. Às mais remotas aldeias arrasadas pelos castristas sequer chegaram os repórteres. Nem a CNN, nem a Associated Press, nem os serviços internacionais da Reuters ou da Interfax. Só a morte campeava. Um genocídio quase oculto, que terá de passar à história. Os generais de Castro apoderaram-se das minas de diamantes, do marfim e dos elefantes desmembrados [...].

Isto não é tudo: contra inúmeras aldeias usou-se o napalm, confirma o etnólogo cubano Carlos Moore, e foi tanto o sangue vertido por civis inocentes que milhares de soldados caribenhos enlouqueceram. Lamentavelmente, estes crimes de lesa-humanidade não estão certificados pela Amnistia Internacional e por outros grupos internacionais defensores dos direitos humanos.

(...) Neto descuidou da sua missão primordial que seria governar para a pluralidade, ou seja, para todas as vertentes do país e não para os da sua família partidária. Uma das suas primeiras disposições foi abolir todas as formas de associação sindical livre e impor um sindicalismo de cunho partidário. As estruturas da Igreja Católica em todas as arquidioceses, dioceses e paróquias foram atacadas pelo MPLA, sendo os seus padres molestados e as suas instalações e oficinas confiscadas.

Veja-se o caso da Rádio Ecclesia. O seu silenciamento ocorreu em 1978. Para a Igreja Católica angolana este facto representou inegavelmente um dos momentos mais fatídicos nos dezasseis anos a seguir à Independência nacional, já que durante este largo período ela viveu desterrada num "silêncio forçado e vigiado" e privada de meios para fazer ouvir a sua voz a favor da paz. O processo de devolução das suas estruturas, que incluía tipografias, só viria a ter lugar na década de 1990, se bem que até hoje ela continue a ser objecto de tácticas intimidatórias por parte do regime do MPLA.












(...) O MPLA, com efeito, colocou-se nos antípodas de tudo quanto havia proclamado no tempo da luta de emancipação, isto é, de que "[...] na Angola independente haveria lugar para todos os credos religiosos". Uma promessa indecorosa que os altos responsáveis do Movimento à partida não se dispunham a cumprir; somente os movia a preocupação de mobilizar as massas rurais e "[...] destruir nelas os preconceitos e os mitos". Destruição, entenda-se, exercida por métodos de força. Nem a actividade missionária nas aldeias, nomeadamente a assistência aos camponeses necessitados, escapou à cegueira do regime político, ao submeter as populações à sua "verdade" e ao seu pétreo controlo ideológico. Além de ameaçar, prender e espancar sacerdotes, a polícia secreta de Neto também os raptava. Idênticas violências se moveram contra outras confissões religiosas distintas do catolicismo. E também contra os grupos de consciência.

As Testemunhas de Jeová são, porventura, dos exemplos mais marcantes de uma minoria que experimentou sofrimentos inauditos. Por defenderem uma posição ética de rejeição da guerra e se negarem a alistar nas Forças Armadas, as instituições do poder perseguiram-nas implacavelmente, não lhes reconhecendo o direito à protecção física cidadã nem à liberdade de crença. As atrocidades cometidas pela DISA, a polícia secreta, e pelos demais corpos policiais, incluindo as milícias da ODP, são inenarráveis. Cada vez que esta última corporação descobria um prosélito daquela comunidade cristã não-trinitária, golpeava-o com facas e catanas e lacerava-lhes as carnes e as vestes. Em 1977 a penitenciária de São Paulo, em Luanda, acolheu uma centena e meia destes presos de consciência que foram submetidos às mais bárbaras condições carcerárias. Em menos de vinte e quatro horas despojaram-nos de toda a sua humanidade: torturaram-nos com uma malvadez insana e reduziram-nos a sangue e a farrapos. Além de os obrigarem a comer em latas imundas, impediam-nos de cuidar da higiene corporal. Pareciam espectros, tal a imundície que os cobria. Por fim, uma noite embarcaram-nos em camiões da Polícia de Fronteira e levaram-nos para a morte.

(...) Apenas a Igreja metodista Unida se salvou destas perseguições. Sem qualquer dúvida, uma benevolência do regime. Primeiro, devido à formação protestante de Neto; segundo, devido ao auxílio prestado pelas igrejas protestantes dos Estados Unidos ao MPLA no período da luta armada; terceiro, devido aos gestos de servilismo do seu bispo, Emílio Júlio Carvalho, naturalmente propenso a deleitar o ego do príncipe.

Os poucos jornais que sobreviveram depois da Independência acabaram por ser encerrados e apenas sobrou o Jornal de Angola, de imediato transformado em orgão de propaganda do aparelho do Partido e do Governo. A delação e a vigilância sobre os mínimos gestos dos cidadãos tornaram-se traumáticos e todos os dias a televisão e a rádio expeliam ameaças contra os que apelidavam de "reaccionários" e"bandidos ao serviço do imperialismo internacional". Vivia-se um clima social de permanente intimidação e censura a todos os níveis, bastava pronunciar uma palavra tida por oficialmente heterodoxa para se ser crismado de "inimigo do povo" e preso. A ração de terror era tal que até, em assembleias alargadas do MPLA, os militantes [mesmo discordando de directivas superiores] se calavam por medo. Um dia, um alto dirigente tentou espicaçar este medo, dizendo: "Falem, falem que ninguém vos prende".

Passividade e resignação perante todo o tipo de desumanização, eis numa palavra o que se sentia no reino de Neto. (...) O terrorismo de Estado, com todo o cortejo de prepotências e homicídios, trazia os súbditos escravizados ao jugo do MPLA; possuídos de um espírito maligno, os dirigentes tentavam reduzir ou alterar a consciência dos homens.













Ver aqui







































Umas das lições primordiais de Nelson Mandela está condensada no seguinte pensamento: "um nobre desígnio não se pode almejar por meios ignóbeis. Processos práticos, sim, venais, nunca"».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«O historiador angolano Carlos Pacheco escreveu numa obra publicada em 2000:

Com efeito, no campo da Kibala, no Kuanza-Sul, chegou a preparar-se naquele ano [1977] com valas previamente abertas, o extermínio de quadros técnicos angolanos - médicos, engenheiros, professores e outros -, todos partidários activos do MPLA. Outros jovens passaram também por esse campo, alguns deles portugueses, que não sendo embora militantes daquela facção política, tomaram partido por outros grupos de esquerda, aparentemente autónomos. Também eles suportaram sofrimentos indescritíveis até serem libertados em 1980, sem que jamais as autoridades portuguesas tivessem esboçado qualquer gesto para os resgatar ou minorar a sua situação.

Conheci-o num calabouço infernal angolano. Falei com ele num dos piores períodos da minha permanência nas prisões angolanas, aquele em que fui violenta e repetidamente interrogado e torturado. Recordo bem aquele dia em que estava a conversar com Carlos Pacheco à porta da cela quando apareceu um grupo de soldados gritando com ar de gozo o meu nome. Pensei tratar-se de uma brincadeira, mas o Carlos avisou-me de que aquilo era para ser tomado a sério.

Fui levado para uma sala de interrogatório onde estava o agente Carmelino e o torturador Limão. O cenário era brutal. Ainda estavam lá o Manuel Campos e o Fernando Correia. O calibre da pancadaria era tal que as suas cabeças feridas pareciam agora ter o dobro do tamanho. Tinha chegado a minha hora. Foi uma hora eternizada de agressões múltiplas com um cano estriado. Cada golpe inundava o meu corpo de sangue e hematomas - a camisa azul que o Costa me tinha dado ficou em farrapos.




Américo Cardoso Botelho na prisão


Fiquei em tal estado que já só pude falar com o Carlos Pacheco no dia seguinte. A propósito do que me tinha acontecido, Carlos Pacheco referiu-se a um episódio da sua estadia ali na Cadeia de São Paulo. Chamaram-no ao Comando. O capitão Carlos Jorge estava lá para o receber. Carlos Pacheco pensou que a gentileza do acolhimento o livrasse do pior, mas bastou uma resposta não esperada para o verniz estalar. Carlos Jorge ordena a violência. Os torturadores de serviço despejaram-lhe nas nádegas e nas costas violentos golpes com uma barra de ferro. Deixaram-no descansar um pouco, para depois avançarem com um cavalo-marinho, vergastando todo o seu corpo.

Estas narrativas de violência, mesmo se as razões da nossa prisão correspondiam a histórias diversas, irmanavam-nos no juízo de que estávamos perdidos nas entranhas de um regime que repetiu durante anos crimes contra a humanidade.

O Natal de 1978 coincidiu com um período de encruamento das acções repressivas. O famigerado Pitoco veio a São Paulo tratar, pessoalmente, do caso de alguns ocas. Soube que nesses interrogatórios estiveram presentes: o Pereira, o Gunga, o Inácio e Onambwe. O insuportável começou no dia 23 de Dezembro, mas a noite de 24, véspera de Natal, foi a das maiores barbáries. Vi regressarem às celas corpos de jovens com o tronco cilindrado pela mais indescritível violência, a carne viva, banhada em sangue; os rostos amassados pela violência torpe dificilmente se podiam identificar; alguns traziam os testículos com marcas de queimaduras.

E ali ficavam pelas celas, gritando as suas dores, sem qualquer auxílio. Da vizinhança não podiam esperar ajuda pois, em muitos casos, os próximos padeceriam do mesmo. Aos outros, situação em que estava incluído, estava vedada a possibilidade de entrar naquele corredor da morte. Como tinha a porta da minha cela aberta (Vasconcelos, enfermeiro que dormia ao meu lado, tinha convencido o Comando de que sofria de claustrofobia) pude, no entanto, ver as vítimas carregadas pelos "conduzes". Vasconcelos ao meu lado, não se atrevia sequer a voltar a cabeça na direcção da porta, paralisado de medo.

(...) No dia 4 de Março de 1978, chamaram ao Comando todos os portugueses que estavam em São Paulo. Os agentes queriam comunicar a nova acerca da próxima libertação dos portugueses, em consequência de um acordo entre o Estado angolano e o Estado português. Queriam por isso identificar-nos com precisão e conhecer a relação dos nossos bens em Angola. O fito era claro, a apropriação. Mas estas intervenções junto dos portugueses mudavam frequentemente de tom.

























Luanda (1971). Ver aqui



Luanda (Avenida dos Combatentes)


Não muito tempo depois, também em São Paulo, no dia 23 de Março de 1978, mais uma vez, as minhas notas quase me condenavam definitivamente. Os soldados tinham sacado às suas celas praticamente todos os portugueses. Empurraram-nos até ao Comando para renovar um recado já conhecido: "Vocês não podem escrever papéis... ouviram? E não se esqueçam que quando forem embora ainda cá ficam outros portugueses!", vociferava o tenente Miranda.

Um outro agente, cujo nome não sabíamos, acrescentou: "O Mário Rui, o português que saiu daqui de São Paulo há pouco tempo, foi um ingrato. Aqui foi tratado com todos os privilégios, mas quando chegou a Portugal foi logo dizer mal desta merda". Um riso surdo atravessou os nossos olhares, porque estas palavras finais nos pareciam bem expressivas.

Em causa parecia estar a circulação em Portugal de informações sobre as cadeias angolanas, mas não chegámos a apurar o conteúdo dessas notícias e onde teriam sido publicadas. Temi que a vigilância sobre as escritas se tornasse mais apertada.

(...) Kundi Payama teve à sua responsabilidade os Ministérios da Segurança e do Interior. Nessa qualidade visitou, no dia 15 de Dezembro de 1979, a Cadeia de São Paulo. Naquela época, São Paulo era uma espécie de Babel onde se cruzavam proveniências muito distintas: portugueses, ingleses, americanos, sul-africanos, um italiano, zairenses, tanzanianos, nigerianos, são-tomenses, entre outros. Ao todo, posso afirmar com segurança ter conhecido nas prisões angolanas presos de vinte e oito países.

(...) Todo este livro fala de uma geografia do terror. As prisões angolanas tinham-se tornado um microcosmo onde se encontravam os rastos de um holocausto que incinerou o território angolano. Algumas províncias por razões estratégicas e étnicas foram particularmente violentadas.

Visitei Cabinda, pela primeira vez, em 1961. A província de Cabinda, abrangendo todo o enclave de Cabinda, era habitada, na altura da independência, por povos banto da tribo Bakongo, provenientes do antigo Reino do Congo. A sua riqueza, num território de 7283 quilómetros quadrados, era bem conhecida, o petróleo, a floresta do Maiombe. Foi pela mão dos padres do Espírito Santo que conheci o Sr. António Manuel Zebi Madeka, pai do Bispo Resignatário de Cabinda, D. José Paulimo Madeka, ao tempo padre em Landana. O "pai Madeka", assim o chamavam, era o melhor conhecedor da sabedoria cabinda, como se reconhece na obra Sabedoria cabinda, símbolos e provérbios (1968).

Mas este povo de tão ricas tradições conheceu de forma muito particular as agressões da política do MPLA, apoiada na força cubana. Hoje, não há um cabinda que não tenha na família um caso de perseguição política, de desaparecimento, de atentado, ou de prisão.

O MPLA e as forças militares que o apoiavam assaltaram o Quartel-General do governo colonial, em Cabinda, no dia 2 de Novembro de 1974. Foi aliás necessário enviar de Luanda um avião para libertar o brigadeiro Themudo Barata, sequestrado em tais circunstâncias. Como conta João Coito em crónica jornalística, a despedida do brigadeiro teve, entre as emoções, qualquer coisa de profético:

"Como não sentir o abraço final que lhe deu Gaspar, serviçal do palácio com nome de rei mago, a murmurar-lhe ao ouvido: 'Não vá, não vá, senhor general, que nos matam a todos, não vá, salve-nos...' Súplica profética que deixou os dois homens de lágrimas nos olhos".








(...) O nome dos cubanos misturava-se também com os acontecimentos ligados às represálias do 27 de Maio. Neste caso a notícia vinha pelo português Oliveira e dizia respeito a um Major cubano, o Gamboa. Tinham chamado de urgência o Oliveira ao Comando para fazer uma qualquer reparação. Foi nessa altura que foi confrontado com a cena: o cubano tinha as mãos à volta do pescoço do torturado, apertava-o e abanava-o até ao sufoco, enquanto o tenente Pereira carregava de socos o estômago do desgraçado. O Major ficou um pouco hesitante quando viu o português, mas não o suficiente para pôr termo à sessão de pancadaria. Segundo o relato de Oliveira, o preso saiu dali já mais morto que vivo. Foi metido dentro de uma daquelas ambulâncias de má reputação, essas que levavam os presos para os lugares de fuzilamento ou para qualquer outro sítio de execução sumária.

O Rosa descreveu-me várias situações de despacho para a morte. Depois de bem amassados, já quase nus, apenas com umas cuecas, eram enfiados na ambulância (de triste memória, mas ainda assim lembrada até em pormenores como o da marca e da matrícula - Volkswagen, AAI-88-42 -, que bateu certamente o recorde do transporte de condenados ao fuzilamento).

(...) Foi pelas palavras de Rui Castro Lopo que, pela primeira vez, ouvi falar neste enfermeiro do Hospital Maria Pia de Luanda, homem para uns cinquenta anos, filho de portugueses que nunca tinham visitado Portugal, preso e torturado na Casa de Reclusão. Segundo Castro Lopo, os seus bens eram o alvo principal, e já havia destinatário certo: o agente França. Contava-me ele que ainda tinha passado um mau bocado por causa das palavras que usou para tentar defender o que lhe pertencia: "para roubar não é preciso bater".

Muitos destes casos terminavam com a expulsão para Portugal, estratégia usada para que fosse mais fácil repartir os bens mais valiosos e as casas. Depois de expulsos, perdiam os bens, ao fim de quarenta e cinco dias, que tinham deixado em Angola. Como, antes disso, não havia qualquer possibilidade de a Embaixada conceder o visto de entrada, não havia entraves ao saque.

Este caso aconteceu em 1976. Em Outubro desse ano Castro Lopo passou para São Paulo e deixou de ter informações muito precisas acerca daquele enfermeiro: uns diziam que estaria à beira da loucura, outros que já teria sido expulso para Portugal.

(...) A desfiguração do inimigo é, desde há muito, uma estratégia de implementação da violência - é mais fácil agredir alguém que foi desfigurado e a quem se retirou o estatuto de humanidade. A esta observação corresponde um dos casos narrados por Kilombelombe.

No contexto do confronto entre o MPLA e a FNLA, foi divulgada a notícia de que teriam sido encontrados corações humanos nas casas abandonadas pelos membros da FNLA, em Luanda - muitos destes estavam na capital angolana dando cumprimento a alguns dos aspectos dos acordos de Alvor.  O alarme foi dado pelo MPLA, com ampla divulgação, esperando, com a suspeita de antropofagia, horrorizar a população. Ora, a verdade veio a ser revelada pela denúncia que uma médica portuguesa da maternidade de Luanda não pôde calar. Fernanda Sá Pereira - casada com um engenheiro português cuja identidade não descobri - sabia que os corações tinham sido roubados dos frigoríficos dos hospitais, gesto de uma desumanidade impensável, pois, naturalmente, comprometeu o uso desses orgãos para fins terapêuticos.

















A frontalidade de Fernanda Sá Pereira valeu-lhe a prisão e, pouco tempo depois, a morte - foi enterrada no campo da Sapu. No dia 15 de Dezembro de 1979, falei sobre este caso com o Ramos, que conhecia bem o local onde tinha sido enterrada aquela médica e me confirmou a notícia de que tudo aquilo não tinha passado de uma manobra do MPLA, informação igualmente corroborada pelo Vasconcelos.

Pelo que pude anotar, também o padre Leonardo Sikufinde terá tido conhecimento destes factos. Comentava-se que ele tinha protestado de forma clara contra a injustiça que havia conduzido à morte aquela mulher e contra o boato infame que o MPLA tinha fabricado para denegrir os fnlas.

Kilombelombe, por sua vez, adiantou mais informações: que cabia a Hélder Neto - esse alto funcionário da DISA que se suicidou a 27 de Maio de 1977 -, coadjuvado por Carlos Jorge e Pitoco, a responsabilidade desta morte iníqua; mas que a ordem para o roubo dos orgãos humanos teria sido dada pelo próprio Agostinho Neto, mentor de toda a operação».

Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).


(...) Apesar de Angola respirar um clima de paz militar, nos últimos tempos passam-se ali coisas tão estranhas que a minha esperança de começar a ver o país a reconciliar-se consigo próprio e em liberdade permanece toldada de incertezas.

(...) Angola, infelizmente, está muito doente nas suas entranhas, em parte talvez por responsabilidade das suas elites políticas e culturais que se revelam incapazes de responder aos desafios vitais de como construir um Estado democrático e moderno. Quando seria de esperar nesta etapa do percurso histórico nacional uma lenta e firme aplicação de políticas liberais tendentes a reforçar e a tornar coesas as diversidades societárias [por alargamento da base de partilha de direitos entre os cidadãos], o que se vê é exactamente o oposto. Deparamo-nos com práticas que, de uma forma ou doutra, põem em causa modos de coexistência e de solidariedade entre comunidades e culturas distintas, tendência que, a continuar, acabará por ferir de morte direitos fundamentais dos indivíduos e, acto contínuo, provocará fracturas na possibilidade de unidade nacional.

São responsáveis por esta situação grupos políticos e sociais [com peso significativo na sociedade angolana] que não se cansam de forma subreptícia de apregoar na imprensa, por recurso a porta-vozes especialmente escolhidos, que os nativos de cor negra finalmente detêm a primazia sobre os indivíduos de pele mais clara no preenchimento dos lugares de maior proeminência no aparelho do Estado; e que o acesso às funções de presidente da República e primeiro-ministro deve naturalmente constituir um privilégio reservado aos "angolanos verdadeiros" [entendidos como sendo os naturais dos grupos étnicos dominantes]; enquanto os mulatos, incorporados no Estado [pois de brancos nem se fala], se devem contentar com direitos subalternos.













Estou pessimista e não vaticino nada de edificante nesta cruzada étnica absolutista contra as comunidades minoritárias em que sequer se poupam já figuras históricas da luta de libertação, embora o fenómeno não seja propriamente uma novidade. Depois da Independência nacional esta corrente ideológica - que tem na teoria da raça e da etnia o seu principal pressuposto - ganhou novos matizes e, nos anos mais recentes, cresceu com um ímpeto renovado. Os seus adeptos, talvez menos constrangidos pela política do Partido no Poder que num passado recente impunha algumas censuras a tudo quanto fossem manifestações explícitas de segregacionismo, hoje não escondem querer para Angola uma identidade histórica única, a das maiorias, que consideram ter-se interrompido com a colonização. Ou seja: sonham com um Estado nacional negro, genuíno. De acordo com a sua concepção identitária, a pátria é uma realidade assente na raça negra ou pertença exclusiva do povo negro, razão por que só aos cidadãos desta cor compete arquitectar o futuro do país e estruturar a sua cultura e identidade nacional.

Os gérmens modernos deste "mito narcisista da negritude", para usar o conceito de Homi Bhabha, remontam ao período de insurgência nacional contra Portugal (1961-1974), durante o qual nenhum dos movimentos de guerrilha - MPLA, FNLA e UNITA - ficou imune aos abalos provocados pelos atavios da pureza racial e étnica e pelo preconceito sobre as minorias. A FNLA terá sido porventura a organização que mais sofreu em defecções e perseguições [de mulatos e também de negros], justamente por causa do seu pendor genético fortemente regionalista. A UNITA, por sua vez, desde o início impôs um dique à entrada de pessoas de tez clara e empenhou-se em campanhas de detracção contra o MPLA, classificando este agrupamento de "associação de brancos e mulatos vendidos à URSS".

Ainda assim, nem o próprio MPLA, o mais plural e híbrido na sua composição cultural, deixou de enfrentar verdadeiros focos de agitação étnica e tribal, sobretudo na 3.ª e 5.ª Regiões [Frente Leste]; a tal ponto que as etnias do Centro e Sul de Angola acusavam a direcção de chamar para os cargos de cúpula pessoas de extracção euroafricana ou pessoas de etnia bakongo. O próprio Lúcio Lara, figura de topo da estrutura do poder, durante a luta armada foi alvo de forte contestação por parte de chefias guerrilheiras adstritas à Frente Norte [2.ª Região] que intentaram desacreditá-lo, apodando-o de descendente de portugueses e afirmando que ele jamais iria travar a luta de libertação até às últimas consequências em virtude de não estar disposto a virar-se contra os próprios progenitores. Os conflitos interétnicos atingiram, deste modo, uma tal dimensão no final da década de 1960 que o fenómeno acabou por provocar a desagregação da luta armada na Frente Norte e também na 2.ª Região [Cabinda]. Os guerrilheiros do Norte queixavam-se de todo um somatório de injustiças que os atingiam, desde acusarem-nos de serem pouco devotados à causa de libertação nacional, assim como agentes da FNLA».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«Quando a Nação portuguesa se foi estruturando e estendendo pelos outros continentes, em geral por espaços livres ou desaproveitados, levou consigo e pretendeu imprimir aos povos com quem entrara em contacto conceitos muito diversos dos que mais tarde caracterizaram outras formas de colonização. As populações que não tinham alcançado a noção de pátria, ofereceu-lhes uma; aos que se dispersavam e desentendiam em seus dialectos, punha-lhes ao alcance uma forma superior de expressão - a língua; aos que se digladiavam em mortíferas lutas, assegurava a paz; os estádios inferiores da pobreza iriam sendo progressivamente vencidos pela própria ordem e pela organização da economia, sem desarticular a sua forma peculiar de vida. A ideia da superioridade racial não é nossa; a da fraternidade humana, sim, bem como a da igualdade perante a lei, partindo da igualdade de méritos, como é próprio de sociedades progressivas».

Oliveira Salazar («Portugal e a Campanha Anticolonialista», SNI, Lisboa, 1960).













O "Gulag Angolano"


Aliás, note-se que, no 11 de Março de 1975, o PCP já tinha enviado funcionários, quadros e militantes para Angola na sequência de uma situação francamente favorável às forças portuguesas no período anterior à revolução comunista de 74. Por outras palavras, a entrega do Ultramar Português acabou por ser exercida por forças revolucionárias que compeliram à deserção dos militares nas três frentes de combate: Guiné, Angola e Moçambique. De resto, ressaltam alguns elementos particularmente relevantes em Segredos da Descolonização de Angola, de Alexandra Marques. Vejamos alguns deles:

1. O número de mortos em Angola, contabilizados a partir de 4 de Fevereiro de 1961, fora de 3 423, «menos de metade dos quais em combate e, entre estes, a maioria por rebentamento de minas. E não menos importante é o facto de que, após o 25 de Abril de 1974, terem morrido, entre Maio e Agosto do mesmo ano, mais soldados portugueses do que durante todo o ano de 1973 (16).

2. A entrega de armamento português ao MPLA e à UNITA (17) fora autorizada por Lisboa.

3. A entrega de Moçambique dera-se com base numa proposta redigida «pelos dirigentes da Frelimo (Joaquim Chissano e Óscar Monteiro) e por Almeida Costa, na última noite, no seu quarto de hotel com uma garrafa de conhaque». Aliás, Melo Antunes foi quem, efectivamente, delegou em Almeida Costa a tarefa de pôr por escrito a transferência de poderes para a Frelimo prevista e realizada de 7 de Setembro de 1974 a 25 de Junho de 1975 (18).

4. O descontentamento fora bem evidenciado pelos portugueses quanto à descolonização de Moçambique. Segundo o sector de Comando de Huíla das FAP, as «Forças Armadas e membros do governo provisório são repetidas vezes insultados e apelidados de “traidores” e acusados de “estarem a vender Portugal”» (19).

5. A expulsão dos trabalhadores bailundos do norte de Angola tivera por objectivo paralisar a economia e a presença portuguesas (20).

6. Incidentes terroristas no norte e leste de Angola foram cometidos contra a vida e os bens dos portugueses: tiros, catanadas, espancamentos, assaltos a fazendas, vandalização e destruição das fontes de riqueza, dispersão e depredação de instalações, saques, emboscadas, assassinatos, barragens nas estradas e entradas furtivas em residências habitadas, roubos de viaturas, sanzalas saqueadas e destruídas, apedrejamentos, mulheres brancas violadas, pessoas alvejadas, rebentamentos fortuitos de granadas e explosões de morteiro, banditismo e todos os actos de barbárie inimagináveis (21).
































Fila para comprar bilhetes na TAP em Luanda














7. A entrada de movimentos armados em Luanda partira da autorização do almirante Rosa Coutinho:«E autorizei mais: cada um, para se sentir em segurança, se fizesse acompanhar por uma delegação, uma força militar que não poderia exceder 600 homens, o que já era bastante». Despoletara assim o «terrorismo urbano» exemplificado no seguinte trecho: «Chefiada por Wilson dos Santos, a delegação da UNITA chegou (...) domingo (10 de Novembro), sendo esperada por milhares de pessoas, incluindo uma “elevada percentagem de brancos”. A festa começara na véspera “com largas dezenas de automóveis que percorreram a cidade durante toda a noite, precedidos de outras tantas motorizadas, buzinando insistentemente, soletrando com os sons da buzina U-NI-TA”. Quando o avião proveniente do Luso parou na pista, uma mancha humana rodeou o aparelho por todos os lados “transformando-o numa pequena ilha naquele mar imenso de gente, com bandeiras e posters com o rosto de Savimbi”. “Formou-se depois um cortejo imenso que, durante várias horas, percorreu a cidade, agitando bandeiras da UNITA. Antes da chegada da comitiva, os apoiantes da UNITA foram atacados. Na Avenida de Lisboa e em direcção ao aeroporto verificaram-se correrias desordenadas das pessoas em todos os sentidos”. Fugiam das “agressões à catanada e das ameaças” dos que tentavam impedir a multidão de chegar ao aeroporto. Foram ouvidos tiros de pistola, ocorreram “os já rotineiros apedrejamentos de viaturas” e foram erguidas barricadas “na estrada do Catete, do Cucuaco e na Avenida do Brasil”. Nesse dia, Luanda foi submersa por uma onda de violência nunca vista. Tinha havido incidentes “no aeroporto, imediatamente antes da chegada da delegação da UNITA, [...] iniciados por elementos com braçadeiras do MPLA”, que negava serem “elementos seus”. A 365 dias da independência começavam os ventos de guerra que varreriam Angola nos meses seguintes. Desde o dia 10 confirmaram-se 26 mortos e 104 feridos. A violência alastrara a vários pontos da capital: “O clima de tragédia transformou Luanda numa cidade em estado de sítio, com barreiras em numerosas ruas, tiroteio cerrado em vários locais, correrias de ambulâncias, apelos a dadores de sangue, chamadas de médicos e de pessoal de enfermagem, transportes públicos paralisados, bairros isolados por razões de segurança, etc.”» (22).

8. Em encontros secretos e diligências confidenciais, os movimentos armados pediram financimento e apoio bélico aos Estados não-alinhados, aos membros da NATO e do Pacto de Varsóvia. E para «além das armas roubadas dos paióis do Exército português, os Movimentos apoderaram-se das que tinham pertencido à OPVDCA [Organização Provincial para a Defesa Civil de Angola], armazenadas em locais de fácil acesso e cuja localização era conhecida por todos. E foram recebendo quantidades maciças que chegavam por via aérea, terrestre e marítima. O armamento provinha do Congo, do Zaire e da Tanzânia e era destinado ao MPLA e à FNLA. A UNITA, sem apoios externos de relevo, solicitava a Portugal que lhe deixasse o armamento» (23).

9. Agostinho Neto recebia apoio financeiro da União Soviética, da Argélia, das nações árabes, da Escandinávia e contava com «alguns apoios prestados pela Europa do leste e da OUA [Organização de Unidade Africana]» (24).

10. Segundo o director para os Assuntos Africanos no Ministério das Relações Exteriores de Cuba em 1974 – mais tarde exilado nos EUA –, os soviéticos incrementaram o seu apoio ao MPLA nos últimos meses de 1974 (25).

11. Em 1974, Portugal chegara a investir no Ultramar seis milhões de contos «em ajudas não reembolsáveis» (26).


































12. Rosa Coutinho chegou a declarar que dera dez milhões de escudos mensais aos movimentos armados de Angola. «Em 1997, o Almirante justificou a mensalidade concedida nos seguintes termos: “Atribuí a cada um dos três movimentos um subsídio mensal de dez mil contos, equivalente a 200 000 contos actuais. Quem mais beneficiou com isso foi o MPLA, pois não tinha nada”» (27).

13. A existência de um anexo secreto ao Acordo de Alvor previa a detenção, julgamento e punição dos portugueses e angolanos que tivessem pertencido às organizações de segurança e de ordem pública. Por outras palavras, os movimentos armados decidiriam dos «casos merecedores de indulgência e os que simplesmente acabariam em julgamentos sumários, tribunais populares ou esquecidos nos calabouços das prisões» (28). Este acordo, assinado entre o Governo revolucionário de Lisboa e os movimentos terroristas de Angola no Algarve, em Janeiro de 1975, «não era “afinal mais do que a confirmação do protocolo de Mombaça”: traduzia o que os líderes angolanos tinham concertado no Quénia; os portugueses tinham sido vencidos à mesa das negociações» (29).

14. Uma vez desmanteladas as Forças Armadas Portuguesas, entrariam em Angola os armamentos e as hordas estrangeiras de zairenses, cubanos e russos disseminados e infiltrados em campos de treino espalhados pelo território. Aliás, como escreveu Savimbi: «A nenhum observador atento passara despercebido o desejo de supremacia que cada um dos ML procurava obter sobre os restantes. Daí a uma corrida ao armamento foi um abrir e fechar de olhos» (30).

15. O terror e a intimidação – transportes maltratados, acessos aos centros urbanos cortados, rezes esquartejadas, circuitos de comercialização destruídos, assaltos a operários nas fábricas, disparos sobre condutas de águas, ataques a hospitais, fuga de técnicos e saneamento de elementos válidos da administração pública – tiveram por finalidade a destruição total da economia angolana (31).

16. O tiroteio alastrara-se a inúmeras povoações distritais por meio de saques, pilhagens e edifícios destruídos. A cidade de Malange, por exemplo, «tornara-se um imenso cemitério a céu aberto: “Milhares de pessoas mortas, na sua maioria africanos, que estavam ainda insepultas quando se abandonou a cidade. O Batalhão apenas conseguiu enterrar numa vala comum com cerca de 100 metros, cobrir de cal viva ou queimar no local onde se encontravam, umas escassas centenas de mortos”» (32).

17. A tropa portuguesa, por ordens de Lisboa, agia no sentido de fazer o jogo do MPLA (33). A tropa portuguesa era simultaneamente desrespeitada pelos nacionalistas e pelos civis revoltados pela situação criada: «São constantes as solicitações, quer para actuarem como medianeiras, quer para colaborarem na segurança das inúmeras colunas que se formam sempre que há incidentes em qualquer local, para evacuar as populações desalojadas, para proteger a saída dos elementos dos Movimentos dos locais em que os confrontos não lhes foram favoráveis. O mais grave é que [...] são cada vez mais frequentemente vítimas de atitudes hostis que chegam à própria agressão física, o que atendendo à forte desmotivação em relação a um processo que lhes escapa pode ter graves consequências» (34).


Henry Kissinger

18. Os americanos, perante o pedido de auxílio feito por Lisboa para transportar os deslocados angolanos, exigiam a Costa Gomes que, para o devido efeito, pusesse fim ao governo comunista de Vasco Gonçalves. Caso contrário, nada feito, até porque, segundo Kissinger, os Estados Unidos não eram «uma instituição de caridade» (35). Aliás, o director do Gabinete de Informação e Pesquisa Americano, William Hylland, teria sido muito explícito ao afirmar que o «auxílio [americano] deve estar bem amarrado aos objectivos políticos pretendidos tanto em Lisboa como em Angola, do que ser ditado por puras razões humanitárias ou por receio do criticismo dos congressistas» (36).

 19. De resto, a «Associated Press estimava que tivesse morrido em Angola 10.000 pessoas nos confrontos pelo controlo do território antes da retirada das autoridades portuguesas, segundo disse o embaixador americano numa cerimónia do Rotary Club, em Telavive. O repórter polaco em Luanda relatava que a cidade se tornara uma imensa lixeira fétida e pestilenta, onde o calor e a humidade aceleravam a decomposição dos detritos e dos animais mortos. “Não havia médicos nem um único hospital ou farmácia abertos”. E no quartel dos bombeiros não se via vivalma; os bombeiros portugueses tinham partido no final de Setembro [de 1975] e os únicos 30 elementos que tinham ficado embarcariam para Portugal na primeira semana de Outubro» (37).

Enfim, tudo se resumia a uma sangrenta herança que os revolucionários de Lisboa, em conivência com os movimentos terroristas, deixariam para a posteridade com milhares de mortos pelo caminho. E de uma herança que não viera tão-só do 27 de Maio de 1977, como querem fazer crer os co-autores de Purga em Angola. Demais, o retrato que traçavam em 2007 continua em muitos aspectos actual, a saber:

«Luanda apresenta-se aos olhos do visitante, conhecedor da cidade a partir dos postais do tempo colonial, como uma “cidade desfeita”. Nos prédios, os elevadores há muito deixaram de funcionar. E os dejectos, correndo ao longo das paredes dos prédios, abrem estranhos e tortuosos caminhos.

Como que somos transportados para um burgo medieval europeu. As ruas perderam o asfalto. E, em muitos lados, os esgotos correm a céu aberto.

Jovens e idosos vasculham nos caixotes do lixo à procura de restos de comida. Impressiona a miséria desmesurada, num contraste gritante com os carros de luxo dos últimos modelos, a passarem pelo meio de deficientes de guerra, de homens e de mulheres famintos, de dezenas de jovens em idade escolar carregando nas mãos produtos que tentam vender à força a quem passa.

Ilhotas de guardados condomínios de luxo são cercadas por um mar de muceques.

O lixo está por todo o lado, e a cidade parece não poder viver sem ele. No Roque Santeiro, filas dos mais variados produtos erguem-se num mar de lixo.







Angola (1999)























Viana, em tempos um pólo industrial, está abandonada e decrépita. E nos arredores da cidade, Kifandongo, monumento da resistência, alberga pessoas a viverem nos buracos da falésia, numa miséria confrangedora.

Muitos dos “libertadores” sonhavam com a casa, o carro, os privilégios e as posições dos colonos. Conquistaram-nas e tornaram-se piores do que estes.

Desculpar-se-ão com a guerra. Só que a guerra, que tantos matou e estropiou, alimentou um punhado de pessoas, que se tornaram insultuosamente ricas.

(...) Num país com enormes riquezas naturais e com condições agrícolas que permitiriam alimentar toda a África, mais de metade da força de trabalho está desempregada e mais de dois terços da população vive abaixo da linha de pobreza» (38).

E que mais se poderia esperar se tudo já estava, eventualmente, previsto a 10 de Novembro de 1975, quando os chefes militares portugueses, depois de arreada a bandeira «com toda a pompa e circunstância», «entraram depois numa lancha que os levou ao paquete Niassa, onde esperaram pelo anoitecer: “Jantámos a bordo com os navios fundeados e, quando faltava um quarto para a meia-noite, âncoras para cima e começou-se a andar”. Em Luanda os tiros para o ar celebravam a independência, no Quifangongo a derrota infligida ao ELNA. Para Gonçalves Ribeiro era uma “imagem dantesca” a que se observava ao largo: balas tracejantes iluminando o céu de Luanda» (39). Dava-se assim o desfecho inglório da última guerra travada pelos Portugueses (40).



Notas:

(16) Cf. Alexandra Marques, Segredos da Descolonização de Angola, D. Quixote, p. 49. «Segundo a Associação de ex-Combatentes do Ultramar tinham morrido em África 11.000 militares e sido feridos 30.000. Os números oficiais ficavam muito aquém: teriam perecido 7.674 militares, a esmagadora maioria do Exército. Em Angola (entre Maio de 1961 e 30 de Abril de 1974), tinham tombado em combate 4.788 militares, dois terços dos quais naturais da Metrópole. Mais de 1.210 teriam falecido em acidentes e 255 por doença. Quase 28.000 combatentes metropolitanos tinham sido gravemente feridos, 4.472 dos quais em Angola» (ibidem, pp. 374-375). De resto, o major Vítor Alves também referira que «”o número de vítimas provocado desde Março [de 1975] em Angola já era superior ao causado pela guerra colonial naquela ex-colónia”. Ferreira de Macedo falara em 2.000 a 3.000 mortos, mas ter morrido durante três meses mais gente do que em 14 anos de guerra colonial era um termo pouco lisonjeiro para os nacionalistas» (ibidem, p. 320).








(17) Ibidem, p. 18.

(18) Ibidem, pp. 51-52.

(19) Ibidem, p. 69.

(29) Ibidem, p. 69.

(21) Ibidem, pp. 80-87.

(22) Ibidem, pp. 97-101.

(23) Ibidem, p. 141-142. Quanto à UNITA, as FAP chegariam a dar «”1.800 espingardas G-3, alguns morteiros, armas semiautomáticas e uma variedade de outro tipo de armamento, juntamente com tonelada e meia de munições de uma base do Exército nos arredores de Luanda”» (ibidem, pp. 320-321).

(24) Ibidem, p. 146.

(25) Ibidem, p. 150. «O MPLA beneficiava do “apoio de vários países comunistas: União Soviética, Jugoslávia e Checoslováquia através da Zâmbia, Tanzânia e do Congo”, concedido em armamento e em frequentes cursos de especialização: “A necessidade de aumentar a curto prazo a sua capacidade militar, a fim de fazer face à posição de força da FNLA, parece ter determinado uma nova aproximação do MPLA à URSS”, o que era comprovado pelo “recebimento de vários carregamentos de material de guerra provenientes não só da União Soviética como de outros países comunistas”, como a Jugoslávia e a Checoslováquia. A ligação excessiva a Moscovo poderia, no entanto, acorrentá-lo a “um enfeudamento demasiado pesado” e restringir a sua “independência política”, além de poder inibir o auxílio “de outros países que embora progressistas não querem ser aliados da URSS neste tipo de apoio”, referia a CCPA. Brazzaville (que pouco apoio lhe dera durante a guerra) “procurou a partir do 25 de Abril que [o MPLA] transferisse os seus efectivos para o interior de Cabinda”. O Congo continuava “a permitir o desembarque de material de guerra no porto de Ponta Negra” e que tivesse um “importante centro de treino em Dolisie”. A Tanzânia facilitava a passagem “de armamento e equipamento destinado ao Leste de Angola” e a Argélia era “uma espécie de mentor revolucionário do MPLA, proporcionando-lhe apoio político e diplomático”» (ibidem, p. 292-293).

(26) Ibidem, p. 149.







Assinatura do acordo que fixou a data da independência de Cabo Vede. Da esquerda para a direita: Mário Soares, Melo Antunes , Vasco Gonçalves, Pedro Pires, Almeida Santos e outros dois representantes do PAIGC.


(27) Ibidem, p. 160. «Em 1961 [o “Rosa Vermelha”] tinha sido preso pela UPA (liderada por Holden Roberto) e sujeito às mais ignominiosas sevícias. Almeida Santos justifica a “simpatia” do Almirante pelo MPLA não só devido às “afinidades ideológicas” com Agostinho Neto mas pelo profundo desdém que nutria pela FNLA: “Tinha sido aprisionado por soldados de Mobutu e tratado sem o mínimo respeito pelas leis da guerra que protegem os prisioneiros”. Capturado durante uma operação em curso na bacia hidrográfica no rio Zaire, foi passeado completamente despido pelas ruas. Dentro de uma jaula ou nu com uma corda ao pescoço – os entrevistados referem ambas as situações. A humilhação pública dos prisioneiros nativos capturados (despidos, de pulsos amarrados e atrelados por uma corda) era uma prática habitual das autoridades coloniais no Quénia e no Congo Belga. Os combatentes nacionalistas faziam, por isso, o mesmo aos seus prisioneiros. Preso por suspeita de espionagem ao entrar no Zaire sem visto, foi durante o cárcere sujeito a constrangedoras flagelações corporais. “Estive, quatro meses, preso. É claro que por vezes tive receio porque a minha vida esteve ameaçada. Fui exibido quase como uma presa de guerra pelas ruas... Foi humilhante e também foi uma lição que até teve consequências psicológicas”. Esta experiência justificaria (segundo Almeida Santos) que Rosa Coutinho sempre tenha aceitado “mal o risco de uma Angola sob a égide de Holden Roberto, cunhado do ditador Mobutu”. Orgulhava-se “de ter tirado Angola das garras de Mobutu”» (ibidem, p. 75).

(28) Ibidem, p. 210.

(29) Ibidem, p. 212.

(30) Ibidem, p. 218.

(31) Ibidem, p. 359.

(32) Ibidem, p. 388.

(33) Ibidem, p. 397.

(34) Ibidem, pp. 415-416.

(35) Ibidem, p. 419.

(36) Ibidem, p. 422.

(37) Ibidem, p. 482.

(38) Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, op. cit., pp. 184-185. Ainda sobre esta questão atente-se no seguinte: «A 17 de Agosto de 2012, num comício feito semanas antes das eleições, José Eduardo dos Santos admitia percalços na condução do país e fazia promessas. “Sei que a espera por esta Angola que vai crescer mais e distribuir melhor foi longa, mas de uma coisa podem estar certos: agora que vencemos a etapa mais difícil de reconstrução do nosso país, os novos avanços serão muito mais rápidos”.

As boas intenções do presidente de Angola são, contudo, questionadas pelos críticos. Um deles, porventura, o mais notório, tem sido o angolano Rafael Marques, jornalista, activista, director do site Maka Angola e autor do livro Diamantes de Sangue – Corrupção e Tortura em Angola (Tinta da China, Lisboa, 2012), que sem rodeios acusa o MPLA de saquear Angola para investir em Portugal. Numa entrevista publicada na edição de 16 de Setembro de 2011 do Jornal de Negócios, traçou um retrato demolidor do poder angolano. “O que se investe em Portugal não tem retorno em Angola. É um processo mais limpo para o Estado português, que facilita estas operações, embora grande parte delas sejam ilegais. As empresas portuguesas têm sociedades com dirigentes angolanos para investirem em sectores controlados por esses mesmos dirigentes, contra as leis angolanas e portuguesas e não há um caso único de abordagem legal sobre esta promiscuidade. Não há. E fazem-se grandes artigos, na imprensa portuguesa, sobre os luxos de Angola, sem pensar nos milhares de cidadãos que morrem à fome, porque não têm assistência básica ou educação, porque os recursos são desviados”.






Um analista político angolano, sob anonimato, acrescenta outros elementos. “O poder em Angola é unipessoal. Está concentrado em José Eduardo dos Santos, nos aspectos políticos, militares, económicos, sociais e até culturais. A Constituição aprovada em Fevereiro de 2010 veio apenas ratificar em lei o que já acontecia na prática. Trata-se de uma lei feita à medida, só e exclusivamente para José Eduardo dos Santos legitimar o seu incomensurável poder e serve-se do partido que domina sem qualquer oposição visível. Tudo passa por ele: desde os generais que ganharam a guerra contra a UNITA e Savimbi, devidamente recompensados; aos juízes, deputados e governantes. Para controlar tudo isto, constituiu um grupo de colaboradores, conhecidos vulgarmente por 'futunguistas' [antes do Palácio da Cidade Alta, a residência oficial do presidente angolano era na zona do Futungo de Belas], que exercem poderes paralelos, pois são temidos por parecerem ser os olhos e ouvidos do chefe”» (in Celso Filipe, O Poder Angolano em Portugal. Presença e influência do capital de um país emergente, Planeta, 2013, pp. 36-37).

Quanto ao investimento de Angola em Portugal, leia-se: «No primeiro semestre de 2012, de acordo com dados do Banco de Portugal, os angolanos aplicaram em território nacional 130,7 milhões de euros, enquanto os investimentos em Angola se ficaram pelos 118,5 milhões de euros.

(...)A concretização deste poder resulta, em boa parte, da conjugação da fragilidade financeira de Portugal, por contraponto à opulência revelada por Angola. E é assim que se instalam sintomas de uma inversão de papéis: o colonizado transforma-se em colonizador e passa a ser um alvo constante de escrutínio em Portugal. Hoje, os ricos e poderosos angolanos são pessoas sem rosto, que cultivam a discrição e às quais são atribuídas compras astronómicas em Portugal, nas lojas de luxo na Avenida da Liberdade, ou de casas nas quintas da Marinha e do Lago. Uma investigação feita pelo site Maka Angola (maka quer dizer conflito, discussão, problema, no dialecto angolano kimbundu) baptizou o condomínio de luxo Estoril Sol Residence, onde os apartamentos custam entre um e cinco milhões de euros, como o “prédio dos angolanos”. A António Domingos Pitra Neto (que foi ministro da Administração Pública, Emprego e Segurança Social), é atribuída a propriedade de cinco apartamentos. Fátima Giacomety, mulher do general Kopelipa, é dona de dois e o antigo ministro das Finanças, José Pedro Morais, é proprietário de quatro. Entre muitos outros compradores angolanos, destaca-se também Álvaro Sobrinho, presidente não executivo do BESA e irmão de Sílvio e Emanuel Madaleno, sendo o primeiro presidente da Newshold, a empresa que é dona do semanário Sol, tem 15% do capital da Cofina (Correio da Manhã, Sábado, Record, Jornal de Negócios), 2% da Impresa (Expresso, SIC), um contrato de gestão do i e já anunciou o seu interesse em participar na privatização da RTP, entretanto adiada. Sobrinho tem seis apartamentos no Estoril Sol Residence, e os seus irmãos três.

Neste contexto de criação de uma elite financeira e empresarial angolana, as palavras e os actos de José Eduardo dos Santos funcionam como faróis, iluminando o caminho de quem o rodeia, validando ou interrompendo estratégias. “Ele é o árbitro e o jogador. O dono da bola”, afirma quem conhece os meandros de Angola. Apesar do “desgaste do tempo”, o poder continua a gravitar à sua volta e todos os grandes investimentos angolanos em Portugal, o da Sonangol no BCP e na Galp, ou o de Isabel dos Santos na Zon, são debatidos no Palácio da Cidade Alta, a residência oficial do presidente da República, num círculo restrito que integra o actual vice-presidente da República, Manuel Vicente, o chefe da Casa militar, Kopelipa, e o marido de Isabel, o congolês Sindika Dokolo, entre outros, referem em uníssono empresários portugueses e angolanos» (ibidem, pp. 31-32).










(39) Alexandra Marques, op. cit., p. 486.

(40) E com ela, na qual os Portugueses sofreram a dureza da luta, as inclemências do clima, as agruras da vida em campanha, o afastamento da família e a interrupção dos estudos e das respectivas carreiras, o fim da existência histórica de Portugal. E tudo isso devido à deserção de militares dispostos a tolerar e a protagonizar, não obstante o sacrifício e o sangue da juventude já derramado em prol do altar da Pátria, a traição ou a defecção na retaguarda. Em suma: Salgado Zenha, Otelo Saraiva de Carvalho, Melo Antunes, Costa Gomes, Rosa Coutinho e seus congéneres jamais foram, pelos hediondos crimes cometidos, portugueses dignos desse nome.


25 de Abril de 1974: uma página ignominiosa na História de Portugal

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Escrito por António José Saraiva


















«O comunismo, na sua luta contra o Ocidente, previu, estudou, montou toda a máquina com que espera diminuí-lo ou vencê-lo, desintegrando a África e subtraindo-a à sua direcção e influência. Não lhe importam quaisquer outras consequências, exactamente porque sobre o caos construirá melhor.

Por outro lado, aqui e além, pequenas mas activas minorias, agitando as massas, parecem esforçar-se por dar uma pátria a povos que a não tinham; mas os novos nacionalismos, ao abandonarem as antigas dependências, correm de mãos dadas atrás de uma esperança vã - a de que, sendo da mesma cor, podem sustentar-se mutuamente ou entender-se melhor. Que ilusão! Os interesses não têm a mesma cor dos homens. A solidariedade que se revela na actual frente de ataque não é uma solidariedade de fundo; ela empenha-se na destruição das actuais estruturas mas é incapaz de construir outras novas. A unidade de África é afirmação gratuita que a geografia e a sociologia desmentem. E, ao contrário do que aconteceu na América, a Europa não se deu o tempo de definir mais racionalmente fronteiras, pacificar em definitivo raças e tribos, formar nações que fossem verdadeiros substractos de Estados. Quem serão os futuros organizadores? Façamos uma pergunta mais directa: quem serão os futuros colonizadores? Esta a incógnita que pesa sobre grande parte de África».

Oliveira Salazar («Portugal e a Campanha Anticolonialista»).


«Salazar impõe-se naturalmente, e impor-se-á cada vez mais com o rodar dos tempos, à medida que assente a poeira das paixões, serenem os espíritos e avultem ainda mais as lições dos acontecimentos por ele tão percucientemente antevistos. São, aliás, numerosíssimos e impressivos os depoimentos de prestigiosas figuras nacionais e estrangeiras em que lhe é prestada justiça. Afiguram-se-me, por exemplo, flagrantes de oportunidade as apreciações que, sobre Salazar, o Prof. António José Saraiva faz no jornal Expresso, de 22 de Abril de 1989. 

Num primoroso artigo, o autor da História da Cultura em Portugal aí fala dos Discursos e Notas de Salazar, "pela limpidez e concisão do estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso" e, assim, «por esse lado, merecedora de um lugar de relevo na nossa História da Literatura (e só considerações de ordem política a têm arredado do lugar que lhe compete)»; aí acentua que "Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis de Portugal, possuindo uma qualidade que os homens notáveis nem sempre têm - a recta intenção", "além de qualidades de administrador miraculosamente raras junto a uma igualmente rara integridade"; e aí se lembra que, graças a Salazar, "se conseguiram coisas hoje inconcebíveis, como a neutralidade na II Guerra Mundial" e se "conseguiu também, e pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue na Primeira Grande Guerra". 

E a concluir, o Prof. António José Saraiva assinala: "E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa História a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação Independente. Agora em plena democracia e sendo o povo soberano, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE".




Países fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA): Alemanha Ocidental, França e Itália











Mário Soares entrega Portugal aos poderes internacionais (assinatura do Tratado de Adesão à Comunidade Económica Europeia, a 12 de Junho de 1985, no Mosteiro dos Jerónimos).


Os países-membros da União Europeia por data de entrada





União Europeia. Ver aqui












Edifício Berlaymont, a sede da Comissão Europeia em Bruxelas



Sede do Parlamento Europeu em Estrasburgo (França)



Sede do Parlamento Europeu em Bruxelas (Bélgica)




Sede do Banco Central Europeu em Frankfurt (Alemanha). Atribui-se a esta instituição o controlo da política monetária da União.












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David Cameron (ver aqui)







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North American Free Trade Agreement (NAFTA)





















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Ao ler estas palavras pungentemente verdadeiras de alguém cuja probidade e independência de espírito estão fora de toda a discussão, acodem-me à memória estas outras palavras de Salazar, de 1946, terrivelmente proféticas: 

"Tempos houve em que os Portugueses se dividiam acerca da forma de servir a Pátria. Talvez se aproximem tempos em que a grande divisão, o inultrapassável abismo há-de ser entre os que a servem e os que a negam"».

Henrique Veiga de Macedo (in «Salazar visto pelos seus próximos»).




«Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco».

António José Saraiva




O artigo que ora se segue, escrito por António José Saraiva, intitula-se «O 25 de Abril e a História». Foi dado à estampa em 26 de Janeiro de 1979, no Diário de Notícias. Trata-se, pois, de um artigo em que o autor assevera que o 25 de Abril de 1974 resultou da traição, cobardia e irresponsabilidade de uns tantos rufias e inconscientes sem qualquer forma de brio e dignidade. De resto, nesta ordem de ideias, estamos igualmente perante um autor insuspeito, uma vez que, tendo vitoriado - na sequência do seu passado 'anti-fascista e de militante do Partido Comunista - o 25 de Abril como um grande momento de viragem na política nacional, dificilmente se lhe poderá assacar o rótulo de reaccionário. 

Claro que os 'antifascistas', perante aquela inesperada asserção, logo se aprontaram a carimbá-lo de louco e fora da realidade. Mas, na verdade, não estava de todo. Contudo, vendo as calamitosas consequências da revolução de 74, António José Saraiva caiu no lugar-comum de que a descolonização poderia ter sido feita de uma outra maneira que não a que levou à morte muitas centenas de milhares de mortos no Ultramar Português. E, de facto, a descolonização não só estava cabalmente condenada à inteira catástrofe por falta de preparação técnica, de capitais e apoios necessários com vista ao surgimento de soberanias responsáveis, mas também porque havia, no plano internacional, um conjunto de forças, poderes e organizações que maquinavam contra a presença portuguesa em África, na Ásia e na Oceania, e, por isso mesmo, inteiramente dispostas a sacrificar etnias, comunidades e populações inteiras tal como se veio a verificar. Aliás, quando António José Saraiva afirma «que os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa», parece não ter visto que esses mesmos chefes, manobrados por potências estrangeiras, estavam apenas destinados a instigar, quando não mesmo a perpetrar uma série crimes de guerra e contra a humanidade até hoje escandalosamente impunes.







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No mais, o mito da descolonização 'feita a tempo'é um lugar-comum bastante estereotipado na sociedade portuguesa. Tenho, aliás, conhecido alguns espécimes que estiveram a cumprir 'serviço militar' no Ultramar que se apegam ao tal mito da descolonização que podia ter sido feita antes do 25 de Abril, e que, quando alguém os confronta com a inevitável tragédia de um genocídio omitido pelo actual regime, suas escolas e instituições universitárias, ainda afirmam que não há revolução que não traga, implique ou até justifique o derramamento de sangue. É confrangedor ouvir isto, mas, em todo o caso, não deixa de ser um sintoma alarmante de uma tão profunda demência que se não coaduna com a posterior confissão de que os angolanos, moçambicanos e guineenses estavam incomparavelmente melhor, em termos económicos, políticos e culturais, do que estão hoje em dia.

Nisto, fica então o texto de António José Saraiva, ainda que muito aquém do que realmente poderia ter sido dito sobre a realidade torpe e tenebrosa do 25 de Abril. Não obstante, e para além disso, cabe ao próprio leitor, se bem enraizado no subconsciente ultramarino português, vislumbrar ou adivinhar o que já Oliveira Salazar, a respeito dos Portugueses, designou pelo respectivo «segredo da obra realizada».

Miguel Bruno Duarte





O 25 de Abril e a História


Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.

Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime.

Quanto à descolonização havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o exército português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do General Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.


António de Spínola (1910-1996)

Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas: Uma foi que o PCP, infiltrado no exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte de África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram a mostrar. Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tropas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de "revolucionários". E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar  esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram puramente criminosas.

Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve. O outro problema era o da liquidação do regime deposto. Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.

Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outras, talvez piores, os vieram desculpar.

Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total.






Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril.

Havia também, um malefício imputado ao antigo regime, que era o dos crimes de guerra cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados. Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os homens não substituíram os mesmos; a um regime monopartidário substituiu-se um regime pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: "a longa noite fascista". Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os poderes do anterior, mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois, como um exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização do ensino; vieram "saneamentos" oportunistas e iníquos, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão, pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio honesto de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.




António José Saraiva











Chuva de cravos nas comemorações dos 40 anos da revolução comunista de 1974

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.


Soares e a 'revolução dos cravos'

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Artigos de Alfredo Farinha e João de Mendia






















Rue Cadet (France)


























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Giscard d'Estaing (membro do Grande Oriente Francês)



«...Um membro do clandestino Grande Oriente Lusitano diz que a “luz verde” para uma mudança de atitude dos maçons portugueses quanto à independência dos territórios de África foi dada pelo Grande Oriente de França: “Repare, por exemplo, nas posições tímidas que a CEUD defendia, em 1969, acerca do dramático problema africano. A viragem deu-se efectivamente a partir das novas directrizes do Grande Oriente de França. Era então Grão-Mestre Fred Zeller”. A teia multinacional da Maçonaria explica também o maior intervencionismo de Senghor, que começou por incitar as autoridades do Brasil a impulsionarem a projecção da comunidade luso-afro-brasileira...».

José Freire Antunes («Nixon e Caetano. Promessas e Abandono»).


«Desde a morte do Doutor Oliveira Salazar, os intriguistas criminosos que se insurgiram contra o regime e cuja queda provocaria a morte de Portugal, redobram de esforços. Os Estados Unidos e a Rússia estavam perfeitamente de acordo em partilharem os despojos do Império Lusitano.

Quando o presidente R. Nixon e o presidente Pompidou se encontraram nos Açores com Marcello Caetano, numa reunião secreta, os americanos ofereceram ao Presidente do Conselho, o Professor Marcello, uma montanha de dólares se este último abandonasse o Ultramar Português. Ele recusa dizendo que a África portuguesa não estava à venda. Vê claramente que se os portugueses partissem, seria o grande capital internacional e a "Revolução marxista" que tomariam o seu lugar. Com esta recusa o Professor M. Caetano condena-se a desaparecer ou a ser suprimido.

Desde então os intriguistas estrangeiros precipitam-se e a partir da Conferência de Bilderberg em 20 de Abril de 1974 tomaram a resolução de desencadear em Portugal a revolução do 25 de Abril e de impedir a parte atlântica de realizar as manobras aeronavais Dawn Petrol 1974 da OTAN, que deviam começar no dia 25. Ganha a marinha portuguesa pela revolução, pôde regressar ao porto de Lisboa no dia 24 e dirigir os seus canhões para o Parlamento e para a Presidência do Conselho (esta intervenção foi determinante na demissão do Governo de Caetano). No decurso da mesma reunião o Príncipe Bernhard tinha dissertado sobre o petróleo de Cabinda com amigos que se interessavam muito por esta matéria. No Vaticano seguiam atentamente o assunto: Monsenhor Pereira Gomes tinha falado no dia 15 de Abril com Monsenhor Villot, progressista notável.

Pode-se ser aprendiz de feiticeiro e não ter o estofo dum Maquiavel; o Senhor Luns, Secretário Geral da OTAN, certamente que não esperava que o vento da revolução que ele tinha favorecido com os seus amigos virasse para a democracia popular, como reconheceu publicamente um ano e meio mais tarde».

P. F. Villemarest («História Secreta das Organizações Terroristas»).













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Sócrates na reunião de Bilderberg, em Stresa, na Itália (Junho de 2004, antes de se tornar secretário-geral do PS e posteriormente primeiro-ministro de Portugal).










António Guterres na reunião de Bilderberg em Rottach-Egem, na Alemanha (Maio de 2005, antes de ser indigitado para comissário da ONU).







Ao centro: Angelina Jolie e António Guterres




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Maria de Medeiros








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«Disponibilidade sem posse do dinheiro detêm-na, por sua natureza institucional, a Banca e o Estado. A Banca detém a disponibilidade do dinheiro que os depositantes lhe confiam livremente, o Estado a do dinheiro que os contribuintes são obrigados a confiar-lhe. Com a Banca, faz o plutocrata, mediante os accionistas, um jogo que tem regras estabelecidas pela lei, pelo mercado e pelo costume. Com o Estado faz o plutocrata um jogo sem regras, mais propriamente um jogo com o político do que com o Estado. Descreve Ernesto Palma alguns exemplos ou casos deste jogo: o dos Mellos e M. Bullosa com Mário Soares, o do mesmo Bullosa com os "capitães de Abril", o de Champalimaud com Salgado Zenha e o Marechal Spínola, o da alta finança internacional (Nelson Rockefeller, Edmundo Rothschild entre outros) reunida na Suíça para lançar a revolução socialista em Portugal».

Ernesto Palma («O Plutocrata»).


«Aconteceu então o que ficou conhecido por descolonização, de que Mário Soares, por convicção ou por ordens do PCP, foi um dos maiores responsáveis e autores. Como já acontecera antes, e que lhe valera uns tantos anos atrás das grades, colara-se mais uma vez ao PC de Álvaro Cunhal com o qual teria conjuntamente planeado a estratégia a cumprir logo a seguir ao pseudo-golpe militar do 25 de Abril. E não perdeu tempo pois havia uma fita do tempo a cumprir. Enquanto no primeiro 1.º de Maio vociferava ao lado de Cunhal que era imperioso acabar rapidamente com a vergonhosa guerra colonial, logo no dia seguinte marchava rumo às capitais europeias para explicar aos vários governos a situação em Portugal e no Ultramar na sequência do 25 de Abril. Afirmou que ia cumprir instruções do General Spínola, com o qual tinha estado reunido cerca de meia-hora!!! Não sei que directiva podia ter recebido pois, nem Spínola, nem muitos elementos do golpe, tinham a ideia rigorosa sobre os fundamentos, a génese do movimento e sua provável evolução. Acredita-se que soubessem do que gostariam que viesse a passar-se para darmos o tal salto para a frente com que todos sonhávamos, mas todos pareciam um pouco atordoados. Mário Soares, sentindo-se excessivamente dependente da estrutura do PCP, tinha fundado o seu próprio partido em Maio de 1973, para ver se conseguia um pouco mais de autonomia e, sobretudo, projecção ou protagonismo não só no espectro nacional como europeu. Na Alemanha reúne-se com meia dúzia de exilados políticos e leva a efeito o que se chamou de Congresso da AES (Associação de Esquerda Socialista), da qual era co-Fundador. Dali saiu, com pompa e circunstância, o partido socialista português, do qual Mário Soares era secretário-geral. E nesta função segue para a Europa, fazendo uma primeira escala em Bruxelas. Aqui encontra-se por mero acaso ou coincidência com Agostinho Neto que, por acaso, tinha decidido vir à Europa à procura de apoios. O homem do MPLA, derrotado politica e militarmente, parecia ressuscitar da longa agonia em que estava mergulhado. Ignora-se o teor da conversa entre os dois "lutadores antifascistas". Mário Soares sempre afirmou que não revelaria o teor da conversação havida entre ambos. No entanto, Agostinho Neto, sem qualquer projecção tanto a nível europeu como angolano, no dia seguinte, através de comunicados, incita os naturais de Angola a lutarem com toda a determinação contra o domínio e a opressão levados a cabo na sua terra, que sem qualquer benefício para o seu povo continuava a ser espoliado pelo colonizador. O que leva Agostinho Neto, que não dava sinais de vida desde 1971 e estava no Canadá aquando do 25 de Abril, a pedir ajuda aos angolanos para prosseguir a sua luta? Vem para Bruxelas, não se conhece a mando de quem e, após a conversa com Mário Soares, incentiva o povo angolano a pegar em armas e a expulsar o colonizador. Cheira a recado do nosso "mensageiro". Primeiro Acto de uma trágica odisseia que se vai arrastar por mais alguns meses, que perdura até hoje e jamais se apagará da memória dos portugueses e dos povos que a sofreram na pele.











Na sequência do golpe, Spínola ascende a Presidente da República e forma o primeiro governo provisório. Contra a vontade do PCP, Palma Carlos é o primeiro-ministro, mas sem liberdade para escolher os elementos do seu elenco ministerial. A comissão coordenadora do MFA, com Vasco Gonçalves à cabeça, segue as instruções do PCP que, de facto, é a sede do poder neste país desgovernado. Pereira de Moura, ex-comunista, contra a vontade de Spínola, assume a pasta da Educação onde irá ter lugar uma outra revolução. Todos nos recordamos das passagens administrativas. Conheci um jovem que em 1973 tinha reprovado no 5.º ano do liceu e que em Outubro de 1974 entrou para a Universidade de Coimbra!!! Recorde-se ainda um outro ministro, Capitão Costa Martins, da Força Aérea, que servira comigo na 3.ª Rep. do EMFA, onde não mostrara um mínimo de capacidade para o desempenho das suas funções, que foi chamado para a pasta do Trabalho onde teve como Secretário de Estado o Dr. Carlos Carvalhas o qual, logicamente, organizou o ministério e procedeu à respectiva purga.

Mário Soares, com toda a naturalidade, assume a pasta dos Estrangeiros enquanto Cunhal só é Ministro de Estado. Começam a rolar cabeças em todo o tecido nacional. Uns são demitidos, outros seguem para a prisão sem qualquer nota de culpa. Recorde-se que Kaúlza de Arriaga esteve enclausurado dezoito meses porque se negou a sair sem conhecer os crimes de que era acusado. Muitas outras figuras públicas foram metidas nas prisões sem que, a qualquer delas tenha sido elaborada nota de culpa. Espantoso! Foram enjaulados sem ninguém saber os crimes que tinham cometido. Casos como este foram às centenas, senão milhares. Portugal foi decapitado e os notáveis que foram saindo, substituídos por elementos preparados e instruídos pelo PCP.

Mas Mário Soares tem uma importantíssima missão a cumprir: a descolonização.



Carlos Carvalhas, Nelson Mandela e Álvaro Cunhal



Fundação Mário Soares
























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Ao centro: Fernando Lima. Ver aqui



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José Manuel Anes



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'Igreja maçónica' de Miraflores, arquitectada pelo maçon Troufa Real (ver aqui)




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(...) Sabe-se [que a Fundação Mário Soares] não foi feita com dinheiros seus, mas com dinheiros públicos. O Governo, de uma só vez, deu-lhe mais de 500.000 contos e a Câmara de Lisboa, presidida pelo filho, deu-lhe um prédio no valor de centenas de milhares de contos.

(...) O percurso de Mário Soares é, no rebentar da revolução, descrito por ele próprio nos seguintes termos:

"No dia 24 de Abril estava em Bona e tinha um encontro previsto com elementos da fundação Hebert para os sensibilizar para o facto de estar-se a preparar uma revolução em Portugal. Eram as minhas informações e era, sobretudo, a minha própria apreciação da realidade, tal como a escrevera no jornal "Le Monde", num artigo publicado a seguir ao 16 de Março, onde comentara a revolta dos Capitães das Caldas da Rainha e "avisava" que esse movimento de descontentamento militar iria ter seguimento. A análise que fazia da situação é que era inevitável haver uma revolta das Forças Armadas que "não suportavam mais o peso da guerra colonial e a sucessão de comissões de serviço" no chamado Ultramar. Era já esta a minha apreciação quando se criou o partido socialista. Desembarquei na manhã do dia 28. Era um domingo, o que me proporcionou grandes manifestações populares desde a fronteira. E da estação fui directamente falar com o General Spínola. Dos militares do 25 de Abril conhecia apenas o Melo Antunes. Estivera na última campanha eleitoral em que participara, em Outubro de 1969. Encontrei-o uma ou duas vezes, foi ao meu escritório, falámos. Tratava-se de um militar no activo, um homem decidido que enfrentava os problemas e colocava as questões. No dia 1 de Maio viajei logo após o comício e a pedido de Spínola, para Paris, onde, para além de ver François Miterrand, me avistei também com o Presidente Senghor com quem apalavrei o encontro de Dakar. Em Bruxelas avistei-me com elementos do partido socialista e do governo Belga, Henri Simonet, por exemplo, e com Agostinho Neto. Em Londres estive no N.º 10, Downing Street, com o primeiro-ministro, Harold Wilson, e o ministro dos Negócios Estrangeiros".


Chegada de Mário Soares a Santa Apolónia após o 25 de Abril de 1974































Soares e Cunhal







Legalização do PCP em 1974: Álvaro Cunhal com outros dirigentes comunistas. Ver aqui



Da esquerda para a direita: Dias Lourenço, Luis Corvalán (secretário-geral do PC Chileno) e Álvaro Cunhal







Ver vídeo 1, 2 e 3



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Nesta sua história, Mário Soares não fez nem faz a mínima referência aos seus encontros com Cunhal e Boris Ponomariov em Praga, Paris e Londres, onde também teria estado Melo Antunes, o pseudo-cérebro da revolução dos cravos. Aí, nesses encontros, lhe foram transmitidas ordens concretas que teria de levar a efeito logo após a queda do governo que estava podre e nem pretendia continuar mais em funções.

Só Soares, Cunhal, Melo Antunes e Vasco Gonçalves sabiam da revolução tal como fora planeada pela União Soviética no período da Guerra Fria, quando os EUA se encontravam enterrados no Vietname. E aconteceu o 25 de Abril, com toda uma encenação para lhe dar um carácter de golpe militar quando no fim foi uma segunda edição do golpe comunista de 1948 em Praga. O grande "democrata" e anti-fascista Soares lança-se numa batalha frenética pela conquista do poder. A sua actividade desenvolve-se a um ritmo alucinante em vários sectores, em especial na descolonização, enquanto os verdadeiros senhores do poder nos tempos subsequentes à revolução se mantêm, aparentemente, na sombra, mas criando o aparelho que há-de conduzir o país ao caos completo, do económico ao educacional, do trabalho à justiça, etc., etc. Foi toda uma máquina complexa, mas extraordinariamente eficaz, que se vem arrastando até aos nossos dias, paralisando os centros vitais da actividade positiva e do progresso do país.

(...) Soares fica finalmente com a porta aberta para satisfazer as suas ambições pessoais. Após onze anos em funções governativas, limitou-se, quase exclusivamente, a estender a mão à caridade alheia da OCDE e do FMI, para conseguir os empréstimos que evitassem o descalabro económico e financeiro do país, que dá pelo nome de falência. E os milhões chegaram para tapar os buracos que ele próprio ajudara a abrir, embriagado pelo poder que lhe caíra nas mãos, levantando bem alto as bandeiras da democracia e liberdade que só serviam para os outros.

(...) Populista, demagogo e duma ambição desmedida, o poder mais alto do Estado cai-lhe finalmente nas mãos. (...) Mário Soares (...) retoma o caminho do esbanjamento e da promoção pessoal, consolidando a construção do "trono dourado" que idealizou para si e família.

(...) Só no seu último mandato, Soares fez mais de 100 viagens ao estrangeiro, mais do que as 87 que Sampaio totalizava em apenas oito anos de Belém. Quando Soares levava os mesmos oito anos de presidência, já averbava no bornal 111 viagens oficiais, mais 27 do que Sampaio. (...) Soares gostava de viajar com pompa e circunstância ao contrário de Sampaio que fez visitas mais curtas e com menor comitiva. As viagens de Soares não pretendiam essencialmente benefícios para Portugal, mas prestígio para o líder na sua desmesurada ambição pelo triunfo fácil e à custa dos contribuintes.








(...) Este chegou ao ponto de alugar um avião Jumbo para transportar os seus mais de 200 convidados, passeando-se pelo Extremo Oriente: China, Japão, Macau, Hong-Kong, Tailândia, durante cerca de 15 dias. Quanto terá custado ao erário público este louco desvario e quais os proveitos que trouxe a Portugal? Seria um exercício interessante e talvez não muito complicado de fazer.

(...) As críticas às suas constantes andanças pelo mundo nunca o preocuparam. Foi ele que disse um dia, numa referência directa ao então presidente da Câmara de Lisboa, João Soares: "O meu filho trata das ruas, eu trato dos passeios...".

GENERAL SILVA CARDOSO («25 DE ABRIL DE 1974. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA»).






SOARES, O MAIOR IMPOSTOR POLÍTICO



Por Alfredo Pimenta, 6 de Setembro de 2005


«Mário Soares, "imposto" ao PS pelo seu secretário-geral e proclamado pelo partido como seu representante efectivo e único no certame eleitoral de Janeiro próximo, com largas semanas ou meses de antecedência em relação à sua declaração formal de que pretendia ou aceitava candidatar-se, depois de uma "mise-en-scène" ridiculamente empolada e prolongada, com a qual pretendeu, infantilmente - porque aos oitenta começa o inelutável regresso do adulto à "segunda meninice" - iludir os portugueses, fazendo-lhes crer que só ao cabo de longas meditações, dolorosas dúvidas e inúmeras consultas tomaria (ou não...) a "heróica decisão" de oferecer o corpo alquebrado e a alma inquieta à imolação final no altar da Pátria - que ninguém prejudicou e traiu tantas vezes como ele;

Mário Soares, o maior impostor político, talvez nado e criado em Portugal, quase sempre a saque de barões, burgueses, militares, salteadores e governantes:

Mário Soares, "o português que mais ganhou com a revolução de Abril", na opinião expressa por Rumsfeld, Secretário de Defesa dos Estados Unidos - e também, no campo político, admito eu, antes e depois do golpe;

Mário Soares, que toda a vida sonhou com a glória de participar na destituição do "tirano de Santa Comba", ou na sua eliminação física, mas deixou-o fugir-lhe das mãos (das dele e dos demais comparsas, tão canhestros como ele) para um sítio onde nunca poderá alcançá-lo - a terceira grande frustração, geradora de novos ódios, rancores e perseguições, agora contra tudo o que "o outro" amara, prestigiara e engrandecera, especialmente a Pátria.



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Ao centro: Manuel Alegre e Mário Soares




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Mário Soares, porventura o político português que mais amigos e camaradas traiu, com o único e ruim propósito de conquistar para si próprio os lugares e os poderes que almejava, como aconteceu com Salgado Zenha, Sousa Tavares, Rui Mateus e, agora mesmo, Manuel Alegre - a quem interesse mais detalhada lista das vítimas da insaciável avidez política do ex-PR, recomendamos a leitura de "Acuso" e "Contos Proibidos", respectivamente, de Henrique Cerqueira e Rui Mateus. Apenas como lamiré, ou como aperitivo, transcrevemos do primeiro as seguintes frases: "A carreira política do sr. Soares está cheia de sacanices" e "o comportamento daquela polícia de má memória (a PIDE, obviamente, esclarece o autor) é, apesar de tudo, bem mais decente que o dele". (pág. 197 e 198, "Editorial Intervenção"). E basta de citações. Que fique só o cheirinho... a merda de gato mal tapada» (Este artigo, extraído da obra de Silva Cardoso - 25 DE ABRIL DE 1974. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA - carece da indicação onde foi publicado).






Dr. Mário Soares: "Desapareça"



Por João Mendia, publicado a 4 de Setembro de 2005 no Diário de Notícias


«A auréola de democrata que erradamente se insiste em atribuir ao dr. Mário Soares tem sido contraditada pela sua própria conduta pública. Mas agora, velho, incontinente verbal a dizer o que dantes o coarctava a ambição e a evidenciar a sua verdadeira natureza, aí o têm a recandidatar-se a Presidente da República.

No que diz respeito ao Ultramar português, Soares esforçou-se de forma empenhada para que o processo se passasse como se passou. Contrariamente ao que se diz e à fama que se auto-atribui.

Em tempos de PREC, o dr. Mário Soares cativava inocentes com promessas de consultas populares, a serem feitas cá e lá, mas a verdadeira intenção era não perguntar nada a ninguém e entregar todo o nosso território ultramarino a elementos directissimamente ligados ao estalinismo soviético. Soares executou, objectivando-o, um desiderato do partido comunista. É assim deste personagem a responsabilidade pelo que considero ter sido, e ser ainda, a maior catástrofe nacional: a destruição, traiçoeira e vil, de um ideal eminentemente português e a sequente, horrorosa e previsível mortandade que se seguiu.

A gravidade deste horror indescritível vem ainda do facto de nunca ninguém ter investido Soares de poderes para dispor de território nacional. Nem mesmo isso seria jamais possível, por muito que invoque a legalidade revolucionária (que substancialmente não foi legalidade alguma, por se ter traduzido naquilo em que se traduziu: destruição de Portugal). A partir daqui, o que se passou é da enorme responsabilidade de uma pessoa imputável há 81 anos e que dá pelo nome de Mário Soares. A "descolonização exemplar" foi exemplarmente criminosa, e é imperdoável, tendo em vista a sua enorme gravidade.

Na nossa entrada na CEE o género continua. Depois de consultar técnicos, por si escolhidos, e aqueles o terem esclarecido de que não deveríamos entrar na então CEE, Soares, à revelia de tudo e de todos, comprometeu-se com Bruxelas e "implorou que nos aceitassem. Segue-se a cedência de tudo a todos e o desprezo olímpico pelos pareceres que iam no sentido oposto.





































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Para defesa do indefensável, Soares não se cansa de nos tentar convencer de que não haveria alternativas. Só que havia. E várias. A que escolheu era a pior.

Todas eram melhores, incluindo a entrada na CEE, mas bem negociada.

Soares, com o maior dos desaforos tem assumido atitudes quase majestáticas, como se tudo lhe fosse devido, reivindicando "direitos" que o têm colocado em ridículos patamares, como que a cobrar-se por uma resistência que está longe de ser a tal desgraça de que se queixa. Só que o que se deveria passar seria exactamente o contrário. Por razões de gravidade infinitamente menor das que vêm descritas em documentação vastíssima, e não desmentida, como na de Rui Mateus, entre outra, e pelo que está gravado na memória de centenas de milhares de espoliados do Ultramar, até o Ministério Público já, de alguma forma, se pronunciou. Havendo mesmo um notável parecer do prof. Cavaleiro Ferreira, eminente penalista, que por completo esclarece a situação. Mas o Dr. Soares, estranha, presumida e humilhantemente para todos, arroga-se o direito de ter direitos que ninguém mais tem.

Mário Soares está ainda longe de ter sido o responsável, como se diz, por vivermos neste simulacro de democracia. O que se passou foi que, no segundo 1.º de Maio depois de 74, quando Soares se pretendia juntar aos comunistas, foi por estes rejeitado. Só mais tarde, e por ter percebido que se não se afastasse do PC teria a sorte que tiveram as dezenas de centros regionais daquele partido, que foi terem ido pelo ar na sequência de reacções populares, aproveitou para inventar o chamado socialismo democrático, que nunca ninguém percebeu muito bem o que é, mas que é do que tem vivido até agora.

Soares, como governante, foi ainda pouco menos que uma nulidade. Nos governos provisórios foi o desastre que se sabe. Em 1978 foi demitido pelo General Eanes: por má governação. Em 1983-85 frustrou completamente os acordos de coligação com o PSD, que permitiriam a Portugal desenvolver-se e modernizar a economia. Em 1983-85, com Soares no poder, a inflação chegou a uns impensáveis 24% e o défice desses governos alcançou a vergonhosa marca de 12%! O país estava quase sufocado pela dívida externa e viveu até essa data (1985) praticamente com as estruturas do Estado Novo e com empréstimos do FMI. Tudo por culpa da teimosia do dr. Soares que, obstinadamente, se recusava a rever a Constituição que permitiria uma liberalização da nossa economia. Facto este que estava previsto nos acordos de coligação entre o PS e o PSD em 1983. O radicalismo de esquerda, no Verão Quente, foi, mais uma vez, bem mais da responsabilidade de Mário Soares do que do PCP, realidade que está na base do estado actual de Portugal.






Por todas estas, e por muitas outras razões. Mário Soares é a figura política que mais e mais gravemente prejudicou Portugal em toda a sua existência. Outros terão tentado, como Afonso Costa, mas, graças a Deus, não conseguiram. Mário Soares conseguiu. Assim, e usando a expressão que ele próprio usou com um GNR que o servia, exijo-lhe: "dr. Mário Soares, deixe-nos em paz. Desapareça"».


Ainda de João Mendia, retirado do Diário Digital, da secção "Portuguesíades":


«Mário Soares é um dos grandes, sendo o maior logro gerado pelo 25 de Abril. Tem-se vindo a manter a ideia de atribuir à pessoa de Mário Soares exactamente aquilo que ele não foi nem fez. Convencionou-se que Soares é um democrata, mas não é, embora pareça. Convencionou-se que Soares é um bonacheirão, boa pessoa e cheio de charme, mas só o charme é que estará certo, exactamente naquela medida em que um Profírio Rubirosa o usaria para auferir sinecuras pelos meios que se conhecem. Convencionou-se que Soares está na base de uma descolonização exemplar e de ter feito dos cravos a nossa revolução mas, o que se passou, foi e é, dramaticamente o contrário. Convencionou-se, ainda, que é a Soares a quem se deve o isolamento do comunismo e a opção pelo que se veio a instalar no nosso país e a que vulgarmente de tem chamado democracia, mas não é nem uma coisa nem outra. Convencionou-se, também, ter sido Soares um dos grandes impulsionadores da nossa entrada para a Comunidade Europeia, o que, sendo certo desta vez, fê-lo da pior maneira e pelo pior processo, como adiante se recordará. Soares passa por ser um homem de cultura, estudioso que sempre terá sido não se sabe bem de que temáticas, mas, a realidade, é Soares tratar-se de uma pessoa de uma esperteza pouco mais que vulgar, que recorre a banalidades e a lugares comuns debitados de cátedra e em registo grandiloquente que lhe virá da circunstância de quase todos o bajularem e poucos, ou nenhuns, o contestarem. Com frequência são ainda atribuídas a Soares operações cuja irregularidade se assemelha a de outros que, por isso mesmo, estiveram, ou estão a braços com a justiça ou mesmo a cumprir tempo de cárcere. Mas, passado todo este tempo, urge atribuir a Mário Soares aquilo pelo que é responsável, dado que lhe acabam de passar 80 anos por cima e ser já tarde para se deixar de insistir num estatuto ridículo e quase majestático que ele próprio fomenta, usa e abusa para tudo e mais alguma coisa.

É hoje público que, pouco tempo antes do 25 de Abril, Soares esteve numa reunião com Cunhal, um dos principais estrategas de Brejnev, Ponomarev, e outros, em Paris, onde ficou decidido dar-se início ao que viria a ser um golpe de Estado em Portugal. Já não incentivando o terrorismo no Ultramar, mas preparando o golpe na própria sede do poder em Lisboa. E isto porque a nossa política ultramarina estava a ser cada vez mais bem acolhida, tanto nos próprios territórios como, crescentemente, na comunidade internacional. ONU incluída. Sendo assim, os tempos e os modelos por que tinha que passar este golpe de Estado estavam longe de ser democráticos, assim como tudo o que passou durante toda a longa fase criminal do PREC, tem Soares como um dos responsáveis. Tudo isto teve a sua expressa anuência, para além de que estava bem consciente de que a União Soviética era quem ditava as regras deste, e de muitos outros jogos. O verdadeiro programa, saído desta conspirata, que não ainda o do MFA que se alinhavou mais tarde, não podia deixar de ser do conhecimento e ter o aval de Soares.









Com frequência se ouve dizer a Soares que pouco terá tido a ver com a descolonização por sistematicamente ter sido ultrapassado por Melo Antunes e outros, sabendo-se agora, pela obra póstuma de Melo Antunes, não apenas as responsabilidades de Soares como a interferência dele em quase tudo. Chega mesmo ao cúmulo da desfaçatez de tentar convencer as pessoas de que, não fora a sua intervenção, os processos teriam tido aspectos ainda piores. Então, teve ou não responsabilidades? É revoltante e insultuoso ouvir o descaramento destas enormidades, sabendo ele, como poucos, as consequências daquilo que fez. Se não conseguia evitar o que agora admite ter tido algumas falhas, então que se tivesse demitido. Mas não se demitiu. Soares era o ministro dos Negócios Estrangeiros, e era com ele, e através dele, dado que não havia ainda Bruxelas para impor compromissos, que se definia e aplicava a nossa política externa. Muitos lhe chegaram a pedir, populações e quadros africanos inclusive, para que adiasse as independências por se prever com facilidade a inevitabilidade de horror de uma tragédia que se anunciava. Soares nada fez. Insistiu mesmo com as independências de todos os territórios, mesmo aqueles que ele sabia, melhor que ninguém, que pereceriam sem o apoio da Metrópole, como Cabo Verde, Timor e S. Tomé. E em Angola, por exemplo, as últimas e dramáticas contas elevavam a cerca de 3 a 4 milhões de pessoas, portuguesas muitas delas, mortas e assassinadas à mão directa e indirecta dos responsáveis pela independência e descolonização. E digo isto porque é frequente Soares abusar do argumento de que não será responsável pelo que se passou depois da independência, remetendo isso para as novas soberanias, o que não pode ser mais farisaico e demonstrativo do carácter e da sensibilidade que não existem nesta personagem. É que a responsabilidade mantém-se para lá da independência, como é óbvio, quanto mais não seja por todos saberem que os acordos de Alvor foram feitos à pressa, na madrugada anterior, por Almeida Santos, que tinha de África dezenas de anos de experiência, e sabia, assim como Mário Soares e melhor que ninguém, que o acordo não duraria mais que umas escassas horas. Mas eram compromissos com a bandeira política do marxismo comunista e socialista da altura, e outros que se saberá um dia, tarde temo eu, de onde viriam e em que é que consistiriam».























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Samora Machel e o 'descolonizador' Mário Soares. Ver aqui












Moçambique




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Início da subversão violenta na África portuguesa (i)

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Escrito por Silva Cunha






































«A expressão "guerra de guerrilha" entrou no léxico moderno durante as Guerras Napoleónicas. Significa o emprego ou utilização no fenómeno violento da técnica ou método de guerrilha.

Segundo a definição de Samuel Huntington, a "guerra de guerrilha"é uma forma de guerra na qual o contendor estrategicamente mais fraco assume tacticamente a ofensiva através do emprego da iniciativa sob as mais diversas formas, e nas diferentes dimensões do espaço e do tempo. A guerrilha é a arma dos fracos. Só é escolhida quando as possibilidades de sucesso no travar de uma guerra dita regular são diminutas (Osanka [Ed], 1962, p. 379).

É normalmente empregue por pequenos grupos de forças irregulares que combatem um Exército invasor; por um dos contendores (o mais fraco) como meio suplementar de guerra convencional, tida como aquela que utiliza técnica/táctica ou métodos convencionais; e nos estágios preliminares de uma guerra "revolucionária" que visa a deposição da autoridade política vigente.

Clausewitz via a "guerra de guerrilha" como uma componente auxiliar da guerra convencional, cujos efectivos não deveriam ser empregues no combate directo contra o "núcleo duro do inimigo", mas no "desbaste das suas arestas". As suas operações militares deveriam centrar-se em pontos previamente determinados ao longo dos flancos do dispositivo inimigo para evitar a sua destruição (Clausewitz, 1984, pp. 480-482).

Jomini também inseriu a "guerra de guerrilha" no interior da matriz das insurreições nacionais contra um Exército invasor. Na sua perspectiva, a missão das forças invasoras seria consideravelmente dificultada se a insurreição popular fosse apoiada por um núcleo de tropas disciplinadas, sem a existência do qual a insurreição acabaria por ser suprimida.

Também Karl Marx e Friedrich Engels viram as operações da guerrilha como adjuntas das operações convencionais. Num respigar da História, Marx notou que os grupos de guerrilheiros foram quase sempre bem sucedidos quando se mantiveram em pequeno número. Já Engels não previu um futuro risonho para a "guerra de guerrilha", a não ser que esta conseguisse arregimentar o apoio da população para a sua causa (Laqueur, 1986, pp. 142-145).



Thomas Edward Lawrence






T. E. Lawrence articulou conceptualmente que a guerrilha poderia ser bem sucedida se aplicasse operacionalmente determinados princípios que a tornariam uma ciência exacta. Para Lawrence, as condições propícias para a provável obtenção de sucesso, passavam pela construção e/ou existência de uma base que fosse inexpugnável, face a um oponente cuja realidade primava por um Exército com capacidades limitadas de controlo de determinado território e uma população apoiante da causa dos guerrilheiros.

Nas circunstâncias, a guerrilha necessitava era de velocidade e perseverança, linhas de apoio logístico autónomas, bem como de armamento e equipamento capaz de paralisar as linhas de comunicação do adversário turco. Na óptica da estratégia operacional, o alcance e a velocidade eram mais importantes do que a dimensão política das acções levadas a cabo pela "guerrilha".

Esta dimensão política já havia sido anteriormente aflorada aquando das doutrinas revolucionárias do século dezanove por radicais italianos e polacos, que discutiram a "guerra de guerrilha" no contexto de uma estratégia político-militar de libertação e de unificação nacionais. Estas perspectivas foram posteriormente aperfeiçoadas noutros estudos de radicais e militares italianos.

Quanto a Lenine, apesar do sucesso da Revolução Russa, os seus escritos pré-revolução contemplavam a condução de uma luta de atrição organizada e controlada politicamente pelo Partido Comunista. O combate, na sua perspectiva, assumiria várias formas: terror selectivo, através da execução de assassinatos, confiscação de bens e propriedades estatais e privadas, manifestações populares, greves e confrontos de rua.

A "guerra de guerrilha" seria uma forma inevitável de condução do combate numa fase em que o movimento de massas tivesse atingido um ponto tal, que fosse propício ao desencadeamento de uma insurreição geral. No entanto teria de estar sempre subordinada a outros métodos e ser pautada pelos princípios operativos do socialismo (Laqueur, 1978, pp. 172-178).






Revolução Cultural Chinesa











Reforma agrária chinesa























Para Mao Zedong, o conceito de revolução assentava em três princípios: o papel decisivo das forças militares; a importância das bases de guerrilha em áreas rurais; e o carácter de atrição do combate. A "guerra de guerrilha" era uma componente importante da sua doutrina operacional, mas não era o único aspecto da luta revolucionária; por si só, não significava a obtenção do sucesso total.

Não era um fim em si e, como tal, não podia ser divorciada das operações militares das forças regulares. Ainda que pudesse assumir temporariamente uma maior importância no contexto da guerra popular, globalmente falando, as forças regulares eram primordiais tendo um papel fulcral na estratégia militar.

A "guerra de guerrilha" de acordo com a conceptualização Maoísta era apenas uma das três fases interactuantes da luta revolucionária. Genericamente, na sua óptica, as insurreições eram um fenómeno típico dos países subdesenvolvidos e contemplavam três fases:

- agitação e proselitismo das massas populares, incluindo a criação de um Partido (fase de contenção);

- violência aberta, operações de guerrilha e estabelecimento de bases (fase de equilíbrio estratégico);

- guerra móvel, convencional, com grandes unidades de forças insurrectas contra forças governamentais com o objectivo de depor o governo (fase da contra-ofensiva). Durante esta fase, as acções militares respeitantes à suas fases anteriores continuam a ser conduzidas.

(...) Segundo Henry Kissinger, "[No Vietname] travámos um combate militar; os nossos oponentes uma guerra política. Procurámos a sua atrição física; eles a nossa exaustão psicológica: No processo, perdemos a referência cardinal da guerra de guerrilha: a de que a guerrilha vence se não perder e o Exército convencional perde se não vencer" (Mach, 1975, pp. 184 e 185)».

Carlos Manuel Mendes Dias e Alexandre Carriço («Vo Nguyen GIAP«).




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«A Chinaé um imenso império e, no fim da Segunda Guerra Mundial, uma grande parte do país estava nas mãos dos senhores da guerra. Chiang-Kai-Shek estava ocupado em empurrar este enorme continente para uma forma republicana de governo. Mao Tsé-Tung era o chefe de um bando de revolucionários e um fantoche nas mãos de Estaline. Nenhum governo é perfeito; o de Chiang não o era mas era infinitamente preferível ao das criaturas de Estaline.

Além disso, o governo nacionalista era chinês e não dependia de um outro país. De resto, Chiang-Kai-Shek era um homem de carácter animado por uma nobre missão. O seu propósito era o de talhar o seu país no modelo americano. Era este o interesse dos homens livres em todo o mundo e dos que aspiravam ajudar o chefe nacionalista. E contudo trabalhou-se de outra maneira. O auxílio americano deu proveito somente aos comunistas e absolutamente nada a Chiang-Kai-Shek. O general G. Marshal gabou-se na época de ter, de uma só penada, desarmado o chefe nacionalista. Tão inacreditável e espantoso que isto pareça, foram os exércitos americanos que enxotaram Chiang-Kai-Shek do continente chinês e obrigaram-no a refugiar-se na Formosa.

O governo de Chiang tinha sido admitido na ONU como membro e foi sempre reconhecido como tal. Quando o chefe da China nacionalista se instalou na Formosa, os Estados Unidos assinaram com ele um acordo solene, estipulando que a América defenderia militarmente a sua independência e que todos os refugiados que a ilha pudesse acolher seriam ajudados a submeter-se-lhe. Taiwan ocupa a segunda posição depois do Japão pelo seu alto nível de vida na Ásia.

Que o leitor nunca perca de vista que a ideia dominante dos "Iniciados"é a sujeição do mundo inteiro. A ONU foi estruturada com o fim de se transformar no núcleo deste governo mundial ou ditadura universal. Sendo assim, os iniciados não podiam permitir que a pequena ilha Formosa se tornasse no representante legítimo do povo chinês; por isso devia ser encontrado um meio para expulsá-la e colocar em seu lugar as criaturas de Estaline nas Nações Unidas. A pequena Irlanda foi logo convidada a entrar na ONU, isto é, os 26 condados do Eire, que se pretendem livres... Quando se observa hoje o destino de todos os países atrás da Cortina de Ferro, do Afeganistão, da Indochina, do Cambodja, da África ex-portuguesa, todos os irlandeses deveriam morrer de vergonha com a ideia de que foi o nosso embaixador na ONU que, durante anos, formulou a mesma pergunta em cada sessão: "Quando é que a China Vermelha será admitida na sala?" Ano após ano a proposta foi repelida, toda a gente sabia que um dia, quando o momento fosse oportuno, tudo seria regularizado. E os "Iniciados" triunfariam uma vez mais...



Chiang Kai-Shek



Chiang Kai-Shek, Franklin D. Roosevelt, Winston Churchill e Madame Chiang na Conferência do Cairo (23 de Novembro de 1943)



Richard Nixon cumprimenta o 'primeiro-ministro' chinês Zhou Enlai após a sua chegada  a Pequim (1972)





Emblema da República Popular da China





Mao Tsé-Tung e Richard Nixon


























Chegamos agora à época de R. Nixon na construção deste puzzle em que todos os pedaços devem encontrar o seu lugar para formar um mundo comunista dominado pelos mundialistas. O moço de recados número um dos "Iniciados" chamou-se Henry Kissinger. Foi enviado para a China Popular onde o tapete vermelho se desenrolou em sua honra. Durante este mesmo lapso de tempo David Rockefeller, que é presidente do Chase Manhattan Bank, vai visitar os chineses. Também ele tem direito ao tapete vermelho e aos ramos de flores. Acenos de cabeça e piscadelas foram trocados e em dois tempos três manobras, a China Vermelha entrava nas Nações Unidas e a China nacionalista era expulsa dela. Pertencer a esta Torre de Babel não é uma honra, longe disso. Todo o país respeitável devia retirar-se o mais rapidamente possível.

Durante o mandato de Carter na Casa Branca, os americanos médios aperceberam-se, com assombro, que Jimmy "que nunca mentia" trabalhava com muito mais ardor para a expansão do comunismo do que qualquer militante do PC, por isso foi varrido do seu assento. Mas o mundo teme menos os comunistas sob a presidência de Reagan? Ele aceitou vender armas à China Vermelha. Porque desejam os comunistas tantas armas se estas não lhes servem para marxizar o mundo inteiro? A Inglaterra também decidiu vender à China Popular os motores de avião Rolls Royce. Quando Reagan foi eleito, um comentador fez notar que o cowboy tinha sido impelido para o recinto dos gados sem saber o que se tinha passado.

Vendendo material de guerra à China, a América não apresentou nenhuma cláusula restritiva na sua convenção cláusula que teria proibido que estas armas fossem empregadas contra a Formosa, que os Estados Unidos se tinham comprometido a proteger contra toda a agressão militar. Qual o destino da pequena ilha (cuja população, 17 milhões de habitantes, em mais de metade, é constituída por refugiados) em caso de invasão?

(...) Em 1960, Sir Harold Macmillan, Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, fez uma viagem relâmpago à maioria dos países africanos; após o que fez o seu famoso discurso "O vento da mudança", na Cidade do Cabo. Informou a terra inteira que os povos negros da África estavam prestes a libertar-se dos entraves da colonização e emergiriam  como nações livres e independentes. Sir Macmillan parecia ser assaz bom profeta porque pouco tempo depois, uma após outra, as colónias transformaram-se em nações pretensamente livres e independentes, cada uma sujeita aos aprestos do parlamentarismo, cada uma com um grupo de chefes eleitos na base de um homem um voto. O que Sir Macmillan não disse ao mundo é que o poder que transformou a África não era outro senão uma invasão plutocrática de um novo género, por outras palavras, um colonialismo económico que substituiu a verdadeira colonização.



Harold Macmillan







República Democrática do Congo (ex-Congo Belga)




























Brasão de Armas da RDC ou Congo-Kinshasa







Biafra











Ruanda



Burundi







Vanuatu







O resultado deste "vento de mudança"é que a África se tornou em poucos anos numa das regiões do mundo mais miseráveis onde milhões de pessoas vivem sob a ameaça da fome, da doença, das guerras tribais e atormentadas pelo problema gigantesco dos refugiados. Novas fronteiras foram traçadas, abrangendo, com frequência, diferentes etnias, cada uma com a sua própria língua e o seu direito consuetudinário. Esta fragmentação, por vezes em duas ou três partes, processou-se sem a menor consulta às populações.

Quando os próprios indígenas tentaram rectificar estas fronteiras artificiais, aprenderam rapidamente, às suas custas, quanto eram "livres". O Catanga, província do tamanho de um país europeu, quis separar-se do Congo ex-Belga (ontem Zaire, hoje, República Democrática do Congo). E foram as forças das Nações Unidas que se encarregaram de chamar à ordem os catangueses, obrigando-os a reintegrarem-se no Congo. Quando o Biafra tentou separar-se do resto da Nigéria, a Grã-Bretanha e a União Soviética uniram-se para esmagar essa pretensão.

Porque se conduzem deste modo os Iniciados-Conspiradores? Porque desejariam que as estruturas administrativas do antigo domínio colonial ficassem no sítio, mas o poder seria transferido para as mãos débeis dos regimes locais, tão frágeis e tão precários que não teriam nenhuma dificuldade em dominá-los. Deste modo, as fontes naturais da África e mesmo a suas populações têm podido ser "exploradas" muito mais facilmente do que se os antigos colonizadores tivessem ficado. O que foi "libertado" não foi o povo africano mas as suas riquezas de que se apoderaram os "Iniciados". Da mesma maneira que Henrique VIII e os seus fiéis cobiçavam as riquezas dos mosteiros, os mundialistas cobiçavam o ouro, os diamantes e outras riquezas de África.

Um governo mundial é o seu único objectivo e as Nações Unidas a origem do governo futuro; os polichinelos negros foram escolhidos para representar os seus povos, cada qual com uma voz na ONU. Estados minúsculos como o Ruanda e o Burundi têm cada um uma voz e outros estados-imitação no mundo como Vanuatu (91 000 habitantes) ajudam a votar no sentido desejado pelos "Iniciados".

Cuba enviou milhares de soldados para África aparelhados pela URSS. Os "Iniciados-Conspiradores poderiam deter este movimento em 24 horas se o desejassem. Mas tudo se desenvolve segundo os planos previstos; os seus planos».

Deirdre ManifoldFátima e a Grande Conspiração»).














«Nos recuados anos 30, Salazar tinha dado o alarme e iniciado uma guerra sem quartel ao comunismo internacional porque, como afirmava, se tratava duma estratégia para impor aos outros povos, não uma filosofia política libertadora, mas aquele comunismo que nós vivemos no século XX que levou a uma repressão sistemática, ao ponto de adoptar, em momentos de paroxismo, o terror como modo de governo.

Foi a este comunismo que Salazar, quando converteu a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) em PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) declarou guerra, uma guerra sem tréguas, que na sua acção no terreno não deixou de cometer erros, distorções, abusos de força, aos quais nos dias de hoje se dá um empolamento muito especial para condenar toda uma instituição que também teve os seus méritos e constituiu um sério obstáculo à introdução duma ideologia desumana e que hoje sabemos ter [aparentemente] claudicado. Pacheco Pereira, no prefácio que escreveu em O Livro Negro do Comunismo afirma, a propósito de um balanço da ordem dos cem milhões de mortos vítimas do comunismo no século XX:"E depois tudo se pode dizer do PCP menos que não sabia, porque se há coisa em que o PCP se especializou foi em saber. E o PCP sempre soube de tudo. Soube das purgas, do Grande Terror, dos processos, dos massacres e deportações de guerra, das execuções, dos desaparecimentos, do que acontecia em África, em Angola, Guiné e Moçambique. A tentativa de apresentar o PCP como um partido periférico e isolado, fora do movimento do comunismo internacional até ao início da década de 50, logo sem experiência do estalinismo, não tem nenhum fundamento". Depois Pacheco Pereira afirma que o PCP, como um partido periférico, estava lá, na Rússia de Estaline, antes de 1936, e que os nossos comunistas fechavam os olhos ao clima de terror que Stéphane Courtois teve a coragem de desmascarar, concluindo assim: "não é de arqueologia que falamos, mas também dos dias de hoje. O PCP com os Soviéticos sabe tudo o que aconteceu em Angola - onde foi instrumental nos acontecimentos". Mas também Anthony Burton (...) fez um estudo da ameaça da propaganda e da subversão soviética contra as Forças Armadas do Ocidente. Ao tratar do caso de Portugal confirma que o PCP, já na década de 30, quando nasceu a PIDE, estava perfeitamente a par das intenções dos sovietes sob a batuta de Estaline, escrevendo: "Os planos para a tomada do poder em Portugal pelos comunistas foram elaborados há 40 anos e têm sido, desde então, modificados e aperfeiçoados em Moscovo".

Cunhal foi o elemento escolhido para secretário-geral do partido comunista, um inteligente e dedicado membro do partido de há muito, que passou bastantes anos exilado em Praga. Aí, ele treinou um corpo especial de talvez mais de 300 homens. Alguns foram treinados durante mais de oito anos e aprenderam a falar português fluentemente. Foram instruídos em comunicações, sabotagem, propaganda, serviço de informações e, especialmente, em organização. Como raça, os portugueses são muito maus organizadores e Cunhal sabia-o. Uma semana após o regresso do secretário-geral do PCP a Portugal, o primeiro contingente dessa equipa chegou, por via aérea, de Praga. Esses homens disseminaram-se pelo país como organizadores de células locais; organizadores para a conquista das autoridades regionais; organizadores de sovietes de trabalhadores nas fábricas, nos bancos, na indústria e na agricultura; e também de um serviço especial de informação, subordinado directamente a Cunhal. Foram extremamente eficazes.












Burton afirma que os planos elaborados em Moscovo, nos anos trinta, para a tomada do poder em Portugal, foram sendo sucessivamente modificados e aperfeiçoados. Esta evolução deve-se essencialmente à eficácia da PIDE na perseguição que moveu aos comunistas e filo-comunistas, e igualmente aos sucessos alcançados pelos nossos militares na guerra do Ultramar, com especial ênfase em Angola, mas também nos outros dois teatros, mesmo na Guiné.

Portugal não era o único objectivo da estratégia soviética na Europa, embora as suas possessões ultramarinas lhe conferissem uma importância especial. Após ter assegurado a tomada do poder pelos comunistas nos países satélites através de golpes de força, como aconteceu na Polónia e muito especialmente na Checoslováquia em 1948 com o célebre golpe de Praga, prossegue na política definida por Lenine logo após 1917 e concentra a sua atenção em África envolvendo a Europa pelo Sul e assim mais facilmente estender a sua ideologia a todo o continente europeu.

(...) A 15 de Março [de 1961] acontece o genocídio no Norte de Angola onde são dizimados selvaticamente cerca de sete mil seres humanos (mil brancos e seis mil pretos) pelos guerrilheiros da UPA e, a 8 de Abril, o projectado golpe de estado para afastar Salazar é neutralizado e os seus promotores são removidos das suas funções. Resta saber o que aconteceria se o Presidente do Conselho, Salazar, tivesse acedido à proposta dos EUA: ter-se-ia evitado o genocídio em Angola e o golpe de estado morreria por si? Quanto ao primeiro ponto creio que teria sido muito difícil travar um dispositivo certamente já montado e em movimento para evitar aquela mortandade. Recorde-se que a entrevista teve lugar a 7 de Março e a acção de Angola a 15, isto é, oito dias mais tarde. A complexidade da operação, a inexistência de estruturas de comando e controle, a enormidade da área afectada, leva facilmente à conclusão de que a acção era irreversível. Mas o projecto americano saiu gorado pois, contrariamente ao que tinha acontecido no Congo, os colonos portugueses não debandaram e participaram mesmo nas acções de pacificação conduzidas pelas poucas unidades militares presentes. Salazar não cedeu, mas principalmente o povo português, a velha e sempre nobre alma lusíada, enfrentou de forma resoluta e determinada a situação. Salazar resolve pacificamente a situação interna e as Forças Armadas respondem ao chamamento de "Para Angola, rapidamente e em força".
























Com a reconquista da povoação de Nambuangongo, transformada em capital do movimento de guerrilha, o genocídio acabaria por ceder. Mas os dois contendores mantêm as suas estratégias. O MPLA, timidamente, estabelece a sua primeira região político-militar no Quanza Norte, com um insignificante número de guerrilheiros, que se revelaram totalmente inofensivos pelas dificuldades de abastecimento criadas pela UPA/FNLA ou pelas operações desencadeadas pelas forças portuguesas. Também a FNLA, após o impacto inicial, parecia ter entrado num estado de hibernação e refugiara-se nos seus santuários da região dos Dembos, limitando-se a reagir às tentativas de penetração das nossas forças.

É hoje óbvio que não marchámos para Angola para dar guerra aos angolanos, mas tão-só àqueles que, hipocritamente, se arvoraram em defensores dos povos e, ao serviço das superpotências, pretendiam impor naquele território uma nova ordem política que lhes fosse favorável. Dois factores contribuíram significativamente para o êxito nesta primeira fase (cerca de dois anos) do conflito: o querer, a entrega do soldado português e toda a mística que envolveu a sua actuação e a unidade e apoio da retaguarda, onde as poucas e possíveis vozes dissonantes se mantinham mudas e mesmo a chamada oposição ao regime vigente apoiava a nossa reacção ao ataque desencadeado, duma crueldade impensável até pelos próprios promotores que acabaram por perder o seu controlo.

Entretanto, a situação em Angola em finais de 1963, com o MPLA encurralado no Quanza Norte e a FNLA confinada aos seus santuários na região dos Dembos, tinha estabilizado e ter-se-ia assim atingido um primeiro patamar na guerra em Angola. Esta situação não deixaria de agradar aos americanos que, depois de terem perdido a aposta inicial quando tentaram quebrar a unidade nacional relativa à política ultramarina e, indirectamente, apoiaram o desencadear brutal das hostilidades no Norte de Angola, viam que os colonos não tinham fugido como acontecera com os belgas no Congo e que aquele imenso território permanecia na esfera do Ocidente.

Uma segunda fase do conflito pode situar-se no final deste primeiro patamar com a abertura das hostilidades, ainda em 1963, na Guiné e, no ano seguinte, em Moçambique, obrigando assim as forças de contra-subversão a um maior esforço, não só pela sua dispersão por três teatros de operações, mas igualmente por um substancial aumento do seu potencial de combate em meios humanos e materiais.










Sem infraestruturas minimamente adequadas ao novo esforço de guerra, a escassez dos meios humanos, a exiguidade e obsoletismo dos meios materiais, as extensíssimas linhas de apoio logístico não só desde a origem (Portugal) como dentro dos próprios Teatros de Operações (TOs), em especial Angola e Moçambique, tornavam a missão das forças armadas portuguesas indubitavelmente ciclópica. Poucos acreditavam na hipótese de suportarmos tal esforço por muito mais tempo, hipótese em que o "jogador" do Leste apostara porquanto, quer na Guiné, quer em Moçambique, o apoio do "jogador" americano não passava de político ou moral. Mas, estoicamente, íamos cumprindo a missão com o mesmo espírito que sempre tinha pautado toda a nossa história militar.

Mais três anos passaram e em 1966, apesar do esforço exigido à Nação, inacreditavelmente a situação no terreno mantinha-se controlada pelas forças portuguesas. A iniciativa e ímpeto do inimigo externo não tinham sido suficientes para fazer soçobrar o querer e a capacidade da gente lusa. Inicia-se, então, uma terceira fase do conflito com o aparecimento da UNITA e a abertura da frente Leste pelo MPLA em Angola e, em Moçambique, pelo deslocamento da Frelimo para Sul, para a área de Tete, a fim de dispersar os meios concentrados no Norte (Cabo Delgado) e impedir ou dificultar a construção da barragem de Cahora Bassa. Foi uma fase difícil para as nossas forças, só compensada pelo apoio dado pelo recrutamento local e pelo mesmo indomável espírito de missão que, a despeito de tudo, marcou, desde o início, a nossa acção».

GENERAL SILVA CARDOSO («25 DE ABRIL DE 1974. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA»).


«... As aspirações dos povos africanos não diferem das que ainda hoje constituem os anseios da maioria das sociedades espalhadas por esse mundo fora, e que anseiam libertar-se do ciclo de subdesenvolvimento em que se encontram. Os seus objectivos coincidem, assim, com os problemas de governo dos respectivos países ou territórios; e, como acontece em toda a parte, quando tais problemas não encontram solução, ou quando esta se processa em ritmo mais lento do que aquele que revelam as aspirações dos povos, logo se põem em dúvida, ou seja politicamente em crise, quer as instituições quer a competência da administração. Este fenómeno é tanto mais frequente quanto menor é o grau de cultura da sociedade em questão, o qual, por sua vez, deriva essencialmente do grau de desenvolvimento da economia territorial, pois que a educação e a cultura não as produz a terra nem se colhem das árvores, como fruto espontâneo: conquistam-se pelo trabalho. Parece, assim, que não haverá outra saída do ciclo de subdesenvolvimento que não seja pela via do trabalho dos povos interessados, pois que os programas de educação em massa impostos de fora e oferecidos como dádiva não conseguirão ultrapassar os escolhos de ordem material que se lhes antepõem e que impedem resultados espectaculares. Se esta noção é exacta - e não vejo que nalguma parte do Globo ou nalgum tempo da História tenha sido rebatida - afigura-se que o critério que havia de presidir à evolução africana não deveria desprender-se da necessidade de as responsabilidades da administração estarem entregues aos elementos mais qualificados para as assumirem, com o apoio de uma soberania interessada no progresso do conjunto.








Não se tem entendido assim, porém,  defendendo-se antes que a solução dos problemas se encontrará, melhor e mais rapidamente, transferindo as responsabilidades governativas da generalidade dos territórios africanos para os elementos locais, sob a alegação de que as sociedades humanas só se realizam totalmente quando são senhoras absolutas dos seus próprios destinos. A essa teoria deu-se o nome de autodeterminação dos povos e ao movimento nesse sentido atribuíram-se foros de força natural, designando-o de "ventos da história".

Não exporei aqui certas dúvidas, a primeira das quais seria se tal doutrina terá levado suficientemente em conta, na sua aplicação, o que nos parece deveria ter sido a sua principal razão de ser, ou seja, os interesses dos povos; tão-pouco procurarei responder a certas interrogações, tais como as de saber a quem melhor vem aproveitando o vento da mudança e se a doutrina tem sido sempre aplicada ou se a comunidade internacional, pelo contrário, tem assistido inerte a gritantes derrogações do princípio. Limitar-me-ei a expor a nossa opinião.

Nós conhecemos, por contacto directo de longa tradição, o nível e as possibilidades de certas elites africanas e não duvidamos por isso da sua capacidade como elementos dirigentes que, no caso português, o são e têm sido através da História. Mas não julgamos, e a experiência vem confirmando a nossa convicção, que essas elites sejam numericamente suficientes em todos os domínios e em todos os escalões, quer da administração quer da actividade privada - sem a qual aquela não teria objecto nem sentido - para assumir inteiramente sós as complexas funções de um Estado moderno. Que assim é parece pela circunstância de, em certos casos, se estar fazendo uma experiência que a nós se nos afigura contrariar a independência real dos povos: enquanto o governo é entregue aos elementos locais, as empresas e iniciativas de valor económico básico continuam - e é esta a melhor hipótese - a cargo dos que, embora nacionais da antiga potência soberana, passaram agora a ser estrangeiros no país onde servem. Quer-nos parecer, quando despidas das aparências e reduzidas as coisas à sua essência, que estes novos Estados se arriscam a criar por este processo sujeições mais graves do que aquelas de que pretendem libertar-se. Mas por outro lado, onde tal experiência não esteja sendo executada, temos assistido, e receio que viremos a assistir com maior frequência, a retrocessos da vida económica e social e ao retorno de certas práticas incompatíveis com a prosperidade e progresso desejados.




Oliveira Salazar



Deve ter-se como incontroverso que tais inconvenientes não resultam da vontade dos nossos dirigentes africanos; e se, como se faz crer, esses são, em todos os casos, os mais habilitados, também não deve provir tal estado de coisas da deficiência das suas qualificações. A justificação, parece-nos, residirá na falta de elementos de apoio com que essas elites contam. E é natural que assim seja, porque um Estado não é constituído apenas por governantes. Um Ministro da Economia, por exemplo, não poderá governar, se não tiver, ao nível dos serviços públicos, os engenheiros, os economistas, os agrónomos, os veterinários, os funcionários de carteira e de campo; e, tendo-os todos, nada terá a dirigir se lhe faltarem os chefes de empresa, os técnicos, os comercialistas e os operários especializados, que na esfera privada mantêm em funcionamento as actividades económicas, isto é, os homens que organizam e dirigem o trabalho. A existência de todas estas camadas populacionais não foi considerada essencial para a formação das novas nações africanas; nós entendemos, porém, que será indispensável para o seu funcionamento e para a sua independência. E como uma economia nacional não se inventa nem improvisa e a preparação profissional é extremamente morosa (como estão a reconhecer mesmo os países economicamente fortes relativamente aos seus planos de desenvolvimento) parece que aos povos considerados se indicou um caminho pelo qual não conseguirão progredir a ritmo compatível com o resto do mundo e, assim, radicarão o seu atraso e comprometerão a sua independência nacional.

A independência das nações africanas tem-se processado, na generalidade dos casos, sobre dois erros que as prejudicarão: o racismo contra o branco e a suposta unidade dos seus povos naquele continente. Esta última suposição tenderá a subordinar o negro ao árabe; o racismo negro tenderá a prescindir de tudo quanto o branco mais progressivo pode levar-lhe em capital, trabalho e cultura. Seria mais assisado substituir o exclusivismo rácico pela colaboração que vimos ser imprescindível. É por isso que nós entendemos que o progresso económico, social e político daqueles territórios só será possível numa base multirracial em que as responsabilidades de direcção em todos os domínios caibam aos mais qualificados e não aos desta ou daquela cor.

Sei sermos acusados de, com esta doutrina, estarmos tentando assegurar o predomínio da raça branca em África, com base, sobretudo, no facto de o nosso multirracialismo não ter ainda reflexo bastante lato na distribuição de responsabilidades nas províncias ultramarinas em África. É certo que estamos ainda longe de atingir o ponto em que poderíamos estar plenamente satisfeitos com as nossas realizações. Mas não pode negar-se que não só é o mais seguro caminho que trilhamos como o progresso dos territórios tende a cobrir a totalidade das respectivas populações, e não sectores privilegiados. Esse progresso é impossível negá-lo, pois que as realizações podem comparar-se, e com vantagem em muitos pontos, às dos outros países africanos. E se os nossos críticos estão seguros de que não é assim, mal se compreende que não tenham aceite a ideia de ser feito um estudo por individualidades de relevo internacional, e sob a égide da Organização das Nações Unidas. Foram infelizmente preferidos os discursos ao exame desapaixonado das realidades em debate, que tinha o nosso apoio.


Terroristas do MPLA






Terroristas da UNITA


Uma palavra sobre Angola. Estamos sendo vítimas ali de ataques que a princípio pretenderam acobertar-se sob a capa de sublevação das populações ansiosas por não continuarem integradas na Nação Portuguesa. O entusiasmo dos libertadores africanos porém não permitiu ocultar senão por pouco tempo a sua intervenção no recrutamento, financiamento e treino dos elementos estrangeiros que através de Estados limítrofres penetram em Angola. De modo que hoje não pode já afirmar-se que há ali uma revolta de carácter mais ou menos nacionalista, mas que uma guerra é conduzida por vários Estados contra Portugal, num dos seus territórios ultramarinos. Ora, duas coisas se devem ter por certas: a primeira é que, ao atacar-se Angola, não se ataca só Portugal, mas se está pretendendo enfraquecer as posições, e não só estratégicas, de todo o mundo ocidental; a segunda é que os que atacam, os que apoiam, os que ajudam com a sua indiferença, estão a agir contra os verdadeiros interesses das populações de Angola, só com retardar-lhes o desenvolvimento pacífico e com levar ali a semente do antagonismo racial que não existia e é hoje (...) o principal obstáculo ao progresso e bem-estar do continente africano».

Oliveira Salazar («Realidades da Política Portuguesa»).


«Uma das questões que tem ocupado as minhas reflexões é saber qual o papel histórico das esquerdas no mundo, as suas ideias, a sua influência e a sua acção em prol do progresso e emancipação dos povos subdesenvolvidos no decurso do último meio século.

Por mais voltas que dê e estude os processos históricos na América Latina, em África e na Ásia, é-me difícil encontrar bons exemplos nas políticas nacionais e nos apoios internacionais que as esquerdas lhes propiciaram. Uma das bandeiras de luta contra a opressão imperialista foi a chamada revolução terceiro-mundista que sectores da esquerda radical no Canadá, na Europa e nos Estados Unidos glorificaram a partir dos anos de 1960. Todavia, se se for a ver os resultados práticos dessas lutas, marcadas acima de tudo pela demagogia e pelo sectarismo, o balanço final é pouco lisonjeiro. Tirante as descolonizações, a história do Terceiro Mundo pouco mais é do que um repositório de ditaduras e caos: sociedades fragmentadas, economias destruídas, espaços de cidadania dissolvidos, guerras civis, genocídios e pobreza. Nem Angola, a "vanguarda da revolução em África" que as esquerdas em toda a parte saudaram, teve melhor destino. Coberto de cores vermelhas e esmagado pelas intimidações do Exército e de um aparelho policial omnipresente, o país afundou-se ao som da Internacional e em projectos confusos de estatização.

O diagnóstico de Nikita Khrushchev sobre o socialismo na União Soviética de alguma forma serve para se poder comparar e analisar o que aconteceu noutras geografias políticas com ela aparentadas. Segundo ele,

[...] as portas deste país continuam fechadas e trancadas. Que espécie de socialismo é este? Que espécie de merda é esta, se temos de manter o nosso povo agrilhoado? que espécie de ordem social? Que espécie de paraíso?


Nikita Khrushchev 































As esquerdas alinhadas com o "socialismo" russo não fizeram caso destas palavras de indignação do ex-secretário-geral do PCUS, pois todas se recusaram a olhar de frente a realidade, mesmo depois do grande terror stalinista. Apenas uma pessoa ou outra mais lúcida percebeu a "mentira verdadeira" sob a qual ocultava o vazio ou a necrose daquele sistema político reduzido a um imenso aparato estatal burocrático, centralizado e fundido com a poderosíssima máquina do partido, responsável desde a década de 1930 pelo expurgo de comunistas e bolchevistas da velha guarda. A maioria, pelo contrário, preferiu deixar-se embalar no mito do paraíso socialista e aceitou a ideia de que aquele terror "representava [como Castoriadis bem assinalou] a forma mais avançada de democracia".

Outras esquerdas, com Sartre à cabeça, viraram-se para a China Popular e para o mito da Revolução Cultural de Mao Zedong e defenderam essa fúria criminal que deixou um cortejo de milhares de mortes, saques e humilhações. O mesmo Sartre com Régis Debray, este, então, um jovem marxista francês, ingressou nos anos de 1960 no "manicómio cubano" e ambos, em delírio, aderiram cegamente ao dogma e aplaudiram a mitologia revolucionária e sangrenta do seu líder, enquanto outros destacamentos esquerdistas abençoaram a ditadura  sanguinária de Enver Hoxha, na Albânia (1944-1981) ou o regime de Pol Pot, no Cambodja.

Mas será este lastro radical e dogmático nas esquerdas coisa do passado? Se se observar atentamente o comportamento de determinadas correntes de esquerda - a não-democrática e a totalitária - percebe-se que ambas continuam a viver, em pleno século XXI, em busca de um tempo perdido. Os seus programas, a sua luta contras as desigualdades sociais, a sua concepção de política externa, dificilmente lhes abre espaços de diálogo e conciliação com outras tendências. Essas suas regressões autoritárias são frequentes, elas continuam a sonhar com revoluções violentas à boa maneira de Che Guevara, cuja pulsão pela morte dos inimigos, e até de adversários, se converteu efectivamente na sua marca registada. Ele exclamava: "Revolução sem disparar um tiro? Estás louco?"».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).






Início da subversão violenta na África portuguesa








...Os principais obstáculos ao pleno êxito de todas as políticas expostas eram os territórios portugueses da África, a Rodésia e a África do Sul, que continuavam a constituir poderosos focos de irradiação da cultura e da influência europeias e eram ilhas de paz na desordem geral que assolava o continente.

Por isso, contra aqueles territórios se organizou uma campanha sistemática que culminou no desencadear da subversão violenta na Guiné, em Angola e em Moçambique, nas sanções contra a Rodésia, nas infiltrações de guerrilheiros no seu território e nas tentativas de introdução da subversão na África do Sul.

Com uma falta de visão confrangedora, os Estados Unidos da América e os outros membros da OTAN (mesmo os que possuíam interesses directos em África), em lugar de auxiliarem a preservar aquelas zonas de paz, quando não as hostilizavam directamente, tudo faziam para se não comprometerem com atitudes que pudessem ser interpretadas como de solidariedade e, abertamente, proclamavam a sua adesão aos princípios que, encobrindo os reais propósitos da campanha, eram usados para a justificar.

É certo que, no que respeita ao caso português, nos bastidores da política internacional havia quem nos animasse a prosseguir, e que, na maioria dos países da OTAN, os chefes militares estavam bem conscientes do perigo que representaria, para a defesa da Europa e do hemisfério ocidental, a perda das nossas posições e a subversão da Rodésia e da África do Sul.

Os políticos, porém, sujeitos à disciplina dos seus partidos, receosos das reacções da opinião pública, deformada por uma imprensa infiltrada por elementos das esquerdas, não tinham coragem de tomar atitudes claras e firmes.

Por isso, para os observadores superficiais e para o grande público, prosseguíamos uma política que ninguém apoiava, estávamos isolados. Não podíamos, para não comprometer os países amigos, desmenti-los. Assim se explica a célebre frase do discurso em que o Doutor Salazar afirmou que, orgulhosamente sós, prosseguiríamos na defesa das terras do Ultramar.

Mas se a situação era como se descreveu, não teria sido mais sensato aderir desde o princípio à corrente anticolonialista, deixando-nos conduzir pelos «Ventos da História»?

Foi este o grande problema que se apresentou em 1961 à consciência e à inteligência dos homens que detinham a responsabilidade do poder.











Era esta a grande opção sobre que tinham de decidir: continuar no Ultramar ou abandoná-lo, procurando apenas ressalvar os laços de natureza cultural e económica criados ao longo de cinco séculos de história comum?

Desde o século XV que o Ultramar constituiu uma constante na vida da Nação Portuguesa.

Acusarão certamente esta afirmação de constituir um lugar-comum, mas nem por isso deixa de ser verdadeira.

A expansão ultramarina faz parte da História de Portugal e deu ao nosso país um lugar na História Universal, com influência relevante na evolução da Humanidade e na formação do Mundo moderno.

Sem a expansão ultramarina, Portugal seria uma nação obscura, separada da Europa pela Espanha, independente se tivesse forças para resistir às acções absorcionistas que foram, e são, constantes nas aspirações espanholas e que conseguiram concretizar-se entre 1580 e 1640.

Terminada a expansão, foi sempre preocupação de todos os governos e regimes que mandaram na nossa terra manter o Ultramar, defender o Ultramar, desenvolver o Ultramar.

A tese do abandono, mesmo nas épocas mais conturbadas e difíceis da nossa vida colectiva, nunca foi aceite por nenhum governo como solução a adoptar para resolver problemas nacionais. Constituiu tema de lucubrações de alguns homens de letras, como Oliveira Martins, e pretexto para fácil ironia de outros, como Eça de Queirós. Foi esboçada por alguns políticos influenciados por aqueles e pelas especulações sobre economia, como as de Basílio Teles. Nunca constituiu, porém, programa de acção de nenhum governo e mesmo aqueles que algumas vezes defenderam a ideia foram, depois como Oliveira Martins, mais amadurecidos e esclarecidos, defensores estrénuos da continuação no Ultramar.

Após a Restauração, em 1640, depois da Revolução Liberal, no primeiro quartel do século XIX, depois da implantação da República, em 1910, todos os que se sucederam no poder, a braços com gravíssimos problemas políticos, económicos e financeiros, sempre consideraram seu dever prosseguir a política ultramarina que consideravam imposta pela História e pela vontade do povo.

A decisão mais grave em matéria de política externa no primeiro quartel deste século - a entrada na Guerra de 1914-18 - foi justificada pela necessidade de garantir a continuação do Ultramar.


Embarque de tropas portuguesas para Angola na Grande Guerra (1914-1918)











As maiores manifestações de indignação ou de júbilo popular ocorreram a propósito de factos da vida ultramarina. Recordem-se, por exemplo, a reacção contra o Ultimatum inglês de 1890 e as manifestações que se seguiram à acção de Chaimite, comandada por Mouzinho de Albuquerque.

No plano exterior, a execução desta política não foi fácil porque sempre, com maior ou menor intensidade, contra ela se manifestaram e agiram outros Estados.

A politica externa portuguesa e a acção diplomática, seu instrumento, tiveram, por isso, sempre como fonte principal e constante de preocupação o Ultramar e a sua defesa.

Após a Restauração, os problemas mais importantes foram o da confirmação dos nossos direitos e a reconquista do que nos havia sido usurpado no Brasil, na África e no Oriente.

Durante a época liberal tivemos de enfrentar a trama subtil tecida pela Grã-Bretanha, com o pretexto fácil e hipócrita de repressão do tráfico de escravos, e desenvolvemos uma acção diplomática em que figuram as vitórias conseguidas nas arbitragens de Bolama e da Baía de Lourenço Marques.

No fim do século lutámos, no plano diplomático, para salvar as nossas posições da África contra as ambições expansionistas que tiveram expressão jurídica no regime aprovado pela Conferência de Berlim de 1885.

Depois da Guerra de 1914-18, a tese da função pública internacional dos territórios do Ultramar e a teoria do livre acesso às matérias-primas neles existentes, deram lugar a nova tentativa de esbulho.

Depois da Guerra de 1939-45, surge a corrente anticolonialista e a acção directa pela força contra a nossa presença em África.

É a luz destas constantes de pensamento e acção que tem de ser apreciada a decisão de defender o Estado da Índia contra a política anexionista da União Indiana e a decisão tomada em 1961, quando eclodiu o terrorismo em Angola, de defender o Ultramar.






















Brasão de Armas da Índia Portuguesa










Quanto à Índia, a defesa tinha de fazer-se predominantemente no campo diplomático, dada a distância em relação à Mãe-Pátria e o enorme poderio do ambicioso vizinho.

Podia-se negociar a entrega voluntária, mas fazê-lo seria admitir um princípio que necessariamente teria implicações quanto aos outros territórios ultramarinos.

Teve de ceder-se à força bruta, mas, no campo dos princípios, os nossos direitos mantiveram-se.

Um alto orgão internacional - O Tribunal Internacional de Justiça -consagrou o seu reconhecimento na sentença que proferiu, em Abril de 1960, sobre a questão do direito de passagem para os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli.

E, 1961, quando se tomou a decisão de defender Angola contra a subversão violenta, desencadeada com os acontecimentos de 4 e 5 de Fevereiro, em Luanda, e os massacres do norte, na noite de 15 para 16 de Março, praticou-se um acto de governo que se integrava na linha dos que sempre, em circunstâncias semelhantes, outros governos portugueses, das mais variadas orientações e matizes políticos, haviam tomado.

A pressão internacional para que cedêssemos também não constituía novidade na nossa História. Apenas agora a cedência, aparentemente, não seria a favor de nenhum Estado, porque era exigida em nome do direito de todos os povos à autodeterminação, mas entendida esta estritamente como independência.

Na realidade, porém, a política de abandono que de fora nos pretendiam impor teria, como nas outras fases da nossa política externa, propósitos de expansão, só que, agora, mais disfarçados porque faziam parte de uma política global, traduzida numa estratégia que não tem por objectivo adquirir direitos sobre territórios determinados, mas assegurar posições que permitam o domínio das grandes rotas marítimas, o acesso às fontes de matérias-primas, a posse de bases militares e a possibilidade de colocação de excedentes demográficos. Uma estratégia que não tem, portanto, objectivos de domínio sobre territórios determinados, porque visa a constituir grandes zonas de influência que assegurem posições de vantagem na luta surda entre as superpotências, com a qual se continuou a Segunda Guerra Mundial.

A decisão foi tomada, portanto, em presença de factores idênticos aos que em outras épocas da História, em circunstâncias semelhantes, se haviam verificado.

O Governo entendeu ser do seu dever restabelecer a ordem, defender os direitos da soberania nacional e proteger as populações pacíficas contra a agressão.













Em 1961 o País aceitaria outra decisão? Seria possível abandonar Angola à onda de violência que a assolou? Seria possível negociar? Com quem?

Havia quem sustentasse não ser possível encontrar para o problema assim criado uma solução militar, afirmando dogmaticamente que na guerra subversiva não é possível a vitória por meio das armas. Haveria, pois, que procurar uma solução política! Mas qual? Haveria que negociar! Mas com quem e com que fim?

Antes de responder, vale a pena gastar algum tempo a apreciar o valor do pretenso dogma de que, para a guerra subversiva, só pode haver soluções políticas.

Este tipo de guerra, como a convencional ou clássica, tem os seus teóricos e tratadistas, como Mao Tsé-Tung, Giap e Che Guevara.

A apreciação do valor da afirmação de que em guerra subversiva não é possível a vitória militar tem de se fazer evitando o emprego dos padrões da guerra clássica.

O que é a vitória e a derrota em guerra subversiva tem de ser apreciado em face das características deste tipo de guerra.

Considerar que a guerra subversiva só está ganha quando a guerrilha está completamente aniquilada é uma concepção própria da guerra convencional e conduziria ao absurdo de se ter de concluir que, em qualquer país, logo que surjam actividades guerrilheiras, o respectivo governo deverá considerar-se derrotado e ceder perante os chefes das guerrilhas.

Se assim fosse, onde estariam o Brasil, a Colômbia, o Uruguai, a Inglaterra, a França, a maior parte dos Estados africanos, que têm ou tiveram guerrilhas em acção no seu território?

Os mestres da guerra subversiva, de resto, fornecem-nos argumentos para combater aquela conclusão.

Segundo eles, a guerra de guerrilha («guerra de libertação», como a denominam) passa necessariamente por três fases: a guerra de guerrilha propriamente dita, a guerra de posições e a guerra de movimento. Estas duas últimas têm os caracteres da guerra convencional, com exércitos regulares e batalhas conforme as regras clássicas.

A primeira fase (guerra de guerrilhas) é definida por Che Guevara nos termos seguintes: «Morde, foge, embusca, espia, torna a morder e foge de novo, e assim por diante, sem deixar descansar o adversário». «Nesta fase, diz, o essencial para o guerrilheiro é não se deixar aniquilar» (E. CHE GUEVARA, La guerre de guerrilla, Ed. Maspero, 1966, pp. 24 e 26).

Giap definiu esta primeira fase, que considera a de guerra propriamente dita, nos seguintes termos: «A guerrilha é a guerra das massas populares de um país economicamente atrasado, lutando contra um exército agressor poderosamente equipado e treinado. Se o inimigo em determinada situação é forte, evite-se; se ele se apresenta fraco, ataque-se» (GÉNÉRAL GIAP, Guerre du Peuple, Armée du Peuple, Ed. Maspero, 1968, p. 44).






Ambos os autores citados consideram, porém, a guerrilha como uma simples fase da guerra que, por si só, não pode conduzir à vitória, a qual só poderá resultar da acção de um exército regular (CHE GUEVARA, ob. cit., pp. 20 e 21).

«No ponto de vista estratégico, diz Giap, se a guerrilha impõe numerosas dificuldades ao adversário e lhe inflige perdas sérias, todavia não pode desgastá-lo. Para poder aniquilar importantes forças inimigas e libertar o território, tem de desenvolver-se, progressivamente, em guerra de movimento» (Giap, ob. cit., p. 101).

A vitória, portanto, segundo estes dois práticos e teorizadores deste tipo de guerra, pertencerá às forças regulares que combaterem as guerrilhas, se estas não forem substituídas por exércitos convencionais que combatam segundo os princípios e as técnicas da guerra clássica.

Giap usou o método contra os franceses na Indochina.

Às operações de guerrilha seguiu-se a guerra convencional em que avulta o ataque a Dien Ben Phu, que marcou a derrota das tropas francesas.

Os ingleses, na Malásia e no Quénia, mostraram como é possível vencer e aniquilar guerrilhas.

O exército francês, na última fase da guerra da Argélia, estava à beira da vitória.

No Brasil e na Colômbia, as forças regulares limparam os territórios de grupos de guerrilheiros.

A guerra de guerrilha, só por si, não conduz, portanto, a nenhum resultado, disseram Che Guevara e Giap.

«Dizemos muitas vezes (escreveu este último): a guerra de guerrilha deve crescer e desenvolver-se. Para se manter e se desenvolver deve necessariamente conduzir à guerra de movimento, e isto é uma lei», ... «mas, se a guerrilha não se desenvolver e transformar em guerra de movimento, não só a tarefa de aniquilamento das forças inimigas não terá sido cumprida, como também a guerrilha não se poderá manter e desenvolver» (Giap, ob. cit., p. 102).

No nosso caso, também estas afirmações eram válidas e não podia o Governo, só porque se desencadeara numa pequena parte do território nacional actividades de guerrilha, assumir a responsabilidade de renunciar a direitos históricos, consagrados na Constituição e cuja discussão a consciência nacional nunca admitira.

Seria uma decisão de uma ligeireza e leviandade imperdoáveis, que o País não aceitaria, e que condenaria ao opróbrio quem assumisse a responsabilidade de a tomar.

Mas outras poderosas razões militavam em favor da opção de ficar e defender o Ultramar.

Repete-se: o País não aceitaria o abandono, e é evidente que nenhum governo digno desse nome aceitaria que em Angola, livremente, se continuasse a matar, a queimar, a destruir. Toda e qualquer decisão estava necessariamente condicionada pelo restabelecimento da ordem.






Mas não se poderia encontrar uma fórmula que, a seguir, se pudesse usar para estabelecer definitivamente a paz?

Temos na nossa História o exemplo do Brasil. Não seria inédito, pois, reconhecer a independência de Angola e torná-la responsável pelo seu próprio destino. A solução brasileira, porém, não poderia ser repetida nas condições do Mundo actual.

É que, no Brasil, foram os portugueses originários da Metrópole e os seus descendentes, chefiados por um príncipe da Família Real Portuguesa, que tomaram a iniciativa da proclamação da independência.

Foram, como no caso da Rodésia, os colonos brancos e os seus descendentes que a conquistaram, passando a deter o poder e a governar o novo Estado.

Em Angola estávamos perante uma rebelião de nativos numa zona territorial limitada, pertencentes a um grupo tribal bem definido - o grupo Bacongo.

Os seus chefes estavam no exterior. Os grupos activistas que lançaram a acção violenta vieram do exterior onde haviam sido preparados.

Entregar o poder aos colonos não resolveria o problema. A luta havia de continuar e com muito mais violência, pois não teria a moderá-la o poder fiscalizador da Metrópole.

Mas porque não negociar? De novo se pergunta: com quem? Com os chefes da guerrilha que, quando muito, podiam representar o grupo tribal a que pertenciam?

Cabem aqui algumas considerações acerca das estruturas sociais africanas, para se poder responder cabalmente à questão posta.

A organização terrorista que lançou a luta no norte de Angola foi a UPA (União dos Povos de Angola), chefiada por Holden Roberto, a qual se apresentava como movimento nacionalista angolano.

Em termos rigorosos, nacionalismo deriva de nação. Holden Roberto, portanto, reivindicava a representação da nação angolana. Mas, em Angola, como em qualquer território africano, não se pode falar em nação, no sentido rigoroso do termo.

Em África, o grupo social que mais se aproxima do conceito de nação é a tribo.

Quando se analisa a morfologia social dos vários territórios africanos (mesmo depois de adquirirem o estatuto de Estado independente), não se encontram comunidades que possam, com propriedade, integrar o conceito de comunidade nacional ou de nação.








A unidade aparente, meramente de superfície, que neles se verifica é, na quase totalidade dos casos, muito recente. Resultou da integração nos quadros políticos e administrativos criados pelos colonizadores europeus, que não anulou as particularidades tribais e os antagonismos deles resultantes, as variedades dos fenómenos dialectais e as diferenças de escalão cultural resultantes dos fenómenos de aculturação produzidos pelos contactos entre as culturas tradicionais e a cultura europeia.

Em sentido rigoroso não se pode, portanto, falar em nacionalismos africanos. Como qualificar então os movimentos pró-independência que surgiram e triunfaram em África, a partir do fim da guerra de 1939-45?

Em primeiro lugar, é de assinalar que tais movimentos foram provocados e auxiliados pelas políticas anticolonialistas da Rússia e dos EUA, que tiveram ampla repercussão na ONU.

Depois, tem de se ter em conta certas situações existentes e acções geradas nos territórios que evoluíram para a independência.

Para as analisarmos, tem de distinguir-se duas ordens ou categorias de africanos. Aqueles que conservaram, total ou parcialmente, os padrões das culturas africanas tradicionais, e os ocidentalizados ou europeizados, isto é, aqueles que adoptaram os padrões ocidentais ou europeus de cultura.

Quanto aos primeiros, tem de se reconhecer que a inexistência de uma consciência nacional não significa que não houvesse, nas massas tribais africanas, em face dos colonizadores, um sentimento de unidade por contraste.

O sociólogo francês Georges Balandier descreveu o fenómeno dizendo: trata-se de reacções confusas, de um comportamento à base de ressentimento que tende a atribuir a culpa a todas as perturbações e calamidades, dos povos e dos territórios, aos colonizadores.

Este tipo de reacção facilitava as infiltrações com fins subversivos. Em muitos casos, traduziu-se na criação de organizações de tipo político-religioso que algumas vezes revestiam carácter endémico. Foi o caso dos Mau-Mau, no Quénia, do Quimbangismo e da Kitawala no antigo Congo Belga.

A reacção dos europeizados ou ocidentalizados, ao contrário daquela, tendia a nacionalizar-se e a manifestar-se por intermédio de três tipos de organizações - os grupos de acção, os partidos políticos e os sindicatos. Os leaders destes movimentos eram, quase sempre, nativos educados em estabelecimentos de ensino do tipo europeu (ou norte-americano) e, com muita frequência, de nível universitário. Tiveram a experiência de lutas políticas na Europa e na América, muitos deles frequentaram cursos de formação marxista na Rússia, nos Estados satélites e na China.

Foram eles que arregimentaram os nativos das cidades para a luta contra os colonizadores. Nos meios urbanos é que se constituíram os grupos, os partidos, os sindicatos e se recrutaram os quadros para as lutas políticas.

Quanto aos nativos dos meios rurais (que constituíam a maioria e continuavam integrados nas tribos), foram usados meios de propaganda adequados à sua situação cultural, para os associar aos sistemas de enquadramento e de acção anteriormente descritos.

Uma vez conquistado o poder, passada a euforia da propaganda que prometia com a independência todas as benesses que transformariam os territórios em Eldorado, surgiram as dificuldades.

As populações julgavam-se libertas de todas as obrigações. Não queriam pagar impostos, não aceitavam o trabalho. Surgiram as rivalidades entre os vários grupos políticos, ressuscitaram as divisões tribais. Surgiram as amotinações, os pronunciamentos, as guerras entre tribos. A desordem endémica, em suma.








Luanda


Estas consequências da falta de verdadeira unidade nacional nos novos Estados africanos foram drasticamente combatidas. Quer dizer: os seus novos leaders, postos perante o dilema de se manterem fiéis aos slogans de propaganda de que a independência era a sequência natural de uma autonomia cultural de tipo nacional, ou de repudiar as suas consequências lógicas, pelo menos no que respeitava às estruturas sociais típicas, não hesitaram.

Para assegurar a unidade, por toda a parte o tribalismo foi combatido e instituíram-se regimes de tipo ditatorial apoiados em partidos únicos sujeitos a uma disciplina férrea.

Não se hesitou em recorrer aos meios mais violentos para eliminar as oposições. A língua do antigo colonizador foi imposta como língua nacional.

Muito mais haveria a dizer a este respeito, mas não pretendo fazer a análise completa do processo das independências africanas, antes apenas extrair dos seus aspectos sociológico-políticos mais relevantes a lição necessária para o caso português (in O Ultramar, a Nação e o "25 de Abril", Atlântida Editora, Coimbra, 1977, pp. 13-24).

Continua


Início da subversão violenta na África portuguesa (ii)

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Escrito por Cunha Silva




















«Que o Partido Comunista Português [PCP] tenha sido o casulo onde a partir da década de 1950 se incubaram várias organizações políticas e estudantis, tanto portuguesas como africanas, é uma questão que certamente não oferece dúvidas. O mesmo não se aplica ao MPLA, como pretende José Pacheco Pereira na sua estimulante reflexão sobre Álvaro Cunhal, ao dizer que o Partido de Agostinho Neto nasceu no seio daquela facção lusitana [ALIENÍGENA, SALVO SEJA].

Sem descortesia para com os trabalhos que tem produzido, de resto brilhantes, a confusão do articulista no presente caso parece-me proceder de pequenas falhas de conhecimento em relação a algumas realidades históricas fundamentais, concretamente a que se refere à génese do movimento nacionalista moderno nas ex-colónias portuguesas de África e à sua fase de transição para a rebelião armada. Se Pacheco Pereira tivesse lido a bibliografia vinda a lume nos últimos anos em Portugal, por certo não repetiria que o MPLA desde as suas origens traz o selo do PCP. De muito batida pelo uso, esta falsa versão converteu-se em "verdade" histórica.

Pacheco Pereira não está sozinho neste equívoco que tem sido uma constante entre os pesquisadores. Sem embargo, este mal, se assim se pode qualificar, é menor quando comparado com certas práticas hoje comuns em centros académicos, não só de Portugal como de vários outros quadrantes; pois o que se observa, faz já um tempo, é uma reconstrução da história baseada em métodos de segregação político-ideológica. Em geral os trabalhos relacionados com as histórias do MPLA, da FRELIMO ou do PAIGC estão a ser escritos de forma parcial; quase diria, com o propósito de agradar às elites políticas detentoras do Poder em África. Enroupada com o manto da cientificidade, esta perversão tem originado uma crescente mitologização [passe o neologismo] de figuras que reluzem nos panteões daqueles partidos. São os "heróis", dizia-me uma professora brasileira deslumbrada com Agostinho Neto e com todo o imaginário da gesta guerrilheira. Na verdade, a historiografia da luta de libertação na África lusoparlante vem sendo corrompida por leituras e análises metodológicas nada consentâneas com a objectividade científica da história. A manipulação dos dados históricos é um exercício usual que se observa no dia-a-dia. Idiossincrasias e simpatias particulares temperadas por afinidades culturais e, sobretudo, partidárias, constituem, a meu ver, a explicação mais plausível para este fenómeno de cátedra.




Agostinho Neto e Fidel Castro




























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Os volumes que compõem o suplemento ao Dicionário de História de Portugal, dirigido por António Barreto e Maria Filomena Mónica, são por si neste sentido o que há de mais ilustrativo. Para além de um sem número de lacunas graves, nesta obra nem sequer se abriu um verbete dedicado a Viriato da Cruz (1929-1973), o verdadeiro pai do MPLA e seu secretário-geral até 1962. Com efeito, este movimento insurgente despontou do cérebro genial de Viriato da Cruz durante o tempo que ele viveu exilado na Alemanha Democrática, de 1958 a 1960. Em Tunis, após o conclave de chefes de Estado africanos que ali se realizou em Janeiro de 1960, ele criou uma sigla, um nome, o primeiro sopro de vida do MPLA que se provou ter sido a decisão certa em termos de estratégia futura. A seguir veio Conakry [de que ninguém fala], onde ele esculpiu com mão firme toda a estrutura orgânica do novo corpo político; foi ele igualmente que ideou a bandeira do Movimento que perdura até hoje; foi ele, no fim daquele ano, que projectou o MPLA para o mundo inteiro ao discursar na Câmara dos Comuns, em Londres.

Deliberadamente, no entanto, persiste-se em manter no Tártaro um vulto histórico como este. Porquê? Porque é um "anti-herói" [um "traidor"], de acordo com as premissas escatológicas do MPLA, que cedo começou a reescrever a sua história. Ele teve a ousadia de dissentir de Agostinho Neto, que acabara de chegar em meados de 1962 a Léopoldville, fugido de Portugal diante de uma PIDE "totalmente distraída". Viriato, ideologicamente, situava-se nos antípodas de Neto. Este era a emanação perfeita do militante disciplinado na rígida filosofia do aparelho do PCP. Dificilmente um marxista-leninista ortodoxo e um maoísta se poderiam entender num tempo em que as fracturas nas relações entre a União Soviética e a República Popular da China se multiplicavam em cadeia, provocando rachaduras em todos os partidos marxistas-leninistas e no movimento comunista internacional. As formulações de Neto inspiravam-se na cartilha do PCP, de alinhamento às teses soviéticas sobre a coexistência pacífica entre os blocos socialista e capitalista, inaugurada em 1959 com a viagem de Khrushchev aos Estados Unidos; de imediato tais formulações provocaram a reacção de Viriato, especialmente porque Neto, à luz da "détente", entendia ser imperativo adiar a luta armada e negociar com Lisboa, como, aliás, o fez em Novembro de 1963 ao iniciar conversações com um emissário do governo português em Léopoldville. O que se assistiu foi ao rompimento, à destituição de Viriato pela força e a sua perseguição pelos anos fora, até na China, onde se refugiou em 1966.

Afinal, quem de entre os historiadores portugueses capricha em apagar a memória de Viriato? Na linha da frente estão os acaudilhados ao PCP. O Partido de Álvaro Cunhal não perdoa a Viriato o facto de este dirigente ter alinhado com os chineses e de, nos idos de 1955, ter fundado o Partido Comunista Angolano à revelia dos soviéticos, sem descartar outro inconveniente, que foi ter-se inspirado nos estatutos do Partido Comunista Brasileiro. Dado o seu papel dominante no mundo comunista, Moscovo não aceitou esta conduta de Viriato e, desde logo, passou a hostilizá-lo.








Pequim






















Guiné Conakry





Guiné Portuguesa





Brasão de Armas da Guiné Portuguesa





Portugal integrado na União Europeia





Império Português em 1800




Portugal na Península Ibérica no final do século XII







Em jeito de conclusão, retorno ao texto de Pacheco Pereira. Pelo exposto, pode entender-se que o ovo chamado MPLA jamais poderia ter sido chocado no regaço do PCP. Desde a primeira hora que Viriato procurou o apoio político, logístico e financeiro dos chineses, tanto que os contactos com a Embaixada da China em Conakry foram subindo de grau e qualidade. Em Léopoldville, esse intercâmbio e respaldo reforçaram-se, o próprio Viriato, juntamente com Eduardo dos Santos e outros dirigentes, chegou a receber treino militar em Beijing, em Agosto de 1960.

Entretanto, Pacheco Pereira poderá contraditar-me: "Muito bem, Neto foi encontrar essa situação, porém ao instalar-se na presidência [a partir de Dezembro de 1962] ele deu uma guinada e virou-se para a União Soviética". É verdade, estou de acordo. Isto, todavia, não permite afirmar que o MPLA seja um filhote do PCP.

(...) No passado colonial, pelo menos, a política de investimentos da Universidade de Harvard fê-la comparticipar de onze grandes corporações transnacionais que operavam em Angola: a Caterpiller, o Chase Manhattan, a General Electric, a Getty Oil, a Gulf Oil Company, a IBM, a ITT, a Pfizer, a Standard Oil of California, a Texaco e a Union Carbide. Mas onde Harvard detinha um maior volume de capitais era na Gulf Oil Company [671.187 número de acções], IBM [187.408] e Texaco [770.259]...

(...) Hoje é enorme a minha surpresa quando vejo a China a investir gigantescos recursos financeiros em Angola, a comprar petróleo e gás [é o segundo maior cliente depois dos EUA], a reabilitar infra-estruturas e vias de comunicação pela mão das suas empresas; a investir no sector da saúde, a preparar-se para realizar investimentos na produção de hidrocarbonetos e no parque industrial; e ainda a financiar créditos para a construção de novas instalações militares. Na realidade, estou surpreendido com a amplitude desta cooperação bilateral, cujos planos avançam rapidamente. Todavia, o meu maior assombro é ver, a cada dia que passa, a população chinesa a aumentar, estimando-se que o contingente nos próximos anos atinja a cifra de quatro milhões. Uma boa parte destes indivíduos com certeza irá fixar-se nos campos a fim de ter um papel decisivo na recuperação da agricultura e da pecuária. É natural que o país, com tantas bocas para alimentar depois da injecção de novos habitantes, necessite de ser autónomo em matéria alimentar.







A Nova Cidade de Kilamba - uma 'cidade-fantasma chinesa'às portas de Luanda (ver aqui)



(ver aqui)











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Luanda











37 suspeitos envolvidos em crimes contra chineses em Angola aterram em Pequim (25.06.2012)



Diante destes novos cenários regozijo-me com o facto de a ideologia do Governo ter mudado e já não haver temores com o "perigo amarelo". Seria infantilismo, e até um retrocesso, erigir este preconceito em política de Estado. A penetração do capital chinês e a vaga de imigrantes que a acompanha, em pouco tempo trará vantagens não difíceis de quantificar. Uma vantagem, talvez a mais sensível, na minha opinião, são os bons hábitos de trabalho. Os angolanos têm muito que aprender com os chineses e com as suas milenares regras de disciplina e rigor, que contrastam, por exemplo, com a dos cubanos que sempre se me afiguraram algo indisciplinados, mesmo descontando o facto de terem estado em Angola simplesmente como guarda pretoriana do Poder político.

(...) Na verdade, os angolanos estão preocupados. A primeira dúvida é com o problema da mão-de-obra chinesa. Todos os dias desembarcam no país magotes de chineses. À partida o mercado de trabalho tem as portas totalmente franqueadas para eles, que vêm arregimentados da China pelas respectivas empresas que se estão a implantar e a investir maciçamente em áreas-chave da economia nacional. Apreensivos com esta situação, os filhos da terra perguntam-se: "E nós, que oportunidades nos estão reservadas?".

Outra dúvida é o comportamento social desses adventícios que vivem isolados no interior de fronteiras de auto-exclusão. Em vez de conviverem com os naturais, separam-se. Os angolanos estranham e perguntam se eles estão no país para se integrarem ou se preparam para formar uma pequena China, à parte [espécie de Chinatown], e erigirem à sua volta uma barreira de isolamento entre os dois povos.

É lícito este tipo de objecção. As pessoas, apesar de tudo, têm medo de ver o seu país de repente "invadido" por milhares de orientais e não terem a oportunidade de os conhecer de perto numa dinâmica de interrelação social; têm medo que este afastamento crie nesses estrangeiros um sentimento de superioridade e propensão para determinados abusos, como já aconteceu em Moçambique.

(...) Mas o maior receio é com o expansionismo da China comunisto-capitalista. No fundo os angolanos receiam a projecção do poder geopolítico desta nação dentro das suas fronteiras. Eles guardam bem fresca na memória a política de influência estratégica da União Soviética e de Cuba no tempo da Guerra Fria, que custou a Angola uma guerra civil devastadora. Não que se esteja a confundir o expansionismo chinês com o expansionismo soviético. Este último, depois do golpe neo-estalinista que destituiu Nikita Khrushchev em Outubro de 1964, teve um perfil essencialmente militarista, caracterizado por uma estratégia de enfrentamento permanente com os Estados Unidos. Na África Austral Moscovo procurou enfraquecer os interesses do sistema capitalista internacional solidamente instalados no país de Nelson Mandela, ora dispondo de fortes bases operativas em Angola e Moçambique, ora controlando os portos e as rotas marítimas entre o Atlântico Sul e o Índico. Por compromissos ideológicos redundantes, de apoio irrestrito às políticas do Kremlin em troca de armas, Angola acabou por funcionar qual um campo de batalha entre as superpotências. Sofreu na carne e o resultado foi o país ficar destruído.



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Manuel Vicente com John Kerry em Washington



Chou En-Lai e Henry Kissinger














Quanto ao expansionismo chinês, as suas premissas são outras. É um expansionismo comercial, de "equilíbrio", como lhe chamou Henry Kissinger, sem veleidades de, por ora, fazer a oposição à unipolaridade dos EUA; um expansionismo articulado dentro de um complexo jogo de interdependências, na medida em que os Estados Unidos e a China, de acordo com o acertado diagnóstico do escritor académico americano David Rothkopf, são como que irmãos siameses, os quais, mau grado competirem entre si, estão intimamente ligados [...] por artérias financeiras e comerciais que não podem ser separadas sem colocar em perigo ambas as partes.

Em todo o caso, Washington olha com desconfiança para o poder económico da China [hoje de segundo nível no mundo], não obstante admitir que o dragão asiático, em atenção ao seu desenvolvimento galopante [...], necessita desesperadamente de matérias-primas para poder manter as suas taxas de [crescimento]. Ainda assim, não deixa de ser verdade que por vezes os estrategas americanos exageram na percepção da ameaça representada pelos chineses. Claramente incomoda-os o esforço que a China vem fazendo para penetrar em mercados tradicionalmente considerados hegemónicos pelos Estados Unidos. O hemisfério ibero-americano é um exemplo na medida em que já se rendeu aos investimentos chineses e às trocas comerciais com o colosso asiático. As consequências desta nova dinâmica não tardarão a fazer-se sentir na relação de forças dentro da Organização Mundial do Comércio.

Todavia, a maior fonte de apreensão dos neoconservadores no Departamento de Defesa centra-se em três eixos estratégicos fundamentais: o militar, o da inteligência e o da guerra cibernética. Dizem tais funcionários que, a continuar o actual desfasamento da América em relação à ajuda militar à região meridional, a China rapidamente se assumirá como uma alternativa aos Estados Unidos.

Por fim a penetração em África, e logo num mercado como o de Angola, tem igualmente favorecido o incremento do mal-estar. Ao contrário do que afirma o sociólogo comunista James Petras, para quem a China não é um grande poder, a América sente que esta consolidação geoestratégica na sua periferia de influência começa a ser, como lembrou o jornalista Gary Marx, um contrapeso ao seu poder planetário.














Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol)





















China Sonangol International Airbus A318-100




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Isabel dos Santos



É isto que os angolanos temem, que Angola venha a ser de novo confrontada com um duelo de gigantes. Os seus depósitos de petróleo, o seu gás e as suas minas são cobiçados palmo a palmo pelas economias industriais do Ocidente e agora também pela China, cujo crescimento vertiginoso lhe impõe necessidades em recursos energéticos que fatalmente a colocam em confronto com outros poderes rivais. Em Angola, Pequim tece uma laboriosa teia estratégica que não se restringe aos limites geográficos deste país. Os seus olhos estão igualmente postos na África Central. A saber, nas riquezas minerais da República Democrática do Congo [mais propriamente no Kivu-Sul], onde se localizam 80% das reservas mundiais de colombite-tantalite, mineral utilizado nas indústrias de telefones celulares, componentes electrónicos, centrais atómicas e espaciais, fabrico de mísseis balísticos e fibras ópticas. Estas reservas são controladas pelas principais corporações transnacionais [com os Estados Unidos à cabeça], que dispõem de forças militares próprias encarregadas de assegurar a defesa das minas.

Para Angola é um xadrês complicado e perigoso que fatalmente compromete os interesses americanos e até um determinado equilíbrio regional, na óptica do Pentágono [comando militar  dos EUA] e do Departamento de Estado. A posição de Luanda entre estas duas forças poderosas tem de ser o mais hábil possível por estarem em jogo os interesses nacionais. Sem esquecer a responsabilidade que cabe ao governo de José Eduardo dos Santos de deixar perfeitamente claro ao país qual o quadro estratégico em que se estão a desenvolver as alianças económico-financeiras e comerciais com a China. Só assim as pessoas se sentirão tranquilas».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«Concretamente em Angola, o MPLA, nascido em Paris a partir da célula do PCA (partido comunista de Angola), começa, no final da década de 50, a montar a sua estrutura, na clandestinidade, dentro de Angola e em especial na região de Luanda. Por outro lado, os EUA fomentam a criação de um outro movimento que inicialmente se designou por UPNA (União dos Povos do Norte de Angola) e, posteriormente, por indicação dos americanos, se passou a designar por UPA (União dos Povos de Angola) tornando assim o movimento extensivo a todo o território, retirando-lhe o seu carácter regionalista. O MPLA, ainda com estrutura embrionária, começa a agitar as águas dentro de Angola o que levou o governo português a tomar medidas de precaução a partir de 1958. Mas o golpe das cadeias de Luanda realizado em 4 de Fevereiro de 1961, da iniciativa do cónego Manuel Das Neves, com o fim de libertar os presos feitos pela PIDE, foi reivindicado pelo MPLA.




Diogo Cão chegando ao Congo



Diogo Cão avançou pelo interior do reio Congo e deixou uma inscrição para comprovar a sua chegada às cataratas de Ielala




Curso e bacia hidrográfica do rio Congo




Imagem de satélite do rio Congo perto de Brazzaville




Padrão erigido por Diogo Cão no Cabo de Santa Maria (Angola)




O Padrão de substituição erigido no Cabo de Santa Maria























































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Universidade Patrice Lumumba em Moscovo








A 7 de Março Salazar recebe o embaixador americano cuja missão era transmitir a recomendação do presidente Kennedy no sentido de rever a sua política relativa ao ultramar de acordo com as recomendações da ONU. Assim os americanos preparam uma dupla acção para evitarem em Angola o que um ano antes tinha acontecido no Congo ex-belga em que, ao lado de um presidente pró-americano, Kasavubu, surge um primeiro-ministro pró-soviético, Patrice Lumumba, o que levou à total insegurança e instabilidade política, económica e social no novo país. Como consequência, para além dum ataque generalizado às populações do Norte de Angola conduzido pela UPA, assessorada por ex-militares americanos, os EUA procuram quebrar a unidade da retaguarda com o planeado golpe de estado de 8 de Abril, conduzido pelo ministro da Defesa Nacional, General Botelho Moniz, e a cooperação de outros militares altamente colocados no aparelho de Estado no sentido de Portugal aceitar o princípio da autodeterminação das colónias, a conceder num período nunca inferior a dez anos. Entretanto, os EUA apoiariam financeiramente o nosso País para levar a efeito as reformas indispensáveis ao desenvolvimento desses territórios. Sabe-se que Salazar ouviu, atenta e longamente, o embaixador e, no final, sem comentários, despediu-se cordialmente e pediu ao representante dos EUA em Lisboa para apresentar os seus respeitosos cumprimentos ao presidente do seu país.

(...) Perante (...) os desaires que tinha sofrido em Angola, a URSS durante o ano de 1972, decidiu alterar a sua estratégia, retirando o apoio que vinha dando ao MPLA e concentrando o seu esforço na Guiné. Esta nova estratégia aparece perfeitamente esclarecida num artigo do DN de 28 de Fevereiro de 2002 da autoria de José Manuel [Durão] Barroso com o título: "Concentrar meios no elo mais fraco", onde se pode ler:

"Portugal, o Portugal de Salazar e de Caetano e o da descolonização pós-25 de Abril, foi, ou não, também "vítima" da luta entre as superpotências? Duplamente. Primeiro, porque a cerrada manutenção do essencial da política africana, antes do 25 de Abril, não forjou uma saída política. Depois, porque a globalização da luta entre os interesses dos EUA e da URSS, na primeira metade dos anos 70, é de claro avanço do bloco comunista e de recuo do Ocidente. No que respeita à evolução da situação nas frentes de África (primeiro na Guiné e, depois, em Angola) é Moscovo quem irá determinar quais os momentos de viragem, no desmantelamento do império colonial português.

Num primeiro momento, agudizando a situação na Guiné, dando alguma vantagem militar ao PAIGC e utilizando habilmente a teoria do dominó. Sabendo, tal como Salazar e Caetano, que a teoria funciona, aproveitando a fragilidade de um dos teatros de operações (o da Guiné) e do rival americano (a braços com a ressaca da guerra do Vietname e com o Watergate), os soviéticos sobem a parada na frente guineense. Depois de terem proporcionado ao PAIGC, na viragem dos anos 60 para os anos 70, armas ligeiras e artilharia mais poderosa do que a do exército português e treino de quadros militares, os soviéticos fazem entrar no teatro de operações da Guiné os mísseis terra-ar, reduzindo a supremacia aérea portuguesa. E causando assim uma importante quebra no moral das tropas de Lisboa, o receio de uma nova Índia e um impulso decisivo para a contestação dos militares ao regime do Estado Novo.





Cacheu: a primeira feitoria portuguesa na Guiné






































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Treino de desembarque no Ilhéu dos Pássaros (1963)



Fuzileiros Especiais na Guiné Portuguesa







Terroristas do PAIGC

























Quanto ao movimento liderado por Amílcar Cabral em 1972, que estava em dificuldade para dar um salto qualitativo importante na sua ofensiva contra o exército português, os soviéticos propõem à liderança do PAIGC o fornecimento de mísseis. Em entrevista que me concedeu, e que foi publicada no DN, o ex-presidente da Guiné-Bissau, Luís Cabral, explica isso: "Havia no Comité Central do PC da União Soviética uns funcionários que se ocupavam de nós. Fomos informados por um alto funcionário do Comité Central, em Moscovo, que existiam essas armas anti-aéreas, que iam transformar a luta de guerrilhas em que o inimigo utilizava a aviação. Então Amílcar Cabral tratou do fornecimento dessas armas, foi a sua última missão na União Soviética". Amílcar pediu os mísseis ao CC do PCUS, mas já não conheceu a resposta - foi assassinado pouco depois, em Janeiro de 1973.

Uma delegação conduzida por um membro do Bureau Político do PCUS esteve em Conacri para os funerais. "Na reunião que tive com eles após a sua chegada", conta Luís Cabral, "a primeira notícia que deram foi que o pedido do Amílcar tinha sido aprovado". No regresso, a delegação levou consigo os quadros militares que iam aprender a manejar os Strella. Poucas semanas depois estavam operacionais e abatiam, pela primeira vez, aviões de combate portugueses"».


GENERAL SILVA CARDOSO («25 DE ABRIL. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA»).


«Durão Barroso foi um dos cabecilhas da Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas, ligada ao MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) - isto é, um movimento revolucionário maoísta. Ora, Barroso chegou, inclusivamente, a 'nacionalizar', na sequência do 25 de Abril, a mobília da Faculdade de Direito de Lisboa, transportando-a numa carrinha para a sede do partido. Em 1980, aderiu ao Partido Social-Democrata (PSD), que é hoje, na esteira de Sá-Carneiro, um partido socialista conotado com a direita. É o saco de pancada dos partidos da extrema-esquerda em Portugal, ou melhor, é um dos partidos do actual sistema plutocrático cujo papel é o de personificar uma direita que não existe em Portugal, para assim arcar, na totalidade, com as prepotências e as infindáveis torpezas do socialismo triunfante.

Entretanto, é mais que sabido que Barroso preferiu assumir um perfil mais sofisticado, ao aliar-se às forças e poderes do internacionalismo europeu, cujo propósito, já praticamente alcançado, é a destruição da EUROPA das PÁTRIAS, e, por conseguinte, de PORTUGAL. No fundo, trata-se do comunismo a meia-bomba, mas indubitavelmente eficaz».

Miguel Bruno Duarte

















«Tinham começado a chegar notícias de que Amílcar Cabral, aproveitando o impacto causado na opinião internacional pelos acontecimentos de Guidag, Gadamael e Guilege, se preparava para proclamar a independência do território e a fundação da República da Guiné-Bissau.

Parece, porém, que o não queria fazer imediatamente, pois sabia que não tinha o domínio efectivo do território e, por isso, aquela proclamação só podia ter carácter simbólico.

Chegavam-nos, também, notícias de fortes divergências no seio do PAIGC, dividido entre os adeptos daquela orientação de Amílcar Cabral e os que alinhavam com Sékou Touré, que queria que a independência fosse imediatamente proclamada.

Não estão bem esclarecidas as circunstâncias deste conflito, mas venceram os partidários de Touré. Amílcar Cabral foi assassinado por um grupo de partidários seus, parece que por instigação daquele».

Silva Cunha («O Ultramar, a Nação e o "25 de Abril"»).


«1973 foi o ano do início da transição e que teve por palco o pequeno e difícil território da Guiné. Os mísseis Strella, prometidos pela URSS ao PAIGC, fizeram a sua aparição pela primeira vez em todos os territórios portugueses onde se desenrolava a luta subversiva. Os resultados, provocados pela eficácia deste tipo de armamento e exploração do factor surpresa, foram pesados para as nossas forças que viram cinco aeronaves abatidas em poucos dias. Mas, passada a surpresa, rapidamente os nossos pilotos descobriram a forma de continuarem a cumprir a sua missão e evitar esta nova capacidade das forças de guerrilha. Chegou mesmo a constar que, a curto prazo, o PAIGC iria dispor de meios aéreos para neutralizar a nossa superioridade aérea.








Por esta altura, o tentáculo da URSS neste TO dispunha de cerca de 5000 guerrilheiros bem equipados e treinados na Checoslováquia e na Rússia e coadjuvados por militares cubanos nas suas incursões ao território da Guiné.

A esta capacidade contrapunham-se, além dos militares metropolitanos do Exército, da Marinha e da Força Aérea, cerca de 12.000 guinéus que constituíam unidades de comandos, milícias e guardas rurais, formando um conjunto aguerrido de grande eficácia, pelo conhecimento que tinham do terreno e do inimigo. Com estas forças que compunham os potenciais de combate das organizações em conflito, era pouco provável uma evolução desfavorável para as nossas forças e, só em face da política do poder central de não se atacarem os refúgios do inimigo nos territórios vizinhos, não foi tão positiva a evolução como nos outros TOs.

Dentro da nova estratégia da URSS, haverá que destacar mais um acontecimento que teve lugar na Guiné e que, paralelamente à acção de força desencadeada, visava ainda um maior descrédito da nossa política ultramarina e uma mais acentuada contestação nos areópagos internacionais. O PAIGC, arrogando-se falsamente na posse de dois terços do território (de facto não dominava qualquer área) declarou, em 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé, uma região fronteiriça a Leste do território sem qualquer presença de vida humana, a independência do Estado da Guiné-Bissau sob a presidência de Luís Cabral, curiosamente sem Bissau e sem Guiné. Este novo Estado fantasma, sem capital em qualquer das zonas libertadas, foi de imediato reconhecido por oitenta e dois países principalmente africanos e comunistas. Foi mais um trunfo político que a URSS tentou explorar a nível internacional, sem sucesso visível. Mas, apesar de todo o esforço desenvolvido no campo militar e diplomático, não tinham conseguido os efeitos desejados - o soçobrar da nossa resistência.








Autor: Neves Anacleto. Ano de edição: 1974













Otelo e Fidel Castro









Em Fevereiro de 1973, o então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho acompanhou numa viagem de carro entre Bissau e Farim - que fica perto da fronteira com o Senegal - a jornalista sueca Katarina Engberg. Posteriormente, no que escreveu no seu jornal de Oslo, a jornalista afirmava o que o capitão Otelo lhe fez notar ao longo desta viagem: "Amílcar Cabral tem dito sempre que os portugueses apenas se podem deslocar na Guiné com helicópteros. Mas você pode agora ver por si própria que isso não é verdade". Também, em meados de 1973, o General Costa Gomes afirmou: "no seu estado actual a Guiné é defensável e deve ser defendida". Esclareceu que por "estado actual" pretendia condicionar a sua afirmação ao não aparecimento de "aviação a jacto a bombardear-nos". Na altura chegou a aventar-se esta hipótese que nunca se concretizou.

Desta forma a estratégia da URSS para, através da força, derrotar Portugal na Guiné, saiu gorada como já tinha acontecido nas diferentes fases da luta em Angola ao longo de doze anos.

(...) A União Soviética, face a todos estes fracassos que tiveram lugar no terreno, não conseguindo, contra todas as expectativas bater as nossas forças, vê-se forçada a, mais uma vez, rever a sua estratégia que já não irá passar pelo confronto directo das armas. No entanto, durante o ano de 1973, o facto de ter incrementado a pressão militar no TO da Guiné, pode considerar-se apenas uma manobra de diversão para se lançar numa nova estratégia que não passava, necessariamente, pelo esmagamento militar naquele território.

A posição defendida em Viena de Áustria, naquele longínquo Junho de 1961, quando Kruschev afirmou que: "muitas vezes o único recurso dos povos é o recurso às armas", não era válida no caso português e implicava a revisão das modalidades de acção até então utilizadas para conseguir o objectivo que perseguia desde o início da chamada Guerra Fria. Tudo isto consequência da acção desenvolvida pelas nossas forças que escreveram páginas de glória da nossa história militar possivelmente só ultrapassadas pela enorme epopeia dos descobrimentos.
















John P. Cann, Coronel do exército dos EUA, no seu livro Contra-Subversão em África - o modo português de fazer a guerra, no Capítulo I - Uma notável proeza de armas - escreve:

"Entre 1961 e 1974, Portugal enfrentou a tarefa extremamente ambiciosa de dirigir três campanhas de contra-insurreição simultaneamente: na Guiné, em Angola e em Moçambique. Nessa altura, Portugal não era um país rico nem desenvolvido. De facto, pela maioria dos padrões de avaliação económica, era o menos rico dos países da Europa Ocidental. Deste modo, constituiu um feito notável que Portugal, em 1961, conseguisse mobilizar um exército, o transportasse para as suas colónias em África, a muitos milhares de quilómetros, aí estabelecesse numerosas bases logísticas em locais-chave, de maneira a fornecer-lhe apoio, o preparasse com armas e equipamento especial e o treinasse para um tipo de guerra muito específico. O que se torna ainda mais digno de nota pelo facto de estas tarefas terem sido cumpridas sem qualquer experiência anterior, nem competência provada em campo, em matéria de projecção de poder ou de guerra de contra-insurreição, e por conseguinte sem beneficiar de instrutores competentes nessas especialidades. Para que se constate melhor este último ponto, e com excepção de algum episódio de pacificação colonial, Portugal não disparava um tiro desde a Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu o Norte de Moçambique e o Sul de Angola".

E John Can termina este mesmo capítulo afirmando: "O facto de Portugal ter perdido a guerra por não ter conseguido encontrar uma solução política não nega as suas proezas militares, nem a lição que pode constituir para outros conflitos futuros"».

GENERAL SILVA CARDOSO («25 DE ABRIL. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA»).


«Portugal não perdeu a Guerra do Ultramar. Foi criminosamente traído por via das revoltas estudantis impulsionadas por células do PC no redil universitário, assim como por via do golpe marxista-leninista levado a cabo por um núcleo restrito das forças armadas no 25 de Abril de 1974. Em suma: um golpe premeditado e inspirado por potências, forças e poderes internacionais.

Miguel Bruno Duarte





































































Jorge Félix 







Elmano Jorge Caleiro: Oficial da 7.ª Companhia de Comandos, em Angola e Moçambique



7.º Dan Shito-Ryu (ver aqui)




Ver aqui




Estágio de Kobudo na Escola Preparatória de Miraflores (23 de Setembro de 1994), liderado por Elmano Jorge Caleiro e Juan Bisz Lorenzo. Miguel Bruno Duarte: o 3.º da 2.ª fila à esquerda (aluno de Elmano Caleiro e na altura 1.º Dan de Karaté Shito-Ryu); Elmano Jorge Caleiro: o 1.º da 2.ª fila à direita (na altura: 6.º Dan de Karaté Shito-Ryu).







'Junta de Salvação Nacional' (26 de Abril de 1974)








General Ramalho Eanes e Mário Soares











«Também o General Bernard E. Trainor, autor do prólogo do referido livro, afirma: "Ainda hoje a abordagem sistemática e lógica de Portugal perante o desafio da insurreição contém uma preciosa lição para qualquer país que se veja forçado a empreender uma pequena guerra sem grandes custos".

Muitos outros estrategas analistas de conflitos armados ou críticos da arte da guerra poderiam aqui ser citados sobre a forma como enfrentámos tamanho desafio. Mas é curioso salientar que estas análises, claramente favoráveis a Portugal, sejam quase exclusivamente de personalidades estrangeiras. E digo "quase" porque, embora não conheça, admito que também entre nós vozes respeitáveis se tenham debruçado sobre esta temática, mas, por qualquer razão, não chegaram ao meu conhecimento. No entanto, e com uma certa frequência, tenho ouvido ou lido referências à "hedionda", "criminosa", "opressora" e outros epítetos do mesmo jaez, guerra dita colonial.  A título pessoal, posso afirmar que após ter participado nos primeiros anos de guerra em Angola, fui colocado em finais de 1964 como Adido de Defesa junto da nossa embaixada na Alemanha. Ali, onde permaneci durante quatro anos, tive oportunidade de contactar com camaradas militares oriundos de mais de uma centena de outros países no exercício de funções similares. Não afirmo que o mundo estivesse atónito com o nosso desempenho, mas testemunhei que lhes era difícil compreender como um pequeno país, com magros recursos, dispondo de umas forças armadas à sua medida e apenas alguma preparação para conflitos de tipo clássico, estava a ser capaz de abarcar, com indiscutível êxito, uma missão que nem os mais cépticos se atreviam a vaticinar. Mesmo os camaradas oriundos de países hostis com os quais não mantínhamos qualquer tipo de relações, não se inibiam de manifestar a sua surpresa, por vezes perplexidade, pela caminhada, sem dúvida muito dura e espinhosa, que vínhamos empreendendo naquelas terras de África com uma dispersão de meios humanos e materiais (a maioria obsoletos) absolutamente impensável. Faziam perguntas, pretendiam saber como actuávamos tanto no campo táctico como técnico. Senti orgulho em ser português e militar e tudo isso teve reflexos altamente positivos na forma como fui "olhado" pelos outros camaradas, mesmo africanos!


Já na década de 80, e no exercício das funções de Comandante Chefe dos Açores, responsável pela sua defesa e segurança com uma dupla dependência - EMGFA e SACLANT - tomei conhecimento de que os EUA dispunham de um plano de defesa do arquipélago elaborado logo após o 25 de Abril, quando as nossas Forças Armadas e o próprio poder político em Portugal não ofereciam quaisquer garantias para o cumprimento desta missão. Face à importância estratégica que a base das Lajes representava para os nossos aliados, não hesitaram em garantir a sua utilização em caso de necessidade. No início do desempenho das minhas funções, recebi a visita de trabalho do Comandante da SACLANT, Almirante MacDonald, a quem dei a conhecer esta situação, esclarecendo que não estávamos dispostos a consentir a mínima interferência, mesmo do nosso aliado, para executar uma missão que só a nós, portugueses, dizia respeito. Não deixei de recordar ao Almirante, que tínhamos provado à sociedade que dispunhamos de capacidade e engenho para gerir conflitos desde que dispusessemos dos meios adequados, como tinha acontecido durante treze longos anos em África onde, absolutamente sós, e até com a oposição de alguns dos nossos aliados na NATO entre os quais tinha de incluir os EUA, conseguimos evitar, de forma clara e inequívoca, que o inimigo atingisse os seus objectivos no campo militar.









Ele compreendeu a mensagem e passei a receber do SACLANT toda a colaboração e apoio para garantir o cumprimento da missão. As nossas capacidades de comando, organização e execução, bem testadas durante o nosso empenhamento em África com resultados bastante distintos dos alcançados por outros países em conflitos similares, como os EUA no Vietname e a França na Indochina, para só mencionar estes, foram suficientemente claras para esclarecer o Almirante.

Apesar disto, hoje é frequente verificar-se uma quase obsessão em denegrir todo o nosso passado desde o início da 2.ª República até ao fim da guerra do Ultramar, embora sobre a descolonização ou suas consequências se tenha feito um estranho silêncio. As transmissões na televisão das séries designadas por Crónicas do Século XX são disso uma prova clara cuja finalidade só pode ser a de reescrever a História. O resultado é quase criminoso pelas omissões, distorções e meias-verdades que transparecem ou são evidentes ao longo do seu desenrolar. Mas não é só nestas séries televisivas apresentadas durante o verão de 2002 que tal mistificação se verifica. Nas análises que muitos "esclarecidos" bem conceituados na nossa sociedade fazem sobre esse mesmo período, e em muita da literatura que aparece nos escaparates tratando assuntos relativos à época em questão, a tónica é a mesma. Mas o que ainda é mais chocante é o que se verifica nas nossas escolas com o ensino da disciplina de História onde até o conteúdo dos próprios manuais está inquinado pelo mesmo mal. Como exemplo flagrante, posso referir que naquele ano, na passagem de mais um aniversário do 25 de Abril, as crianças duma escola EB 2, 3 foram convidadas a fazer uma pequena composição sobre o significado desta efeméride. Alguns dos textos foram publicados no jornal regional da cidade ocupando duas páginas completas do semanário. Mais ou menos elaborados, todos sem excepção consideravam que naquela data se iniciara um novo ciclo da nossa História com o fim da ditadura, da guerra colonial, das perseguições da PIDE e que, finalmente, vivíamos em liberdade e democracia não deixando de mencionar e enaltecer os "heróis" que tornaram possível essa viragem.

É clara a intenção de inculcar nas nossas crianças tudo o que marcou negativamente a política do Estado Novo distorcendo os factos históricos, sem qualquer referência ao que de muito positivo teve lugar. A extraordinária recuperação económica e financeira, a não participação na Guerra Civil de Espanha, um grande crescimento social e económico apesar da guerra no Ultramar, a participação na OTAN, na ONU, na EFTA, etc. são provas de que a coluna do haver suplantava a coluna do deve».

GENERAL SILVA CARDOSO («25 DE ABRIL. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA»).








«Tomada a decisão de ficar [no Ultramar], foram traçadas as directrizes a que havia de obedecer a sua execução. Em primeiro lugar, assegurar a defesa militar, combatendo os grupos terroristas, evitando que se instalassem em força nos nossos territórios e procurando a sua expulsão ou aniquilamento.

A acção militar seria acompanhada, no plano externo, pela acção diplomática para combater a campanha internacional de que éramos alvo, conservar os nossos amigos e, se possível, conquistar outros. Embora não se aceitasse o princípio da cedência às organizações terroristas, na acção diplomática a desenvolver incluía-se o contacto com os chefes daquelas organizações para procurar soluções pacíficas, desde que não implicassem o sacrifício da soberania portuguesa.

No plano interno, prosseguir-se-ia na política de desenvolvimento económico e promoção social, que se procuraria intensificar na medida em que os meios financeiros disponíveis o permitissem, tendo sempre presente que, em guerra subversiva, o essencial é conservar o apoio das populações e, portanto, que esta política se revestia de fundamental importância.

Ainda no plano interno, procurar-se-ia alargar a participação das populações no governo e administração das Províncias, para o que era necessário proceder a algumas reformas legislativas.

A execução simultânea de uma política de defesa e de fomento económico e promoção social exigia meios financeiros avultados, só possíveis mediante uma austera e prudente administração financeira, tanto nas Províncias Ultramarinas como na Metrópole, e até, principalmente, nesta. Na verdade, além de suportar os principais encargos da Defesa, a Metrópole contribuía substancialmente para o financiamento dos planos de fomento no Ultramar, concedia auxílios financeiros às Províncias em situações de emergência (como a Cabo Verde, durante a seca, e a Moçambique para ajudar a vencer a crise provocada pelo desequilíbrio da sua balança de pagamentos), e dava frequentes moratórias para o pagamento das amortizações e juros dos empréstimos com que financiava os planos de fomento.





O brasão da cidade de Lourenço Marques




Beneficiaram largamente destas providências a Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Timor, além disso, recebeu sempre a sua quota-parte dos financiamentos dos planos como subsídios gratuitos, sem prazo certo de reembolso.

Entendeu-se sempre que, para poder prosseguir na política de desenvolvimento da parcela europeia do território e de melhoria das condições de vida dos seus habitantes, simultaneamente com a defesa e valorização do Ultramar, se devia sobretudo utilizar recursos financeiros gerados na própria comunidade nacional (evitando o recurso excessivo ao crédito externo), manter rigoroso equilíbrio orçamental, uma moeda forte, condições que atraíssem investimentos estrangeiros e tributação que, assegurando uma justa distribuição dos bens, não fosse excessivamente pesada.

Esta política permitiu: pagar as despesas militares apenas com recursos do orçamento ordinário; utilizar os excedentes das receitas sobre as despesas do mesmo orçamento para financiar parte dos planos de fomento, quer na Metrópole, quer no Ultramar; reservar o recurso ao crédito externo para custear obras extraordinárias de fomento como, por exemplo, a ponte sobre o Tejo, o plano das auto-estradas, o plano de Sines, os planos de desenvolvimento turístico e Cabora-Bassa.

Havia quem criticasse o Governo pelo excessivo classicismo e prudência desta orientação. Consideravam demasiado elevadas as reservas do Banco de Portugal e acoimavam de obsoleta a preocupação de equilíbrio orçamental, acusando-a de ser um travão ao desenvolvimento económico; afirmavam que o recurso ao crédito externo era excessivamente tímido, pois estava-se muito longe do plafond que constituía o limite de segurança aconselhado pelo Banco Mundial.

Nunca, porém, os sucessivos responsáveis pela gestão do Ministério das Finanças deixaram de seguir a orientação exposta, o que assegurou a Portugal, no contexto da vida internacional, uma reputação de seriedade e uma confiança de que era expressão a solidez da sua moeda, cujas cotações resistiram às várias crises financeiras que afectaram moedas tão prestigiadas como o dólar e lhe permitiram raramente encontrar dificuldades quando quis recorrer ao crédito externo. Pode dizer-se mesmo que as únicas restrições que neste campo se apresentaram nos foram impostas pelo Banco Mundial, não por motivos de ordem económica e financeira, mas em obediência à orientação de não desagradar aos Estados afro-asiáticos.

Os elementos de informação que permitem confirmar estas afirmações são abundantes e a sua consulta está à disposição de todos quantos desejem esclarecer-se.

Cito os relatórios anuais de contas públicas que o Governo sujeitava anualmente à apreciação da Assembleia Nacional, depois de julgadas pelo Tribunal de Contas. Cito ainda os relatórios do Banco de Portugal. Se porventura, porém, estes documentos forem considerados pouco seguros e objectivos, lembro os relatórios anuais da OCDE e do próprio Banco Mundial.




Construção da Ponte sobre o Tejo
























Lembro-me de que o último que pude ler, referente a 1972, concluía com a afirmação de que as perspectivas de evolução a curto prazo da economia portuguesa eram brilhantes.

Os princípios que apontei presidiam também à administração financeira das Províncias, mas a autonomia de que estas gozavam não permitia sempre a intervenção oportuna para corrigir desvios daquela orientação.

O Ministro do Ultramar tinha nesta matéria apenas poderes de orientação e fiscalização, e as suas intervenções tinham de limitar-se quase às de conselheiro dos governos provinciais.

Algumas dificuldades as Províncias experimentaram por não se conformarem com as directivas sugeridas.

Foi o que aconteceu em Moçambique, facto que forçou à concessão em 1974 de um empréstimo extraordinário.

A prudência usada na administração financeira não prejudicou nem o desenvolvimento económico nem o aumento do bem-estar das populações.

Não se caminhou tão depressa como os críticos desejavam? É certo! Mas ganhou-se em solidez de obra feita. Que o digam os governos posteriores ao 25 de Abril, que só puderam sobreviver economicamente à custa das reservas que encontraram - "a pesada herança do fascismo", como o povo ironicamente lhes chama...

(...) Junto do governo da Zâmbia se fizeram igualmente diligências com o objectivo de estabelecer boas relações de vizinhança entre aquele país, Angola e Moçambique.

As primeiras tiveram lugar durante o governo do Doutor Salazar e continuaram depois de o Doutor Marcello Caetano ter assumido a Presidência do Conselho de Ministros.

As primeiras conversações decorreram em Nova York e Londres, por intermédio dos nossos representantes diplomáticos, respectivamente junto da ONU e do governo britânico, do representante da Zâmbia naquela Organização e do Alto-Comissário do mesmo país na capital inglesa.








Para a efectivação dos primeiros contactos desempenharam papel muito relevante o Primeiro-Ministro da Zâmbia, Mark Shona, e os administradores ingleses do Caminho-de-Ferro de Benguela, especialmente Lord Colyton, antigo membro do governo britânico, o que não deve causar estranheza se se tiver presente a importância de que se revestiam, para a Zâmbia, os nossos portos e caminhos-de-ferro.

A iniciativa, salvo erro, partiu da Zâmbia que, para esse efeito, aproveitou os contactos frequentes e fáceis que mantinha, em Londres, com aquelas entidades.

O Governo Português foi sempre mantido ao corrente do que se passava pelo Presidente do Conselho de Administração da empresa, Dr. Alexandre Pinto Basto, que nesta como noutras matérias prestou relevantes serviços ao País.

Depois dos primeiros contactos pelas vias indicadas, houve troca de correspondência entre o Doutor Salazar e o Presidente da Zâmbia, Kaunda, em que os dois homens de estado reciprocamente expuseram os seus pontos de vista sobre os principais problemas da política africana em geral, sobre os que diziam respeito directamente à África austral, bem como sobre o teor das soluções que poderiam ser adoptadas para estabelecer entre os dois países boas relações de vizinhança.

Como é de calcular, as opiniões emitidas não eram coincidentes.

O Doutor Salazar expôs a sua concepção de uma África em que brancos e pretos pudessem conviver, desde que mutuamente se respeitassem, e defendeu a política portuguesa que visava a constituição de sociedades multirraciais em Angola e Moçambique, as quais poderiam ser factores utilíssimos de equilíbrio na África Austral, atenuando os efeitos das tensões políticas e raciais que se verificavam naquela área. E assegurou o seu desejo de manter boas relações com a Zâmbia e oferecia a colaboração de Portugal para resolver, em regime de leal cooperação, os problemas de interesse comum.

Kaunda expôs a sua concepção do que denominava humanismo cristão africano, insistiu no direito à independência de todos os povos africanos, e ofereceu-se para servir de medianeiro para a concessão da independência a Angola e Moçambique, envolvendo sempre as suas afirmações em declarações do propósito de manter connosco relações de boa vizinhança e repudiando quaisquer possibilidades pela acção dos grupos terroristas em Angola e Moçambique.

Era patente a sua falta de sinceridade, pois sabíamos de fonte segura e possuíamos provas da existência, junto das fronteiras da Zâmbia com as duas Províncias, de bases do MPLA e da UNITA (Angola), da COREMO e da FRELIMO (Moçambique) e até dos incidentes que obrigaram à suspensão do tráfego pelo Caminho-de-Ferro de Benguela.



Zâmbia


À troca de cartas seguiu-se, com acordo do governo da Zâmbia, transmitido por Shona, o envio por duas vezes de missões diplomáticas a Lusaka, para continuar as conversações e procurar estabelecer entre os dois países boas relações mútuas, como as que mantínhamos com o Malawi e a Suazilândia.

Além das questões de ordem geral que nos interessavam, havia outras específicas que poderiam constituir campo fértil de colaboração.

(...) Os nossos esforços, em todos os campos, foram, porém, em vão.

Contra eles lutavam os outros países membros da OUA e a República Popular da China, que, paciente e pertinazmente, se foi infiltrando na Zâmbia, na execução da sua política de expansão no continente africano.

A ligação ao caminho-de-ferro de Nacala e o ramal do caminho-de-ferro de Benguela nunca se construíram. Em substituição do primeiro, com a pretensão de tornar a Zâmbia independente, quanto às ligações com o mar, da Rodésia e de Moçambique, foi lançado um projecto de via férrea que, partindo do território zambiano, tinha o seu terminal no porto de Mutuwara, na Tanzânia.

Era uma solução puramente política, impraticável sob o ponto de vista económico e que, por isso, o Banco Mundial se recusou a financiar.

O percurso é demasiado extenso, o que torna o transporte do cobre, principal produto de exportação da Zâmbia, extremamente oneroso. O porto terminal - Mutuwara - é de pequenas dimensões, há muito está saturado, e não tem condições naturais para ser ampliado. O terreno por onde passa a via férrea é difícil e acidentado e exigiu a construção de numerosas obras-de-arte que encareceram extraordinariamente a execução do projecto.

A China, porém, encontrou neste projecto a oportunidade não só para acentuar a sua influência naquela região, mas também para nela se instalar.

Financiou a obra e encarregou-se da sua construção, o que lhe permitiu enviar para a Zâmbia e para a Tanzânia, juntamente com os operários e os técnicos, militares e propagandistas políticos.

Chegaram a subir a dezenas de milhares de chineses que se instalaram naqueles dois países.

Recentemente, o caminho-de-ferro foi inaugurado e parece que se confirmam completamente as restrições postas quanto à sua utilidade efectiva.

A oferta de fornecimento de energia de Cabora-Bassa e de colaboração no campo da saúde também não foram aceites.


Cabora-Bassa

Os resultados das nossas diligências não foram, portanto, brilhantes; mas isso não levou o Governo a desistir do propósito de melhorar o teor das relações entre os dois países.

Aproveitaram-se, para esse efeito, todos os pretextos, mesmo quando estiveram em causa situações que podiam ferir os nossos interesses.

(...) Por duas vezes, a Zâmbia, pelos canais já conhecidos, se queixou de que as forças portuguesas tinham praticado actos de guerra no seu território, junto da fronteira leste de Angola e da fronteira norte de Moçambique.

Uma averiguação cuidadosa e honesta, a que se mandou proceder, provou que, em ambos os casos, as tropas portuguesas haviam sido atacadas por guerrilheiros da Zâmbia, os quais, após os ataques, fugiram precipitadamente para o território daquele país. As nossas tropas reagiram e perseguiram os atacantes. Houve contacto e os guerrilheiros sofreram baixas.

De acordo com os princípios do Direito Internacional, desde que não houvesse, como não houve, interrupção na perseguição, era legítimo continuá-la, mesmo em território da Zâmbia (é o que os tratadistas de língua inglesa denominam direito de hot pusuit).

As averiguações demonstraram, porém, que os contactos com os terroristas se deram nos nossos territórios, mas aceitámos, sempre no desejo de manter relações de boa vizinhança, que os dois casos fossem analisados por comissões mistas e que os nossos representantes (militares e funcionários dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar) se deslocassem à Zâmbia.

Como as autoridades deste país exibissem restos de projécteis de fabricação portuguesa, que diziam ter sido encontrados no seu território, aceitámos pagar as indemnizações por alegados danos causados, apesar de estes não estarem provados e das conclusões a que as nossas averiguações tinham conduzido.

Com a preocupação de demonstrar a nossa boa-fé e de facilitar o estabelecimento de boas relações, foi-se mesmo mais longe. Foram dadas instruções aos Comandos-Chefes de Angola e de Moçambique no sentido de evitar que as nossas tropas actuassem junto da fronteira, mesmo que daí resultasse prejuízo para as operações militares.

Em contraste com a nossa, a atitude da Zâmbia foi extremamente incorrecta.

Pouco tempo depois, um seu representante na ONU apresentava como prova de que reconhecíamos que os nossos processos de actuar não eram aceitáveis o termos anuído a pagar as indemnizações.

Era de fazer perder a paciência, mas conseguiu-se manter a calma, apesar das constantes provas de má-fé do Presidente Kaunda.

(...) Moçambique foi a Província onde o terrorismo eclodiu mais tarde (25 de Setembro de 1964).








As autoridades tinham conhecimento do que se passara em Angola e na Guiné, procuravam estar atentas e pôr em prática providências de profilaxia social que evitassem a receptividade à subversão, mas não o conseguiram, em parte porque não se foi tão longe quanto se devia neste caminho, em parte também (e principalmente) porque, em relação às outras duas Províncias, os planos para subverter Moçambique se integravam no quadro de estratégia global...

Tivemos, por isso, de enfrentar a agressão armada, mas também procurámos desde cedo desenvolver uma acção política que nos ajudasse a dominá-la.

Muito antes de Eduardo Mondlane aparecer publicamente como chefe da FRELIMO, e pouco depois de ter concluído a sua licenciatura na Universidade de Colúmbia, visitou Moçambique a convite das autoridades portuguesas, tendo-se-lhe oferecido um lugar no então denominado Instituto Superior de Estudos Ultramarinos. Durante a visita, nunca manifestou hostilidade contra Portugal. Pelo contrário, por mais de uma vez fez publicamente referências elogiosas à forma como Moçambique estava a ser orientado. Não aceitou, porém, o convite, porque, pressurosamente, lhe foi oferecido outro lugar nos quadros da ONU, com remuneração muito superior.

Passado algum tempo, aparecia arvorado em chefe da FRELIMO, primeiro a organizar, depois a comandar a subversão dos macondes.

A pressão da propaganda dos nossos inimigos, facilitada pelo ambiente anticolonialista das Nações Unidas, e a influência de sua mulher, uma norte americana de origem sueca, tinham gerado este resultado.

A luta armada começou, mas prosseguiu também o combate no campo da política e da diplomacia.

Um dos resultados mais brilhantes obtido neste combate foi, primeiro, a neutralização do Malawi, que nunca prestou auxílio activo aos terroristas e, depois, o estabelecimento de relações de amizade e colaboração efectiva com aquele país, o que permitiu evitar excessivas preocupações com a defesa das zonas fronteiriças, obtendo-se assim uma economia de forças que permitia a concentração de esforços nas áreas de subversão violenta.

Isto não significa que, por vezes, não tivéssemos problemas de segurança naquelas zonas. O Dr. Banda é um hábil político e sempre manobrou de forma a não se incompatibilizar com os países da OUA, embora não alinhasse com eles.

Por isso, nunca proibiu a presença de membros da FRELIMO no seu território. Limitou-se a vedar-lhes a instalação de bases e campos de treino e a circulação de armas e outro material bélico.

Estas proibições, nem sempre foram respeitadas. No Malawi, como em todos os novos Estados africanos, a autoridade efectiva dos governantes vai enfraquecendo progressivamente dos centros principais de governo para a periferia. Em consequência, em certas zonas da fronteira, as relações umas vezes eram boas, outras más, consoante a conduta das autoridades locais. Houve, por isso, algumas infiltrações e ataques armados vindos do Malawi, e no território deste, por vezes, o inimigo conseguiu instalar bases.

Sempre, porém, que se recorria ao Dr. Banda, apresentando-se-lhe provas das nossas razões de queixa, a sua intervenção não faltava a corrigir situações e a punir os culpados.

Algumas vezes surgiram incidentes entre os dois governos, ou porque o Presidente do Malawi estivesse mal informado ou porque, do nosso lado, se actuasse com pouca prudência. Era necessário estar sempre atento e actuar com diligência, oportunidade e tacto, para desfazer mal-entendidos ou eliminar situações de tensão.

As dificuldades aumentaram com a extensão da subversão ao distrito de Tete. Sempre, porém, o teor geral das nossas relações foi bom e o Dr. Banda não hesitou, apesar de fortes pressões em contrário, em visitar Moçambique na sequência do convite que em nome do Governo Português lhe transmiti, aquando da minha visita ao Malawi...





Malawi





Não passarei adiante sem referir que foi devido a este bom espírito que presidia às relações entre os dois países que se conseguiu estabelecer um sistema eficaz de fiscalização das águas do lago Niassa, o qual, assim, deixou se ser a principal via de infiltração de agentes subversivos e guerrilheiros no distrito daquele nome, restabelecendo-lhe quase por completo a segurança na área.

Com a Tanzânia, apesar de todos os nossos esforços, nunca foi possível estabelecer diálogo, o que bem se compreende pela forte influência exercida sobre Nyerere pela República Popular da China e pela circunstância de naquele Estado terem sede os orgãos políticos e militares da FRELIMO e os seus campos de treino orientados por instrutores chineses.

Em contraste, mantivemos sempre boas relações com o Lesotho, o Botswana e a Suazilândia.

(...) As relações com a República da África do Sul e a Rodésia processaram-se sempre em bons termos, o que não significa que, por vezes, não surgissem problemas resultantes de conflitos de interesses, diferenças de orientação ou originados em factos da vida internacional. Os mais graves foram os decorrentes da aplicação das sanções à Rodésia, depois da declaração unilateral da independência.

(...) E volto novamente a ocupar-me das relações com a Zâmbia.

Já vimos como se baldaram os esforços para conseguir estabelecer um regime normal de convivência com  aquele país.

Os incidentes continuavam e a responsabilidade não nos cabia, pois eram sempre causados por acções levadas a cabo pelos guerrilheiros que tinham bases, campos de treino e locais de refúgio e descanso em território zambiano.

O mais grave já o mencionámos - o rapto por um grupo de guerrilheiros da COREMO, dos componentes de uma brigada de técnicos agrícolas do Gabinete do Plano do Zambeze, que procedia a trabalhos de campo próximo da fronteira com a Zâmbia.

O golpe não tinha qualquer justificação de ordem militar. As vítimas eram pacíficos funcionários civis e os trabalhos a que procediam integravam-se nos planos para melhoria das condições de vida no vale do Zambeze, em benefício das suas populações. A COREMO apenas quis realizar uma acção espectacular que demonstrasse a sua capacidade de agir e conseguir assim algum prestígio junto da OUA e dos países que forneciam armas e dinheiro às organizações terroristas.

Na Zâmbia, a chegada dos raptados só causou embaraços.

As autoridades zambianas não se queriam ver envolvidas num incidente que só podia comprometê-las. Em vez, porém, de mandarem pôr em território português as vítimas do rapto (o que a Tanzânia já fizera em circunstâncias semelhantes), aconselharam os homens da COREMO a que os fizessem desaparecer de qualquer forma.

Foram todos barbaramente assassinados!

As autoridades portuguesas conseguiram reconstituir o percurso seguido pelo grupo até entrar em território zambiano e obter informações seguras dos acontecimentos subsequentes.

Alguns jornais ingleses referiram-se aos factos descritos.

O Governo Português protestou energicamente. Várias diligências se fizeram junto do governo da Zâmbia, por intermédio do governo do Malawi, para, pelo menos, conseguir o castigo dos culpados e indemnizações para as famílias das vítimas. O governo da Zâmbia repudiou as acusações, mas não as conseguiu destruir.

As relações entre os dois países tornaram-se, se possível, ainda piores.


































(...) A partir da eclosão do terrorismo em Angola, tornou-se corrente a afirmação de que, até então, o Ultramar vivera em completo marasmo sem que o Governo se interessasse pelo seu desenvolvimento. Fora o traumatismo causado pelo desencadear do terrorismo que despertara energias e forçara os responsáveis a lançar as acções necessárias para fomentar o progresso das Províncias.

Havia até quem fizesse graça fácil, pesada e de mau gosto, dizendo que, por isso, era necessário erigir um monumento ao terrorista...

Esta opinião aparecia também expressa, com frequência, na imprensa estrangeira e, até, em alguns relatórios das Nações Unidas.

Não tinha, porém, fundamento.

O esforço para promover o desenvolvimento do Ultramar vinha de muito longe e os resultados espectaculares obtidos nos últimos anos eram consequência do afinco e da continuidade com que se havia trabalhado.

Na verdade, a política sistemática de desenvolvimento, segundo os técnicos do planeamento, iniciou-se antes da Segunda Guerra Mundial.

Assim, em Moçambique, em 1937, e em Angola, em 1938, definiram-se planos de obras da maior importância para o seu desenvolvimento, a que se seguiram verdadeiros planos quinquenais de fomento. Em ambas as Províncias foram instituídos fundos de fomento, dotados de vultosas verbas, que permitiram levar a cabo importantes empreendimentos, especialmente no sector das comunicações e transportes (aeródromos, caminhos-de-ferro e portos).

Quando, portanto, em 1953, se lançou o I Plano de Fomento, em relação ao Ultramar, apenas se continuou e sistematizou, segundo melhores técnicas, uma série de acções já levadas a cabo, apesar das grandes dificuldades criadas em 1939 e 1945 pela Segunda Guerra Mundial.

O desenvolvimento verificado no Ultramar na década de sessenta é, pois, fruto de um longo período de trabalho conduzido com o propósito de se atingirem metas de progresso económico e social cada vez mais ambiciosas, com prudência e sentido das realidades.

Citarei números que constituem índices muito expressivos do que se conseguiu realizar, tomando como referência o ano de 1953, em que se começou a executar o I Plano de Fomento.

A população do Ultramar era, então, de 11 644 397 habitantes. Em 1971, segundo o censo do ano anterior, era de 15 810 617, o que corresponde a um aumento de 4 166 270, ou seja, cerca de 36%.

Em 1953, as receitas públicas foram, no conjunto das Províncias, de 4 490 600 contos (4 490 600 milhares de escudos). Em 1971 atingiram 25 094 500 contos (25 094 500 milhares de escudos). Quase se sextuplicaram.





Moçambique





Cerca de 1909. A estação abriu em 1895



O Teatro Varietá em Lourenço Marques (anos 20)



O Teatro Varietá em 1967, pouco antes de ser demolido



1910



Rua Araújo (1929)








A Baixa de Lourenço Marques nos anos 40



O cinema Gil Vicente (anos 50)









Vista aérea da zona do Bazar nos anos 60



A baixa de Lourenço Marques (anos 60)



Lourenço Marques (anos 70)








Lourenço Marques (anos 70)



Avenida da República (Lourenço Marques)


















Liceu Salazar (1970, hoje Liceu Josina Machel)



Grande Hotel da Beira (Moçambique, anos 60)




















Angola

















Avenida Paulo Dias de Novais - Marginal de Luanda (1965)







No mesmo período, as despesas passaram de 3 724 600 contos (3 724 600 milhares de escudos) para 24 433 900 contos (24 433 900 milhares de escudos), sendo de notar que as relativas à execução dos planos de fomento subiram de 435 800 contos para 2 660 300 contos.

O volume do comércio externo mais que triplicou, saltando de cerca de 13 700 000 contos para, aproximadamente, 44 500 000 contos.

O produto interno bruto que, a preços correntes, era, em 1953, de 38 825 800 contos, foi, em 1971, de 129 387 700 contos, ou seja, cerca de 3,4 vezes maior.

A preços constantes de 1963, corrigido, portanto, tendo em conta a desvalorização de moeda, somou 55 579 900 contos, variando de 44 850 200 contos para 100 430 100 contos, o que exprime um aumento de cerca de 134,4%.

As capitações do rendimento nacional, neste mesmo período, atingiram, em quase todas as Províncias, valores muito acima das médias dos países subdesenvolvidos. Em alguns casos (S. Tomé, Macau, Angola e Guiné), situaram-se mesmo no alto da escala formada por esses países e, de uma maneira geral, tiveram acréscimos que se podem considerar excepcionais, não obstante o crescimento populacional que se indicou.

Os índices de monetarização, significativo indicador de desenvolvimento económico e de promoção social, revelam uma integração crescente, a um ritmo muito vivo, das comunidades culturais de tipo tribal na economia de mercado, pois os fluxos monetários médios do produto interno bruto subiram de 47,3% (1953) para 75% (1971).

Por último: as médias anuais de crescimento do produto interno bruto, a preços constantes referidos a 1963, variaram entre 3,7 (Cabo Verde) e 9,7 (Moçambique), demonstrando eloquentemente a vivacidade do ritmo do desenvolvimento.

(...) Como é sabido, violenta campanha foi desencadeada, em certa imprensa estrangeira e em alguns organismos internacionais, contra o empreendimento [de Cabora-Bassa]. Acusavam Portugal de com ele pretender criar condições para instalar no vale do Zambeze um milhão de colonos idos da Metrópole, expulsando-se os nativos das suas terras.

Um mínimo de esforço de crítica honesta e o bom senso seriam suficientes para demonstrar que a Metrópole, com os seus escassos nove milhões de habitantes, não poderia fornecer, de repente, um milhão de pessoas para instalar em África.


Barragem de Cabora-Bassa













A verdadeira razão da campanha resultava de se considerar que a barragem era o símbolo da nossa determinação de continuar em África. Marcelino dos Santos bem o revelou, ao afirmar que ou a FRELIMO destruía a obra ou a obra destruiria a FRELIMO».

Silva Cunha («O Ultramar, a Nação e o "25 de Abril"»).







Início da subversão violenta na África portuguesa

Houve um governador-Geral de Moçambique que, num discurso, afirmou: «Moçambique só é Moçambique porque é Portugal». A mesma afirmação se poderia fazer em relação a todos os territórios ultramarinos portugueses porque, efectivamente, só a integração no Estado português, a inclusão na sua ordem jurídica, o enquadramento na sua organização política e administrativa, embora com as indispensáveis especializações regionais, asseguraram a cada território uma unidade e características individualizadoras como um todo.

É que, apesar da longa presença de Portugal naqueles territórios, da acção cultural e educativa desenvolvida, dos contactos sociais geradores de fenómenos de osmose de hábitos sociais e individuais, e da assimilação cultural daí resultante, as divisões de base a que atrás se fez referência também existiam nas nossas terras do Ultramar. Eram até reconhecidas pelas leis que previam para as diferentes comunidades culturais estatutos jurídicos diferentes.

Constituía objectivo da nossa política integrar todas essas comunidades na cultura portuguesa, respeitando a sua individualidade, mas ligando-as entre si pela aceitação de princípios comuns de convivência, de forma a constituir em cada território sociedades portuguesas multirraciais. Muito havia ainda a fazer para conseguir realizar esta integração, eliminando rivalidades tribais e de classe, continuando a trabalhar para conseguir a elevação do nível de vida e do bem-estar de todas pessoas, independentemente da sua origem, raça, cor ou religião.

Não era, pois, possível negociar a transferência de soberania com grupos como o de Holden Roberto que, quando muito, poderia representar as tribos do grupo Bacongo, do norte de Angola.

A evolução da subversão violenta, de resto, cedo o mostrou.

Em determinado momento, no Ministério do Ultramar fez-se o recenseamento dos partidos, grupos e grupelhos organizados depois de 1961 e que reivindicavam o direito de representar o povo de Angola.

Apurou-se que eram mais de uma centena! A sua existência traduzia um estado de espírito e era sintoma das divisões existentes.

Só três deles, porém, tinham organização e força que lhes advinha de apoios externos em armas, dinheiro, possibilidades de treino e locais de refúgio.









Refiro-me à organização chefiada por Holden Roberto e que mudou a designação de UPA (União dos Povos de Angola) para FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola); ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), chefiado o primeiro por Mário de Andrade , depois, por Agostinho Neto; e à UNITA (União Nacional para a Libertação Total de Angola), chefiada por Jonas Savimbi.

O MPLA, quando se constituiu, sob a chefia de Mário de Andrade, pretendeu apresentar-se como anti-racista e aglutinar angolanos brancos e pretos na luta contra a soberania portuguesa. Cedo, porém, evoluiu, sob a chefia de Agostinho Neto, e o seu anti-racismo foi-se esbatendo, embora repudiasse o tribalismo e procurasse adeptos principalmente nos meios urbanos entre nativos europeizados.

A UNITA, com fraco apoio externo, tentou criar uma zona de influência numa área limitada do leste de Angola, e durante muito tempo manteve ligações com as autoridades de Angola, preliminares de negociações para a sua integração na soberania portuguesa.

Todos estes movimentos eram rivais e, quando se encontravam no terreno, procuravam destruir-se, combatendo entre si, com mais sanha do que a que punham na luta contra as forças portuguesas.

Os esforços do MPLA para instalar bases nas regiões montanhosas e fortemente arborizadas ao norte de Luanda foram combatidas, com êxito, pela UPA (depois FNLA).

No leste, onde o MPLA, com o apoio da Zâmbia, penetrara profundamente, a acção das tropas portuguesas, que conseguiram eliminar os grupos incursores e restabelecer quase completa segurança na região, beneficiou do auxílio indirecto da UNITA, a qual tinha mais ódio à FNLA e ao MPLA do que aos portugueses.

Esta situação levou à intervenção da OUA (Organização da Unidade Africana), que exigiu de Holden Roberto e de Agostinho Neto aliarem-se e constituírem uma organização comum para poderem conduzir com êxito a luta contra os portugueses.

Ambos aceitaram, para continuar a beneficiar do auxílio daquela Organização. Os acordos celebrados, porém, nunca se executaram e a organização criada nunca funcionou.

Em Cabinda, a FLEC (Frente de Libertação do Enclave de Cabinda) sofreu a hostilidade da FNLA e do MPLA e nunca alinhou com nenhum deles.



Bandeira da FLEC



Quer dizer: nunca nos encontrámos perante uma frente única que tivesse o apoio do povo angolano. Lutámos sempre contra organizações rivais que se digladiavam, facilitando de tal modo a acção das nossas forças que, em Angola, no fim de 1973, se estava muito próximo da vitória militar.

Negociar, portanto, com quem? Com todas as organizações terroristas em conjunto? Nenhuma o aceitava! Escolher para interlocutor uma delas?

Se o poder lhe fosse entregue, seria combatida pelas restantes. A luta continuaria e, certamente, com requintes de selvajaria.

E a grande massa constituída pelos europeus e seus descendentes e pela grande maioria da população negra, que queria continuar a ser portuguesa e fornecia largos contingentes para as forças que combatiam o terrorismo?

Não seria atraiçoar a confiança que em nós haviam depositado e retribuir a sua fidelidade com a entrega às vinganças dos grupos terroristas?

Angola continuaria a ser teatro de violências, morticínios, destruições que impediriam o prosseguimento da obra de civilização nela em curso.

Enganaram-se os que assim pensavam em 1961? A forma como decorreu a chamada «descolonização exemplar» infelizmente veio confirmar que o raciocínio estava certo. As centenas de milhares de portugueses que tiveram de abandonar o território, as dezenas de milhares de mortos com requintes de crueldade, a desordem administrativa, a continuação da acção das guerrilhas de Holden Roberto e Jonas Savimbi contra o governo de Agostinho Neto, tudo constitui prova suficiente de que em 1961 se vira bem o problema.

E Moçambique?








Em Moçambique os factores de divisão de base são idênticos aos de Angola, mas as organizações que conduziam a subversão violenta eram menos numerosas, reduzindo-se, durante algum tempo, praticamente a duas - a COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique) e a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).

As primeiras acções terroristas foram lançadas em Setembro de 1964 por uma pequena organização então existente, chefiada por Lucas Fernandes. A primeira, e única, acção violenta que praticou foi o assassínio de um missionário católico, de nacionalidade holandesa - o Padre Daniel -, na área da missão de Nangololo. Foi uma tentativa para se antecipar à acção da FRELIMO que não considerava ainda oportuno lançar a subversão violenta, preparada cuidadosamente com base na tribo Maconde.

O seu trabalho de aliciamento foi facilitado pelas tradições guerreiras da tribo, pelo ressentimento existente entre os seus membros (em virtude de incidentes ocorridos anteriormente com autoridades portuguesas locais) e pela circunstância de a sua maior parte viver em território da Tanzânia, o que facilitava a penetração de agitadores e a sua infiltração no território nacional.

O grupo de Lucas Fernandes foi facilmente neutralizado e o seu chefe preso, julgado e condenado pelo Tribunal Militar de Lourenço Marques a uma pena de prisão.

A FRELIMO, porém, com o receio de ser ultrapassada, resolveu lançar-se imediatamente na luta. Era seu chefe Eduardo Mondlane, natural da região de Gaza, pertencente à tribo Muchope, o qual, depois de frequentar uma missão metodista americana, estudara nos EUA, na Universidade de Colúmbia.

Inteligente, culto, com poderosos apoios e auxílios em material e dinheiro, conseguiu subverter o planalto dos Macondes, em Cabo Delgado, e estender, depois, a subversão ao vizinho distrito do Niassa.

Uma tentativa para penetração na Zambézia foi rapidamente neutralizada, mas a FRELIMO considerou sempre seus objectivos fundamentais subverter aquele distrito e o de Moçambique (mais tarde denominado distrito de Nampula).




Quando se iniciou a construção da Cabora-Bassa, começou a acção dos guerrilheiros no distrito de Tete, a qual, na previsão da construção da barragem, andava a ser preparada há longo tempo. O seu primeiro objectivo foi impedir o início das obras. Não o conseguiram! Depois perturbar os trabalhos. Também não tiveram êxito. Desistiram então do ataque directo ao empreendimento para fazer incidir o seu principal esforço sobre as vias de acesso que o serviam (estradas e caminhos-de-ferro) e, mais tarde, sobre as regiões circunvizinhas, em direcção à Beira, com o intuito de dividir as zonas do norte da Província das do Sul e, posteriormente, progredirem para o sul do Save.

Durante algum tempo, em Tete, concorreu com a FRELIMO a outra organização terrorista a que já se fez alusão - a COREMO, chefiada por Paulo Gumane.

A sua acção mais espectacular foi o rapto em território português, e assassínio na Zâmbia, de um grupo de técnicos-agrícolas que procediam a trabalhos de campo integrados no Plano do Zambeze.

No plano da subversão, a sua actividade não teve, porém, qualquer significado, sendo facilmente eliminada pela própria FRELIMO.

Esta ficou, portanto, sozinha na luta contra a soberania portuguesa. Não se julgue, porém, que se lhe pudesse atribuir o carácter de movimento nacionalista representativo de aspirações do povo de Moçambique. A sua principal zona de acção foi sempre o planalto dos Macondes e era nesta tribo que se recrutava o elenco principal dos seus combatentes. Embora Eduardo Mondlane fosse natural de Gaza e pertencesse a um grupo tribal com prestígio e tradições guerreiras, a verdade é que não conseguiu subvertê-lo.

Quando foi assassinado, sucedeu-lhe na chefia um triunvirato constituído por Samora Machel, Uria Simango e Marcelino dos Santos. Também não conseguiram alargar a subversão para fora dos distritos já indicados.




A FRELIMO não tinha, pois, representatividade em relação ao povo de Moçambique e contra ela combateram muitos milhares de naturais da Província, quer integrados nas forças armadas regulares, quer constituindo corpos militarizados de voluntários.

Portanto, também em Moçambique, negociar com quem?

Na «descolonização exemplar» aceitou-se a FRELIMO como interlocutor válido para representar Moçambique. Os factos já demonstraram, também, a falsidade da solução e os seus efeitos catastróficos.

Problema idêntico aos de Angola e Moçambique se deparava na Guiné.

Quando começaram a surgir os primeiros sintomas de subversão na Província, teve-se conhecimento da existência de duas organizações clandestinas que, com base no Senegal e na República da Guiné, actuavam no nosso território na propaganda e aliciamento das populações, a FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné) e o PAIGC ( Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), a primeira chefiada por Benjamim Pinto Bull e a segunda por Amílcar Cabral.

A FLING, que ainda há pouco existia, nunca desempenhou papel de relevo no processo subversivo.

O PAIGC, pelo contrário, tornou-se numa poderosa organização que rapidamente conseguiu lançar a subversão violenta no território, criando-nos sérias dificuldades.

A sua acção foi extremamente facilitada pela geografia da Província, com uma área de cerca de 30 000Km2 e com 600 000 habitantes, cercada ao norte, a leste e a sul pelos territórios do Senegal e da República da Guiné.

Beneficiou ainda de forte apoio em armas, dinheiro e técnicos da URSS e de Cuba.

Apesar das dificuldades e dureza da luta, foi possível assegurar a defesa. A afirmação da propaganda de Amílcar Cabral de que dominava dois terços do território não tinha fundamento.

Na Guiné, não havia áreas libertadas no sentido de zonas em que o inimigo estivesse solidamente implantado, com estruturas políticas e administrativas estáveis, com edifícios públicos e infra-estruturas, e em que não fosse possível às nossas tropas penetrar.

As guerrilhas do PAIGC infestavam áreas importantes, mas não as dominavam.




Terroristas do PAIGC



A maior parte das populações estava connosco e, como em Moçambique e em Angola, grande número de nativos combatia nas nossas Forças Armadas. A proporção, em relação aos contingentes enviados pela Metrópole, era de cerca de 50%.

Uma das unidades de maior valor combativo das forças de intervenção à disposição do Comandante-Chefe era um batalhão de Comandos a quatro companhias, constituído inteiramente por guinéus (soldados, sargentos e oficiais).

Podia aceitar-se que o PAIGC representava todo o povo da Guiné?

A Guiné era a província onde a divisão étnica era mais profunda.

Nos seus escassos 30 000 Km2 viviam cerca de trinta grupos tribais diferentes, bem caracterizados.

A esta divisão sobrepunha-se a divisão religiosa, pois dois dos principais grupos tribais - os fulas e os mandingas - estão profundamente islamizados e têm exercido uma acção de proselitismo sobre algumas das tribos feiticistas, do que resultou a sua islamização parcial, como foi o caso dos manjacos, dos sossos, dos nalus e até do balantas.

Dos seiscentos mil habitantes da Província, cerca de um terço está islamizado. A islamização não superou, porém, a diversidade tribal, e sucedia até que os próprios islamizados se encontravam divididos, pois na Guiné exerciam influência duas grandes confrarias muçulmanas - a dos Quadirya e a dos Tidjani, que enquadravam respectivamente os mandingas e os fulas.

O PAIGC recrutava os seus adeptos principalmente entre os feiticistas, com particular relevo para os balantas.

Os fulas e os mandingas e a maior parte das tribos feiticistas permaneceram-nos sempre fiéis, combatendo lealmente a nosso lado.

Acresce a tudo o que fica dito que Amílcar Cabral não era guinéu. Nasceu em Cabo Verde, na cidade da Praia, de uma velha família cabo-verdiana. Os homens do seu estado-maior político eram cabo-verdianos. Os guinéus, seus partidários, desempenhavam predominantemente funções militares. A situação de supremacia dos cabo-verdianos e a atribuição das funções de maior risco a guinéus eram causa de tensões profundas no seio da organização. O seu programa, que tinha por objectivo a independência da Guiné e de Cabo Verde, também não agradava aos guinéus, os quais receavam que se mantivesse e agravasse a posição de relevo que, tradicionalmente, os naturais do arquipélago ocupavam.

Não podia, pois, aceitar-se a legitimidade do PAIGC para representar o povo da Guiné. E também não a tinha para representar o de Cabo Verde cuja paz, mau grado as afirmações da propaganda, nunca foi perturbada e onde o PAIGC nunca exerceu qualquer influência real.

Também aqui a «descolonização exemplar» saltou por cima do desejo dos povos e das realidades.

Os resultados estão à vista! (in ob. cit., pp. 24-319.




Kenneth Kaunda e Mário Soares




Unidade das Forças Armadas e Consciência Nacional

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Escrito por Oliveira Salazar









«... mesmo em ambiente de paz, um ponto sobressalta a sensibilidade política de Salazar: a campanha que internacionalmente se lança contra a existência de ligações de soberania entre a Europa Ocidental e territórios noutros continentes. Já há anos, em discurso público, aludira a ventos que poderiam pegar fogo à África; e em Conselho de Ministros de há tempo declarara estar no momento mais preocupado com o futuro do ultramar português do que o estivera durante a guerra. E agora Salazar verifica que se interpretam e procuram aplicar algumas disposições da Carta das Nações Unidas no sentido de pôr em causa e destruir os laços políticos que a Europa Ocidental mantém na Ásia e África; e o maior perigo reside em os Estados Unidos e a União Soviética, no seu intervencionismo, darem à Carta da ONU, naquele capítulo, uma interpretação semelhante, e no facto de a Europa parecer desejosa de alijar as suas responsabilidades pelo mundo. Perante as grandes forças, e as borrascas que desencadeiam, há que resistir até ao amainar da tempestade: e o chefe do governo procura incutir no país o ânimo apropriado, e habilitá-lo a descortinar com nitidez as realidades por detrás das aparências.

(...) E Salazar, certo de que, mais do que a de outros povos, é fugaz a memória dos portugueses, insiste nos seus temas. Em face dos erros cometidos pelos ocidentais, na sua política de guerra, a Rússia tem explorado com êxito a vitória, criando à sua volta uma rede de países em que a identidade do sistema constitui o elemento de defesa e de monopólio económico; o comunismo deixou de ser havido por doutrina filosófica ou económico-social como qualquer outra, aspirando a partilhar o poder ou a realizar no poder certo número de reformas em favor das massas; o carácter totalitário da doutrina torna-a incompatível com a civilização do Ocidente, e os partidos comunistas funcionam "efectivamente como secções de um partido que é um Estado estrangeiro"; todas as tentativas de conciliação na ordem interna ficam votadas ao fracasso; e a vastidão do império russo dá-lhe imunidade quanto ao exterior, ao mesmo tempo que se arroga o direito de intervir por toda a parte. Felizmente, desde há um ano, as potências ocidentais retomaram a iniciativa, e as vantagens têm sido evidentes. Se todos os povos, incluindo o russo, aspiram à paz, "só é política digna dos nossos esforços a que tenda e consiga evitar a guerra". Mas um conflito apenas pode ser prevenido "através de uma preparação bastante" que restabeleça "um equilíbrio de forças", de modo a tornar "a guerra negócio arriscado e grave". Ao Ocidente compete, portanto, "reforçar a sua defesa e não largar de mão as poucas cartas que, embora diminuídas, ainda lhe ficaram no desbarato final das operações militares". Esta política de se "armar para a guerra por amor da paz" exige sólidas frentes interiores, e sobre a "formação da nossa farei as minhas últimas considerações". Importa ter em conta que"o comunismo não é necessariamente um partido nem precisa de dispor de maioria: basta-lhe dispor de uma minoria, movida por uma fé e servida por uma técnica de proselitismo e de combate, técnica que é a síntese de tudo quanto a experiência e a psicologia descobriram para dominar e conduzir as massas humanas". Para se opor ao comunismo há uma tendência para depositar esperanças na repressão; mas estas são excessivas; e impõe-se sobretudo uma "acção intensiva de aliciação das inteligências à volta de um sistema de ideias que o repilam". E o chefe do governo conclui: "Tomemos sobretudo em mãos a iniciativa da campanha, porque é para mim evidente que o comunismo em Portugal só pode tomar o lugar que nós deixarmos vago na inteligência e no coração dos portugueses".


Oliveira Salazar



Torre de Belém e Fábrica de Gás (1887)












Pavilhão da Fundação na Exposição do Mundo Português (1940). Ver aqui

















Porta da Fundação







Ver aqui















Ao centro: Manuel Gonçalves Cerejeira e Óscar Carmona (1940)



Sala de Aljubarrota (Pavilhão da Independência)















Nau Portugal



Espelho de Água












Ao centro: a Praça do Império (1940)



Pavilhão da Honra e de Lisboa



Jardim da Praça do Império (1940). À direita: Pavilhão dos Portugueses no Mundo








Mosteiro dos Jerónimos














No Diário de Notícias, em dois longos fundos, Augusto de Castro comenta o discurso de Salazar: E pergunta: há uma ideologia ocidental? Há: "é greco-latina, cristã, atlântica, mãe soberba de todas as grandes invenções".

(...) Paralelamente, adquire consciência e dimensão a ofensiva ideológica contra os países ocidentais. Seguindo a orientação política que já Lenine propusera, e uma vez que está organizada a defesa da Europa Ocidental, Moscovo procura contornar esta, e enfraquecê-la em áreas que ficam para além dos limites geográficos doPacto do Atlântico. À derrota do Japão sucede o esboroamento da hegemonia ocidental no extremo-asiático; e paradoxalmente o Japão vê triunfar, naquela parte do mundo, os ideais e os objectivos por que se batera e fora esmagado. Mas outro continente está ligado à Europa: é a África: e ambos se entreajudam e são complementares nos planos económico, estratégico, político. Nesta base, a ruptura e a hostilidade entre os dois arrastam ao enfraquecimento recíproco; e este convém à União Soviética, e aos novos países cuja independência fora proclamada na Ásia depois da guerra. Para o conseguir, os adversários exploram princípios de que o próprio Ocidente é autor e lhe são caros: a dignidade da pessoa humana, os direitos individuais, a legitimidade do facto nacional, o direito dos povos a determinarem o seu destino, o consenso democrático em torno de instituições e regimes, a liberdade de expressão do pensamento. Do mesmo passo, acusa-se o Ocidente Europeu de se contradizer, e alega-se o imperialismo, a opressão, o racismo, a exploração económica a que está submetido o continente africano. Julgam os países europeus que se encontram presos de um dilema: proclamarem para si princípios que negam para outros. E a Europa, ainda exangue, perturbada, em crise moral e mental, suscita no seu seio um complexo de culpa: há que redimir os pecados, há que ser genuína no respeito e aplicação dos princípios. E entre os europeus dissemina-se uma convicção: a melhor forma de destruir as acusações consiste em aceitar a sua procedência. Se se instituir por toda a África o princípio da democracia de raiz ocidental, este facto leva por si à rejeição de regimes autoritários e assegura a continuidade da cooperação e do entendimento entre a Europa do Ocidente e a África. Para mais, uma tal solução aliviará a Europa de pesadas responsabilidades, de despesas de administração, de gastos militares para a defesa da soberania. Está-se assim perante uma situação que é, ao mesmo tempo, ideológica e de expediente político. Por parte da União Soviética, seus satélites e novos países, há o objectivo de enfraquecer a Europa, batendo-a com os seus próprios princípios, e de negar a esta o apoio e os recursos da África; e por parte do Ocidente há o objectivo de, dando razão ao adversário, frustrar as acusações deste, e manter para a Europa a cooperação da África, garantindo assim a complementaridade dos dois continentes. Conquistar ideologicamente a África torna-se fundamental; e para tanto segue-se uma política de licitação pública, numa corrida de concessões em que cada um procura exceder as dos adversários, para assim aliciar as boas graças daqueles cujo apoio busca. Está firmado o anticolonialismo.

Encontra este o seu centro impulsionador no plano das Nações Unidas, e à sombra da Carta. Para promover o bem-estar dos povos e assegurar entre as nações a colaboração nos domínios económico, social, educativo e até político, a Carta estabelece três modalidades: a Cooperação Internacional Económica e Social, regulada nos capítulos IX e X; a Declaração sobre Territórios Não-autónomos, de que se ocupa o capítulo XI; e o Sistema Internacional de Fideicomissos ou Curadorias, tratado no capítulo XII. Ao primeiro sistema, e para o executar, corresponde o Conselho Económico Social, onde se debatem os problemas económicos e sociais que afectem áreas determinadas ou grupos de nações; e ao terceiro corresponde o Conselho de Curadorias, onde se examinam as questões respeitantes a territórios sob o antigo mandato da Liga de Genebra, ou que as potências responsáveis hajam espontaneamente colocado sob curadoria internacional. Mas para administrar o sistema do capítulo XI - relativo a territórios não-autónomos - não estabelece a Carta qualquer orgão. No entanto, o anticolonialismo rapidamente aproveita a Quarta Comissão da Assembleia Geral e transforma-a no orgão de ataque às potências coloniais. Para o efeito, o capítulo XI, nos seus arts. 73.º e 74.º, é interpretado através de sucessivas resoluções como impondo às potências administrativas de territórios não-autónomos obrigações equivalentes às das potências em territórios em fideicomisso. Nestes termos, os territórios não-autónomos são havidos por colónias e da parte das potências detentoras há o dever de conduzir os seus habitantes à auto-determinação, sob a égide e fiscalização da ONU: e os membros das Nações Unidas que possuam colónias são solicitados a declarar as suas intenções e os seus planos para se alcançar aquele objectivo. Achou o anticolonialismo a sua plataforma parlamentar para a acção política.


Sede das Nações Unidas (Nova Iorque)









Desde 25 de Novembro, Salazar não tem reunido o Conselho de Ministros. Arreiga-se a sua convicção de que é pouco profícuo o trabalho do Conselho em plenário. Para mais, preocupa-o a revisão constitucional, e em particular a do Acto Colonial. Trata-se de integrar este, de forma homogénea, no corpo da Constituição. Importa acima de tudo, no entanto, resolver um problema básico: mantém-se para os territórios de além-mar a designação de colónias ou regressa-se à de províncias ultramarinas? Não é apenas vocabular a questão; e são muitas as implicações no plano interno e externo: No primeiro, a mudança supõe a ideia de integração progressiva, nos domínios económico e político, entre metrópole e ultramar, com toda uma visão nova e em grande da nação portuguesa; no plano externo, nega frontalmente as teses anticolonialistas, e portanto exime os territórios de além-mar à aplicação dos princípios proclamados pelas Nações Unidas; e finalmente, por paradoxal que parecesse a muitos, significa o abandono da noção de império e de estruturas imperiais, incompatíveis com uma integração paritária.

(...) Na tradição do direito público português e na terminologia corrente os territórios de além-mar haviam tido a designação de províncias. Esta designação é usada desde 1576 e consta de um diploma de 12 de Março de 1633; e foi transladada para as constituições liberais, desde 1820, que consideravam as províncias ultramarinas como parte integrante da Coroa portuguesa. O Título V da Constituição de 1911 designava-se: Administração das Províncias Ultramarinas. Posteriormente, a I República adoptou a designação de colónias. A abolição deste nome e o regresso ao de províncias foi assim um retorno a uma tradição de séculos. No plano internacional, o governo português foi depois acusado de inventar a expressão províncias ultramarinas e de a usar como expediente político para escapar ao anticolonialismo. Este factor teve decerto influência; mas não foi o único; e em qualquer caso não se tratou de facto de uma invenção.

(...) Este último ponto, todavia, suscita dúvidas e objecções em alguns sectores. Do Acto Colonial, por que Salazar fora responsável quando gerira as Colónias, passara-se a uma concepção imperial, a que Armindo Monteiro dera o seu esforço, quando ministro daquela pasta. Depois de demitido da embaixada de Londres e de um regresso acerbo a Lisboa, atravessara um período de ressentimento e ostracismo. Esbatida a mágoa, Monteiro reaproxima-se do governo, e pela mão de Marcello Caetano entra como procurador da Câmara Corporativa. Mas agora enfileira entre os que se opõem à conversão de colónias em províncias. Salazar encara o problema sob ângulo diverso: há que colocar o país num terreno jurídico e político que lhe permita resistir com êxito à onda de anticolonialismo. É nesta base que Salazar concebe as propostas de revisão constitucional a apresentar à Câmara Corporativa e à Assembleia Nacional e que, além do Acto Colonial, afectam outros artigos da Constituição, para os tornar conformes com a nova terminologia. Salazar concentra-se no problema com atenção e minúcia; e consulta repetidamente os seus conselheiros e numerosas personalidades ultramarinas. Pensa, reflecte, avança com lentidão. Para mais, o funcionamento da Assembleia está suspenso, e não é necessário precipitar a submissão das propostas.

Desta preocupação é distraído em meados de Janeiro de 1951. Numa viagem que o leva às capitais dos países membros do Pacto do Atlântico, chega a Lisboa o general Eisenhower, e na manhã de 17 daquele mês é recebido pelo chefe do governo.













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Lockheed Aurora















Aurora Goldeneye



Blackbird







B2 Spirit















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Lockheed Have Blue







Parte inferior do Have Blue



F-117 Nighthawk








Um B2 seguido de dois F-117 Nighthawks




































































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Avrocar (ver aqui)















Vista aérea da base militar instalada na Área 51 (1965)











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E.T.: The Extra-Terrestrial. Ver aqui







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A Estrela da Morte (ver aqui)
















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 É no gabinete de S. Bento; Salazar está bem-disposto, com modo afável mas decidido, e calmo e senhor de si. Felicita Eisenhower pela designação para comandante supremo das forças do Pacto, e estima a escolha, tão lembrado como o general é desde as campanhas na Europa. Eisenhower parece intimidado: fala de locais pitorescos de Lisboa, das fotografias que tirou. Salazar pergunta que estado de espírito encontrou o general nas capitais já visitadas. Tem melhorado, afirma Eisenhower, mas há um problema psicológico: os europeus não actuam sem que os americanos entreguem os equipamentos prometidos, os americanos não entregam os equipamentos sem saber o que estão os europeus fazendo de concreto. Comenta Salazar que este lhe parece ser um problema político: se solucionado, os demais resolver-se-ão também. Depois, o chefe do governo expõe o seu ponto de vista sobre a situação actual. Foi errada a base de partida. Julgou-se ser a miséria a única fonte do comunismo."isto é uma ilusão: o comunismo pode desenvolver-se mesmo em meios ricos ou pobres: é uma atitude de snobismo intelectual, com a pretensão de ser diferente dos demais". E assim "os milhões de dólares americanos não bastarão para o conter". Todavia, em virtude do plano Marshall, está hoje facilitada a missão do comandante supremo; agora, importa evitar a guerra, não importa vencê-la; e apenas pela força é possível evitá-la. Seriam idênticos para todos os resultados de um conflito: a destruição. "Decerto", interpõe Eisenhower, "mas se a guerra deflagrar, a última das coisas a fazer seria perdê-la". Salazar entende que pior do que a derrota é a escravidão. Por si, a "Rússia não quer a guerra"; e "não haverá guerra se for possível preparar defensivamente todo o Ocidente". Mas Eisenhower sente um receio: as correntes isolacionistas nos Estados Unidos. Homens de consequência, como Hoover ou Taft [Herbert Hoover, antigo presidente dos Estados Unidos, e Robert Taft, influente senador do Partido Republicano], desconfiam da Europa, e sustentam que a América não tem de assumir responsabilidades para além-fronteiras. Há que persuadi-los de que a Europa está pronta a dar a sua contribuição. "É muito perigosa para os próprios Estados Unidos a tese do Senador Taft", diz Salazar. Sem dúvida: mas veja-se como é aliciante: "não mais encargos, não mais impostos a pagar". Há que rebater a tese antes de conquistar muitos adeptos; e por isso Eisenhower está desejoso de ir aos Estados Unidos para "poder falar dos esforços feitos na Europa, do que viu e ouviu com os seus próprios olhos e ouvidos". Sim, conclui Salazar, a Europa está pronta, se os Estados Unidos forem firmes no seu apoio, e há ainda valores europeus desaproveitados, que o poderiam ser com benefício. Eisenhower despede-se. Mas antes de sair quer pedir desculpa de um incidente. Desculpa? Um incidente? Sim, um incidente durante a guerra. Um piloto americano, dirigindo-se a África, aterrou por engano em Portugal, e só então se apercebeu de que estava em país neutral; prometeu à torre de comando que se apresentaria às autoridades portuguesas; mas levantou voo, e fugiu. Quebrara assim a promessa, e iludiu a boa-fé daquelas. Então Eisenhower entrou em contacto com o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, e pediu-lhe para comunicar às autoridades portuguesas que estava disposto a mandar o piloto para ser internado. Simplesmente, o governo de Lisboa responde que "esquecera" o incidente. E Salazar ri: "Ah! É que houve a intenção de não diminuir as forças de que dispunha o general!" Depois o comandante supremo visita ainda Santos Costa, Paulo Cunha, entidades militares superiores, e cumprimenta Carmona. E quando atravessa o Atlântico e, em Otava, se avista com os ministros canadianos reunidos em Conselho, Eisenhower diz-lhes: "De todos os estadistas europeus com quem conversei, Salazar parece-me o mais lúcido e avisado".













(...) Chegam a Lisboa jornalistas  do mundo e figuras de marca na política internacional do Ocidente: Dean Acheson, pelos Estados Unidos; Anthony Eden, pela Inglaterra; Paul Van Zeeland, pela Bélgica; Dirk Stikker, pela Holanda; Edgar Faure, Robert Schumann e Georges Bidault, pela França; Lester Pearson, pelo Canadá; Alcide de Gasperi, pela Itália. No Palácio de S. Bento, a 20 de Fevereiro de 1952, reúnem-se todas as delegações para uma sessão solene, sob a presidência de Costa Leite, em representação de Salazar. Paulo Cunha profere um discurso de abertura: são seus temas o Ocidente, o reforço da sua defesa, a admissão da Espanha no Pacto. No Diário de Notícias, Augusto de Castro reivindica para Portugal e Salazar a prioridade na definição de atitudes do Ocidente, que foram mais tarde perfilhadas e seguidas pelas grandes potências. Depois, são as sessões de trabalho no Instituto Técnico. São tomadas decisões básicas: a entrada definitiva da Grécia e da Turquia, como membros do Pacto; a criação de um posto de secretário-geral; o reforço do dispositivo de segurança; a mobilização de 50 divisões de combate; a atribuição de novos créditos para despesas militares. Salazar recebe individualmente os principais ministros estrangeiros. Recebe o seu amigo André de Staerck, delegado belga junto da NATO, que "deu o prazer de vir um dia almoçar comigo" mas "não me soube dar notícias do príncipe Carlos". E "pude estar três quartos de hora com Van Zeeland, que foi brilhante como sempre". É longa a conversa com Eden: conhecem-se enfim aqueles dois homens que há quase vinte anos, cortados de algumas intermitências, conduzem entre si negócios graves para Portugal e Inglaterra, mesmo para o mundo. E é também extensa a entrevista com Dean Acheson. Este sente-se surpreendido: "Fiquei muito impressionado com Portugal". Não notou tensões sociais, nem os indícios de uma ditadura; o povo parecia tranquilo, tanto na cidade como nos campos. "E fiquei especialmente impressionado quando visitei Salazar", no edifício da Assembleia Nacional. Não havia polícia, nem guardas; no gabinete, não viu telefones; Salazar não tinha papéis em cima da secretária. Salazar diz que o seu interesse consiste em equilibrar o orçamento, manter estável a moeda, assegurar pleno emprego, fortalecer e ampliar uma vasta classe média, garantir preços baixos para géneros essenciais. E industrialização? Decerto; mas com vagar e prudência, para não criar desemprego. E que retrato de Salazar fixa Dean Acheson? "Ele é uma personalidade muito forte, e agradável, de tipo português"; "A coisa mais impressionante em Salazar, são as suas mãos, extraordinariamente belas, e sempre activas enquanto fala, esculpindo no ar aquilo de que fala, como se o ar fosse feito de plástico e ele o estivesse a talhar"; "nada tem de pomposo, nem pretende impor-se"; "enterra-se na poltrona, quase fica suspenso pelos ombros, pernas estendidas, e conversa com muita facilidade e calma". E Dean Acheson estranha o gabinete, modesto embora digno, mas sem bulício, sem agitação: "o do Presidente dos Estados Unidos é um cortiço, com gente a entrar e a sair, telefones a tocar, processos e papéis por toda a parte". Salazar comenta: "Eu não poderia trabalhar assim; fazer muitas coisas ao mesmo tempo e ter a sensação de estar muito atarefado não significa realização efectiva"; quando enfrenta um problema, tem de o estudar: e "não julga que muitos telefones a tocar e muitos secretários a correr o pudessem auxiliar". Não: pondera uma questão como um navegador, com a bússola e a carta, traça o rumo; no percurso surge toda a sorte de problemas, o mar calmo, as tempestades, os escolhos; vai-os resolvendo um a um; e com bússola e carta mantém o navio no rumo certo. Acheson observa que essa é a técnica de quem espera o futuro calmamente, sem pressas; e isso faz-lhe lembrar uma velha senhora sua conhecida, para quem a coisa melhor que o futuro tinha era aproximar-se apenas por um dia de cada vez. "É isso", diz Salazar, "essa senhora é muito sábia".



A mais antiga Rosa-dos-Ventos com flor-de-lis da carta de marear de Pedro Reinel de 1504










Tábua astronómica do Almanach Perpetuum, de Abraão Zacuto (1496)









Planisfério de Cantino (1502), a mais antiga carta naútica portuguesa conhecida, mostrando o resultado das viagens de Vasco da Gama à Índia, Cristovão Colombo à América Central, Gaspar Corte Real à Terra Nova e Pedro Álvares Cabral ao Brasil, com meridiano de Tordesilhas assinalado.



Planisfério de Cantino (1502). Detalhe mostrando as Américas







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(...) Regressado aos Estados Unidos, Dwight Eisenhower apresenta a sua candidatura à Presidência, em nome do partido republicano; é eleito; e sucede a Harry Truman. No Departamento de Estado, Dean Achesoné substituído por John Foster Dulles. Tem repercussões no mundo o resultado da eleição: que política será a de Eisenhower? Em França, acentua-se a instabilidade governamental, e desta resulta uma oscilação constante da atitude de Paris. Schumann abandona os Negócios Estrangeiros, e regressa Georges Bidault; e de novo estão em causa o papel da França, na NATO, e as relações como a nova Alemanha de Konrad Adenauer. Neste particular, o debate político em França trava-se sobre a questão de manter um exército francês autónomo, ou de o europeizar numa união da Europa Ocidental, ou na estrutura da NATO; e ainda sobre o estatuto da Alemanha, que ressurge como Estado Federal, e a cooperação desta com o Ocidente. São tradicionais os receios da França perante um ressurgimento do poderio germânico; restabelecer este, todavia, parece indispensável para resistir ao expansionismo soviético; há que procurar, desta forma, o melhor enquadramento para uma Alemanha remilitarizada; e Londres e Washington, com a anuência de Bonn, inclinam-se para a entrada da nova República Federal no quadro do Pacto do Atlântico. Por seu lado os Estados Unidos, sob a orientação de Dulles, reforçam uma política de alianças para além da NATO, e destinada a conter a penetração russa; as Filipinas, a Austrália, a Nova Zelândia, a Tailândia, o Paquistão, a França e o Reino Unido dão o seu aval a essa política; e em paralelo com a NATO, é firmada a SEATO [iniciais para significar: South East Treaty Organization]. De súbito, porém o mundo é colhido por uma notícia inesperada: em 5 de Março de 1953 morre Estaline. Da reunião do presidium emana a escolha de Georgi Malenkov para lhe suceder em todos os cargos; mas, pouco após, a sua actividade fica cingida à chefia do governo; e as suas funções de secretário do partido são confiadas a Nikita Krushchev. No exterior, há a sensação de que, no plano político, está constituído um triunvirato formado por Malenkov, Beria e Molotov, e que disporia das decisões supremas: é o princípio da chefia colectiva ou colegial, apresentado como inovação na estrutura do poder soviético: e é denunciado o culto da personalidade do tempo de Estaline. Pelo mundo corre uma interrogação: vão cessar o terror, a agressividade, a subversão de terceiros países, o expansionismo imperial da ditadura estaliniana? Muitos ficam persuadidos de que a União Soviética, desaparecido o ditador de aço, vai entrar num período de distensão, de liberalismo; e entre os povos dos países satélites há sobressaltos de esperança. E Eisenhower declara:"o mundo inteiro sabe que com a morte de Estaline findou uma era".

Em Lisboa, Salazar, sempre apaixonado pela situação do mundo, não deixa de se sentir preocupado, e mesmo perplexo. Como a encara neste momento? Escreve para Bruxelas, a Eduardo Leitão: "Noto na vida internacional uma pausa, de um lado provocada por ninguém saber quais serão e até onde irão as divergências no respeitante aos negócios do mundo entre a administração Eisenhower e a de Truman, por outro lado pela mutação no governo da França que se encontra em face de uma opinião pouco disposta a aceitar o exército europeu, ou talvez mais precisamente a dissolução do exército francês no exército europeu". E quanto a ideias federalistas? "A meu ver", diz Salazar, "as ideias federalistas que parece terem sido tão do agrado de franceses e italianos e não sei se belgas e holandeses, apesar do impulso que por todas as formas lhes dão os americanos, encontram dificuldades de execução e até poucas simpatias em muitos meios, convencidos de que se trata menos de um problema europeu do que de arranjar maneira de resolver dificuldades da política francesa". Em nada disto tem Portugal que estar envolvido, mas"o caso é sobretudo desagradável porque estes vai-vens da política europeia fazem perder tempo na organização de forças e no estreitamente da cooperação económica, militar, cultural e política que, sem federação ou com federação, é possível e necessário estabelecer e reafirmar".




Estas preocupações pela defesa do Ocidente não são exclusivas de Salazar. São partilhadas por homens eminentes, da política e das letras, em muitos países do Ocidente. Há pouco fora Henri Massis, que viera desabafar junto de Salazar a sua ansiedade; e agora é a Gustave Thibon, da mesma linha ideológica de Massis e de Gabriel Marcel, que Salazar recebe, e interroga sobre a situação francesa, e de quem escuta iguais desabafos. E são também homens da política: é André de Staercke, muito ligado a Paul Spaak, que em cartas e visitas não esconde o seu pessimismo; é Van Acker, primeiro-ministro belga; é Paul Van Zeeland, que continua ministro dos Estrangeiros da Bélgica; são outros ainda. E justamente Van Zeeland acaba de convocar Eduardo Leitão e de lhe pedir para consultar o chefe do governo português sobre a conjuntura mundial, e em particular os negócios da Europa e as ideias em curso quanto ao futuro desta. Leitão tudo transmite para Lisboa, e Salazar responde à consulta de Van Zeeland no dia seguinte ao da morte de Estaline. Traça um quadro inicial: "As coisas aparecem-nos assim: os Estados Unidos, pela simplicidade do seu espírito e ligeireza das suas opiniões, não vêem para a Europa outra solução política que não seja a unidade através da federação; a França, que se nos afigura um país cansado de lutar e a quem a plena independência parece pesar, adopta a ideia como a maneira mais fácil de evitar o rearmamento alemão isolado e amanhã potencialmente hostil; as nações que se agrupam em volta da França parecem convencidas, embora por motivos diversos, de que aquele é o melhor caminho de salvar a Europa e talvez o único de assegurar o apoio americano, em potência militar ou em dólares". Desdobra depois o seu pensamento: há apenas duas realidades, que são uma ideologia americana e uma política francesa: mas a viabilidade de executar a ideia, o ambiente político e moral, os problemas económicos, estão em plano secundário, embora sejam o essencial. Por ideologia americana, entenda-se uma ideia de partido político no governo; por política francesa entenda-se a de uma fracção dos políticos franceses, porque a França,"se anseia por não ter de bater-se, também procura não ser mandada por outros"; e quanto ao receio de perda do auxílio americano, "penso que esse receio não tem razão de ser, porque a Europa é tão necessária à América como esta à subsistência da liberdade europeia". Mas "é sobre tão frágeis fundamentos que se anda a construir a federação da Europa". E essa federação é possível? No domínio lógico, é. Apenas há duas maneiras, no entanto, de a conseguir: por acto de força de um federador ou por lenta evolução que pode levar séculos. Não existe um federador: "se a Rússia puder, talvez ela o faça nos países danubianos sob a sua égide; se Hitler tem ganho a guerra, era possível que obrigasse a Europa a federar-se sob a hegemonia alemã; e pelos frutos e demoras da evolução não se quer esperar". E que pode resultar de uma federação? Resultam o abandono de terras, arrumação ou concentração de indústrias, deslocação de populações, desequilíbrios económicos, perdas de interesses e capitais: são sofrimentos sem conta, alterações profundas nas maneiras de viver e de pensar: "mas retoma-se a vida em novas bases, e no futuro, num futuro largo, pode até ser melhor para todos os que então existirem". Isto pode fazer-se pela força; não o podem fazer os políticos, ao menos de um dia para o outro, contra interesses inconciliáveis e os sentimentos das populações. Porque a verdade é que a Europa nasceu de um certo modo e tem um certo carácter; a sua diversidade, se é fraqueza, é também fonte da sua radiação universal; tem nações tão antigas que o seu nacionalismo se confunde com o instinto de propriedade; e é duvidoso que por combinações ou tratados se possa erigir o Estado Europeu. E, se se constituísse, esse Estado europeu seria por muito tempo destituído de coesão e força efectiva; "o momento óptimo para o ataque russo, se a Rússia pensasse em atacar o Ocidente, era exactamente o da constituição do Estado Federal Europeu". Essa federação, a fazer-se, far-se-ia sob a égide republicana: comportaria três grandes repúblicas (França, Alemanha, Itália) e três pequenas monarquias (Bélgica, Holanda, Luxemburgo): a força das primeiras, a dificuldade de escolha de uma dinastia comum, o desejo dos americanos, imporiam a solução republicana: e os três pequenos países teriam de se desfazer das suas instituições. Depois, há o problema colonial. Itália e Alemanha foram despojadas de tudo; os domínios ultramarinos serão integrados na federação, que herdará as colónias belgas e francesas; os que nada têm a perder são os que têm tudo a ganhar; mas a Bélgica e a França não pertencem a este grupo. Deste modo, uma federação europeia suscitará mais problemas do que resolve; constituiria por muito tempo uma construção política e economicamente frágil; por cima de sacrifícios e sofrimentos a impor às gerações actuais, a Federação poderá dispor de mais espaço, racionalizar a produção, conseguir com os territórios ultramarinos uma maior base económica para o conjunto. Acontece que, pela sua força e capacidade, será a Alemanha quem conduzirá a federação para todos os seus destinos. "Para isto, talvez não valesse a pena ter feito a guerra". E a Inglaterra? No território europeu, a Inglaterra funciona já como um estado federal; no mundo, é a cabeça de uma associação de Estados. Se a Inglaterra tomar na Europa o compromisso de um esforço total, será a perda da chefia da comunidade; e os vários Estados que compõem esta, privados daquele ponto de apoio, procurarão outros pólos de atracção. Parece desassisado que, em nome de uma unidade hipotética, se desfaça ou corra perigo de desaparecer uma outra unidade, já existente e de real valor.









Neste quadro, que posição convém a Portugal? Independentemente da aliança antiga, e considerando apenas o jogo das forças mundiais que emergem, importa a Portugal uma Inglaterra forte e independente: "quem nos dera que possa continuar a ser um factor de equilíbrio entre os Estados Unidos e uma federação europeia em que a Alemanha seja o elemento preponderante". No mais, e "se posso ser intérprete do sentimento do povo português, devo afirmar que é tão entranhado o seu amor à independência e aos territórios ultramarinos, como parte relevante e essencial da sua história, que a ideia da federação, com prejuízo de uma e de outros, lhe repugna absolutamente". Nos dissídios da Europa, raras vezes Portugal interveio; e sempre com dano de outros interesses mais altos. Se agora se compromete no Pacto do Atlântico, e para caso de ataque pelo imperialismo russo, "é que há a compreensão nítida de que esse imperialismo traz consigo os elementos destrutivos da nossa mesma razão de ser"; e por isso evitar aquele ataque "é condição necessária ao prosseguimento da nossa missão no mundo". Da Europa, interessam a Portugal a paz, o génio e espírito da civilização cristã e mais nada; e Angola e Moçambique interessam bem mais. Felizmente, são de tal relevo os Pirenéus que abrigam a Península de uma absorção ou decisiva influência; a Espanha, com as suas ligações à América Central e do Sul decerto vê mais futuro no conjunto hispano-americano do que numa federação europeia. Do debate em torno do problema, a Portugal somente interessa não ser embaraçado no seu caminho; e por isso se tem abstido de intervir em discussões públicas ou de pertencer a alguns organismos, como o Conselho da Europa e outros. Portugal sabe que não pode influir na evolução das ideias e dos acontecimentos; "mas não devemos esquivar-nos a dizer com inteira lealdade o que pensamos acerca de umas e dos outros".

Franco Nogueira («Salazar. IV, O Ataque - 1945-1958»).



«A sede do Council [on Foreign Relations] está situada na Park Avenue, encontrando-se quase em frente à embaixada da Rússia. O Christian classificou o Council como"provavelmente uma das mais influentes organizações semi-públicas no campo das relações exteriores". O edifício em que se encontra instalado foi oferta dos Rockefeller.

Quanto à sua constituição, o referido artigo afirma que dele faziam parte "nomes de pessoas que se distinguiram no campo da diplomacia, governo, finanças, ciências, no trabalho, no jornalismo, no campo jurídico e na educação. O que reunia representantes tão numerosos e de proveniência tão variada como seus membros, foi o apaixonado propósito de reflectirem sobre a orientação da política externa norte-americana".













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George W. Bush



John Kerry




Durão Barroso




Donald Rumsfeld




Benjamim Netanyahu




George Clooney




Angelina Jolie




Hillary Clinton






Naturalmente que os membros desta organização são cuidadosamente seleccionados, sendo os escolhidos apoiados com tudo o que necessitam para influenciar o meio em que desenvolvem a sua actividade profissional e naturalmente treinados para o desempenho da missão ou missões que lhes forem confiadas. O artigo do Christian afirma que dos mil e novecentos membros "cerca de metade dos seus membros foi convidada a assumir cargos oficiais no governo ou a intervir como consultores em numerosas ocasiões".

Por sua vez no Harpers de Julho de 1958, encontra-se também um artigo intitulado Escola de Estadistas escrito por Joseph Kraft, membro da organização, que a "descreve como tendo sido o lugar privilegiado de decisões básicas do governo, como tendo determinado o contexto de muitas mais decisões e como tendo servido repetidamente de campo de recrutamento de funcionários superiores da administração".

Nesta exposição o autor revelou como "o CFR fornece aos seus membros o treino que lhes permite actuar de acordo com a linha estratégica a ser levada a cabo". Joseph Kraft esclarece ainda que a criação do CFR dentro da rede da Casa Branca se deve ao Colonel Mandell House, ajudante e confidente do Presidente Wilson e intimamente relacionado com James Green. O Colonel House revelou a criação de um organismo internacional, apoiado em poderosas forças, tendo como objectivo a implantaçãodo Socialismo como foi sonhado por Karl Marx O quadro cuidadosamente seleccionado de apoiantes do CFR para apoiarem o Colonel House na sua acção junto do Presidente e através deste na Administração, foram Walter Lippman, John Foster Dulles, Allen Dulles e Christian Herter.

Todos eles estiveram com o Colonel House na Conferência de Paz em Paris, hóspedes dos grupos ingleses e americanos dos Round Tabletendo-se reunido em 19 de Maio de 1919 no Hotel Magestic de Paris com House, para organizarem as diferentes frentes de actuação em vários pontos do mundo.

Sobre a influência do CFR nas tomadas de posição do Departamento de Estado na política externa dos EUA, depois da guerra de 1914, bastará citar o seguinte documento inserto no State Department Publications, 2349, intitulado Report to the President on the results of the San Francisco Conference, da autoria de Edward Stettinius, Secretário de Estado: "Com a erupção da guerra na Europa era claro que os Estados Unidos seriam confrontados depois da guerra com novos e excepcionais problemas ... Consequentemente foi criada uma comissão por sugestão do CFR antes do final de 1939, para tratar dos problemas do pós-guerra (como tal 2 anos antes do EUA terem entrado na guerra). Esta comissão foi assistida por um grupo de investigadores que em Fevereiro de 1941 deu origem a uma classificação de Investigação Especial no Departamento de Estado, (todos menos um eram membros do CFR), passando os seus membros da lista de pagamento do CFR para a lista de pagamentos do mesmo Departamento de Estado".



































Foi este grupo que criou as estruturas básicas das Nações Unidas [o terreno em que se encontra construída a sua sede foi oferecido por Nelson Rockefeller] e definiu as políticas de pós-guerra que levaram à entrega ao bloco comunista, de milhões de cidadãos livres, durante os sete anos que se seguiram ao final da guerra.

Em 1945, a delegação americana à conferência das Nações Unidas compreendia nada menos de 74 membros pertencentes ao CFR, estando entre eles Alger Hiss, mais tarde condenado como espião da URSS, Harry Dexter White, também agente soviético, Owen Saltimor, descrito pela Comissão do Congresso como um "consciente, articulado instrumento da conspiração internacional soviética", John J. McCloy, antigo membro da direcção do Rockefeller Chase Manhattan Bank, Harold Strassen, Nelson Rockefeller, John Foster Dulles, Philip Yesrap e Dean Acheson. Estes e 38 membros do CFR ocuparam as posições chave mais importantes, ao nível em que as decisões eram tomadas para a constituição da organização das Nações Unidas.

No eixo Morgan-Rockefeller, a família dos Lamont, cujos membros eram personalidades de relevo nos círculos do CFR e que representavam os principais banqueiros de Wall Street, desempenharam um importante e activo papel na promoção das políticas pró-soviéticas. Corliss Lamont, membro do CFR, foi classificado pelo House Un-American Activities Commitee como sendo "provavelmente o mais persistente propagandista da União Soviética que se possa encontrar em qualquer parte dos EUA"

Os Lamont e outros membros do escol do CFR estavam em estreita ligação com muitos outros programas financiados por Wall Street, naturalmente por incumbência do CFR, todos orientados no sentido de criar um clima favorável aos interesses da União Soviética. Entre os que se salientaram pela acção desenvolvida neste sentido, podem citar-se os seguintes: American Association for the United Nations, Council Affairs, Commitee for Economic Development, Business Advisory Council, Commission on National Goals, American Assembly, National Planning Association,Americans for Democratic Action.

No plano internacional, o CFR está ligado a numerosas organizações quer directa quer indirectamente, como, por exemplo, às Conferências de Bilderberg, às Pugwash Conferences, à English Speaking Union, às Pilgrims Society, todas elas controladas pelas Round Table.
















































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Georgia Guidestones ('American Stonehenge')



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É nestas reuniões de nível internacional, que se traçam as linhas de orientação a ser inseridas na política internacional. O número dos que participam nestas reuniões, naturalmente variável, corresponde à representação mais altamente classificada dos sectores mais relevantes da vida das nações representadas: os banqueiros internacionais, as corporações que englobam as maiores empresas internacionais, as fundações isentas de taxas e as personalidades mais representativas pertencentes à organização. Estas reuniões, geralmente anuais e sem local fixo, são secretas, sabendo-se apenas sobre elas, e nem sempre se sabe o local da reunião e o nome dos participantes...».

Fernando Pacheco de Amorim («25 de Abril. Episódio do Projecto Global»).



«Lisboa, 31 de Março de 1964 - Recebi o Embaixador Anderson, a seu pedido. Veio fazer o relato da sua viagem a Angola e Moçambique, donde regressou há dias. Não fez uma descrição sequente da visita. Preferiu ocupar-se de vários assuntos sem ligação entre si. Deixei-o falar quase sem o interromper. Do que Anderson disse julgo de reter o seguinte, pela ordem por que o disse:

a) Como problema mais grave a enfrentar, temos o de criar empregos e trabalho para as novas gerações que em Angola e Moçambique estão sendo educadas. Serão necessários grandes investimentos e estes, para poderem serem atraídos, requerem a existência de ordem e paz públicas, e de razoáveis garantias contra confiscos, impostos abusivos e nacionalizações; e, além disso, de uma boa administração que assegure que o dinheiro não é desperdiçado. (O Embaixador sublinhou estes pontos mais duas vezes no decurso da sua exposição).

b) Não devemos retirar de Angola nenhuma tropa. Se possível, devíamos para lá enviar mais. Como militar, teria algumas observações a fazer quanto à táctica que seguimos. Mas fá-las-á ao general Pina, com quem se propõe avistar-se.

c) Ainda como militar, considera que o problema que temos de enfrentar em Angola é muito sério e difícil. A extensão da fronteira, e as bases e «santuários» no Congo-Leopoldville, são dados que agravam o problema.

d) Deveríamos procurar convencer o Congo, o Tanganica, a Niassalândia e a Rodésia do Norte de que era do seu interesse colaborar com Portugal, e de que no fim de contas a política portuguesa só era benéfica para aqueles países. Vincou duas vezes que julgava saber que entre nós e a Niassalândia as coisas se estavam processando já numa base de colaboração. Não comentei.








e) Tinha notado em alguns oficiais e comandantes de sectores (field commanders) a tentação de passarem ao ataque, e destruir as bases no Congo. Como militar, compreendia perfeitamente essa tentação. Mas recomendava-nos muito vivamente que resistíssemos a esse desejo natural; e sobretudo que não empenhássemos tropas de infantaria no Congo. Seria uma aventura sem fim. (Interpus uma palavra para dizer que nós éramos «wise» e prudentes, e que as nossas forças tinham instruções estritas para respeitarem a fronteira. Isso não obstava a que nos sentíssemos impacientes; e aquelas instruções não se aplicavam, evidentemente, no caso de bombardeamentos aéreos vindos do Congo. Anderson disse que compreendia muito bem este último ponto: mas ainda mesmo nesse caso entendia que devíamos retaliar com aviação e não«empenhar» tropas no Congo.

f) Visitara muitas escolas, hospitais, serviços públicos. Tudo muito bom: alguns melhores do que na metrópole. Impressionaram-no algumas empresas: a Cádá, a Tentativa: e era preciso que se multiplicassem às dezenas. Vira em Moçambique uma empresa agrícola que lhe parecia típica de exploração colonial: era uma sociedade norueguesa, cujos lucros vão para a Noruega. (Comentei que me sentia feliz por ver que os «exploradores» eram os puros, liberais e imaculados noruegueses - e não nós).

g) Falara com muita gente, brancos e negros. Todos reclamavam maior descentralização: o Governo central estava muito longe e era muito lento. Também escutou reclamações consoante as profissões: os médicos achavam que não tinham meios suficientes, os professores queriam mais escolas, etc. Mas isto era normal em todos os países.

h) Visitara a África do Sul. Não lhe ficara dúvida acerca da firmeza e determinação dos sul-africanos brancos: se os forçarem muito, Anderson julga que aqueles matarão pelo menos meio milhão de negros. Os brancos sul-africanos são bons soldados, estão bem organizados, têm excelente Polícia, são muito duros - e bater-se-ão até à morte.

i) Visitara as minas na África do Sul. Investigara como era feita a instrução dos mineiros negros. Descobrira que em sete dias, por processos modernos, aprendiam uma linguagem técnica completa que lhes permitia trabalhar com eficiência; e no mesmo espaço de tempo, e através de testes simples, os sul-africanos determinavam os «leaders» ou capatazes que dirigiam os grupos de mineiros. Tudo os negros aprendiam com facilidade. E pensara: que perigo tremendo representam aqueles homens se forem ensinados a serem guerrilheiros!





África do Sul




j) Estivera no Quénia. Ficara desapontado: o Governo era constituído pelo bando (outfit) que dirigira o «mau-mau»; mas isso não era suficiente para governar um país. Falara com Mboya: achara este muito hostil contra Portugal. Mboya afirmara não ser possível tolerar a humilhação portuguesa, e perante uma pergunta do embaixador exemplificara tal humilhação referindo um qualquer caso de arbitrariedade de que tivera conhecimento em Moçambique, cometido por um chefe de posto, e de que ficou de enviar documentação a Anderson, para destruir a incredulidade que este expressara. (Observei que, segundo voz corrente em África, Mboya era uma «criatura» americana. Anderson disse que não sabia).

k) De conversas e investigações ficara com a impressão de que no Tanganica e um pouco por toda a África as condições eram idênticas às do Quénia. Uma coisa compreendera: as nacionalizações forçadas eram uma forma de «aguentar» as economias durante algum tempo, e iludir a má administração: mas ao cabo de um ou dois anos a «fachada» tinha de estalar. Além disso, percebera que não há unidade africana: só contra Portugal e a África do Sul estão unidos; mas isso não tem importância; não tem importância o que faça ou diga a Tunísia ou a Argélia: se nos entendêssemos com os vizinhos, isso para nós bastaria. (No meio do que precede, Anderson exclamou, ansioso, para mim: «Não cite estas críticas que eu faço aos países africanos!». Assegurei a Anderson que eu não citaria).

l) Ficara convencido de que uma declaração de princípios, da nossa parte, não satisfaria os africanos: no dia seguinte exigiriam a independência imediata de Angola e Moçambique. Apesar disso, continuava a pensar que devíamos fazer a declaração segundo as linhas que há tempo nos sugerira. Também pensava que devíamos renovar as conversas com os africanos: não levariam a nada, provavelmente; mas ganhávamos tempo e influenciaríamos talvez alguns mais moderados.

m) A uma pergunta minha, declarou que nunca se sentira inseguro em Angola ou Moçambique: se tivesse levado a sua mulher e filhas passeariam com ele por toda a parte sem receio. Também se admirara da falta de protecção de algumas autoridades, embora notasse que nalguns casos polícias ou jeeps armados estavam próximos dos locais onde se encontravam governadores: mas isto era normal em qualquer parte.

n) Podíamos estar orgulhosos do que estávamos fazendo no Ultramar: não interessava averiguar se podíamos, ou não, ter feito há mais tempo o que estávamos fazendo. Encontrara funcionários da mais alta competência e dedicação. A organização portuguesa do programa da visita e execução que lhe proporcionáramos haviam sido perfeitas. Ia escrever dezenas e dezenas de cartas a agradecer as atenções recebidas.

o) Das conversas no Quénia e de outras informações concluíra que os africanos eram fanáticos, e que nós tínhamos de enfrentar esse fanatismo. (Observei muito calmamente que nós em matéria de África também éramos fanáticos. Anderson olhou para mim com ar muito sério, e com alguma relutância disse: «It is true»).

p) Como lhe perguntasse se, como eu previra antes da sua partida, entendia agora melhor Portugal e a política portuguesa, Anderson respondeu que sim: a sua viagem fora imensamente instrutiva. Está claro que alguma imprensa lhe atribuíra declarações que não fizera e opiniões que não exprimira. Mas isso não tinha importância.






q) Perguntei-lhe se, perante as realidades que observara em Angola e Moçambique, compreendia melhor o nosso ressentimento para com as Nações Unidas, e se concordava comigo quanto à nenhuma ligação entre o que se dizia na ONU e o que existia e se passava no Ultramar português. Anderson comentou que decerto compreendia melhor: mas havia uma ligação entre a ONU e a nossa África e consistia no facto daquela ir continuar com a sua pressão sobre nós. Um pouco desligadamente, e com veemência, Anderson afirmou: «Os Estados Unidos não vão mudar a sua política». Depois, aludiu à necessidade de aumentarmos a nossa campanha de«public relations» nos Estados Unidos, e até no Mundo. Muito havíamos feito: mas havia que fazer mais e em novos meios. Anderson sublinhou este aspecto mais de uma vez.

r) Talvez devêssemos fazer uma declaração quanto ao regresso dos «refugiados» do Congo a Angola, e permitir a sua actividade dentro do rigoroso cumprimento da lei e estrito respeito pela ordem pública. (Não percebi, nem procurei esclarecer o que Anderson quis dizer: mas ficou-me a impressão de que não se referia ao chefe da UPA mas aos supostos «moderados» de outros movimentos).

s) Como eu falasse da visita a Cabinda, e dissesse que se tratava de território ainda subdesenvolvido, Anderson logo afirmou com incontida alegria: «muito subdesenvolvido!».

t) Anderson, à saída, manifestou o desejo de dentro em pouco se avistar com o presidente do Conselho».


Franco Nogueira («Diálogos Proibidos. A Política Externa Portuguesa e a Guerra de África», II Volume).


«Consoante asseveram os peritos em línguas africanas, Mau Mau é um termo de proveniência incerta. Algumas pessoas garantem que é o termo kikuyu para designar um grupo de montes que ladeiam o vale do Rift e o lago Naivasha, no Norte do Quénia, enquanto outros dizem que é uma rude aliteração do grito de guerra dos Kikuyu. Há uma terceira interpretação, que afirma que Mau Mau é uma invenção inglesa, destinada não só a designar os rebeldes, como a convertê-los em demónios. Num documentário da televisão inglesa, transmitido no Channel 4, How Britain Crushed the Mau Mau Rebellion, o professor Londsdale, historiador, salientou o modo como o governo britânico descreveu pela primeira vez os Mau Mau: "o brotar da velha África não conformada, que ainda não recebera a suficiente iluminação e disciplina colonial, o que provava que o colonialismo ainda tinha trabalho a fazer". Por outras palavras, os Mau Mau eram pouco mais que selvagens, propensos ao tumulto e à destruição.


Lago Naivasha






Localização do lago Naivasha






Quénia





Seja qual for a proveniência do termo Mau Mau - seja uma forma de demonização ou o grito de guerra kikuyu - crê-se que o grupo tenha sido criado entre 1947 e 1952, com um único objectivo: libertar o Quénia do colonialismo, a qualquer preço. Na prática, os Mau Mau envolveram-se numa campanha de violência terrorista anticolonial, durante a qual morreram muitas pessoas, tanto europeias como africanas.

Tinha existido, desde sempre, uma minoria de quenianos que cooperavam com o governo colonial e que, portanto, beneficiavam do domínio colonial. Transformar esses grupos em alvos (na maior parte viviam e trabalhavam no distrito de Nyeri da Província Central) foi uma tarefa relativamente fácil e, subsequentemente, vieram a morrer muitos "colaboradores" negros. Contudo, pelo menos no início, a violência Mau Mau dirigia-se contra os colonos brancos - violência que se reflectia nas cerimónias de iniciação do grupo. Nessas cerimónias fazia-se uso extensivo da simbologia ancestral e da magia negra em conjunto com o número sete que, para o Kikuyu, possui um profundo significado e está directamente ligado aos rituais de iniciação sagrados.

Escrevendo extensivamente sobre essas cerimónias de iniciação no seu livro sobre os Mau Mau e baseando grande parte do seu trabalho na pesquisa original efectuada pelo escritor L. S. B. Leakey Fred, Majdalany descreve um desses rituais:

"Está bastante escuro e ordenam-lhe [ao iniciado] que tire a roupa. Na escuridão, é empurrado e recebe o primeiro choque quando o seu corpo nu é esfregado pela linha exterior de um arco. É absolutamente inesperado, mas ele sabe que se trata do arco de cana-de-açúcar e folhas de bananeira, através do qual terá de passar durante a sua iniciação à idade adulta [...] Agora irão trabalhar rapidamente sobre ele. Vão-mandá-lo comer um pedaço de carne sacrificial, que lhe comprimem contra os lábios. Este gesto será repetido sete vezes e depois de cada uma delas terá de repetir um juramento. Em seguida, os lábios serão tocados com sangue sete vezes, sendo o voto repetido após cada toque. Então, um recipiente com sangue é passado sete vezes em volta da sua cabeça; ser-lhe-á ordenado que espete sete espinhos numa maçã-de-sodoma e que fure o olho de um carneiro".

Esta mistura entre o sagrado e o profano tinha um efeito prolongado sobre os iniciados, que normalmente eram completamente sobrepujados pela cerimónia. "Costumamos beber o voto", admitiu um rebelde ex-Mau Mau, chamado Jacob Njangi. "Jurámos que não permitiríamos que o homem branco nos governasse para sempre, que lutaríamos contra ele até ao último homem, para que o homem possa viver em liberdade".








Estandarte presidencial de Jomo Kenyatta




Majdalany fez uma lista do conjunto de votos que acreditava que os iniciados Mau Mau eram obrigados a fazer:

a) Que este voto me mate, se eu alguma vez revelar os segredos desta organização.

b) Que este voto me mate, se eu alguma vez ceder qualquer terra kikuyu a um estrangeiro.

c) Que este voto me mate, se eu alguma vez trair Kenyatta, nosso grande líder.

d) Que este voto me mate, se alguma vez der informações contra qualquer membro desta organização que roube os europeus.

e) Que este voto me mate, se alguma vez deixar de pagar as quotas desta organização.

As mortes que decorriam da falta de cumprimento destes votos eram extremamente selváticas. Muitos dos corpos de antigos Mau Mau que foram descobertos tinham ferimentos característicos do ritual de mutilação praticado pelos Kikuyu. Contudo, apesar do derramamento de sangue, ou talvez por causa dele, cada vez era maior o número de pessoas que se juntava aos Mau Mau, que até aí tinham crescido livremente; a sua ilegalidade foi decretada em 1950. Em Agosto desse ano, a Kenya's Internal Security Working Commitee (Comissão de Trabalho para a Segurança interna do Quénia) tinha sido encarregada de avaliar a questão da rebelião. O relatório que produziu constituiu uma denúncia corrosiva dos Mau Mau, definida do seguinte modo:

"Trata-se de uma sociedade secreta kikuyu, que provavelmente é outra manifestação da extinta Kikuyu Central Association. Os seus objectivos são antieuropeus e a sua intenção é desapossar os europeus das White Highlands. Os adeptos fazem o voto de não fornecer informações à polícia, podendo também jurar a não obediência a determinadas ordens do Governo. Suspeita-se de que alguns dos seus membros, a trabalhar nas propriedades dos europeus, aderem a uma política de 'lentidão', podendo inclusivamente ter cometido pequenos actos de sabotagem nessas propriedades. Acredita-se que as perseguições consecutivas e bem sucedidas que têm sido efectuadas contra esta sociedade, impediram o seu crescimento ou, pelo menos, levaram à diminuição do recrutamento forçado de novos aderentes. A força da organização depende da extensão do poder latente em todas as sociedades secretas, que as leva a serem mais temidas do que as forças da lei e da ordem".



Soldados britânicos à procura de guerrilheiros Mau Mau


Malgrado o reconhecimento do problema e malgrado o facto de os Mau Mau terem sido declarados ilegais, durante o mês de Janeiro de 1952 continuaram a surgir relatórios sobre "cerimónias de juramento", não só no Norte do território queniano, como também no distrito de Nairobi. As circunstâncias eram desesperadoras, embora o governador colonial da época, Sir Philip Mitchell, reconhecido perito em assuntos africanos, não parecesse preocupado. No seguimento do relatório da Comissão de Trabalho para a Segurança, afirmou desembaraçadamente que os Africanos não passavam de um povo primitivo e, como tal, o que podia esperar-se que fizessem senão atolar-se na magia negra e nas cerimónias votivas? Por volta de Fevereiro de 1952, os acontecimentos tinham-se agravado, com relatos de várias colheitas incendiadas em terras pertencentes aos colonos brancos. Mas os ataques não se limitavam às plantações de café dos brancos - existiam relatórios adicionais de violência dos Mau Mau nos subúrbios de Nairobi habitados por brancos. Em Maio de 1952, os relatórios dos serviços secretos sugeriram que o conteúdo dos juramentos dos Mau Mau tinha começado a mudar de carácter - afastando-se do juramento geral de violência contra os colonos europeus, passando a ameaças mais especificas de assassinato contra indivíduos identificados. As práticas votivas estavam também a ser assumidas a uma escala cada vez maior, com a ocorrência de cerimónias de iniciação maciças, que envolviam grupos de oitocentas pessoas. Os kikuyu que não fizessem o juramento ou que não delatassem os que o não haviam feito eram sumariamente mortos ou mutilados.

A 25 de Setembro de 1952, foram atacadas cinco propriedades pertencentes a brancos. As construções exteriores foram completamente queimadas e mais de quatrocentas cabeças de gado bovino e ovino foram mutiladas ou mortas. Com todos estes acontecimentos, seria de esperar que o governador Mitchell mudasse de táctica, mas isso não aconteceu e continuou a negar a existência de um problema grave no Quénia. Só depois de ele ter abandonado o país (com uma autorização de partida definitiva) é que foram tomadas medidas sérias para combater os Mau Mau.

O novo governador, Sir Evelyn Baring, foi um homem que, logo que chegou ao Quénia, procedeu a uma intensiva visita de uma semana a todo o território. Chegara ao seu conhecimento que, só no mês anterior, os Mau Mau tinham assassinado quarenta pessoas e que começavam a adquirir grandes quantidades de armas de fogo. Baring concluiu rapidamente que o único remédio para a situação seria declarar o estado de emergência em grande escala, acompanhado pelo aumento do número de efectivos do exército britânico.

(...) Após a declaração do estado de emergência, os acontecimentos sucederam-se rapidamente; o governo queniano empreendia todos os esforços para suprimir os Mau Mau e proteger os cidadãos brancos. Kenyatta foi enviado para Kapenquria e colocado sob forte vigilância armada, esperando pelo julgamento (em 1953, foi sentenciado a sete anos de prisão com trabalhos forçados); foram também aprisionadas mais cento e doze pessoas, igualmente suspeitas de envolvimento com os Mau Mau. Na manhã do dia 22 de Outubro, os cidadãos de Nairobi ficaram alarmados ao constatarem que a cidade estava a ser patrulhada pelos fuzileiros Lancashire e, no dia seguinte, o cruzador Kenya, da Marinha Real britânica, chegava a Mombaça, transportando um destacamento de fuzileiros navais, também destinados a suprimir qualquer actividade Mau Mau naquela cidade.

Contudo, apesar das prisões em massa efectuadas em Nairobi e nas áreas circundantes, rapidamente se constatou que os Mau Mau continuavam a fortalecer-se. Um chefe kikuyu, favorável aos objectivos da administração britânica, tentou desmantelar uma cerimónia votiva dos Mau Mau, o que lhe valeu ser despedaçado pela multidão a golpes de catana. Pouco depois, os Mau Mau fizeram a sua primeira vítima branca, um fazendeiro chamado Eric Bowyer. Bowyer vivia com dois criados africanos numa propriedade isolada. Enquanto estava a tomar banho, os rebeldes Mau Mau entraram em casa e mataram os seus três ocupantes. Actos deste tipo continuaram a ocorrer de vez em quando, provocando na administração uma sensação de frustração e impotência. Aparentemente, os seus problemas dividiam-se em três categorias. Em primeiro lugar, constatava-se uma aguda falta de informações que indicasse a estrutura organizativa dos Mau Mau, o seu grau de armamento e as intenções que tinham. Isso significava que as forças governamentais se sentiam incapazes de planear uma estratégia adequada à aniquilação dos rebeldes. Em segundo lugar, as forças armadas que operavam no Quénia provinham de vários ramos. Havia os militares ingleses, os militares coloniais, uma polícia tribal civil extremamente deficiente em pessoal e uma unidade de polícia tribal desarmada. Por fim, todas as unidades acima citadas operavam independentemente umas das outras e a organização da sua coordenação era deficiente».

Shelley Klein («Sociedades Secretas»).





Os Gansos Selvagensé um filme britânico de 1978, no qual se procura retratar a imagem do mercenário num contexto colonial africano.  Ver aqui







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Sir Roger Moore
























Richard Burton



























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Stewart Granger








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«No fundo, [o 25 de Abril de 1974] não passou de um pequeno episódio num percurso que se pretende que conduza à formação de um Governo Mundial, que já tem no seu activo um número elevado de vitórias e de vítimas».

Fernando Pacheco de Amorim («25 de Abril. Episódio do Projecto Global»).


«... A ONU tem-se revelado um fracasso total. A sua inércia em relação ao problema do Ruanda e do Burundi em 1994, para citar apenas dois exemplos, acabou por desafiar todos os princípios éticos por traição aos imperativos da paz mundial e ainda hoje levanta inúmeras interrogações. Quando aqueles países africanos entraram em colapso e se transformaram em verdadeiros açougues humanos [pois dizimaram-se centenas de milhares de civis tutsis e hutus], a ONU limitou-se a guardar silêncio e os seus esfíngicos diplomatas a balbuciar explicações hipócritas depois de pressionados pela opinião pública mundial. Nem mesmo confrontada com factos terríveis foi capaz de adoptar uma resolução que condenasse os cabecilhas de tamanha criminalidade. Paul Kagame e Yoweri Kaguta Museveni, presidentes do Ruanda e o Uganda respectivamente, estão arrolados em relatórios da ONU e em querelas judiciais em Espanha como instigadores das atrocidades. Nenhum deles, porém, foi citado a comparecer até hoje diante do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Continuam a gozar de tal impunidade. Recentemente vieram a público nos Estados Unidos denúncias contra a administração Bill Clinton pelo seu envolvimento no golpe de Estado terrorista de 6 de Abril de 1994 que mudou o regime político no Ruanda e pelo "apoio técnico" aos criminosos tutsis da Frente Patriótica Ruandesa [FPR], chefiada pelo general Kagame. Pelo que se supõe, estas revelações não perturbaram a comunidade internacional.

De então para cá o que se tem visto? Os EUA reforçaram a sua presença na sub-região dos Grandes Lagos por meio de bases militares, o regime ditatorial de Museveni converteu-se no seu principal aliado e o Uganda numa porta de entrada das armas americanas em África. É com tais armas, e com o apoio de Kampala e Kigali, que as milícias interhawme, agrupadas nas Forças Democráticas de Libertação do Ruanda [FDRL] invadem a RDC a pretexto de proteger as populações ruandófonas e destruir os acampamentos de insurrectos hutus, que são acusados de cumplicidade com Kinshasa e de ataques contra o Uganda e o Ruanda a longo da fronteira.

Mais: o Uganda não se transformou somente numa placa giratória de entrada de armas, mas outrossim num centro de escuta norte-americano na região. De acordo com o semanário queniano The East African, a Agência Central de Inteligência [CIA, pelas siglas em inglês] instalou na região ocidental do país, no primeiro trimestre de 2005, uma moderna base de espionagem situada em Fort Portal, ao sul do Lago Albert, de modo a permitir às forças militares estadunidenses intervenções rápidas na RDC se a situação assim o exigir. Quanto à presença militar, os EUA justificam-na à sua maneira dizendo - pela voz de Cindy Courville, directora americana para os Assuntos Africanos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Washington - que a administração George W. Bush apenas procurou ajudar o governo de Museveni a neutralizar as rebeliões internas que lhe fazem guerra há vinte anos, a saber: o Lord's Resistance Army [LRA], sob o comando de Joseph Kony, que integra adeptos acholi da seita fanática do Espírito Santo e concentra as suas acções no norte do Uganda, em área próxima à fronteira com o sul do Sudão; o Allied Democratic Force [ADF], no sul; e o West Nile Bank Front [WNBF], a oeste. Porém, a rebelião que mais preocupa a sociedade internacional é a de Joseph Kony pelos abalos que provoca no Poder político ugandês e pelas matanças em larga escala praticadas contra a população civil.



Ruanda




Burundi






Uganda






Claro que, para lá destas falsas razões, o que se joga no Congo é uma carta geopolítica complexa e altamente explosiva. Ali digladiam-se os interesses da cleptocracia neoliberal internacional que cobiça e disputa áreas económicas vitais, as mais ricas do planeta, em cujo subsolo se escondem minerais estratégicos [já classificados de "escândalo geopolítico], como o cobalto, o ouro, diamantes, manganês, tório, cádmio, urânio, mas sobretudo coltán [utilizado na indústria de produtos electrónicos e centrais atómicas].

Efectivamente são estas disputas que trazem o Congo debaixo de uma permanente instabilidade e concorrem para fragmentar o seu vastíssimo território. A pouco e pouco, a continuar este cenário, o Estado, já em colapso, deixará de existir porque perde o monopólio da coerção legítima e, no seu lugar, despontarão exércitos rebeldes e empresas de segurança privadas [como de resto já está a acontecer] que, armados e agrupados etnicamente, sem nenhum respeito pelo direito, ditarão as suas leis particulares e apenas reconhecerão "lealdade" a um ou a vários senhores da guerra, umbilicalmente ligados aos cartéis transnacionais da droga e de outras mercadorias. A distinção entre guerra e crime tenderá a desaparecer e, neste vazio, cada vez menos política e mais conflitos primitivos de pilhagem em territórios alheios, conforme o diz o jornalista e ensaísta político americano Robert Kaplan no seu livro À Beira da Anarquia».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).







UNIDADE DAS FORÇAS ARMADAS E CONSCIÊNCIA NACIONAL


DISCURSO PRONUNCIADO POR SUA EXCELÊNCIA O PROF. DOUTOR OLIVEIRA SALAZAR, NO ACTO DE CUMPRIMENTOS DAS FORÇAS ARMADAS, EM 28-5-1962










Senhores Ministros e Senhores Oficiais

Desculpar-me-ão que não me demore a agradecer em nome do Governo os cumprimentos que me foram presentes, para me deter uns minutos a considerar dois tópicos das palavras aqui ouvidas - unidade das forças armadas e consciência nacional, a mesma consciência que as impeliu a tornar possível uma nova ordem de coisas em 28 de Maio de 1926.

Direi primeiro que me parece não haver força armada sem unidade e esta revela-se tanto na simples presença como na actuação efectiva. É pela unidade que um Exército se distingue de um bando armado e que a sua acção, mesmo quando devastadora, pode ser no final construtiva, se reflecte uma disciplina e assegura ou edifica uma ordem. Mesmo reduzida ao mínimo do seu conteúdo possível, a unidade da força armada exige um substrato moral e na realidade das coisas a adesão espiritual à Pátria. Quando a nação se apague dos espíritos como o primeiro valor a defender, não há soldados, não há exército, mas indivíduos que não sabem que fazer das suas armas. A unidade nacional é condição da unidade de Exército; por sua vez o Exército é o último quadrado que nas crises mais graves defende o destino e a consciência da Nação. - Estes conceitos explicam muita coisa da história do nosso tempo.

Na confusão de ideias em que vivemos hoje, já admitem alguns que só um grande Estado se arrogue o direito de estruturar uma nação; os mais Estados e as mais Nações haviam de dissolver-se ou diminuir-se no reconhecimento dessa unidade, subordinando-se-lhe inteiramente e submetendo-se à sua direcção. Daqui vem que no credo comunista o nacionalismo é para todos um pecado e para a Rússia uma virtude que se deve venerar. A forma porém como se previu e verifica a evolução dos acontecimentos tem variado na mente dos dirigentes e na prática das coisas: a cada momento são as circunstâncias que indicam o melhor caminho a seguir. Como se conclui pela impossibilidade na Europa da guerra de fronteiras, anunciam as duas maiores potências da Terra ter acordado e ir propor aos mais a luta contra a guerra, contra a propaganda belicista, contra o armamento convencional ou não. Entendamos bem os termos da combinação; proíbem-se as guerras que não haverá, mas estimular-se-ão as guerras que continuará a haver. A França não invadirá a Alemanha, a Bélgica não se baterá com a Holanda, a Espanha respeitará Portugal; mas os mesmos que tão convictamente se hão-de vangloriar duma paz já consolidada por força dos acontecimentos e da vontade dos povos, continuarão a reivindicar o direito de interferência ideológica, de apoio político e financeiro, de fornecimento de armas, da preparação de núcleos subversivos em territórios estrangeiros, por cima e sem embargo das relações diplomáticas, das declarações de amizade e dos desejos de boa vizinhança. E o fundamento desta política contraditória está em que não se trata de guerras de conquista mas de guerras de «libertação», tal qual a efectuada em Goa, com desprezo dos direitos soberanos de Portugal e os interesses dos goeses, não considerados no conflito nem havidos para nada, senão por nós mesmos, antes e depois da ocupação.














Antiga fortaleza portuguesa do século XVI em Diu, uma ilha na costa oeste da Índia


Sendo pois que na Europa vão diminuir as possibilidades de guerra externa, mas aumentarão noutros continentes as de tipo diverso, por efeito das contradições em que as nações ocidentais se vão deixando enlear, é para a África sobretudo que têm de dirigir-se os nossos esforços, porque não temos motivos para diferenciar os territórios e muito menos para abandonar os portugueses de além-mar. É desde há séculos pluricontinental e plurirracial a nação portuguesa, e isso sem prejuízo da sua unidade, nem das largas autonomias locais; e as guerras que ali nos são impostas desconhecem tanto a história como o direito como os verdadeiros interesses dos povos que para elas são arrastados. Os que nos defendemos em África defendemos de facto a África, e fazemos uma experiência histórica, permitindo confrontar os efeitos duma obra conduzida para benefício geral por nações portadoras duma cultura e os resultados do abandono, ainda que largamente subsidiado, a que serão votados muitos povos africanos. A invasão de Goa no que representa de desmentido ao apregoado pacifismo da União Indiana, os actos terroristas de Angola no começo do último ano, a defesa da Província apoiada na população branca e de cor que se reconhece tão portuguesa uma como a outra, o êxito militar, a sucessiva expulsão dos terroristas para além fronteiras e a recuperação das populações deslocadas são factos que começam a pesar nos juízos dos homens em muitas nações e confio em que chamarão os mais à evidência das coisas. É certo que fazemos ali uma guerra difícil e custosa, e que a fazemos sozinhos (não digo sem alianças, digo sem aliados); mas é igualmente certo que cumprimos um dever para connosco e para com um continente que deve sobretudo a Portugal os seus primeiros contactos com a civilização.

A reconsideração geral dos factos e dos conceitos que se encontram na base da política africana e da política do Mundo Ocidental em relação à África, pensamos que se fará a tempo de evitar as últimas derrocadas; e, embora o nosso povo seja muito atreito a afinar os seus juízos pelo veredicto estrangeiro, neste particular a barreira oposta pela consciência da Nação às campanhas vindas de todos os quadrantes não pôde ser vencida nem abalada sequer; e seria bem importante que o fosse, para os que trabalham na desintegração europeia, tanto aqui como no Continente Africano. O povo não pode ter o conhecimento em pormenor destes problemas; tem porém a acuidade do instinto que, tendo-o feito Nação há muitos séculos, o mantém atento às exigências da sua identidade e da sua própria sobrevivência. E do que se trata afinal é de sobreviver e continuar igual a si próprio.

Temos pois a unidade e coesão das forças armadas e quase seria uma traição aos mortos que houvesse o mais pequeno dissídio; temos a consciência da Nação firme e bem formada acerca deste problema fundamental. Pergunto a mim mesmo o que pode valer, em face deste bloco, a agitação e as lucubrações, mesmo que inspiradas do estrangeiro, dos que infelizmente perderam a sua alma de portugueses e não sentem já Portugal.







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Daniel Francisco Roxo



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Monumento aos Combatentes do Ultramar




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A TRAIÇÃO DO 25 DE ABRIL DE 1974




Reunião da 'Junta de Salvação Nacional'







Álvaro Cunhal no 1.º de Maio de 1974



Tomada de posse de Álvaro Cunhal como ministro do I Governo Provisório (16 de Maio de 1974).



Costa Gomes conferindo posse a Vasco Gonçalves como primeiro-ministro do III Governo Provisório (Setembro de 1974).



Costa Gomes com Vasco Gonçalves, Melo Antunes e Mário Soares (Outubro de 1974).



Costa Gomes nos jardins da Casa Branca, com Gerald Ford, Henry Kissinger, Mário Soares, Hall Themido, entre outros (Outubro de 1974).



Costa Gomes com o secretário-geral da ONU Kurt Waldheim, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, em Nova Iorque (Outubro de 1974).



Costa Gomes a discursar na Organização das Nações Unidas (Outubro de 1974).










Costa Gomes com o presidente Jugoslavo Josip Broz Tito (Outubro de 1975).



Costa Gomes com Leonidas Brejnev e Andrei Gromiko na União Soviética (Outubro de 1975).



Costa Gomes com o Patriarca de Moscovo, durante a visita à União Soviética (Outubro de 1975).




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Pintura mural de 1975: Comando Operacional do Continente (COPCON). Foi criado em 8 de Julho de 1974, para cumprir os desmandos da revolução comunista, e era constituído por fuzileiros, Pára-quedistas, comandos, polícia militar, Infantaria de Queluz e pelo Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS).



Diálogos Interditos

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Escrito por Franco Nogueira










«Veja-se a esplêndida liturgia católica: os que vissem nela só a grandiosidade do cerimonial, seriam materialistas cristãos, tão estúpidos como os que não vêem no homem senão o corpo; a liturgia está tão intimamente unida à fé cristã, como a palavra à ideia; é um corpo vivo, cuja alma é o Cristianismo.

(...) O fundamento do culto está na própria natureza humana. - O homem não é só espírito, mas um composto de corpo e alma. Não vá entender-se esta união consoante certo cartesianismo antiquado, que a representava como um navio e seu piloto, vivendo cada um à parte com sua vida independente: corpo e alma formam um todo único, o espírito penetra toda a matéria, e o corpo vive do espírito».

Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).


«...Primeiro, e ainda antes da abertura do Concílio [Vaticano II], houve mais uma traição à Mensagem de Fátima - sinal de muitas coisas sem precedentes que iriam acontecer. Na primavera de 1962, em Metz, França, o Cardeal Eugène Tisserant encontrou-se, nada mais nada menos, com o Metropolita Nikodim, da Igreja Ortodoxa Russa - um agente do KGB, tal como o eram os outros prelados ortodoxos. Nesse encontro, Tisserant e Nikodim negociaram o que viria a ser conhecido como o Pacto de Metz, ou, mais popularmente, o Acordo Vaticano-Moscovo. A existência deste Acordo Vaticano-Moscovo é um facto histórico irrefutável, atestado em todos os seus pormenores por Monsenhor Roche, secretário particular do Cardeal Tisserant.

O acordo era substancialmente o seguinte: o Papa João XXIII, de acordo com o seu ardente desejo, seria “favorecido” com a presença de dois observadores ortodoxos russos no Concílio; em troca, a Igreja Católica concordava que o Concílio Vaticano II não condenaria o Comunismo soviético nem a Rússia soviética. Significava isto, em essência, que o Concílio iria comprometer a liberdade moral da Igreja Católica ao fingir que aquela forma mais sistemática do Mal humano na História da Humanidade (o Comunismo) não existia - apesar de, na mesma altura em que o Concílio iniciava os seus trabalhos, os Soviéticos perseguirem, prenderem e assassinarem milhões de Católicos.



Papa Giovanni XXIII



João XXIII e os cismáticos da Igreja Ortodoxa Russa



O metropolita Nikodim




















Concílio Vaticano II



Vladimir Putin e o Patriarca Russo Kirill



Bandeira do FSB



AN-94 Abakan



Quartel-General do FSB na Praça Lubyanka













Praça Lubyanka nos princípios do século XX


(...) A nova política do Vaticano é a favor do “diálogo” e das negociações com os comunistas - afastando-se, portanto, do ensinamento dos Papas Pio XII, Pio XI, São Pio X, Leão XIII e do Beato Pio IX acerca do dever que a Igreja tem de condenar e de se opor abertamente ao comunismo, bem como de se abster de qualquer colaboração com os comunistas, que tiram sempre partido de tal colaboração para mais infiltrar a sua guerra contra Cristo e a Sua Igreja».

(«O Último Combate do Demónio», editado e compilado pelo Padre Paul Kramer).


«A realidade do comunismo significa a perseguição à Igreja e assaltos continuados aos direitos elementares da pessoa. É verdade que alguns fazem declarações contra a violência. Mas os actos não seguem estas palavras; e como qualquer um poderá ver, a Igreja é tão injuriada por um grupo como por outro».

Josemaria Escrivá de Balaguer (Carta de 24 de Outubro de 1965»).


«O livro de Calvo Serer, España sin problema, publicado pela Rialp em 1949, ganhou o primeiro Prémio Literário Nacional Francisco Franco. Ele e uma segunda obra, Teoria de la Restauracion, publicado pela Rialp em 1952, definiam uma plataforma ideológica para a implantação progressiva da Opus Dei. Ambos os livros defendiam que a base do sistema de valor da Espanha era a Igreja Católica. A história da Igreja e a história da Espanha estavam interligadas. Consequentemente, a tradição nacional era uma tradição religiosa. Enquanto a Europa encarava o dilema de escolher entre o Sonho Americano ou a Sovietização, Calvo Serer e Pérez-Embid acreditavam que o Velho Continente seria melhor servido por uma combinação de eficiência alemã e espiritualidade espanhola.

Calvo Serer e Pérez-Embid concordavam que a Espanha pós-guerra apresentava uma oportunidade de mão beijada para a criação de um catolicismo militante que no século dezasseis conduzira o Império Espanhol ao apogeu do seu sucesso criativo. Eles ponderaram que, com o mundo moderno entregue ao materialismo ateu, quer capitalista ou comunista, a única forma de afastar a catástrofe era retomar a Cruzada de Carlos V, desta vez não com os recursos de uma nação, mas por meio de um poderoso e vital movimento católico internacional. Escrivá de Balaguer encorajou-o: na sua visão, o Opus Dei fora divinamente concebido como um Regenerador Católico com âmbito universal.

(...) No final dos anos 40 a Guerra fria estava num crescendo. Cada novo pé-de-vento reconfirmava ao Pai que o comunismo continuava a ser, mais do que nunca, o inimigo mais sério da Igreja. Depois da mostra de julgamento de três dias do Cardeal Mindszenty em Budapeste, o Papa Pio XII disse ao Ministro Francês em Roma: "A Igreja está agora empenhada numa luta de vida e de morte com a União Soviética, na qual está em causa o destino de 65 milhões de católicos - uma sexta parte da população católica mundial - que vivem nos estados satélites soviéticos". Não muito depois, o primaz da Polónia, cardeal Stefan Wyszynski, foi preso.





Papa Pio XII




Escrivá de Balaguer estava determinado a estender o apostolado do Opus Dei à luta contra o Marxismo. Mas, como disse aos seus fiéis, "Não quero fazer dos meus filhos mártires. Com mártires não poderei fazer nada". Os missionários que ele seleccionou eram jovens profissionais ascéticos, treinados em fortaleza espiritual por ele próprio e pelos seus apóstolos. Enviava-os para o mundo para trabalharem para Deus, ou melhor para fazerem o trabalho de Deus, mas não como vulgares missionários. Converter, tal como efectuado pelos Jesuítas era, na sua maneira de ver, um conceito do passado. A obra de Deus precisava ser feita nas salas de Conselhos de Administração, salas de reuniões bancárias e câmaras ministeriais do estado secular.

De início, os numerários e uns quantos colaboradores abastados estavam sozinhos a subscrever estes esforços. Era exigido aos numerários que entregassem os seus salários para os fundos gerais da Obra e, em contrapartida, recebiam uma pequena mesada. Mas era sempre uma dificuldade equilibrar os livros porque Escrivá de Balaguer tinha gostos sumptuosos. Depois, as pessoas casadas - os supranumerários - foram admitidos na Obra. A sua presença aumentou grandemente a situação financeira. Ao Instituto Secular não era exigido vigiar o bem estar físico deles, o que era obrigatório para os numerários. Por outro lado, aos supranumerários não era exigido que entregassem os seus salários totais, uma vez que tinham obrigações familiares, e dessa forma eram apenas convidados a fazer contribuições "voluntárias", género 10 por cento da sua receita anual, paga em prestações mensais. O resultado não era despropositado. Devido ao trabalho do Arcanjo Gabriel, o dinheiro fluía como nunca na tesouraria do Opus Dei. Esse capital tinha que ser gerido. O Opus Dei precisava dos seus próprios bancos e, num tempo de controle cambial tão rígido, de uma rede financeira paralela que permitisse o capital circum-navegar as restrições das transferências.

(...) Andreotti, Siri e os dois prelados espanhóis consideravam perigosa a abertura diplomática de João XXIII ao mundo comunista. Siri começou a descrever o pontificado do Papa João como "o maior desastre na recente história eclesiástica". Por "recente", acrescentou Peter Hebblethwaite, Siri significava os últimos 500 anos. Dizia-se que Siri e Escrivá de Balaguer viam o Segundo Concílio do Vaticano como um espectáculo subsidiário, destinado a complicar o trabalho do sucessor do Papa.

Pôr em movimento o Vaticano II não era uma tarefa fácil. O Papa Roncalli tornou muito claro que tencionava abrir as portas a todas as religiões - um passo revolucionário. O Papa também iria virar do avesso as normas processuais.




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João XXIII anuncio o início do Concílio Vaticano II



































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Paulo VI e o metropolitano Meliton de Heliopolis (1965)



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Paulo VI nas Nações Unidas (1965)




"The Meditation Room" na ONU. Ver aqui














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Ao centro: Papa Bento XVI. Ver aqui







Papa Bento XVI nas Nações Unidas











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Na abertura, o Papa João dirigiu-se ao Concílio e explicou o propósito do Vaticano II: assegurar que "o depósito sagrado da doutrina Cristã - o património comum de toda a humanidade - fosse preservado e ensinado duma forma mais eficaz..." Mas Roncalli não tinha nenhum plano. Foi Montini quem lhe ofereceu um plano. Propôs-lhe que o concílio se concentrasse num tema: a natureza da Igreja e a sua aggiornamento (renovação) na preparação para o terceiro milénio. Os criadores do Concílio foram solicitados a considerar os papéis dos componentes da Igreja: bispos, padres, religiosos e gente laica. Montini também ponderou que o Concílio devia considerar a missão da Igreja no final do segundo Milénio, e propôs uma discussão sobre o relacionamento da Igreja com outras religiões, incluindo os seus "inimigos" tradicionais.

O Vaticano II teve lugar aos olhos do público. Isto também foi contra os princípios do Opus Dei. Para mais, o Pai receava que, o grande número de peritos que o Papa autorizara a tomar parte, pudesse submergir os bispos menos sofisticados. Um bispo necessitava de força mental para lembrar que a sua autoridade vinha da sua consagração mística como apóstolo de Cristo e não das opiniões divergentes dos conselheiros, não importa como adquiridas. Por causa disto, o Pai acreditava que a "potencial expansão do campo de acção do Demónio" que o Vaticano II proporcionava estava "para além da imaginação dos criadores do Concílio".

Escrivá de Balaguer recusou participar nos trabalhos do Vaticano II. Diz-se que o Papa João pretendia nomeá-lo consultor, mas ele não esteve pelos ajustes. Contudo, o Papa fez Dom Álvaro del Portillo secretário da Comissão para a Disciplina da Fé. Durante os três anos em que o Concílio decorreu, Escrivá de Balaguer encerrou-se na Villa Tevere, apelidando-o de "Concílio do Demónio".

O Papa João não viveu para ver completada a tarefa do seu grande empreendimento. Morreu a 3 de Junho de 1963. Escrivá de Balaguer acreditava que o "Papa campónio" tinha embarcado numa prática destruidora. O Cardeal Larraona comentou mais brandamente "A bondade e a credulidade de João desencaminharam-no". Siri, mais directo, advertiu: "Demorará quatro séculos para que a Igreja recupere do pontificado de João".

(...) Escrivá de Balaguer estava convencido que vivia num tempo de heresias. Gradualmente, via o Opus Dei como núcleo da verdadeira Igreja, uma Igreja pobre e insinuante. Os seus filhos eram os guardiões, a contrapartida cristã do Mutawah do Islão, uma polícia religiosa sob juramento para manter a disciplina e silenciar os revisionistas. Ele acreditava que "Deus escolhera o Opus Dei para salvar a sua Igreja". Dentro da Obra, a sua palavra era lei. Ele estabelecia o Index dos Livros Proibidos do Opus Dei, semelhante na intenção ao determinado por Paulo IV em 1557 e actualizado por Leão XIII em 1900. Bombardeava os seus vigários regionais com directivas escritas que eram inseridas no manual da praxe de cada centro. Os assuntos variavam desde a Nota S-4 de 30 de Agosto de 1952, a qual numa frase curta alertava acerca de falar sobre matérias internas com pessoas exteriores à Obra, até aos últimos aditamentos ao Index.









Brasão de Armas de Josemaria Escrivá de Balaguer




















Cinta de cilício







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Um tema a que recorria repetidas vezes era a vigilância necessária para impedir o "philo-marxismo" de corromper as doutrinas da Igreja. Ele instruía os filhos e filhas "em posições de governação ou ensino" (contrariamente às declarações públicas que nunca interferiam nas vidas profissionais dos membros) a extirpar e a relatar a infiltração marxista. Seis meses mais tarde, emitiu outra directiva proibindo os membros de lerem determinadas publicações católicas que ele considerava contaminadas pela filosofia marxista.

Ao longo de vários anos, os numerários tinham lido na Crónica afirmações do género, "a herança do céu vem até nós através do Pai", ou eram informados pelos seus directores espirituais que, "... a vontade do Pai é a vontade de Deus". Escrivá de Balaguer acreditava que estava na posse de confidências divinas. Estas confidências diziam-lhe que a Humanae Vitae, devido a ser demasiado fraca, tinha lançado a Igreja para a anarquia.

John Roche disse: "A hierarquia do Opus Dei em Roma estava a começar a preparar-nos para um cisma. Diziam: 'já anteriormente houve cisma nos santos'. Estavam a preparar-nos para a possibilidade de abandonarem a Igreja Católica e virem a ser uma igreja separada. Esta era uma indicação da paranóia que se espalhara pelo Opus Dei no início dos anos 70. Lembro-me de perguntar a um dos nossos padres irlandeses quem escolheria ele se houvesse um cisma, o Papa ou o Pai? 'O Pai, claro', respondeu-me".

No começo dos anos 70, Escrivá de Balaguer desistiu do cisma. Segundo membros antigos, Álvaro del Portillo aconselhara uma aproximação mais subtil para resolução dos problemas da Igreja. Portillo salientou que, tal como o Opus Dei, muitos cardeais estavam convencidos que o pontificado de Paulo VI era um desastre. Propôs que o Opus Dei tentasse formar uma frente comum com os membros mais conservadores do cardinalato. Poucos cardeais sabiam muita coisa sobre o Opus Dei. Se o Instituto Secular se tornara conhecido, tinha agora que abrir o seu apostolado à hierarquia da Igreja. Portillo propôs a criação de um centro romano para a reunião de sacerdotes - o Centro Romano do Incontri Sacerdotali (CRIS) - e utilizá-lo como um forum para fazer aceitar à hierarquia, com todo o tacto possível, os receios de Escrivá de Balaguer relativos à Igreja. Antes de concordar com esta proposta, o Pai queria uma orientação da Virgem Maria e embarcou numa peregrinação a quatro santuários Marianos em Espanha, Portugal e México. Um deles era Torreciudad, onde autorizara uma Basílica imponente, a qual apelidou de "minha última leviandade". A construção começou pouco depois da sua visita de Abril de 1970 e levou cinco anos a completar.

(...) Dos cardeais do leste, Karol Wojtyla, era considerado o mais receptivo às ideias do Opus Dei. Quando em Janeiro de 1964 Paulo VI nomeou Wojtyla Arcebispo de Cracóvia, ele já era considerado o bispo mais proeminente da Polónia. A ortodoxia de Wojtyla agradava ao Pai. Antes de se tornar o segundo cardeal da Polónia, murmurava-se dentro do Opus Dei que Wojtyla tinha sido empossado como associado na Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, que geria o CRIS. Ele fez três aparições no CRIS e as suas palestras foram reunidas num livro intitulado La fede della Chiesa.






Paulo VI e Wojtyla, Arcebispo de Cracóvia




O sósia de Paulo VI. (ver aqui)



João Paulo II












Nelson Mandela e João Paulo II






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Escrivá de Balaguer era incapaz de demolir a resistência de Paulo VI para transformar o Opus Dei numa diocese flutuante. Dizia-se que a forma como Paulo VI encarava o Opus Dei fora influenciado pelos pontos de vista do seu assistente mais fiável, Arcebispo Giovanni Benelli. Filho de um padeiro de Pistoia, Benelli tinha servido sob as ordens de Montini na Secretaria de Estado; em 1962 foi enviado para a nunciatura em Madrid. A colocação de Benelli em Espanha levou-o ao contacto com o Opus Dei. Não apenas deplorou o seu secretismo, como suspeitou que Escrivá de Balaguer pretendia criar uma igreja dentro da Igreja.

(...) Um antigo membro superior do Opus Dei em Espanha acredita que a próxima Cruzada - a Décima Cruzada - será uma cibernética, não combatida com bombas ou balas, ou mesmo petróleo do Médio Oriente, mas com a última tecnologia de computadores e das comunicações electrónicas. No seu ponto de vista, as palavras do profeta serão afogadas nas fantasias da revolução do ciberespaço - uma revolução realizada e controlada pelo Ocidente. Quando as massas muçulmanas - pobremente educadas, meio iletradas e dependentes daquilo que os seus próprios media e mullahs lhes digam - conseguirem acesso ilimitado à informação e cultura Ocidental e, acima de tudo, à Boa Nova dos Evangelhos, serão libertos das grilhetas da tirania medieval que actualmente faz deles fundamentalistas.

Este ponto de vista fazia eco em João Paulo II quando, no início de 1991, em resposta a uma sugestão de que o desenvolvimento já não era aplicável a países em estado de industrialização mas, hoje em dia, ao fortalecimento do seu sector bancário e, amanhã, ao seu comando de sistemas avançados de comunicações, ele sorriu e observou: "Essa é a tese do Opus Dei" [Le Monde Diplomatique, Paris, Janeiro 1995]».

Robert Hutchison («O Mundo Secreto do OPUS DEI. Preparando o confronto final entre o Mundo Cristão e o Radicalismo Islâmico»).










Lisboa, 12 de Dezembro [de 1965] - Encontro no regresso o chefe do governo um pouco constipado e rouco. Atribui tudo à secura do ambiente aquecido. Falo-lhe do Concílio, dos nossos bispos, dos progressistas, das impressões colhidas. Salazar concentra-se nos progressistas. Diz: "Eu não os compreendo. Eu não sei compreendê-los. Monsenhor Rotoli, da Nunciatura, tem razão quando diz que eu não tenho sensibilidade católica. Quer ele dizer que as minhas ideias não são a da maioria de hoje. É verdade. E no entanto nunca na história de Portugal alguém fez pela Igreja mais do que eu. Desde os tempos de D. Pedro I, e de João V, etc., fui eu quem mais tem protegido e ajudado a Igreja. Mas não me importo. Enquanto não se meterem comigo, não me importo".

(...) Lisboa, 5 de Dezembro [de 1967]- Salazar repete-me que se quer ir embora. Diz com ênfase: "não quero, repito que não quero morrer neste lugar. E também não quero viver muito tempo depois de sair, porque não quero ver as desgraças e a confusão em que o mundo vai mergulhar, e o país". Como eu disse que era melhor o destino resolver um problema que não está posto, Salazar ripostou:"Ah! mas vai estar! Porque eu vou levantá-lo com o Chefe do Estado. Mas os senhores, em lugar de estarem para aí com essas coisas, deviam era ajudar, e colaborar para todos juntos vermos a melhor maneira de se proceder à transição sem solavancos, e de modo a que não houvesse alteração nas coisas fundamentais". Depois, o chefe do governo retomou a sua preocupação com o progressismo: "Já não será no meu tempo, mas eu adivinho um choque brutal entre a Igreja e o poder civil. No dia em que o progressismo for anti-nacional - e caminha para isso! - o governo que aqui estiver não pode deixar de reagir. Note: já hoje o progressismo invade muita coisa. Nos ministérios já há muito progressismo. Daqui a pouco, temo-lo no governo, se é que já não o temos". Aludiu de seguida ao Cardeal Cerejeira:"Publicou para aí um livrinho, Na Hora do Diálogo. Pois bem: é tudo defensivo, é só para se defender, não teve a coragem de contra-atacar. É um fraco, sempre foi um fraco, nunca teve a coragem de castigar ninguém".

(...) Lisboa, 7 de Abril [de 1968]- Onda de assaltos, tumultos, assassínios nos Estados Unidos, na sequência do atentado contra Luther King. É espantosa a violência: Washington está em pé de guerra, e a Casa Branca guardada com ninhos de metralhadoras. E um autêntico vento de loucura parece ter-se apossado do mundo. Que a morte de King foi crime, e mais do que condenável, ninguém o contesta; mas o que o mundo inteiro vista luto, e passe noites de insónia e de lágrimas, já parece carpir em excesso. Robert Kennedy fretou um avião para transportar a Sr.ª King; e o homem do hotel onde o dirigente negro foi assassinado vai transformar em santuário de peregrinação nacional o quarto que aquele ocupava. E o Papa? Expediu telegrama de pêsames à viúva, e isso está bem, pois foi acto cristão e de cortesia; mas ontem, em S. Pedro, pronunciou uma homilia em que, segundo as agências, compara a morte de King à paixão de Cristo - disse-o expressamente - e considera o sangue daquele chefe negro como "espiritualmente precioso"e toda a humanidade culpada e amaldiçoada. Eu sinto-me desorientado, desorganizado. Não haverá nestas manifestações algum excesso? Quando é assassinado alguma figura da chamada direita é o silêncio. E não será igualmente um crime a repudiar?».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se - Diário: 1960-1968»).




O comunista Francisco Louçã. Foi preso na Capela do Rato em 1972 durante um 'protesto' contra a guerra do Ultramar. É hoje professor universitário de economia no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa.



«No dia 30 de Dezembro de 1972, cerca das 19.30, seis pessoas aproximam-se do altar da Capela de Nossa Senhora da Bonança, a "Capela do Rato", situada na Calçada Bento da Rocha Cabral, n.º 1-B, em Lisboa. Do grupo destaca-se uma mulher, Maria da Conceição Moita, que se aproxima do microfone e anuncia que se encontrava ali, em nome de um grupo de cristãos, para "comunicar uma decisão e pôr um problema a toda a comunidade", lendo uma declaração dando conta de uma "vigília de 48 horas", em jejum, como forma de protesto contra a guerra colonial. O celebrante, o Padre João Seabra Diniz, manifesta surpresa, mas deixa à consciência de cada um dos presentes a posição pessoal a tomar. Cerca das três da manhã, aprova-se uma moção condenando a cumplicidade dos bispos "na política de exploração colonial praticada pelo governo fascista português". No dia seguinte à ocupação, domingo, celebram-se as missas habituais das 11 horas e das 12.30. Em vez de fazerem homilia, os padres António Janela e Armindo Garcia lêem um texto redigido em conjunto com o responsável pela Capela, o Padre Alberto Neto, ausente por doença, onde informam a assistência do seguinte modo. "Seja qual for a nossa posição diante deste gesto, ele tem um sentido interpelativo de tal densidade que não o podemos ignorar". Durante a tarde, prosseguem os debates, sob o lema "A Paz é Possível", que o papa Paulo VI anunciara como consigna das comemorações do Dia da Paz, que a Igreja celebraria em 1 de Janeiro. Nessa altura, reuniam-se já cerca de duas centenas de pessoas no interior do recinto. É aprovada uma segunda moção que, entre o mais, considerava "justa a luta dos povos das colónias". Os participantes organizam-se em assembleias, cujos coordenadores são escolhidos no próprio local: a primeira discute a presença portuguesa em África, com destaque para o papel da Igreja na colonização; a segunda, realizada já no domingo, aborda especificamente o tema da guerra ultramarina. Na tarde de domingo, encontram-se no local cerca de trezentas pessoas e chega uma mensagem de solidariedade de católicos do Porto. No final desse dia (31 de Dezembro de 1972), cerca das 19 horas, as forças policiais começam a concentrar-se em redor da capela. Pelas 20.30, estão no local dez carrinhas com polícia de choque e cães, além de mais viaturas e outras forças de segurança. O trânsito é controlado e a zona encontra-se isolada. Após um breve compasso de espera, um graduado da Polícia de Segurança Pública, o conhecido capitão Américo Maltez Soares, entra na capela e, pelas 20.45, dá um prazo de dez minutos para que os presentes abandonem o templo. Segundo os relatórios policiais, as pessoas não acatam a ordem e começam a cantar em coro "Perdoai-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem". Agentes da PSP penetram no edifício. "Entravam, alguns genuflectiam diante do altar, e dirigiam-se a nós", recorda, muitos anos depois, Luís Mota, o principal organizador do evento. Os presentes recusam-se a sair, pretendendo saber se a PSP possui uma autorização do Patriarcado para entrar na capela. Acabam arrastados pela polícia para o exterior. Dezenas de pessoas são conduzidas pela polícia, em duas carrinhas, à esquadra situada no antigo Convento das Trinas do Rato, no largo com o mesmo nome. Depois de identificadas, foram postas em liberdade, à excepção de catorze, que seriam levadas para o Governo Civil e, já de madrugada, para a prisão de Caxias, onde permanecem detidos cerca de quinze dias à guarda da Direcção-Geral de Segurança. Agentes da PSP revistarão a capela, apreendendo documentos e publicações.






(...) O protesto do Rato possui um antecedente próximo - a vigília realizada na Igreja de S. Domingos, em Lisboa, em 1969 - e representa o culminar de um lento processo de distanciamento de muitos católicos relativamente ao Estado Novo. Nascido no pós-guerra, esse distanciamento agudiza-se na sequência das eleições presidenciais de 1958, tendo atravessado momentos bem conhecidos. Além do mais famoso de todos, o caso do Bispo do Porto, podem citar-se:

- a presença de católicos na revolta da Sé, no golpe de Beja e na crise académica de 1962;

- a "rebelião" no seminário dos Olivais, em 1967-68;

- o surgimento de publicações como Direito à Informação, O Tempo e o Modo, Concilium, Cadernos Necessários, África Livre, Cadernos sobre a Guerra Colonial, Colonialismo e Lutas de Libertação, A Palavra e o Tempo, Cadernos de Reflexão da JUC ou o Boletim Anti-Colonial (BAC);

- as actividades do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, da editora Moraes, do Círculo do Humanismo Cristão, do Centro de Cultura de Cinema; a criação das cooperativas culturais Pragma e Confronto, além de cooperativas de consumo, como a LISCOOP;

- o impacto da visita de Paulo VI a Bombaim, por ocasião do Congresso Eucarístico, em Dezembro de 1964, e sobretudo a reacção, até de vários clérigos, ao silêncio imposto pelas autoridades civis em relação àquela viagem;

- o "manifesto dos 101";

- o surgimento em 1965 do Movimento Cristão da Acção Democrática, fugaz início da presença da democracia-cristã em terras portuguesas;

- em Novembro de 1965, o aparecimento, no decurso da IV Sessão do Vaticano II, da "Carta de um grupo de católicos de Portugal distribuída em Roma aos padres conciliares", onde se chegava a criticar o Presidente do Conselho por ser um político formado na admiração por Maurras e pela Action Française e se denunciava a censura, o regime de partido único e o corporativismo;

- a criação, à revelia do Patriarcado de Lisboa, do Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET);

- o lançamento dos Cadernos GEDOC (1969-1970), dirigidos pelos padres Felicidade Alves e Abílio Cardoso e por Nuno Teotónio Pereira;

- os "casos" dos padres Felicidade Alves e Mário de Oliveira, párocos de Belém e da Lixa, respectivamente».

António de Araújo (in «Os Anos de Salazar», Centro Editor PDA, 2008, vol. 28).














«A Teologia da Libertação foi de alguma maneira um movimento ‘criado’ pela KGB de Sakharovsky ou foi um movimento existente que foi exacerbado pela URSS? 

O movimento nasceu na KGB e teve um nome inventado pela KGB: Teologia da Libertação. Durante esses anos, a KGB teve uma tendência pelos movimentos de “Libertação”. O Exército de Libertação Nacional da Colômbia (FARC –sic–), criado pela KGB com a ajuda de Fidel Castro; o Exército de Libertação Nacional da Bolívia, criado pela KGB com o apoio de “Che” Guevara; e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), criado pela KGB com a ajuda de Yasser Arafat, são somente alguns movimentos de “Libertação” nascidos em Lubyanka – lugar dos quartéis-generais da KGB.

O nascimento da Teologia da Libertação em 1960 foi a tentativa de um grande e secreto “Programa de desinformação” (Party-State Dezinformatsiya Program), aprovado por Aleksandr Shelepin, presidente da KGB, e pelo membro do Politburo, Aleksey Kirichenko, que organizou as políticas internacionais do Partido Comunista.

Este programa demandou que a KGB guardasse um controle secreto sobre o Conselho Mundial das Igrejas (CMI), com sede em Genebra (Suíça), e o utilizasse como uma desculpa para transformar a Teologia da Libertação numa ferramenta revolucionária na América do Sul. O CMI foi a maior organização internacional de fiéis depois do Vaticano, representando 550 milhões de cristãos de várias denominações em 120 países».

Ion Mihai Pachepa («Ex-espião da União Soviética: Nós criámos a Teologia da Libertação»).
















«Numa noite de Março de 1962, os serviços de segurança de Israel prenderam um homem conhecido nesse país por Israel Beer, um espião da União Soviética. A decisão final para a sua prisão teve origem no próprio primeiro-ministro David Ben-Gurion. Nascido na Áustria, Beer emigrou para a Palestina em 1938, atingiu a proeminência como o mais jovem coronel do exército israelita, e serviu como historiador militar e conselheiro nos mais altos níveis do sistema militar israelita. Beer foi julgado e considerado culpado de passar informações secretas para a União Soviética, e morreu numa prisão de Israel em 1968. Porém, a sua verdadeira identidade é questionável.

Os agentes israelitas descobriram que Beer nunca frequentara uma academia militar austríaca, tal como afirmava, e que não combatera nas Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil de Espanha. Não existiam registos com o seu nome. Beer nunca revelou a sua verdadeira identidade, e nunca admitiu trabalhar para o KGB. Fora activado como espião em 1956, depois de dezoito anos para organizar a sua cobertura, mas foi depois de ter sido preso, julgado e condenado que a Mossad - os serviços secretos israelitas - descobriu que de facto existira um austríaco chamado Israel Beer. "Era um pobre estudante judeu com uma vaga semelhança com o homem que se transformou no amigo de confiança de Ben-Gurion, mas o verdadeiro Israel Beer desapareceu em 1938, no ano em que o agente emigrou para a Palestina".

Israel Beer foi um dos muitos agentes enviados para Israel pelos soviéticos, para manipularem a seu favor a situação no Médio Oriente. Quando em 1948 Estaline reconheceu a moderna Israel, esperava conseguir organizar uma quinta-coluna israelita para colaborar com o Exército Vermelho numa invasão por cima das montanhas da Anatólia, através da Síria e de Israel, até às margens do canal de Suez. Quando verificou que o conceito não era praticável, passou a dar o seu apoio ao lado árabe. A campanha anti-semítica de Estaline na União Soviética atingiu o seu clímax em Agosto de 1952, com o massacre dos principais escritores judeus da Rússia. A "Conjura dos Médicos" de 1953 levou a mais perseguições anti-semíticas, em particular contra médicos e cientistas judeus, que terminaram apenas com a morte de Estaline. Até à Guerra dos Seis Dias em 1967, os soviéticos desenvolveram uma política de tensão controlada no Médio Oriente, mas a partir daí procuram a destruição total de Israel.












Moshe Dayan



Operação Foco











Dassault Mirage no Israeli Air Force Museum


O êxodo - um termo mais apropriado do que nunca - só começou a ser significativo em 1971. O pequeno fluxo migratório logo após a Guerra dos Seis Dias de 1967 era apenas o presságio da grande corrida para os portões da União Soviética. Como esse êxodo é utilizado como um dos trunfos no jogo Leste-Oeste, têm existido dramáticos altos e baixos no número de judeus autorizados a partir. A emigração desceu a pique de 34 933, em 1973, para 20 695, em 1974, e declinou ainda mais, em 1975, para apenas 13 459. As autoridades soviéticas permitiram que cerca de 30 000 judeus partissem em 1978, e esse número atingiu o seu mais alto nível - 51 320 - em 1979. De acordo com os números publicados pela Conferência Nacional sobre os Judeus Soviéticos, a emigração diminuiu outra vez para 21 471 nos finais de 1980. O corte na emigração foi sem dúvida uma represália contra os Estados Unidos por estes terem reduzido o volume de comércio com a União Soviética depois da invasão do Afeganistão. Em Fevereiro de 1982, o número de indivíduos autorizados a sair subiu de um modo dramático para 3000 por mês. O tratamento benevolente dos pedidos começou pouco antes do Congresso do Partido Comunistas, como manobra propagandística "reflectindo a humanidade do partido".

As autoridades soviéticas evitam o termo "emigração" e em vez disso falam de "reunificação de famílias", uma referência às famílias separadas pela Segunda Guerra Mundial e pelas suas sequelas. Qualquer judeu que peça um visto de saída deve apresentar um convite de um familiar em Israel. Não obstante a proximidade desses laços familiares não ser importante até 1981, os funcionários soviéticos começaram recentemente a conceder os vistos a pessoas com convites de parentes em primeiro grau, e têm mais ou menos ignorado os convites feitos por familiares mais distantes. Oficialmente todos os judeus que emigram da Rússia dirigem-se para Israel, mas em 1980 65 por cento foram para outros países ocidentais, em especial os Estados Unidos. Os primeiros emigrados iam buscar as suas motivações ou a fortes sentimentos religiosos ou ao desejo de se reunirem aos seres amados, separados durante o Holocausto, mas em anos recentes o motivo oculto para o êxodo dos judeus tem sido a crescente perseguição e um vácuo espiritual imposto pelos líderes do Kremlin.

O ajustamento à liberdade recentemente adquirida pode ser difícil. Milhares de judeus russos que emigraram para Israel ou para os Estados Unidos depois de anos de sofrimento e por vezes até de prisão não têm consciência de que décadas de forte doutrinação marxista-leninista deixaram neles profundas marcas ideológicas e sociais e que a súbita introdução no ambiente social americano ou de Israel pode ser uma experiência traumática. Muitos recém-chegados ficam chocados quando deparam com uma sociedade competitiva. Outros perturbam-se com a liberdade de imprensa ou com os polícias ocidentais, que encaram como se fossem uma espécie de KGB. Um emigrante típico em geral requer vários anos para desenvolver uma certa segurança interna e a sensação de se encontrar em casa. Alguns nunca se adaptam ao ambiente e regressam à União Soviética. Destes, uns quantos são readmitidos e utilizados pelo KGB como elementos-chave em campanhas de propaganda destinadas a mostrar às pessoas, em casa e no estrangeiro, que a vida num país comunista é uma vida muito melhor do que no Ocidente.

















Yuri Andropov. Ver aqui



Durante os anos 70, os leitores dos jornais soviéticos foram bombardeados com cartas de retornados, sob cabeçalhos como "Estamos desiludidos, autorizem-nos a regressar", ou "Regressámos de Israel para a nossa pátria socialista". Na mesma altura, os meios de comunicação de massas soviéticos lançaram histéricas campanhas contra Israel. Centenas de artigos, editoriais, panfletos, cartas ao editor, caricaturas e publicações, representaram o judaísmo como progenitor ideológico do sionismo, e o sionismo como o equivalente actual do nazismo. Muitos judeus foram levados a participar numa campanha para classificar qualquer desejo de partir para Israel como uma traição ao socialismo. A campanha contra Israel incluiu a publicação, em 1969 e 1970, de edições do livro Cuidado com o Sionismo, com um certo sabor aos Protocolos dos Sábios de Sião. Em Cuidado com o Sionismo, Yuri Ivanov chama a atenção para uma conspiração judaica mundial, e afirma que até o Vaticano é manipulado e dominado por sionistas. Em 10 de Abril de 1971, o Pravda publicou uma carta de setenta veteranos bolcheviques de origem judaica, que se juntaram ao Partido Comunista entre 1903 e 1907. Recordavam a sua luta contra o czar, a guerra civil, a luta contra os nazis, e os pretensos benefícios gozados por todos os nacionalistas, sob o Governo soviético. Admoestavam os grupos sionistas israelitas para que acabassem com as suas "sujas solicitações" e recordava-lhes que a União Soviética "garantira a todas as nacionalidades, incluindo os judeus, todos os direitos e oportunidades".

A contínua partida de judeus russos levou os meios de comunicação soviéticos a retratarem os judeus como cínicos, agressivos, criminosos, exploradores e conspiradores, usurpando não apenas as empresas de produção de armamentos dos Estados Unidos, como também a imprensa.

"Os sionistas prenderam na sua rede quase 1000 dos 1811 jornais que são publicados nos Estados Unidos, incluindo jornais como o New York Times, o Chicago Tribune e outros. Os sionistas fazem pressão sobre revistas tão influentes como a Fortune, Time, Nesweek e US NewsandWorld Report".

Um grande número de artigos "teóricos" na imprensa soviética apelidaram o sionismo de uma forma de racismo e de discriminação racial. Os próprios sionistas, de acordo com os artigos, favorecem o incitamento do anti-semitismo para criarem um espírito de gueto nos meios judeus que escapam ao seu controlo. Porque é que os soviéticos permitem o êxodo judeu, enquanto oficialmente o desencorajam e atacam o sionismo como um ramo do racismo, e Israel como um braço do imperialismo? Os jornalistas americanos explicam em grande parte o paradoxo em termos de clima político entre os Estados Unidos e a União Soviética. Os principais factores para as concessões soviéticas são a opinião pública do Ocidente e a possibilidade de os Estados Unidos garantirem à URSS melhores condições de crédito e tarifas. Mas há também outras razões. Uma mais liberal política de emigração serve como válvula de segurança para aliviar as tensões pulsando no interior da União Soviética. Permitindo ou forçando os mais conhecidos críticos do sistema a abandonarem o país, o KGB retira aos movimentos de democratização os seus líderes e membros. Por fim, mas não em último lugar de importância, o KGB tem-se servido do êxodo como veículo para uma maior penetração em Israel, nos Estados Unidos e noutros países ocidentais.















Enquanto os judeus soviéticos continuavam a abandonar a Rússia em 1971, o KGB estabeleceu um departamento social no seu quartel-general em Moscovo, e secções subordinadas nalgumas das maiores instalações do KGB espalhadas pelo país. O Comité Central do Partido Comunista da União Soviética instruiu especificamente o KGB para se infiltrar nos grupos judaicos, desencorajar a emigração de judeus com alto nível de educação e silenciar os protestos judeus. Em numerosos casos, o KGB utilizou pressões psicológicas e sob outras formas para forçar os candidatos à emigração a tornarem-se agentes dos serviços secretos. Alguns judeus assentiram por escrito em trabalhar para o KGB, esperando conseguirem assim uma resposta mais favorável às suas petições de emigração, sem se aperceberem do perigo desses contratos por escrito poderem ser utilizados para futura chantagem.

Um pequeno mas potencialmente perigoso grupo entre os emigrantes inclui operacionais do KGB - ilegais - fazendo-se passar por judeus enviados para o estrangeiro, sob uma nova identidade. Uma vez que em geral têm um alto nível educacional e treino profissional, o KGB espera que ocupem, dentro de poucos anos, elevadas posições dentro das instituições americanas económicas, científicas ou académicas, com um bom acesso a valiosas informações. Não existem estatísticas quanto ao número de judeus recrutados para agentes do KGB. Nem a contra-espionagem israelita nem o FBI tornaram públicos relatórios sobre este assunto, mas não oficialmente admitem que na verdade descobriram agentes do KGB entre os emigrantes judeus. As histórias de Israel Beer, Alfred Frenzel e Gunther Guillaume são avisos que devem ser levados muito a sério».

Vladislav Bittman («O KGB»).







DIÁLOGOS INTERDITOS


Lisboa, 28 de Abril de 1964 - Chamei o núncio apostólico. Disse-lhe que não se tratava de nada urgente ou de grave. De há tempo, porém, que eu tomara nota de um certo número de pontos que queria submeter-lhe. Já o embaixador Faria tocara nesses pontos em conversa na Secretaria de Estado do Vaticano. Mas eu pretendia também chamar para os mesmos a atenção do núncio, para sublinhar a importância que atribuíamos aos vários casos. E o primeiro era já remoto: a visita do papa a Santo António. Para nós, fora uma ocasião do mais alto interesse sob todos os aspectos; e uma visita papal é sempre acontecimento de relevo, mesmo do ponto de vista da Santa Sé: pois o Osservatore Romano não teve uma palavra sobre o assunto. O presidente da República visitara Angola com o êxito bem conhecido do núncio; nem uma linha no Osservatore Romano. Há dias o jornal publicou um artigo sobre a descoberta do Brasil: atribuiu-a a italianos. Haviam-se efectuado importantes eleições no Ultramar: nem traço se encontra no Osservartore Romano. Há pouco efectuara-se o Congresso dos Religiosos Portugueses; membros do Governo haviam assistido a todos os principais actos; as autoridades tudo haviam facilitado, e o próprio chefe do Estado tomou parte no pontifical de encerramento e no banquete que se lhe seguiu: pois o Osservatore Romano ignorou tudo isto. E eu dizia tudo isto com tanto maior tristeza quanto era certo que ainda tinha bem viva na memória a fotografia, publicada por aquele orgão do Vaticano, do Sr. Nehru em Goa junto do túmulo de S. Francisco Xavier. Eu admitia que a Secretaria de Estado não fosse responsável de tudo quanto se publicava ou se omitia no Osservatore Romano. Mas parecia-nos que era demasiado longa a sucessão de omissões para ser devida ao puro acaso. Ele, núncio, decerto não me acreditaria se eu dissesse que o Governo português nada podia fazer junto do Diário da Manhã. Ora afigurava-se-me que era chegado o momento da Secretaria de Estado intervir no Osservatore Romano no sentido de pôr termo a uma situação que não parecia justa. O país «fidelíssimo» decerto merecia isso da Igreja.







São Francisco Xavier (retrato japonês do 'período Nanban')



Túmulo de S. Francisco Xavier















Basílica do Bom Jesus em que repousa de São Francisco Xavier




Placa comemorativa da passagem do Apóstolo do Oriente




Altar-mor da Basílica do Bom Jesus




Úmero de São Francisco Xavier (Igreja de São José em Macau)



Interior da Igreja de S. José


Concordou o núncio - mas procurou defender o Osservatore Romano. Salientou que o jornal publicara uma larga notícia sobre a nomeação do Cardeal Costa Nunes e a carta papal dirigida ao Congresso dos Religiosos Portugueses. Quanto aos demais pontos, não se recordava de momento; mas pensava que alguma coisa aparecera no jornal. Em todo o caso, queria assegurar-me de que tudo relatara a Roma sobre o Congresso, e sabia que Roma ficara muito satisfeita. Comentei que não tinha dúvidas sobre a fidelidade e a pormenorização dos relatórios da Nunciatura: e por isso mesmo, se o Osservatore Romano o quisesse, poderia deles extrair boas notícias.

Sem transição, e por sua iniciativa, abordou o núncio o problema do bispo do Porto, e sublinhou as dificuldades que causa à Santa Sé. Perguntei ao núncio o que haveria de positivo no rumor, que me tinha chegado, de que o Senhor Dom António seria nomeado núncio num país latino-americano. Monsenhor Furstenberg afirmou que, tanto quanto sabia, não tinha qualquer fundamento o rumor. Era verdade que se propusera a Dom António um lugar de chefia num dos organismos ligados ao Concílio: mas fora recusado. Por agora, Dom António estava, a seu pedido, num convento alemão, a cargo do arcebispo de Colónia, que de resto só acolhera Dom António depois de consultar o cardeal patriarca de Lisboa e de receber uma resposta afirmativa. Em suma: estava a Santa Sé perante um difícil impasse. Tudo se tem investigado, e tem-se consultado todos os precedentes para resolver o problema: apenas se vê «la démotion canonique», o que para a Santa Sé seria de máxima gravidade. Recordei ao núncio a seriedade do problema sob o aspecto religioso para a diocese do Porto. Concordou, e referiu mesmo os prejuízos quanto ao apostolado, Acção Católica, etc. Teve ainda uma palavra elogiosa para o actual  administrador da diocese, embora acrescentasse que se tratava de pessoa demasiado «delicada» (no sentido de «branda»). Deixei cair uma palavra sobre o desgosto em que se encontraria o bispo administrador do Porto, e o seu desejo de entrar numa ordem. O núncio confirmou.

Já que falávamos de bispos, disse eu, queria também lembrar-lhe uma nossa conversa anterior sobre o bispo da Beira, e em que suscitara a eventualidade de uma aliás merecida transferência para uma tranquila diocese metropolitana. Era exacto que o Senhor Dom Sebastião, nos últimos tempos, parecia haver evoluído, e eu tinha lealmente de admitir que muitos estrangeiros, tendo entrevistado o bispo da Beira, me tinham depois dado parte da concordância do Senhor Dom Sebastião com algumas medidas promulgadas. Mas recentemente o bispo da Beira voltara, ao que se afigurava, a deixar-se emocionar por alguns ideais que o levavam a posições inaceitáveis, e que aliás eram injustificadas. Eu tinha notícia de violento ataque ao Governo, há dias. Isto era muito desagradável, e servia os nossos adversários estrangeiros: não era por acaso que o Consulado dos Estados Unidos em Lourenço Marques adquiria 200 ou 300 exemplares do jornal do bispo da Beira. Escutei Monsenhor Furstenberg  sem comentários, e depois disse que não era do meu parecer por várias razões: o bispo estava muito mais calmo, e eram cada vez mais esporádicas as suas atitudes insólitas; o Episcopado metropolitano «não gostava» do bispo da Beira, e este ficaria aqui isolado, o que implicava riscos; e não devíamos esquecer que, entre a juventude e o clero novo metropolitano, muitos ouvidos havia que seriam «muito receptivos»às palavras do bispo da Beira. Por tudo isto lhe parecia ser preferível deixar Dom Sebastião onde estava, mesmo com os riscos de uma outra atitude mais emotiva. Dizia isto no nosso próprio interesse. Respondi ao núncio que, quanto ao último ataque do bispo ao Governo, não tinha ainda lido o texto do artigo, mas ia informar-me, e voltaríamos a falar.


O Bispo da Beira abençoa o Grande Hotel da Beira no dia da sua inauguração (1955)



Grande Hotel da Beira (1960)









































Monsenhor Furstenberg não mostrava pressa, e dispunha-se a conversar. Falou-se um pouco de tudo, ao acaso. Agrupo as afirmações do núncio pela afinidade dos assuntos.

Era muito unido o Episcopado português. Tinha algumas grandes figuras. Personalidade excepcional, aparte a do S. E. o cardeal Cerejeira, era a do arcebispo de Évora, Dom Manuel Trindade Salgueiro. Entendia-se muito bem com ele. Mas havia problemas de recrutamento. Num futuro muito breve havia que escolher seis ou sete novos bispos. Onde encontrá-los? Por outro lado, achava que constituía lacuna do Epicospado português a inexistência de uma grande figura filosófica e doutrinal; decerto que aparecerá; mas tem feito falta para realizar o trabalho necessário de uma elaboração conceptual portuguesa do pensamento católico moderno. A fundação de uma Universidade Católica que parecia bem encaminhada segundo depreendia das suas conversas com o cardeal patriarca de Lisboa, sem dúvida muito contribuiria para suprir aquela. Ele, núncio, não se tem de resto cansado de recomendar que membros escolhidos do clero frequentem as Universidades laicas para se habilitarem a formar os quadros docentes da Universidade Católica: mas até agora não tem sido bem sucedido.

Falei de África. Repisei a tese de que sem Ocidente não há catolicismo nem cristianismo. Aludo à atitude do Sudão para com os missionários, que aliás era geral em África. Citei o arrepio que notávamos na posição protestante. Monsenhor Furstenberg mostrou anuência às minhas observações. Comentou que aqueles e outros acontecimentos nos davam razão. Eu disse ao núncio que lhe ia fazer uma pergunta embaraçosa: como amigos que éramos há 15 anos, perguntava-lhe que opinião tinha sobre a nossa situação actual no plano internacional. Respondeu o núncio que não sentia qualquer embaraço: a nossa situação era muito mais favorável. Tudo estávamos fazendo com tranquila determinação: quando países ricos hesitariam em obras de grande vulto, nós estávamos construindo a ponte sobre o Tejo, e outras pontes, e estradas, e fábricas, arcando com as despesas de Angola, e desenvolvendo o Ultramar - e tudo isto dentro do orçamento e sem sair da ortodoxia financeira. Perguntei a que atribuía a campanha contra o Governo. Não era justa, disse, porque é um«Governo moderado» e representativo: se não há «oposição oficial», o certo é que dentro do Governo estão representadas e podem manifestar-se todas as grandes e importantes correntes políticas do país. Mas na base da campanha estavam sobretudo interesses materiais. Agarrei este ponto, e desdobrei perante o núncio o quadro dos interesses materiais, sobretudo em África. Monsenhor Furstenberg disse que não gostava inteiramente do general de Gaulle: mas não podia deixar de compreender e aprovar a sua política anti-americana. E perguntava-se se na realidade a política dos Estados Unidos não era já orientada por uma profunda embora disfarçada infiltração comunista na Administração norte-americana. Citei o último discurso de Robert Kennedy, em Toronto, e o núncio espantou-se, e fez um gesto com a mão na testa para significar que R. Kennedy devia estar louco.


A Estação Ferroviária da Beira (início do século XX)
1907


Final dos anos de 1960



Estação Ferroviária da Beira (1970)






Voltando a África, disse o núncio que a Portugal só cumpria prosseguir na orientação actual, e levá-la ao fim. (Não estou certo de que aquilo que o núncio entende pela «nossa orientação» seja exactamente o mesmo que nós entendêssemos). E de súbito, com veemência e entusiasmo nele inusitados, perguntou-me: e por que não nomear um bispo negro? Ele tinha em mente alguém que lhe diziam ser «très bien». Somente, havia a objecção de ser muito novo. Perguntei o nome: fez uma pausa concentrada, e disse que não se recordava. Perguntei onde estava: aqui, na Metrópole, mas escapava-lhe o nome do convento. Inquiri da idade: trinta e oito anos. E tornou o núncio a afirmar que seria uma boa coisa nomear um bispo negro, desde que fosse pessoa «muito bem» e de toda a confiança. Não lhe perguntei qual a «confiança de quem?»; mas observei-lhe que era da boa tradição portuguesa a existência de bispos negros. «Pois por isso mesmo!», exclamou o núncio, como era também da boa tradição portuguesa, rematei sorrindo, que os bispos fossem bons patriotas. O núncio também sorriu.

Falando de infiltração comunista, dirigi a conversa sobre a política de João XXIII, e as suas encíclicas, e perguntei se Sua Santidade Paulo VI não estaria tentando travar os perigos sobrevindos. Monsenhor Furstenberg concordou que muitos gestos e muitos escritos de João XXIII haviam sido tendenciosamente interpretados, e estavam servindo de pretexto para uma política que no fundo era contra a Igreja. Por detrás da «cortina de ferro» a situação era grave: mais de 50% das igrejas ainda abertas foram fechadas na Rússia há pouco; tensão na Polónia; perseguições na Hungria. Mesmo na Itália havia preocupações. Paulo VI dera hás dias instruções severas aos bispos italianos para combate ao comunismo. Observei que por tudo isto me parecia absurda a tese, que alguns sustentavam no Ocidente, designadamente os americanos, de que a política portuguesa em África estava lançando esta no comunismo. E desenvolvi este ponto: toda a África tinha estado ligada a países anticomunistas, pelo que não se percebia como a quebra dessa ligação imunizaria aquele continente. «Está claro que Portugal tem razão», disse o núncio. Tal tese «ne tient pas debout», acrescentou, e o núncio encolheu os ombros como quem considera a tese uma infantilidade estúpida. O problema de África era outro; era um problema de educação. E então o núncio disse isto: era preciso com urgência encontrar o sistema de educação e os educadores que pudessem e soubessem explicar aos africanos que a finalidade da vida das pessoas, mesmo das pessoas independentes, não consiste em se ser presidente ou ministro, e que entre os brancos são muito raros os que atingem tais posições, que não são de resto, alcançadas aos 30 anos. Enquanto isto se não conseguir, apenas se terá em África o caos e a infelicidade. Concordei calorosamente com o núncio, e expliquei como justamente a nossa política se baseava na evolução natural de comunidades humanas. Sublinhei o erro dos Estados Unidos, ao estabelecerem a velocidade de evolução de um povo e de um território em função dos recursos materiais disponíveis. Concordou o núncio que essa ideia era absurda e impraticável.

Monsenhor Furstenberg falou da vinda do cardeal Brea. Perguntou se os presidentes da República e do Conselho o receberiam. Disse-lhe a minha convicção de que teriam nisso muito prazer. Também se referiu a um projecto de decreto a publicar pela Educação Nacional, regulando as residências de estudantes. Eu disse que havia recebido a nota que sobre o assunto me mandara, e que já a havia submetido ao Ministério respectivo.






Disse-me que lhe parecia «bem» o embaixador Anderson: homem sério, razoável, e com bom espírito. Eu fiz o elogio pessoal de Anderson, e resumi: «he means well». Monsenhor Furstenberg disse parecer-lhe que efectivamente Anderson era sincero.

A conversa durou duas horas e meia. Foi sempre da maior cordialidade, estando o núncio visivelmente interessado e procurando sempre uma frase de compreensão ou apoio ao que eu dizia.

(...) Lisboa, 18 de Outubro de 1964 - Veio o núncio, a meu pedido, e eu disse-lhe que seria muito breve para o não incomodar. Queria somente mencionar algumas notícias ultimamente aparecidas na imprensa internacional acerca de uma eventual retirada do corpo de São Francisco Xavier de Goa para Bombaim, para nesta última cidade ser exposto durante o Congresso Eucarístico. Em face de tais notícias, eu pretendia sublinhar a gravidade de um tal passo: só quem desconhecesse o que as relíquias de São Francisco Xavier representavam para os Goeses poderia não pensar na reacção profunda e violenta que decerto se produziria: e por isso o Governo português exprimia os seus sentimentos à Santa Sé, para que esta evitasse o que as notícias aludidas anunciavam. E eu queria ainda tratar de um problema. No último Domingo, no dia 25, em algumas igrejas de Lisboa e de Évora, alguns sacerdotes, durante a missa e a propósito da ida do Santo Padre à União Indiana, fizeram alocuções que o Governo tem de considerar ofensivas e que, portanto, não pode consentir. Desejava-se por isso que o núncio fizesse chegar uma palavra apropriada àqueles sacerdotes, directamente, ou, na ausência dos bispos, por intermédio dos vigários diocesanos. De outro modo, o Governo seria compelido a tomar as medidas necessárias para pôr termo a tais actividades políticas.«Que medidas?» - perguntou o núncio. «Aquelas que estão à disposição do poder temporal» - respondi. (E dei ao núncio a indicação das igrejas onde haviam sido proferidas as homilias a que o Governo objectava).

Disse o núncio que considerava «saudável» a expressão de opinião por parte dos padres a que eu aludira, e que decerto eu não pretendia que aqueles sacerdotes fossem infiéis ao Santo Padre. Respondi que não me pronunciava sobre o que era ou não «saudável», embora não partilhasse da opinião do núncio; também não pretendia infidelidade alguma ao Santo Padre; mas não tinha dúvidas de que não eram doutrinárias ou ideológicas mas concretamente políticas as homilias ditas, e que nada autorizava o clero a proferi-las durante a missa, dentro dos templos, e na sua qualidade de ministros da Igreja. Fora dos templos, e como cidadãos, estariam então no seu direito.

Deliberadamente, enveredou o núncio pelo exame de todo o problema da visita do Santo Padre a Bombaim. Durante cerca de duas horas, por vezes com aspereza, trocámos e repisámos argumentos já utilizados anteriormente.




Tanga (60 réis): moeda asiática na Índia Portuguesa, de valor ínfimo e em forma de uma fava




Do lado do núncio foi sobretudo salientado:

a) Era puramente religiosa a viagem do Santo Padre a Bombaim, e inspirava-se em motivos religiosos;

b) Tinha o papa completa liberdade de«missionação», e com esse objectivo poderia ir a toda a parte sem que alguém se pudesse considerar ofendido;

c) A declaração que eu fizera (em 21 de Outubro) fora afrontosa para a pessoa do Santo Padre;

d) Nos tempos modernos, a Igreja tem de «ir a todo o lado», sobretudo junto dos «rebanhos» ainda afastados daquela:

e) Portugal deve muito à Igreja através dos séculos, e não deveria esquecê-lo;

f) Uma reacção muito forte do nosso lado só jogaria em favor dos nossos inimigos.

Do meu lado, procurei contrapor o seguinte:

a) Talvez fossem religiosas as intenções do Santo Padre, e não o punha em dúvida, mas os seus actos transcendiam aquelas: para a História, só ficaria que o papa escolhera a União Indiana, e não uma nação ou santuários católicos, como primeiro país a ser honrado com uma visita sem precedentes:

b) Condenada nos pretórios judiciais e políticos internacionais, e com o seu prestígio por terra, a visita papal reabilitava a União Indiana;

c) Se o papa declarasse em Bombaim que ali estava para homenagear os missionários portugueses, então estava no terreno religioso; mas como não fazia tal declaração, e não a fazia para não ofender o Governo indiano, colocava-se automaticamente no terreno político:

d) Parecia-nos inútil a ida à União Indiana, porque não se poderia pensar que o hinduísmo, único factor de coesão do artificial Estado indiano, consentisse em se sacrificar ou enfraquecer para benefício do catolicismo;






e) Parecia-nos afrontoso esquecer os serviços prestados à Igreja pela Nação Portuguesa, e por isso fora para nós doloroso que, no seu discurso em São Pedro, Sua Santidade não tivesse uma só palavra para os missionários portugueses em África - não obstante largas referências a ingleses e franceses. Por outro lado, e depois de tudo o que as actuais instituições têm feito pela Igreja, não era razoável o que se nos fazia;

f) Por último, a Secretaria de Estado não fora para connosco correcta - o embaixador de Portugal fora ludibriado - como o reconhecera o cardeal secretário de Estado. (À minha insistência neste ponto, com datas e factos, respondeu sempre o núncio alegando a sua ignorância, sem nunca admitir a nossa razão).

Depois de reiterados, sob todas as formas, os argumentos e contra-argumentos, o núncio disse que me confessava uma coisa, como amigo pessoal: durante um momento pensara que a nossa reacção seria ainda mais forte do que fora. Eu referi a Monsenhor Furstenberg que estava recebendo cartas e telegramas de apoio e protesto, na proporção de 5 para 1. Disse o núncio que também lhe estava chegando correspondência - mas «plutôt dans la proportion contraire», acrescentou a sorrir. Eu pedi ao núncio que se não enganasse: pedia-lhe que acreditasse que no país era muito funda e muito forte a reacção do povo. «Sei que você (vous) tem sido dos mais moderados», observou Monsenhor Furstenberg, de forma equívoca. Comentei que a maioria do país condenava a viagem papal. «Em alguns meios assim é», procurou emendar o núncio.

No decurso da conversa, fez Monsenhor Furstenberg repetidas alusões misteriosas, que não consegui que esclarecesse, à situação religiosa, em Portugal, entre 1911 e 1917, e à necessidade de não se cair noutra idêntica; e sublinhou a conveniência de o Governo não agir de modo a poder provocar ou permitir uma situação de «cisma». Perguntei-lhe o que queria significar, mas o núncio escusou-se vincando que, nos seus conselhos ao clero português e nos seus discursos, sempre exaltava a devoção patriótica.

Tornei às questões iniciais, e o núncio acabou por prometer, quanto aos sacerdotes, que procuraria fazer «qualquer coisa» mas «em forma genérica».

Do comportamento do núncio e da sua forma de discutir, tem de se concluir que se sente muito seguro de si, e que no debate resolveu passar à ofensiva, negando-nos qualquer parcela de razão, em contraste com a atitude titubeante e embaraçada que sempre até aqui revelou ao tratar-se deste assunto.






Lisboa, 11 de Dezembro de 1964 - Agradeci ao núncio ter vindo ao Ministério a meu pedido e, muito seriamente e muito cordialmente, disse-lhe que desejava apenas ocupar-me de um só assunto, restrito mas para nós importante, e formular duas simples perguntas. O assunto respeitava ao editorial aparecido no jornal Blitz, da União Indiana, onde se afirmava que o Vaticano havia aprovado a conquista de Goa, e à declaração anónima, e quase diríamos confidencial, posteriormente inserta em forma de vago desmentido, no boletim de imprensa do Osservatore Romano, que, como o núncio sabia, tinha uma circulação muito limitada.  Ora como, por outro lado, a declaração incluída no boletim não se referia ao Blitz nem sequer à nacionalidade indiana do semanário, eu pretendia fazer duas perguntas: se a aludida declaração poderia ser completada, com a indicação explícita do semanário indiano Blitz, e se, uma vez completada, poderia ser publicada no Osservatore Romano. Ele, núncio, decerto compreenderia o nosso desejo: porque, se o desmentido pelo Vaticano para os jornais de Lisboa era talvez satisfatório, em nenhuma outra parte do Mundo e portanto, para todos os efeitos políticos, ficava intacto perante terceiros o artigo do Blitz.

O núncio replicou que na Rádio Vaticano fora mencionado expressamente o Blitz e que, em qualquer caso, a declaração entretanto publicada pela Cúria Patriarcal de Lisboa punha termo ao assunto e deveria ser havida como bastante.

Respondi a Monsenhor Furstenberg que eu não sabia da menção na Rádio Vaticano, mas que me parecia bem; mas nós gostávamos de um texto escrito. Quanto à declaração da Cúria de Lisboa, com todo o devido e merecido respeito que a mesma inspirava ao Governo, não a podíamos ter como bastante: salvo se explicitamente afirmasse estar autorizada a falar em nome e por ordem e instruções do Santo Padre, a Cúria de Lisboa só podia, no ponto de vista do Governo, representar a diocese de Lisboa. Contra esta alegação se insurgiu o núncio, considerando-a ofensiva da Cúria Patriarcal. Continuando, sublinhei que, para o Governo português, só podiam falar em nome do Santo Padre o cardeal secretário de Estado e o núncio apostólico, e mesmo assim, para certos assuntos, e consoante a prática corrente entre chancelarias, acontecia muitas vezes perguntar-se se o cardeal ou o núncio falavam a título pessoal ou em nome do papa, como se pergunta aos embaixadores quanto aos seus respectivos Governos. Além disso, era manifesto que a Cúria de Lisboa até desmentira os pensamentos que na altura teria tido o Sr. Nehru quando este se referiu à anarquia e ao caos em Goa, o que não parecia possível fazer. - «Tout le monde sait que ça n´était pas vrai!» - interrompeu o núncio com alguma brusquidão. «Pois não, Monsenhor, respondi, «não é verdade que em algum momento houvesse anarquia ou caos em Goa. Mas que o Sr. Nehru o disse e repetiu, isso não se pode desmentir».








Ver a hipocrisia e as mentiras de Mr. Kaul















Pois no ponto de vista religioso, disse o núncio, o que diz um prelado, um príncipe da Igreja, o mais antigo membro do Sacro Colégio - «é o mesmo que o disser o Santo Padre». Pronunciou o núncio estas palavras com vigor e impetuosidade, e para não agravar o tom da conversa abstive-me de reacção. Mas Monsenhor Furstenberg, pela primeira vez perdendo a calma nas nossas entrevistas, acrescentou textualmente, com voz alta e desabridamente: «Vejo que por todos os meios se procura deliberadamente criar dificuldades à Santa Sé». Encarei o núncio com tranquila admiração, e afirmei-lhe que absolutamente não entendia as suas palavras. E perguntava-lhe mais: pensava ele que a tensão de relações de Portugal com a Santa Sé era para nós motivo de júbilo, ou que era por capricho nosso que tais dificuldades existiam?

Então o núncio, quase gritando, verdadeiramente fora de si, e em tom de insinuação, disse:«Pois se não é você (vous) que procura ou cria essas dificuldades, sei que alguém está apostado em fazê-lo». Com veemência pelo menos igual à do núncio, retorqui-lhe: «Aquilo que Monsenhor acaba de dizer não é verdade, e Monsenhor sabe que não é verdade».

Seguiu-se um silêncio longo, e deixei a Monsenhor Furstenberg o ónus de o quebrar. O núncio afirmou que ainda lhe parecia impossível e inacreditável a ofensa, o insulto dirigido à pessoa do Santo Padre, em Outubro último. Observei que este ponto já o havíamos discutido minuciosamente [entrevista de 28 de Outubro de 1964], e que eu me recusava a retomar o debate. Agora só queria repetir-lhe a pergunta de há instantes: pensava ele que o Governo português tomara a atitude apenas por simples capricho, sem razões algumas? Não via o núncio que estávamos ofendidos, agravados, feridos, injustamente tratados? «Há outras razões», afirmou o núncio misteriosamente, mas com ar de quem as conhecia. «Quais?», perguntei eu, intimativamente.«Peço-lhe que as diga, Monsenhor. Quais?». Já mais calmo, quase recomposto, mas de face ainda vermelha e com alguma tremura de cólera na voz, disse o núncio depois de curta hesitação: «Cést peut-être mieux de ne pas les préciser!».

Produziu-se um novo silêncio, que desta vez eu interrompi para dizer que, no fim de contas, eu só pretendia fazer duas perguntas - e repeti estas como no início da conversa. Monsenhor Furstenberg disse que o que eu perguntava era perfeitamente inútil, e que eu tentava impor ao Vaticano a forma do desmentido, ainda por cima tratando-se dum semanário esquerdista sem importância. Comentei que a pouca categoria do jornal e a sua cor política facilitavam a tarefa da Secretaria de Estado. Ou provinha o obstáculo da nacionalidade do jornal?



A Rosa de Ouro de Minúquio de Sena (1330), a mais antiga das ainda conservadas no Museu Nacional da Idade Média, Paris. Foi ofertada em 1330 pelo Papa João XXII a Rodolfo III de Nidau, Conde de Neuchâtel.


Referiu-se então o núncio à concessão da «Rosa de Ouro», para observar que as nossas exigências de agora lhe pareciam absurdas depois das palavras que o Santo Padre, no fecho da sessão do Concílio, dirigira pública e solenemente a Portugal. Recordei ao núncio, por meu lado, a declaração que a esse respeito eu fizera ao Século, e que era bem expressiva: a língua portuguesa quando dizia «o maior apreço e reconhecimento», não podia ir mais além. Sim, reconheceu Monsenhor Furstenberg, mas à minha declaração faltava «cordialidade». Depois do Papa ter dito que a Nação Portuguesa era filha dilecta do seu coração, fora pouco o que eu afirmara ao Século. Lembrei a Monsenhor Furstenberg que precisamente as mesmas palavras haviam sido usadas por Sua Santidade, no telegrama, largamente publicado na imprensa, ao cardeal Gracias: também aí dissera que a Índia era filha dilecta do seu coração. Ripostou o núncio dizendo que havia uma grande diferença entre um telegrama, mesmo público, e um discurso do Santo Padre, o que constituía facto sem precedentes. Admiti a procedência e a validade da sua observação, e dessa diferença provinha precisamente a gratidão que o Governo exprimira oficial e publicamente.

Lamentou-se o núncio de que não houvessem sido publicados entre nós os discursos do Santo Padre em Bombaim. Expliquei-lhe que os discursos tinham muitas passagens para nós mais que desagradáveis, e que o Governo seria forçado a comentar de forma adequada. Negou o núncio que assim fosse: tinha-os lido todos, de A a Z, e em nenhum discurso havia o que quer que fosse que nos magoasse. Perguntei-lhe se julgava bem as pródigas referências ao«pacifismo» da Índia e ao «respeito» que sempre merecera ao Santo Padre a «política pacífica» do Sr. Nehru. Replicou o núncio que o Santo Padre não tinha feito a apologia da guerra nem da violência, e que somente havia elogiado as manifestações de pacifismo indianas, como encorajamento a essa orientação. Eu comentei que Monsenhor entrava no caminho, para mim vedado, das especiosas subtilezas dialécticas; mas de qualquer modo tudo isso provava afinal o carácter político da visita papal. Também não seria política a concessão ao presidente indiano da mais alta condecoração do Vaticano? Mas não, disse o núncio, nada disso: era um acto de simples cortesia normal quando há uma visita de chefe de Estado. «De chefe de Estado, Monsenhor!?» - atalhei prontamente, com alguma ironia, que o núncio logo entendeu. «Bem», disse Monsenhor com visível embaraço,«uma simples visita particular, quase privada». Rematei dizendo que não insistia pelo esclarecimento deste aspecto.

E tornei às perguntas iniciais: só estas verdadeiramente eram objecto da minha diligência, e por isso eu lhe pedia que as transmitisse a Roma. Reagiu o núncio com modo constrangido, dizendo somente que tomava nota do que eu dizia, e que procuraria esclarecer o caso junto da Secretaria de Estado.

Sobre isto nos despedimos, tendo-se trocado à porta do meu gabinete os habituais cumprimentos a que ambos procurámos, com um sorriso cordial, dar um tom perfeitamente correcto e normal (in Diálogos Interditos, Intervenção, II Volume, 1979, pp. 44-53; 63-74).








25 de Abril de 1974: a Revolução da Perfídia (i)

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Escrito pelo General Silva Cardoso







«Se a guerra friaé um embate frontal entre o bloco do Ocidente e o do Oriente, significa também a conquista de posições em áreas do mundo situadas para além dos dois blocos que se afrontam: o anticolonialismo produz a zona cinzenta, cujo domínio não se busca. Para o efeito, os dois blocos, além de disseminarem os seus ideais messiânicos, intensificam o duelo de popularidade em que um tenta bater o outro mediante concessões que se sobrepõem e excedem em ritmo acelerado. É a emergência do terceiro mundo. É o conjunto de nações ou povos que se caracterizam por subdesenvolvimento material e cultural, ou por se encontrarem numa relação de dependência política e económica perante centros de decisão alheios, ou por serem vítimas de discriminação baseada em raça ou religião. São estas nações e povos que agora são aproveitados pelos impérios, que exploram em seu favor o movimento anticolonialista e a ideia política e psicológica da descolonização. Retomam-se, sob outras modalidades, processos antigos: novos impérios põem sempre em causa a estrutura da sociedade internacional que encontram: e para o ataque a esta constroem novas ideologias e novas justificações morais também. Em tempos idos, grandes potências procuraram entre si um equilíbrio de interesses que apenas se conseguia por um preço a ser pago pelas pequenas potências: e então as forças imperiais actuaram em nome de altos princípios morais que receberam o nome de liberdade dos mares, de antiesclavagismo, de esferas de influência, de responsabilidade do homem branco para com as raças atrasadas, do governo por mandato, ainda outras fórmulas. E agora está lançado o conceito de autodeterminação dos povos. Para lhe dar toda a virtualidade, recorre-se a sucessivas interpretações da Carta da ONU. Esta dispõe que os povos, submetidos durante a guerra a ocupação e domínio estrangeiro, devem ser libertados, e dotados das instituições que por si escolherem. Na origem dos preceitos da Carta estava assim o fenómeno alemão. Mas na Ásia haviam entretanto emergido, independentemente da Carta da ONU, nações como a Índia, o Paquistão, a Indonésia, o Ceilão, as Filipinas; e estas, juntamente com a nova China e o novo Japão, viam no enfraquecimento da Europa Ocidental vantagens próprias. De harmonia com uma orientação já defendida por Lenine, a União Soviética alia-se desde logo aos clamores daqueles países. E é defendida uma interpretação extensiva do conceito de autodeterminação: esta não se aplica somente às nações submetidas ao domínio nazi mas a qualquer povo, ainda que nunca haja sido independente nem forme uma nação. Esse vínculo de subordinação é invocado sobretudo contra a Europa Ocidental, e é esta que fica em causa. Para não serem ultrapassados pela União Soviética, e porque desejam influenciar os novos países asiáticos, e porque sentem receios de uma forte Europa Ocidental que queira desempenhar um papel mundial, os Estados Unidos são levados a partilhar aquela interpretação extensiva, e apoiá-la. E é em torno do terceiro mundo, e para conquista deste, que o debate político se processa. É cómoda e fácil a posição de Moscovo: em cortar a Europa da África nada tem a perder e tudo a ganhar. Mas é embaraçosa a posição dos Estados Unidos: se dão prioridade aos europeus e à aliança atlântica, desagradam ao terceiro mundo, e deixam à União Soviética a vantagem política de surgir como única defensora deste; se dão prioridade ao terceiro mundo, podem perder os europeus, sem cuja cooperação os Estados Unidos dificilmente enfrentarão a Rússia. Cedo se verifica, no entanto, que para além dos princípios, estão em jogo posições estratégicas, mercados e o acesso a matérias-primas. Estes são, para os dois blocos, os factores determinantes. De momento, com a interpretação extensiva da Carta da ONU, duas consequências são imediatas: a internacionalização de todo o problema colonial e o direito de censura que se arrogam as Nações Unidas.


Conferência do Atlântico (1941)
































Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Joseph Stalin na Conferência de Ialta (Fevereiro de 1945), com o fim de traçarem o plano de organização da Europa do pós-guerra.


Ainda antes de o Quartel-General das Nações Unidas haver sido estabelecido em Nova Iorque, logrou realizar-se, em 10 de Janeiro de 1946, a primeira sessão da Assembleia Geral em Londres (Central Hall).



Primeiro Secretário-geral da ONU Trygve Lie, diplomata norueguês que ficou no cargo de 1946 a 1952.




Central Hall, Reino Unido: palco da primeira Assembleia-Geral das Nações Unidas



Reunião da Assembleia Geral no Quartel-General das Nações Unidas, em Nova Iorque (14 de Outubro de 1952).


Transfere-se o debate, deste modo, para a plataforma parlamentar da Assembleia Geral da ONU. [Emprego a expressão plataforma parlamentar por ter sido comummente usada. Mas importa sublinhar que, sem embargo de se haver procurado criar essa imagem, a ONU nunca foi nem pode ser um parlamento, equiparável aos parlamentos nacionais. A ideia de que a ONU é um parlamento mundial, e representa a opinião pública mundial, é inteiramente falsa. A ONU só é parlamentar no aspecto processual, no aparato exterior dos votos, das maiorias, dos debates, etc. Na substância, é um organismo político internacional sujeito aos interesses das potências, e das maiorias que estas comandem, e de algum modo é orgão independente, com vida própria e acção autónoma]. São cerca de oitenta os seus membros, e estes dividem-se em grupos consoante os seus interesses nacionais: o grupo afro-asiático; o grupo latino-americano; o grupo europeu; o grupo da União Soviética e países satélites; e os Estados Unidos, que se consideram fora de qualquer agrupamento. Impulsionados pela União Soviética, e com o apoio espectacular desta, os afro-asiáticos multiplicam-se em iniciativas, e todas são apresentadas como simples execução da Carta, em particular do seu artigo 73.º Como instrumento fundamental, é usada a Quarta Comissão da Assembleia Geral e no seio desta travam-se polémicas que atingem a violência. Defendem os afro-asiáticos um ponto de vista: as nações que são responsáveis pela administração de territórios não-autónomos têm obrigação de informar regularmente a Assembleia de como conduzem essa administração e de encaminhar esses territórios para a autonomia ou independência, conforme as aspirações dos seus povos; e a Assembleia tem o direito de analisar estas informações, formular as suas críticas, definir o processo por que o território deve atingir a autonomia ou independência. A esta tese opõem os europeus com responsabilidades ultramarinas uma argumentação cerrada: A Carta entrega ao critério discricionário dos países membros a definição do que considera como seus territórios não-autónomos; para os que forem assim caracterizados por parte das soberanias responsáveis, as informações a fornecer à ONU dizem apenas respeito a condições sociais, económicas e educativas, e não políticas, e estão sujeitas às limitações constitucionais de que apenas é juiz o governo do país membro; e a Carta não atribui à Assembleia qualquer prerrogativa de intervenção no processo constitucional ou político que possa conduzir um território não-autónomo à autonomia ou à independência, nem este objectivo resulta necessariamente da lei básica da ONU. Salienta-se a Bélgica: esta sugere que, no fundo, se trata de um problema de liberdade individual e de direitos humanos: nesse caso há que examinar qual a situação de todas as populações em todos os países, mesmo nos que sejam independentes. Ripostam os afro-asiáticos: se o objectivo não é político, então não há outro, pois que as condições materiais dos territórios, por óptimas que sejam, apenas interessam se o território for independente, e a independência tem de ser havida como objectivo primordial que por si só assegura as demais condições; e em qualquer caso a maioria, porque o é, está autorizada à interpretação da Carta, instrumento vivo e adaptável, que em cada momento parecer mais conveniente. Nestas coordenadas se arrastam as polémicas e os debates: tudo é entrecortado das acusações de imperialismo, colonialismo, opressão, genocídio, racismo, exploração, dirigidas aos países europeus ocidentais, e só a estes, ficando excluídos de investigação e ataque os domínios reservados dos grande impérios.


Eleonor Roosevelt (1949). Presidiu, na ONU, à comissão que elaborou e aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem.



Bandeira das Nações Unidas



(...) Admitido Portugal nas Nações Unidas, o secretário-geral da organização, de harmonia com a prática desta, dirige ao governo de Lisboa uma nota perguntando se este administra algum território nos termos e para os efeitos do Art. 73.º da Carta da ONU. É inocente a nota, e singela no seu teor; e parece destituída de gravidade. Salazar estuda-a atentamente, e examina-a com Paulo Cunha; e é dada uma resposta negativa: nesta declara-se que Portugal não é responsável por qualquer território a que seja aplicável o Art. 73.º da Carta da ONU. Nada mais é dito, nem é recebida ou enviada outra correspondência. Nesta simples troca de notas, todavia, Salazar acaba de tomar uma decisão de profundo significado, das mais sérias implicações e extensas consequências. Que querem dizer a atitude de Salazar e a resposta do governo de Lisboa? Indicam às Nações Unidas que as províncias ultramarinas portuguesas não têm vocação para independência separada; sublinham que o governo português se arroga o exclusivo direito de interpretar e aplicar a sua ordem constitucional, e que neste domínio não admite interferências alheias; afirmam que Portugal não submeterá a sua administração ultramarina a qualquer sistema de censura internacional, e que portanto não transmitirá quaisquer informações à comunidade dos países; e finalmente notificam as Nações Unidas de que, se se respeita a letra do Art. 73.º, é repudiada a prática política e processual que à sombra deste a ONU fora estabelecendo gradualmente. Deste modo, Salazar assume uma posição, coerente no plano interno, que desafia a corrente política mundial. Na efectividade das coisas, executa os preceitos constitucionais sobre a unidade da nação, e leva às últimas ilações o conceito territorial, político e sociológico de um ultramar que é Portugal no seu perfil histórico. Dissera-o no discurso de 30 de Maio: os territórios portugueses não têm sequer que se tornar autónomos porque já são independentes com a independência da nação. E no plano internacional, por uma nota de algumas linhas, Salazar rompe as coordenadas em que se está movendo a comunidade de nações; proclama a sua rebeldia perante o anticolonialismo em moda; e afirma que os interesses da nação portuguesa são prioritários, não oscilam ao sabor de decisões de terceiros, e são oponíveis a tudo e a todos.

Enovelada no jogo da política interna, a alta-roda dos homens da situação e mesmo dos oposicionistas não se apercebe da magnitude da decisão de Salazar; e fica alheia a massa da opinião pública. Não é essa, no entanto, a atitude da ONU. Não está em funcionamento a Assembleia Geral, nem as respectivas comissões; mas as delegações permanentes dos países membros, em Nova Iorque, compreendem desde logo todo o alcance da resposta de Lisboa. Ficam perplexos os delegados das nações ocidentais: estas tinham aceite quase passivamente as imposições da Assembleia Geral, que as impelia no caminho do abandono da suas posições fora da Europa: de súbito são surpreendidas com a atitude de um governo do Ocidente que diz não à Assembleia e recusa a prática desta: e ficam embaraçadas entre o receio que sentem da ONU e a atitude de um amigo e aliado. Ficam desnorteados os representantes afro-asiáticos, e possuídos de exaltação emotiva: toda a orientação anticolonial, tenaz e pacientemente executada nos últimos anos, seria posta em causa, e poderia ser destruída, se a atitude portuguesa fosse acatada pela Assembleia: porque nessa hipótese era inevitável que os demais países ocidentais arrepiassem caminho e deixassem de se submeter aos ditames da maioria da ONU: e seria o colapso de toda a política de cerco ao Ocidente. Por estes mesmos motivos, os delegados soviéticos e de países satélites vêem o perigo da posição assumida por Portugal, e no sentido da sua impugnação trabalham intensamente junto dos representantes afro-asiáticos. E num outro dilema se encontram os delegados dos países latino-americanos: assimilando a origem das suas independências a uma sublevação anticolonialista, e desejando por interesse assumir uma atitude reivindicativa quanto aos Estados Unidos, sentem-se seduzidos pelas teses dos afro-asiáticos, cujo apoio pretendem conquistar para objectivos puramente latino-americanos; mas pelas raízes e afinidades nutrem pelo Ocidente Europeu, e em particular por Portugal e Espanha, uma simpatia e uma solidariedade que lhes torna constrangedora uma atitude hostil; e perante a resposta de Lisboa vêem-se embaraçados, e divididos.










Castelo de Guimarães



Castelo de Guimarães: Torre de Menagem



Espada atribuída a D. Afonso Henriques. Foi retirada do seu túmulo em 1834, na Igreja de Santa Cruz em Coimbra.






















Para além destes aspectos, a entrada de Portugal nas Nações Unidas tem outra consequência imediata: se não se modifica a substância da política externa portuguesa, é alterado o seu estilo. Gradualmente, aos entendimentos bilaterais, às negociações no segredo dos gabinetes, à discrição nas conversas, vem acrescentar-se uma diplomacia de praça pública, de decisões rápidas, de ambientes indiscretos, de publicidade de atitudes, de tomadas de posição que, não obstante respeitarem a problemas alheios, se reflectem todavia nos interesses portugueses. Dispondo de posições mundiais, da Europa à Ásia, e tendo deixado a Europa de constituir centro exclusivo do poder, o governo de Lisboa fica envolvido nos conflitos de forças e choques de interesses que se produzem pelo vasto mundo, e em que os participantes definem a amizade ou a hostilidade de terceiros pela posição que estes assumirem na luta que os opõe. Do facto resultam pressões sobre Lisboa; mas também resultam possibilidades de, em troca da satisfação de pedidos alheios, obter contrapartidas em favor de desejos portugueses. Disperso por um mundo em tensão e luta, Portugal é vulnerável; mas, ao mesmo tempo, o seu papel adquire relevo porque a sua voz conta em muitos planos.

No conjunto, a entrada de Portugal na ONU confirma o cepticismo e apreensão de Salazar. Não acredita na eficácia da organização, nem na genuinidade dos seus propósitos. Sob uma capa legal, o objectivo é político, e político é o seu comportamento. Reflecte o peso das forças em presença, e destas é um instrumento, que utilizam consoante os desígnios próprios; e o preço há-de ser suportado pelos mais fracos, porque os mais fortes, se impõem as decisões, não pagam os custos materiais e políticos da sua execução. De momento, contudo, o organismo de Nova Iorque desfruta nos espíritos ingénuos de uma aura generalizada: é o governo mundial, o símbolo dos direitos humanos, a garantia da paz e a prosperidade para sempre e em toda a parte, o sacrário dos grandes princípios e dos grandes ideais, o altar onde ajoelham interesses egoístas e ambições de Estados e governos: e as suas decisões, havidas por sagradas, devem ser cumpridas com escrúpulo religioso. Mas para além do instante que passa, Salazar procura esquadrinhar o futuro. Não acreditando que o mundo caminhe para a unidade política e se transforme numa federação universal, e não correspondendo a ONU à estrutura natural da comunidade de nações, o chefe do governo português pensa que o organismo de Nova Iorque é efémero, e que tem um poder apenas mítico, enquanto lho for consentido pelas grandes potências; e está destinado a ir de crise em crise até à decadência. Dentro de vinte ou trinta anos, tudo será diferente. Deste modo, como obedecer a decisões que, emanadas de um organismo de força provisória, afectariam interesses portugueses a título permanente? Como e por que sacrificar esses interesses a umas Nações Unidas que não representam ideais ou princípios estáveis e duradouros, que devam condicionar as perspectivas históricas de um país, mas traduzem a manifestação de ambições e interesses alheios num momento transitório? Por outro lado, as necessidades reais dos países, e da sua colaboração, hão-de impor organizações regionais - o Pacto do Atlântico, a Organização Económica de Cooperação Europeia, outras ainda - como base suficiente para salvaguarda dos interesses legítimos. E nessas e na vontade nacional confia Salazar para se eximir às injunções da ONU. Por isso, a esta dá uma resposta que é um desafio: em matéria de ultramar, Portugal não possui territórios dependentes ou não-autónomos: estes são independentes com a independência da nação: e do que faz, ou não faz, contas nenhumas têm a prestar em Nova Iorque.

(...) No contexto das Nações Unidas, na lógica política da contracção europeia, definha a força ocidental; com esta, e para surpresa de Washington, sofre uma erosão a influência dos Estados Unidos, que encontram dificuldade crescente em manipular a ONU; e produz-se um esforço dos blocos afro-asiático e soviético. Muitos vêem nos factos a eficácia da Organização de Nova Iorque. Salazar vê nos factos a alteração do equilíbrio de poderes no mundo, que a ONU reflecte. E quando a União Soviética faz explodir a sua bomba de hidrogénio, num avanço tecnológico que frisa com o dos Estados Unidos, não se modifica por essa circunstância, de súbito, a posição: mas agrava-se, em desfavor do Ocidente, o desequilíbrio psicológico e político. E acentua-se a tendência para levantar no seio da ONU problemas de raiz nacional: a educação, a política económica, a política comercial, os direitos humanos; passa-se ao debate sobre o acesso aos mercados, à distribuição de matérias-primas e seus preços; e discutem-se conflitos internos, problemas de soberania, questões bilaterais. De tudo, são de confirmar as conclusões já tiradas: o anticolonialismo tem por alvo o Ocidente; atacada, a Europa concentra-se sobre si própria; nessa contracção, tem tendência para acreditar na supranacionalidade como defesa; os problemas nacionais são internacionalizados, com enfraquecimento das soberanias; e essa internacionalização, estimulada e explorada pelos novos impérios, conduz a um intervencionismo mundial praticado pelas forças em conflito. Perante esta sociedade que desponta, cabe a pergunta: é definitiva ou efémera? Está-se à beira de uma nova época e de uma nova arrumação da humanidade? Ou enfrenta-se uma vicissitude mais ou menos longa mas passageira? Num caso e noutro, há que tomar decisões diferentes, e todas são vitais para o futuro. Que fazer de Goa, que tanto significa na história de Portugal? E de Timor, que tantos esforços consumiu durante a guerra? E de Macau, uma jóia de família? E de África, de tão grande valor e importância? Salazar desabafa com homens de confiança: "Estou na ponte de comando mas em torno só vejo nevoeiro cerrado"».

Franco Nogueira («Salazar. O Ataque - 1945-1958, IV»).









«Não discutimos a Pátria, quer dizer, a Nação na sua integridade territorial e moral, na sua plena independência, na sua vocação histórica. Há-as mais poderosas, mais ricas, porventura mais belas; mas esta é a nossa, e nunca filho algum de coração bem formado teve o desejo de ser filho de outra mãe. Deixemos aos filósofos e aos historiadores o entretenimento de alguns devaneios acerca da possibilidade de diferente aglomeração de povos e até das vantagens materiais de outras combinações que a História não criou ou desfez; no terreno político e social, para nós portugueses que somos de hoje e velhos de oito séculos, já não há processo que possa ser revisto, debate que possa ser aberto, pedaço de soberania ou de terra que nos pese e estejamos dispostos a alijar de cansados ou de cépticos.

Sem receio colocámos o nacionalismo português na base indestrutível do Estado Novo; primeiro, porque é o mais claro imperativo da nossa História; segundo, porque é inestimável factor de progresso e elevação social; terceiro, porque somos exemplo vivo de como o sentimento pátrio, pela acção exercida em todos os continentes, serviu o interesse da Humanidade. Vocação missionária se tem podido chamar a esta tendência universalista, profundamente humana do povo português, devido à sua espiritualidade e ao seu desinteresse. Em qualquer caso ela não tem ponto de contacto com o suspeito internacionalismo humanitário de hoje a defender que as fronteiras se abatam para alargar as próprias em prejuízo das alheias. - Não discutimos a Pátria».

Oliveira Salazar («As Grandes Certezas da Revolução Nacional», discurso proferido em Braga, da Varanda do quartel de infantaria n.º 8, em 26 de Maio de 1936, por ocasião da grande parada e festas ali realizadas em comemoração do décimo aniversário do movimento de 28 de Maio).


«Lisboa, 14 de Fevereiro de 1964 - Recebi o embaixador Anderson, a seu pedido.

(...) Anderson perguntou se lhe podia dizer qualquer coisa quanto ao projecto "Loran-C". Respondi que não: cada vez se tornava mesmo mais difícil dizer fosse o que fosse: porque nós continuávamos sem "ver" com clareza os intuitos da política americana. Não era, nem nunca fora, nem queríamos fazer qualquer espécie de"balckmail": não estava isso nos nossos hábitos, nem nas nossas tradições, nem nos nossos princípios, nem no nosso poder. Anderson interrompeu para afirmar com vivacidade que tal recurso não nos daria qualquer resultado. Comentei que estávamos perfeitamente conscientes do facto: repetia-lhe, de resto, que tais expedientes não estavam dentro da nossa ética. Mas eu não podia deixar de lhe dizer, mais uma vez, que o projecto "Loran-C", como outros, constituíam uma forma importante de cooperação que nós não víamos como ter com um país que seguia uma política para nós hostil. Anderson contestou: e disse que, quaisquer que fossem as divergências em África, nós tínhamos de entender que o "Loran-C", como outros projectos, tinha por fim aumentar a capacidade de defesa e retaliação do Ocidente quanto à União Soviética, e que isso não poderia ser-nos indiferente. Repliquei que ele, Anderson, estava equivocado: e que ele tinha de compreender, e o seu Governo tinha de compreender, era que se os Estados Unidos fossem para nós hostis em África, e se perdêssemos a África portuguesa, passávamos a ser outra nação, diversa da actual, e que os nossos interesses passavam também a ser diferentes. Pelo contrário: só desejaríamos então diminuir e se possível eliminar os riscos a que estamos submetidos. Anderson disse que os Estados Unidos não nos hostilizavam em África. Com a maior afabilidade, eu observei que as nossas conclusões, ao longo dos anos, eram em sentido contrário. Anderson contestou a sua validade. Sempre muito afavelmente, eu insisti, e lembrei o recente discurso de Williams, e os seus numerosos discursos anteriores. Anderson refutou as minhas observações. Eu disse que os Estados Unidos nos procuravam impelir para um plano inclinado, por fórmulas aparentemente inócuas, mas no fundo com o objectivo de nos expulsar de África. Anderson tornou a negar. Então, com tom firme, indignado e grave, disse-lhe: "Pois bem, se tudo é como o Embaixador diz, então como explica que o Sr. Godley, chefe da divisão da África do Departamento de Estado, tenha há dias dito ao nosso encarregado de negócios em Washington que havia chegado a altura do Governo português 'negociar' com Holden"? Levantei-me, fui buscar o relato da conversa, mostrei-o a Anderson, repisei as palavras de Godley. Anderson ficou mudo, siderado, desorganizado, perguntou a data da conversa, tomou uma nota na sua agenda, e limitou-se a dizer duas vezes: "Compreendo a sua indignação".


Torre Loran na estação em Sand-Johnston Island (1963).



Um receptor Loran-C para uso na marinha mercante







Localização de Taipé (capital da República da China) no norte da ilha de Taiwan (antiga Formosa).



Depois Anderson tirou do bolso um papel e mostrou-mo: era um despacho de telex dando conta de conversas que através de Macau estaríamos conduzindo com a China para efeitos do seu reconhecimento, consistindo a única dificuldade no facto de Portugal pretender preservar as suas relações com a Formosa. Ri-me com gosto, e propositadamente vinquei que só não compreendia a referência à Formosa: Nós não tínhamos que ser gratos a Taipé: sempre falava e votava contra nós no Conselho de Segurança: que mais do que isso poderia depois fazer o delegado de Pequim? Anderson disse que o perigo para nós não era esse: acaso já eu pensara nos perigos de uma embaixada de Pequim em Lisboa ou de Consulados em Angola e Moçambique? Disse-lhe que sim, e que isso nos não atemorizava: Embaixadas e Consulados ocidentais havia cuja actividade era infinitamente mais perigosa. Anderson perguntou o que queria eu dizer com aquela afirmação. Nada, disse eu, senão que estamos a par do que fazem entre nós as missões dos nossos amigos e aliados. Quando ele não fosse embaixador e eu não fosse ministro, talvez pudéssemos falar de outra forma. Anderson sorriu. Voltei a afirmar que sabíamos muita coisa sobre a actividade não diplomática das Embaixadas ocidentais. Anderson voltou a rir, e disse: "Efectivamente, desde que eu entrei para estas funções, tenho aprendido muitas coisa!"».

(...) Lisboa, 6 de Junho de 1964 - Recebi Anderson, a seu pedido. Deixei-lhe a iniciativa da conversa. Abordou, pela ordem que indico, os pontos seguintes.


Como eu lhe havia solicitado, pedira a Washington elementos sobre a situação interna na Argélia. Acabava de os receber. Podia resumi-los assim: caos administrativo; indústria e agricultura paradas; instabilidade política, com repressão e governo ditatorial; regime pessoal de Ben Bella, na mão de radicais da esquerda; B.B. ficara muito impressionado com a sua visita a Moscovo; assumira decerto importantes compromissos perante Kruschev, mas os Estados Unidos ainda não sabem quais; algum armamento russo tem desembarcado na Argélia, mas não tinham provas de que isso fosse feito ao ritmo de dois navios por mês; e todo o auxílio que Argel tem recebido da França é desperdiçado em demagogia. Em suma, concluiu Anderson, os Estados Unidos são "against everything B.B. stands for".

Parecia-lhe que a discussão e o voto na Comissão dos 24 "se tinham passado muito bem" para nós. Decerto: nós preferíamos não ter qualquer resolução, o que ele compreendia; mas, dadas as circunstâncias, Anderson pensava que o texto poderia ter sido pior. Comentei que o texto era "bad enough", e que não podíamos admitir qualquer resolução. Mas eu concordava que o seu teor era menos mau que o do ano passado. E já agora, com a habitual franqueza, queria dizer-lhe (com a mesma lealdade com que fazia críticas) que o discurso do delegado americano, àparte duas ou três expressões menos felizes, continha alguns elementos positivos, e de que não discordávamos, e por isso eu tinha muito gosto em lho dizer. Anderson disse que ainda não havia lido o discurso. E observou a sorrir: "vê que não foi inútil a minha ida a Washington?"Respondi que sempre estivera seguro de que fora muito útil. Deixei cair uma palavra dura para com a Dinamarca. Anderson disse que os americanos tinham tentado demover, em Nova York, o delegado dinamarquês de uma atitude hostil a Portugal; mas as instruções de Copenhague haviam sido peremptórias. Reiteradas pelo próprio ministro dos Estrangeiros, ao que supõem.


Centro de Manhattan em 1932, visto do Centro Rockefeller




Bandeira de Nova Iorque





Selo de Nova Iorque




Estão inquietos com a situação no Congo. Há caos, incerteza, e ninguém parece capaz de manter a lei e a ordem. Os italianos estão a treinar a aviação congolesa; os belgas fornecem oficiais; e os Estados Unidos estão a ceder alguns aviões de transporte e apoio logístico. (Eu tinha há semanas perguntado a Anderson o que havia sobre a base de Kamina e o rumor de que se encontram no Congo cerca de 2 mil soldados americanos. Ficara de saber, mas sobre estes pontos não disse nada). Estavam com receio de Tshombé: iria libertar Gizenga? Seguir uma política de esquerdas? Eu disse-lhe que também não sabia. E perguntei: que se passou entre Tshombé e Macarthur, embaixador dos Estados Unidos em Bruxelas? Disse Anderson que nem sabia que os dois se houvessem encontrado, e ia procurar informar-se.

Tirou um papel dactilografado, e guiando-se por ele Anderson disse: o Sr. Carlos Lacerda afirmara em Washington que em Lisboa os portugueses lhe haviam assegurado (e comprovado com um documento) estarem os americanos ajudando os terroristas, fornecendo armamento, dando-lhes dinheiro; e que estes aspectos haviam sido focados pelo presidente do Conselho na sua conversa com o governador de Guanabara. Ele, Anderson, queria dizer com vigor que nada daquilo era verdade; que o documento era falso; e que os americanos nunca haviam ajudado os terroristas. E acrescentava que"coisas destas" só eram prejudiciais à causa portuguesa em Washington. (Anderson falou com muita energia e ênfase, embora sempre correcto). Muito serenamente, respondi a Anderson que nas minhas conversas com o governador Lacerda fizera efectivamente muitas críticas à política americana em África, e não tinha dúvidas em admitir que fora mesmo ao ponto de dizer a Carlos Lacerda que organismos privados americanos (recordava-me de ter citado o American Committee on Africa e o International Rescue Committee) têm auxiliado o terrorismo. Mas também lhe afirmava que em nenhuma ocasião sugerira eu a Carlos Lacerda que o Governo dos Estados Unidos, como tal, estivesse a fornecer armas aos terroristas ou a auxiliá-los. E quanto à conversa com o presidente do Conselho, eu não podia obviamente responder: mas do que o presidente já me havia referido eu não podia concluir que tais pontos houvessem sido abordados. Informar-me-ia, no entanto, e depois lho diria. Queria observar-lhe, porém, que Lacerda tivera aqui numerosas conversas com numerosíssimas pessoas: era natural alguma confusão da sua parte. Anderson pareceu ficar acalmado neste ponto.

Novo papel da pasta: desta vez era a fotocópia de um artigo publicado numa revista alemã e onde se lia, segundo uma tradução inglesa dactilografada que também me mostrou, uma declaração que o jornalista alemão Hunck me atribuía, e em que sou citado como tendo dito que os nossos inimigos em África não são os chineses, os russos, ou africanos: são os americanos; e que estes se querem apoderar de Angola, para a juntar ao Congo, tudo dominando, etc. Anderson negou com veemência tão absurdas acusações, e de novo disse que "coisas deste tipo" só nos prejudicam em Washington. Eu disse a Anderson que não conhecia o artigo. No próprio momento pedi informações ao nosso serviço de imprensa; e pude assim mostrar um exemplar da revista a Anderson, e esclarecê-lo de que o artigo era apenas um resumo de uma série de seis que Hunck havia publicado em jornais; e por isso não o traduzíramos; e por isso eu não o conhecia. Mas em nenhum dos seis artigos se poderiam decerto encontrar as mesmas frases, porque elas me teriam sido assinaladas. Isto pareceu impressionar Anderson. De resto, acrescentei, ele devia concordar comigo em que eu era "demasiado experiente" para dizer o que me era atribuído. Não, eu não fizera aquela declaração. Anderson comentou que Hunck o encontrara durante uma hora em Angola; mas no artigo dizia que viajou com o embaixador um dia inteiro; e dizia mais que Anderson fora incorrecto para crianças que cantavam em sua homenagem. "Já vê", observei, "trata-se de um jornalista anti-americano". E disse-lhes que ia investigar as possibilidades ou a vantagem de se publicar na revista um esclarecimento ou correcção.


Marginal de Luanda (anos 60)



Luanda (1968)



O coração da cidade de Lourenço Marques nos anos 60 (Moçambique).



Baixa de Lourenço Marques (princípio dos anos 60).



A Sé Catedral no princípio dos anos 60 (Lourenço Marques).


(...) Alusão minha ao caso do Loran-C. Disse a Anderson que poderíamos aprofundar um pouco mais as nossas respectivas posições. Estávamos preparando um memorandum com o que desejávamos obter em material; aguardávamos, por outro lado, que nos fosse dado um conhecimento mais pormenorizado das necessidades técnicas americanas para as instalações Loran-C. Anderson concordou. Ficámos de falar de novo no assunto.

Alusão de Anderson ao caso da tantalite de Moçambique. Aleguei de novo as nossas razões, e sublinhei a diferença de preços: os americanos pagam cerca de 4.500 dólares, os chineses e os russos cerca de 9.000. Anderson vincou a questão de princípio. Comentei que os princípios pareciam jogar sempre contra nós. E queria dizer-lhe: talvez nos F-86 tivessem os americanos alguma razão; mas não tinham nenhuma no problema da tantalite. Não se podia aplicar a Moçambique a jurisdição da COCOM, e quanto ao "Batlle Act", que ele invocava, não nos preocupava muito: auxílio americano em África, apenas recebíamos o da Caritas, e esse poderia efectivamente cessar. Anderson falou de auxílios à Metrópole, que poderiam ser anulados. Repliquei vivamente que não sabia de nenhuns, e além disso não podia admitir que o Governo americano considerasse Moçambique parte integrante da nação portuguesa apenas quando lhe convinha para aplicar o"Battle Act" contra nós; mas já assim não era quando tal integração servisse os interesses portugueses. Ou o "Battle Act"se aplicava a tudo, e isso queria dizer que os Estados Unidos consideravam tudo, como sendo Portugal; ou aplicava-se separadamente, e então a Metrópole só poderia ser punida pelo que fornecesse em materiais estratégicos a russos e chineses, e não pelo que fornecesse Moçambique. Anderson sorriu-se, e não replicou. Concluí afirmando que, no entanto, nada fora ainda exportado.

Mencionei Macau: havíamos preso terroristas chineses (da Formosa) com armamento americano, que se dispunham a seguir para a China com o objectivo de actos de sabotagem. Era isto um perigo que não podíamos admitir. Pedia-lhe para ponderar isto às suas autoridades. Anderson prometeu fazê-lo.

Washington, 18 de Junho de 1965 - Ao invés das ocasiões anteriores, Dean Rusk oferece-me desta vez um grande almoço no Departamento de Estado; estão o secretário da defesa Robert MacNamara, os chefes de algumas divisões, como Cleveland e Rostow; conselheiros especiais, como Thompson; outros ainda.

(...) Ao meu lado, Cleveland disse-me que se aproximava rapidamente um momento dramático: aquele em que os Estados Unidos terão de usar pela primeira vez o veto no Conselho de Segurança. Tornara-se a ONU completamente irresponsável, e os Estados Unidos não podiam aceitar que interesses vitais americanos fossem decididos por maiorias demagógicas. Único problema consistia em encontrar um motivo que justificasse o veto: mas decerto em breve surgiria. Comentei que me dava gosto de ouvir as palavras de Cleveland; não pelos embaraços em que os Estados Unidos se pudessem encontrar; mas porque via confirmada a opinião que há muito tínhamos de que a ONU não era organismo a que algum Governo idóneo pudesse entregar o julgamento dos interesses vitais do seu país. Cleveland disse que compreendia perfeitamente os meus sentimentos.









Nesta altura, Rusk eleva a voz e pede que se faça silêncio em torno da mesa: deseja que, para seu benefício e dos demais, eu "relate" a minha visita ao Brasil. Acedi prontamente; mas resolvi desde logo no meu íntimo fazê-lo com discrição e prudência. Fiz o elogio da integridade, da inteligência, da dignidade do presidente Castelo Branco; destaquei a distinção, o profissionalismo de Vasco Leitão da Cunha; referi-me ao general Costa e Silva como figura militar de prestígio, e acaso figura do futuro. Desenvolvi as minhas impressões favoráveis quanto à forma como a actual Administração brasileira enfrenta os problemas deixados pela demagogia do presidente Goulart. Sublinhei as preocupações de alguns chefes brasileiros pela infiltração comunista em alguns sectores da vida brasileira; e a ansiedade que me pareceu observar quanto à América Latina, em particular o Uruguai e a Colômbia. MacNamara e Rusk indicaram a sua concordância neste ponto. Rusk pergunta, com intuitos óbvios, se no Rio eu havia tratado da "construção da Comunidade lusitana". Digo que tinha conversado longamente sobre problemas luso-brasileiros, no espírito da maior cordialidade; e descrevi quanto era evidente uma muito melhor compreensão do Brasil perante a posição e a política de Portugal. Rusk declara que tem a mesma opinião. E quando vinquei a reacção favorável da toda a imprensa brasileira à minha visita, e forneci um ou outro pormenor, o secretário de Estado não ocultou o seu espanto, e pareceu impressionado.

(...) Declaro então que me vou ocupar de problemas luso-americanos. Tiro do bolso uma lista que havia preparado. Já que faláramos do Brasil durante o almoço, quero dizer ao secretário de Estado que tinha averiguado que a Embaixada americana naquele país assediava todos os deputados e senadores brasileiros, que houvessem visitado o Ultramar português, tentando dissuadi-los de exprimir quaisquer ideias favoráveis a Portugal. Ball comenta que não acreditava que"os Estados Unidos fossem tão eficientes". Observo-lhe que não é esta a reacção que eu esperaria: pensava que Ball se deveria mostrar indignado e dizer que não acreditava naquela atitude da Embaixada porque era contrária à política americana. Rusk intervém para dizer que vai averiguar os factos. Eu enuncio a seguir outras queixas: os discursos anti-portugueses de Mennen Williams, a conversa de Godley com o arquitecto de Habsburgo, o auxílio aos refugiados evitando o regresso destes, recusa de nos vender 60 morteiros e algumas viaturas, pressões sobre a Itália para que não nos vendesse alguns aviões de reconhecimento, atitude da Fundação Ford de auxílio financeiro a grupos terroristas, pressões em Lisboa para retirada de aviões F-86 da Guiné, novas exigências para a simples compra de motores de avião a serem usados dentro da área da NATO. Insisto na conversa de Godley com Habsburgo para salientar que aquele usara a expressão "recomeçar auxílio", cuja implicação é óbvia. Rusk não faz comentários nem esboça qualquer defesa: repete, como em tempos me havia dito, que os Estados Unidos se limitam a "comprar" alguma informação. A cada questão por mim suscitada, Rusk faz sinal aos secretários para que tomem nota. Parece surpreendido quando lhe falo das novas exigências para motores de avião a serem usados na área da NATO: declara que o assunto será resolvido a nosso favor. Por último, eu levanto a questão dos aviões canadianos: explico como os aparelhos haviam sido vendidos pelo Canadá à Alemanha, pretendendo nós comprá-los a esta, que anuíra, e chegara mesmo a assinar o acordo, e como os Estados Unidos haviam feito pressão no Canadá para que este por sua vez se opusesse, como se opôs, a que a Alemanha nos vendesse os aviões. Digo a Rusk que não tenho dúvidas quanto a este facto: fora referido por Lester Pearson ,[primeiro-ministro do Canadá] a Roy Wellensky [primeiro-ministro da Rodésia do Sul]: este contara-me Lisboa: e acrescentara mesmo que Pearson se mostrara muito penalizado com a pressão americana. Neste ponto, o secretário de Estado não consegue dominar a sua perturbação; agita-se; alteram-se as feições; e fico com a impressão de que se sentiu traído por Pearson. Não nega, fica em silêncio. Concluo por confessar a minha perplexidade em face de tudo, e sugiro que talvez o secretário de Estado queira fazer algum comentário que pudesse dissipar a ideia, necessariamente decorrente das queixas que eu apresentara, de que a política americana pretendia assegurar que falhasse a política portuguesa. Rusk mantém-se em silêncio. Ball intervém então. Entre Portugal e os Estados Unidos as divergências não eram de fundo mas de táctica. E este ponto leva ao exame aprofundado do conceito de autodeterminação, da força do nacionalismo africano, da segurança da África; e é debatida toda a problemática relacionada com aqueles problemas. Ball declara que os Estados Unidos estão muito favoravelmente impressionados com as realizações portuguesas em África; e informa que o relatório de Gilpatrick era altamente elogioso e com factos convincentes. Ball pensa, todavia, que é fundamental para nós a definição de objectivos políticos. Rusk observa que deveríamos encontrar uma fórmula ou processo para demonstrar ao Mundo que as populações de Angola e Moçambique querem aceitar o "status quo". Ball falou da necessidade de manter em África a "presença" e a "influência" portuguesas. Comento que não haverá uma coisa nem outra se forem quebrados os vínculos políticos. Ball exclama que os Estados Unidos não desejam que tais vínculos sejam destruídos. Rusk invoca a possibilidade de um plebiscito. Lembro ao secretário de Estado que a ideia já consta do relatório do secretário-geral da ONU apresentado em 1963; que a mesma fora rejeitada pelos africanos; que a ONU só aceita um plebiscito desde que sejam retiradas as forças portuguesas e seja ela a organizá-lo e a conduzi-lo; e que a Organização da Unidade Africana já declarara que somente reconhece os resultados de um plebiscito se estes forem contrários a Portugal. Ball recorda que o problema de um plebiscito fora examinado em cartas que trocara com o chefe do Governo português. Confirmo, e sublinho que justamente se fora forçado a desistir da ideia por ter sido repelida pela ONU e pelos africanos. Rusk declara que, no caso de ser feito um plebiscito, os amigos de Portugal nos apoiariam contra os africanos. Declaro que apenas poderíamos ir para essa solução se o apoio fosse prévio, isto é, se os Estados Unidos afirmassem, solene e publicamente, que, indo Portugal efectuar um plebiscito, aceitariam e apoiariam os resultados a que este conduzisse; nós não teríamos objecção a que os americanos e outros amigos nossos designassem observadores oficiosos para seguirem o plebiscito; mas nunca poderíamos consentir a intervenção das Nações Unidas. Rusk pergunta então se não poderíamos conseguir que alguns chefes africanos moderados começassem a defender em público a nossa política. Estranhei a pergunta, e observo que os Estados Unidos hostilizavam precisamente os países africanos que queriam colaborar connosco ou que pelo menos não nos queriam antagonizar, fazendo-lhe saber que cessaria o auxílio americano se fossem favoráveis a Portugal. Rusk declara que essa fase está ultrapassada, e insiste na ideia; e confessa que efectivamente alguns países africanos já lhe haviam manifestado o seu apreço pela política portuguesa. Ball conclui que tudo se resume em encontrar uma"fórmula táctica" que nos satisfaça e aos Estados Unidos: há que persistir.














Da esquerda para a direita: Llewellyn Thompson, Andrei Gromyko (ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética) e Dean Rusk (1967).


Da esquerda para a direita: Dean Rusk, Lyndon Johnson e Robert MacNamara (9 de Fevereiro de 1968).


Passo a tratar do problema dos Açores, da questão do Loran-C [sistema triangular de detecção electrónica que permite, ao que parece, servir a navegação de submarinos], das instalações que os Estados Unidos desejam em Cabo Verde para auxílio a voos espaciais. Indico que estes pontos se encontram em estudo; mas a opinião pública portuguesa não compreenderia que ampliássemos o auxílio aos Estados Unidos enquanto estes persistirem na política actual. Rusk diz que não devemos ligar aqueles três problemas às questões de África. Replico que para nós tudo faz um conjunto: a África é vital para o Ocidente: e a defesa deste, sem África, passava a ser secundária, se para mais houvesse de implicar sacrifício de Portugal. Aludo à base de Beja, para vincar os riscos que esta nos cria. Rusk pergunta por que não sai Portugal da NATO, se assim se sente mais protegido; e comenta que, se deixássemos de ser aliados, a opinião pública americana também não compreenderia a hostilidade que Portugal acaso viesse a ter com os Estados Unidos. Respondo ao secretário de Estado que o Governo português tem o sentido das responsabilidades, e que o problema era outro: o de saber se se pode pedir a um país que se sacrifique por aliados que o hostilizam. E torna-se à questão de África. Rusk e Ball repisam que agora a questão era de natureza táctica: impunha-se encontrar a"fórmula" que tivesse em conta os vários interesses e pontos de vista. "Nós só queremos ajudar vocês a ajudarem-se a si mesmos", declara Rusk. Sugiro que o não esclarecimento das queixas por mim feitas não se me afigura um bom passo nesse sentido. Rusk repete que é fundamental apurar os desejos das populações. Menciono Goa a esse propósito. Rusk retorquiu afirmando que um plebiscito teria salvo Goa. Observo: Nehru rejeitara a ideia peremptoriamente, e dissera que não aceitaria os Portugueses em Goa ainda que os Goeses o quisessem; um plebiscito em Goa levaria a um plebiscito em Angola e Moçambique, e este problema já o examináramos; e além disso os indianos apenas invadiram Goa quando viram que tinham "luz verde" dos Estados Unidos. Rusk não refutou esta afirmação. E menciono Macau e Timor, e pergunto se o secretário de Estado acha que qualquer plebiscito evitará um acto de força contra aqueles territórios. Rusk concordou que não evitaria: "Ali é preferível de momento nada fazer", remata o secretário de Estado.

(...) Lisboa, 31 de Março de 1966 - Recebi a seu pedido Antoine Pinay [antigo ministro das Finanças e presidente do Conselho da França]. Irradia encanto natural, e uma personalidade atraente, com um espírito vivaz, inusitado na idade que tem. Diz-me que esteve em Paris com Averell Harriman, e que este lhe afirmara ser necessário "abater" o presidente do Conselho [abater era aqui usado, evidentemente, no sentido político]. Pinay teria reagido, e defendido a política portuguesa. Harriman teria concluído que, pelo menos, era indispensável para o Ocidente levar o chefe do Governo português a dar independência a Angola. Pinay criticou o que classificou de "irresponsabilidade" dos Estados Unidos.

(...) Luxemburgo, 14 de Junho de 1967 - Conversa com Dean Rusk. Encontro efectuado no Gabinete da delegação dos Estados Unidos à reunião da NATO.

(...) Durante um momento falou-se da NATO. Rusk admitia a crise do PACTO: os franceses complicavam tudo; os aliados não queriam ocupar-se dos problemas reais no mundo. Eu disse ao secretário de Estado que tudo estava afectando a segurança da Aliança, e a do Ocidente, e que todos tínhamos sobejos motivos de preocupação.

Sentindo que se aproximava o fim da entrevista, fiz um apelo ao secretário de Estado. Em face da crise e dos problemas de segurança para o Ocidente, eu recusava-me a acreditar que uma Angola portuguesa, um Moçambique português, uma África do Sul e uma Rodésia ao lado do Ocidente, e tudo isto com os seus portos e caminhos-de-ferro, e aeroportos, e recursos - fossem indiferentes aos Estados Unidos."Tudo isto, Dean, não vos pode ser indiferente!"."Sim, não é indiferente", respondeu o secretário de Estado "mas sob condição de que dure. Quanto tempo durará?"



Da direita para a esquerda: Franco Nogueira e Vasco Garin nas Nações Unidas (1960).



Dean Rusk nas Nações Unidas


Levantámo-nos. Mas ainda tive tempo para dizer, já de pé, que eu não sabia o que mais haveríamos de fazer para convencer os Estados Unidos de que não mudaríamos a nossa política; e além disso, se o problema era de duração, e se no caso de durarmos isso convinha aos Estados Unidos, então não estávamos mais perante questões de princípio e de consciência, mas em face de realidades práticas; e então a pergunta era esta: por que não nos ajudavam os Estados Unidos a durar em vez de nos hostilizarem?».

(...) Pretória, 26 de Julho de 1967 - Pontualmente, o Primeiro Ministro, Johanes Vorster, recebeu-me à hora marcada.

(...) Perguntei ao primeiro-ministro qual o estado actual das relações da África do Sul com a Inglaterra. Muito convictamente, o Dr. Vorster afirmou logo que os ingleses eram uns "dúplices". Repisou:"Sim, uns dúplices". Andavam sempre embrenhados em manobra e intriga. Andavam sempre a propor a"troca de um cavalo por outro". Talvez ele fosse um simples, mas não os compreendia. Passavam a vida a querer persuadi-lo de que o "tempo estava contra nós, sul-africanos", mas descobrira já que, no fundo, "o que os ingleses querem é que nos enforquemos e o que pretendem é ganhar para eles, esse tempo que dizem estar contra nós". E sugerem autênticos negócios. Por exemplo: durante meses disseram que garantiam a anexação do Sudoeste Africano por parte da África do Sul, mesmo com a aprovação pela ONU, em troca do apoio da República à destruição de Smith."Eu disse-lhes que não. Disse-lhes que arranjaríamos para o Sudoeste Africano a solução que nos conviesse, mesmo sem a Inglaterra e sem a ONU. E disse-lhes que faríamos na Rodésia o que julgássemos ser justo (right), fosse qual fosse a vontade de Londres". Depois desta resposta, haviam desistido os ingleses de fazer novas sugestões de trocas e negócios, e também se tinham abstido de novas pressões.

Escutei sem comentários, e não subscrevi o que dissera dos ingleses, e solicitei depois ao primeiro-ministro uma palavra sobre as relações com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que lhe dava uma súmula das nossas próprias relações com aquele país. Esclareceu o Dr. Vorster que tem tido as maiores dificuldades com Washington. Não percebia a política americana. Há pouco tivera uma longa conversa com o embaixador dos Estados Unidos. Dissera-lhe: "Então a estabilidade e a paz da República, a sua atitude ao lado do Ocidente, as posições que ocupa, tudo isto é indiferente para os Estados Unidos? Pois respondeu-me que tudo isso lhe era completamente indiferente, e que os Estados Unidos só confiavam na estabilidade que proviesse e fosse fundada na aplicação do princípio de 'um homem, um voto'. Observei ao embaixador que isso era o caos, a miséria, a inutilização de todo o esforço. Respondeu-me que assim seria nos primeiros cinquenta anos; mas depois haveria ordem para séculos; e era isso que interessava à política americana, e era nisso que jogavam". Continuou o primeiro-ministro dizendo que no entanto estava confiante, e não nutria receios excessivos. Era exacto que os Estados Unidos possuíam os meios materiais de atacar e destruir a África do Sul. Podem fazê-lo; mas o problema consistia em saber se o farão. Eles, sul-africanos, não tinham qualquer opção: apenas podiam lutar; e preferiam ser assassinados a cometer suicídio. Mas davam aos Estados Unidos uma opção: a de não atacarem.

(...) Washington, 17 de Novembro de 1967 - Eram 12 horas, Dean Rusk recebeu-me à hora fixada, no Departamento de Estado, e foi afectuosamente cordial o acolhimento.






(...) Disse ao secretário de Estado que queria falar-lhe do Congo e de recentes desenvolvimentos relacionados com o mesmo. Decerto já conhecia o teor da minha conversa com o subsecretário Katzenbach. Rusk fez menção afirmativa. Eu não ia portanto repetir-me, nem sublinhar os factos ou as fundadas razões que nos assistiam. Queria sobretudo dirigir-lhe um apelo; e seria um apelo à sua compreensão, aos seus sentimentos, ao seu sentido de justiça, até à sua amizade pessoal. Há sete anos vítimas de agressão do Congo; tendo perdido muitas vidas e bens; tendo enfrentado uma campanha violenta e tenaz no plano internacional - como julgava ou pensava o secretário de Estado que o povo português e o governo reagiriam perante a atitude dos Estados Unidos dando razão ao Congo no caso dos mercenários, defendendo o Congo, protegendo o Congo, e criticando e perante o mundo responsabilizando Portugal? Não lhe ocultava que causara entre nós a pior impressão a infeliz atitude americana, e não lhe escondia o sentimento de indignação e revolta, pela injustiça que se praticara, de que se sentiam possuídos os Portugueses. Rusk não fez comentário. Mas eu tinha de lhe dizer mais. Nas Nações Unidas não constituía segredo para ninguém que haviam sido os Estados Unidos os impulsionadores da reunião do Conselho de Segurança contra Portugal e que fora a delegação americana a única (salvo a Rússia, a Bulgária, a Índia, evidentemente) a insistir por uma "condenação" de Portugal - quando a própria Nigéria estava disposta a somente "lamentar"a atitude portuguesa. Corou ligeiramente o secretário de Estado, e cingiu-se a comentar, e em voz muito baixa e tímida, que não conhecia os pormenores que eu acabava de enumerar. Fiquei com a impressão de que Rusk desejou significar-me que à delegação americana na ONU (Goldberg) cabia a responsabilidade, e que esta agira sem as suas instruções, ou contra estas.

Já que falávamos de África, continuei, queria mencionar a questão do Biafra. Rusk decerto vira as notícias sensacionalistas na imprensa [alguma imprensa acusava Portugal de ser responsável pela secessão do Biafra, na Nigéria, o que não tinha o menor fundamento]. Parecia que nada se passava em África sem a intervenção portuguesa, ou provocado por Portugal, ou por culpa de Portugal. Invadíamos o Congo, e a Tanzânia; e atacávamos Brazzaville; e agredíamos a Guiné e o Senegal; e agora sustentávamos o Biafra contra Lagos, que tinha o auxílio da Rússia e, ao que se dizia, dos próprios Estados Unidos. Tudo isto era absurdo. Era fácil atacar Portugal, e para esconder actividades de outros serviam-se do nosso nome. Era o que estava acontecendo no caso do Biafra. Ora eu queria dizer-lhe que não estávamos ajudando o Biafra; muitos países europeus e africanos faziam-no, até da África negra; e os biafrenses estavam activos em muitas cidades, até em Nova York; e dispunham de muito dinheiro, mas este não provinha de fonte portuguesa. Nós somente concedíamos livre passagem de pessoas e mercadorias que transitassem legalmente. Praticávamos quanto ao Biafra o que praticávamos quanto à Rodésia, ao Congo, ao Malawi, à Zâmbia e outros. Nada mais. Eu queria que isto ficasse bem claro: se amanhã fossemos internacionalmente acusados, já o Governo americano sabia a verdade. Dean Rusk disse que tomava boa nota de quanto lhe referira; mas não lhe constava que os Estados Unidos nos tivessem arguido fosse do que fosse no caso do Biafra. Concordei que assim era e, em face do que eu esclarecera, decerto assim continuaria a ser.

(...) Passamos a outra sala para o almoço.

O secretário de Estado quis saber as minhas impressões da minha recente visita ao Brasil [feita no mandato do presidente Costa e Silva, sendo Magalhães Pinto o chanceler brasileiro]. Fiz-lhe um relato sóbrio e de forma geral favorável à actual Administração brasileira. Mas alarguei o âmbito das minhas observações para falar da penetração comunista no Brasil e na América Latina. Citei factos e conversas com entidades brasileiras; e descrevi com algum pormenor a reacção de pena e quase luto que eu encontrara em muitos brasileiros pela morte de Guevara, ocorrida enquanto me encontrava no Rio. Tudo isto pareceu impressionar Dean Rusk, e foi ouvido em silêncio pelos demais. E já que se falava no Brasil, e embora eu não tencionasse levantar esse ponto, queria chamar a atenção do secretário de Estado para a atitude hostil para connosco da parte da Embaixada dos Estados Unidos no Rio. Rusk mostrou surpresa. Perguntou se eu me referia ao campo cultural. Também a esse, disse eu, mas sobretudo ao terreno político. Rusk dirigiu-se a um secretário no extremo da mesa, que tomava notas, e pediu-lhe que registasse bem este aspecto.


Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, Bahia, em 1500. Óleo sobre tela de Oscar Pereira a Silva (1922).




Escudo de Armas do Brasil










Brasil





Praia de Copacabana (primeira metade dos anos 50).



Copacabana (1965)



A verdadeira Garota de Ipanema: Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto ('Helô').


























































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Perguntei depois ao secretário de Estado se se importava de me informar do pensamento actual do Governo americano quanto às Nações Unidas. Tomou Rusk um súbito calor, e com um tom ruborizado e emocionado, disse que as Nações Unidas estavam simplesmente impossíveis. Eram uma organização irresponsável; a Assembleia votava tudo da forma mais irreal, e nada se podia cumprir; noventa por cento dos votos correspondiam a 10% da população do Globo; quem pagava 64% do orçamento apenas dispunha de 8% dos votos; e tudo isto traduzia uma situação insustentável. Havia que fazer reformas. A Assembleia Geral tinha de ser limitada no seu poder, e apenas lhe deveria ser permitido debater alguns problemas, sem nunca votar qualquer resolução. Conviria talvez criar um outro orgão, uma espécie de Senado, com um número restrito de membros muito bem escolhidos, e a estes e só a estes seriam confiados os verdadeiros problemas. E depois o secretário-geral U Thant era um desastre: não era um chefe; andava sempre em busca de compromissos e transigências; e nunca cumpria a Carta. Ora o secretário-geral deveria ser o zelador da Carta por excelência, e só lhe competia... Mas neste momento Dean Rusk estacou de súbito, sorriu-se com bom humor, encarou-me afectuosamente, e disse: "Bem, mas tudo isto andam vocês portugueses a predizer há muito, há mesmo muitos anos. Não é assim?"

Confirmei, mas não insisti num assunto que obviamente constrangia Dean Rusk, tanto mais que já estava esclarecido. Alguém falou de Gibraltar. Rusk informou que não queriam os Estados Unidos meter-se no assunto: frente a frente estavam dois países muito antigos, que já entre si tinham relações antes dos Estados Unidos existirem, e que Gibraltar era também anterior à independência americana. Eu perguntei se esta doutrina só valia para Gibraltar ou aplicava-se a outros territórios. O embaixador Garin comentou do lado que era muito importante o que acabava de dizer o secretário de Estado. Este compreendeu o alcance da pergunta, não respondeu, e riu-se como quem é surpreendido em pecado.


(...) Toda a conversa do Departamento de Estado decorreu sempre em ambiente da maior cordialidade. À despedida, e como lhe recordasse a sua promessa, o secretário de Estado reiterou o seu desejo de vir a Lisboa na primeira oportunidade. Rusk dá-me sempre a impressão de homem sério, íntegro, de grande honorabilidade pessoal. Não tenho dúvidas de que compreende e apoia a política portuguesa muito mais do que se sente autorizado a revelar. Repisa sempre: "Os Estados Unidos são governados por mil pessoas, e peço-lhe que acredite que o secretário de Estado não está entre essas mil pessoas"».

Franco Nogueira («Diálogos Interditos», II).


«A França era outra coisa, "o elo que devemos agarrar a fim de puxarmos para nós toda a corrente europeia". Baixando os olhos para a barriga, [ Krushchev] recordou-se da sua recente visita a Paris.

- Eles festejaram-nos e trataram-nos com champanhe de uma maneira fabulosa. E da mesma forma fabulosa, nós contentámos a auto-estima de De Gaulle. Inundámo-lo com cumprimentos. É esse o truque a usar com ele.


Charles de Gaulle

Não havia qualquer forma semelhantemente fácil de manejar os alemães, pensava ele, mas a sua economia e a sua tecnologia representavam um prémio ainda maior. A Alemanha Ocidental tinha de convencer-se de que nunca poderia ter esperança de reunificação.

- Se for necessário - ameaçou Krushchev, nove meses antes de o Muro de Berlim se ter tornado uma realidade -, faremos uma demonstração de força para acalmar esses políticos alemães que não compreendem a situação.

Contudo, logo que eles tomaram conhecimento do inevitável, ele sentiu que seria possível conseguir concessões comerciais dos Alemães e explorar a sua economia para melhorar a da União Soviética.

- Não nos esqueçamos, foi a Alemanha que se tornou o nosso primeiro parceiro comercial depois da Revolução.

Quanto aos Estados Unidos, no tempo presente, ele via pouca esperança na sua mudança de atitude, mas havia muitas oportunidades para um "descrédito suave" dos Americanos na Europa.

- Metemos um pouco de medo aos países da NATO, o ano passado, com o espírito de Camp David - disse ele, recordando as suas conversações com o Presidente Eisenhower em 1959. - Temos de trabalhar um pouco mais para voltarmos os Estados Unidos contra a Europa e a Europa contra os Estados Unidos. Foi essa a técnica que Vladimir Ilyich (Lenine) nos ensinou - concluiu ele, agitando um dedo à frente da minha cara.

Enquanto dávamos os retoques finais no discurso de Krushchev perante a Assembleia-Geral, salientando os "êxitos do socialismo da União Soviética", alguns de nós começámos a interrogar-nos sobre se o discurso não estaria sobrecarregado com dados estatísticos das nossas realizações. Quando timidamente, sugeri a Krushchev que talvez fosse uma boa ideia encurtar o seu discurso, omitindo várias passagens que não tinham qualquer relevância em relação com os temas centrais das propostas soviéticas à ONU, ele ficou muito irritado.

- Essa gente, na ONU, tem de nos ouvir - declarou. - Tudo quanto fazem é conversar descuidadamente e estragar montes de papel todos os dias. Não podemos estar a preocupar-nos em poupar páginas quando se trata de doutrinação política que vamos levar a cabo na ONU. - Disse que Lenine tinha ensinado que o "socialismo goza do poder do exemplo" e que "é necessário mostrar pelo exemplo o significado do Comunismo". Krushchev lançou-se então entusiasticamente num sermão sobre a importância e a utilidade da aplicação do legado teórico do Marxismo-Leninismo ao trabalho prático, afirmando que ele próprio encontrara um guia adequado nas obras de Marx e Lenine.

(...) No meu novo posto como chefe do Conselho de Segurança e da Divisão de Assuntos Políticos da Missão, tinha a trabalhar comigo um corpo de mais de vinte diplomatas. Em breve vim a descobrir que, de facto, apenas havia sete que eram autênticos diplomatas: os restantes eram profissionais do KGB ou do GRU sob uma capa de diplomatas. Entre eles encontrava-se Vladimir Kazakov, um homem novo e enérgico, uma estrela em verdadeira ascensão no KGB, e Ivan Glazkov, major-general e chefe das operações do GRU em Moscovo.






Um razoável número de cidadãos soviéticos a trabalharem no Secretariado da ONU estava também incluído na minha divisão, numa violação clara dos regulamentos que regem os servidores civis internacionais. Os seus deveres extra na Missão produziam pouco trabalho útil e eram feitos a expensas do seu verdadeiro emprego no Secretariado. Dizia-se no Secretariado que os Soviéticos eram borrachões preguiçosos. Em muitos casos isso era verdade.

Yuri Ragulin, funcionário do Secretariado e genro do embaixador na Alemanha de Leste, Petr Abrasimov, era um dos exemplos da fraca imagem dos Soviéticos. Apresentava-se frequentemente ao trabalho a horas tardias, ou não se apresentava mesmo, como resultado das suas bebedeiras incessantes. Uma vez, numa festa num apartamento de um amigo na parte alta do West Side de Manhattan, ficou de tal modo embriagado que caiu de uma janela do décimo quinto andar quando vomitava para a rua. Teve uma sorte incrível: aterrou no telhado de uma igreja que ficava junto do edifício de apartamentos. Ficou gravemente ferido mas sobreviveu. Os bombeiros tiveram de o retirar do telhado. Se se tratasse de um vulgar diplomata em princípio de carreira, claro que teria sido logo demitido e mandado para casa, mas o sogro veio em sua ajuda.


Outra prática que provocava falatório depreciativo no Secretariado era a insistência do governo na devolução dos salários da ONU por parte dos nacionais soviéticos. No fim de cada mês, os empregados soviéticos do Secretariado alinhavam-se em frente da tesouraria da Missão para entregarem o dinheiro que ganhavam nas Nações Unidas. A Missão exigia que todos os cidadãos soviéticos empregados no Secretariado cambiassem os cheques referentes aos vencimentos antes de se dirigirem à tesouraria onde eram obrigados a entregar o dinheiro. Nessa altura, era-lhes pago o seu "salário" de acordo com uma escala estabelecida pelo governo soviético, o qual descontava um montante considerável do dinheiro recebido na ONU. Por exemplo, no meu tempo, o salário mensal de um funcionário superior da ONU (P-5) era de cerca de $2,000 por mês. A escala soviética estabelecia o salário para um tal funcionário ao mesmo nível do que era pago a um conselheiro da Missão (menos de $800 por mês). Desta forma, o governo soviético ficava com mais de $1,000 por mês do salário de um P-5 da ONU.


Naturalmente que havia ressentimento por esta extorsão, mas havia muito pouca resistência à entrega do dinheiro. Todos os meses, o departamento de tesouraria da Missão organizava uma lista com os nomes daqueles que tinham demorado, mesmo por alguns dias, a entrega do seu "excesso de fundos". Os nomes eram comunicados ao embaixador e à organização do Partido. "Devedores mal intencionados", aqueles que demoravam a entrega eram sujeitos a uma crítica pública nas reuniões do Partido. Mais ainda: o embaixador repreendia-os pessoalmente por falta de observação da "disciplina".


Estas devoluções forneciam lucros significativos à União Soviética. A Missão conseguia cobrir todas as suas despesas através dos vencimentos dos empregados da ONU. Os Estados Unidos são os grandes perdedores neste processo, pois são eles que têm o mais pesado fardo financeiro entre todos os contribuintes para o orçamento da ONU. Para juntar insulto à injúria, pelo menos metade dos nacionais soviéticos a trabalharem na organização internacional não são diplomatas, mas profissionais da KGB e do GRU. Através das devoluções, os Estados Unidos financiam indirectamente a actividade dos serviços secretos soviéticos.











Dag Hammarskjold




Pandita Nehru e Dag Hammarskjold (21 de Dezembro de 1956).


















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U Thant na Casa Branca (1968)



O Secretário-Geral U Thant, sucessor de Dag Hammarskjold, conhecia bem esta prática, mas pouco podia fazer sobre o assunto. Se ele objectasse, os Soviéticos muito simplesmente negariam tudo e as coisas ficariam por aí. Os cidadãos soviéticos não se atreveriam a fornecer a prova».

Arkady N. Shevchenko («Ruptura com Moscovo»).


«O objectivo único da agitação estudantil organizada é destruir os fundamentos sobre os quais assenta a vida social contemporânea, derrubar o Governo [do Estado Novo] - como também é indicado nos panfletos - conduzir a uma acção revolucionária de rua, a partir das escolas, ou paralisar a vida universitária. Constituem simples degraus de uma escala cuidadosamente planeada e organizada algures no mundo».

Costa André, Secretário de Estado da Instrução e Cultura (ver «A morte do estudante Ribeiro dos Santos», in «Os Anos de Salazar», PDA, 2008, n.º 28).


«No Verão de 1973 a guerra colonial [leia-se Guerra do Ultramar] domina, mais uma vez, as atenções nacionais e internacionais. (...) internamente é desencadeada uma operação de mobilização a pretexto da realização no Porto, de 1 a 3 de Junho, do I Congresso dos Combatentes do Ultramar.

(...) alguns oficiais do Quadro Permanente, precisamente os mais sacrificados pela guerra, decidem boicotar o evento pondo a circular um abaixo-assinado demarcando-se do Congresso e dos seus resultados. A iniciativa parte de elementos próximos do então governador da Guiné, António de Spínola, que desde a sua passagem pela Guiné, discutiam a questão da guerra colonial, defendendo que a solução da mesma era de natureza política e não militar. Mas o grupo, onde pontificam os nomes de Ramalho Eanes, Carlos Fabião, Dias de Lima ou Firmino Miguel, alarga-se rapidamente a outros sectores. Contactado para assinar o documento, Vasco Lourenço é um dos oficiais que aderem e colaboram na iniciativa».

Maria Inácia Rezola («Os Anos de Salazar», PDA, 2008, n.º 29).



Da direita para a esquerda: Ramalho Eanes, Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo e Vasco Lourenço



Melo Antunes e Ramalho Eanes











«A catástrofe liricamente apelidada de "revolução dos cravos" teve antecedentes remotos: a sua origem longínqua situou-se em 1941, quando Roosevelt e a superfinança americana se conluiaram com Staline.

Num artigo publicado em O Dia (23/3/1980), duma série sobre os Rockefellers, Lourdes Simões de Carvalho transcreveu a carta que Roosevelt endereçou em 1941 ao Kremlin - carta que Le Figaro, de Paris, revelou a 7 de Fevereiro de 1951:

"Quanto à África, será preciso dar à Espanha e a Portugal compensações pela renúncia dos seus territórios para que haja um melhor equilíbrio mundial. Os Estados Unidos instalar-se-ão aí por direito de conquista e reclamarão inevitavelmente alguns pontos vitais para a zona de tutela americana. Será mais que justo".

"Queira transmitir a Staline, meu caro senhor Zabrusky, que para o bem geral e para o aniquilamento do Reich ceder-lhe-emos as colónias africanas se ele refrear a sua propaganda na América e cessar a interferência nos meios laborais".

Acrescentou depois a citada articulista:

"Em 1973, esta promessa solene continuava por cumprir. Falha tanto mais embaraçosa para a parte faltosa quanto os soviéticos tinham honrado a sua.

Portugal, três décadas depois da cedência de Roosevelt à URSS das suas possessões africanas, interpunha-se ainda como um escolho inamovível na viabilização do contrato e lutava sozinho conta o condomínio russo-americano e respectivos mecanismos de conquista e anexação.

Os Rockefellers eram especialistas, na América do Sul, a manobrarem através de militares a quem a pala do boné delimita o horizonte das suas abstracções.

No dia 25 de Abril de 1974, capitães convictos de salvarem o povo das garras dos exploradores, apoiados por comunistas primários, estudantes analfabetos e intelectuais muito eruditos sobre o imperialismo dos EUA investiram contra a última barreira existente na Europa a esse mesmo imperialismo.

Ao largo, na costa, uma esquadra americana velava pronta a intervir em favor dos revoltosos marxistas para que as promessas de Roosevelt fossem honradas. A África foi partilhada de harmonia com o esquema habitual: ideologia redentora primeiro; depois, financiamentos saneadores e divisão equitativa dos lucros entre os parceiros sociais.


A Traição do 25 de Abril



























Frank Carlucci e Mário Soares



O agente de confiança de Nelson Rockefeller, Frank Carlucci, posando como embaixador dos EUA em Lisboa, com o seu homólogo da KGB, Kalinine, sob travesti semelhante, destacados para consolidar mais esta etapa, desempenharam-se com discrição e eficácia desta missão especial.

Os expoentes máximos do Round Table Business, organismo Rockfeller que agrupa os 178 maiores capitalistas do mundo, consideram hoje Portugal como uma das melhores coutadas europeias, tendo o caminho facilitado pela desertificação dos empresários nacionais, liquidados e afastados da competição pela aguerrida matilha comunista. Chase, Morgan, Ford, Rothschild e o Kremlin tinham vencido juntos mais um lance".

«(...) a) As três internacionais. - Carlos Camposa, no prefácio do seu opúsculo "Salazar respondeu a Afonso Costa", tem esta curiosa observação de que o "25 de Abril" foi a sinistra obra de três internacionais:

- a vermelha (comunista e socialista);

- a capitalista ou doirada (América do Norte e plutocracia do Norte da Europa, em especial da Holanda e da Suécia);

- e a negra (clerical progressista), lembrando a propósito a acção dos "padres brancos" em Moçambique e de outros, as calúnias do Pe. Hastings, etc.

b) Em 1973: o Acordo de Paris - Se bem que ainda sem revelação de todos os pormenores, têm surgido referências concretas ao "Acordo de Paris" firmado em Maio de 1973 entre o PC e o PS. Perante a crescente dificuldade de vencer militarmente Portugal no Ultramar, a União Soviética promoveu esse acordo prometendo financiar a organização de um golpe de Estado em Lisboa, comprometendo-se o PC e o PS a conceder a "independência" imediata às Províncias Ultramarinas portuguesas entregando-as aos movimentos pró-soviéticos: PAIGC (Guiné e Cabo Verde), MPLA (Angola) e FRELIMO (Moçambique).

Sobre esse Acordo, ver: Jornal de Economia e Finanças, números 357 e 392; África - Vitória Traída, pelos generais Luz Cunha, Kaulza de Arriaga, Bethencourt Rodrigues e Silvino Silvério Marques, página 27; Angola - Os Vivos e os Mortos, de Pompílio Cruz, página 149; A Rua, de 6/2/77, transcrição de uma notícia de Santana Mota publicada no diário O Estado de São Paulo Não lhes perdoais, Senhor, de Rebelo Cotta; a página 28 diz que o tenebroso Rosa Coutinho e outros chacais do seu séquito executaram fielmente o plano gizado "em Moscovo, Paris e Lisboa"».

José Dias de Almeida da Fonseca («LIVRO NEGRO DO "25 DE ABRIL"»).












«A FNLA e a UNITA insistem na minha substituição por um reaccionário que lhes apare o jogo, o que a concretizar-se seria o desmoronamento do que arquitectamos no sentido de entregar o poder unicamente ao MPLA. Apoiam-se aqueles movimentos fantoches em brancos que pretendem perpetuar o execrando colonialismo e imperialismo português - o tal da Fé e do Império, o que é o mesmo que dizer do bafio da Sacristia e da exploração do Papa e dos Plutocratas.

Pretendem essas forças imperialistas contrariar os nossos acordos secretos de Praga, que o camarada Cunhal assinou em nome do PCP, a fim de que sob a égide do glorioso PC da URSS possamos estender o comunismo de Tânger ao Cabo e de Lisboa a Washington...».



Carta de Rosa Coutinho dirigida a Agostinho Neto




«É sobretudo no opúsculo Liquidação do Ultramar (Jornal de Economia e Finanças, 1980) que o Acordo de Paris aparece mais estudado:

"Nos princípios de 1973 ter-se-ia realizado, em Paris, uma conferência convocada pelo Partido Comunista onde, elementos heterogéneos da esquerda portuguesa, se comprometeram a levar a cabo uma revolta em Portugal, o mais tardar até 1975. Estiveram presentes, além do PCP convocante, a Acção Socialista Portuguesa, uma dezena de militares, católicos progressistas e representantes da maçonaria. Não era a primeira conferência ali realizada, com maior ou menor participação das chamadas esquerdas oposicionistas e mesmo simples descontentes. Mas o facto do PC russo ter enviado uma pequena delegação com instruções claras e poderes precisos para assumir compromissos financeiros, conferia-lhe particular importância.

A revista Faits et Idées que a chamada 'Frente Portuguesa de Libertação' publicava em França, afirmou em Agosto de 1976 que, nessa conferência - para a qual teria sido convidada - fora decidido o reforço da infiltração marxista nas forças militares portuguesas e elaborado um plano para intensificação do terrorismo nas províncias africanas. O sucesso da revolução implicaria a instalação na Metrópole de um regime 'democrático a caminho do socialismo' que poria termo à 'guerra colonial'. A independência da Guiné, Angola e Moçambique seria concedida aos movimentos terroristas de obediência comunista, sem condições políticas e económicas nem indemnizações. Os colonos deveriam ser repatriados a expensas de Portugal.










Embora nos meios políticos afectos à esquerda a conferência de Paris tivesse tido ampla repercussão, a sua realização e o clausulado suscitaram interrogações a que nunca foi dada resposta convincente.

Em primeiro lugar para quê uma conferência em Paris entre os PCs soviético e português? A linha de conduta dos comunistas portugueses foi sempre, fora de questão - mais na altura, se possível, do que hoje - fixada autoritariamente pelo Kremlin; a Acção Socialista Portuguesa não tinha qualquer implantação no país e os seus dirigentes careciam de prestígio. Nestas condições para quê a conferência? Teria sido convocada para provocar a presença e comprometimento de meia dúzia de militares e outros tantos ex-militares desertores que formavam o grupo de Argel? Dir-se-ia gente desprezível demais para justificar um tão grande interesse como então se afirmava ter-se verificado por parte da delegação russa.

Parecia mais fácil acreditar que Moscovo, com essa conferência, procurasse obter cobertura civil a uma operação militar já em preparação e, provavelmente, em estado mais adiantado do que então se julgava.

Nos princípios de 1973 o interesse da Rússia pela sorte de Portugal metropolitano era restrito demais para justificar a presença de uma delegação na conferência de Paris. Só o Ultramar lhe interessava e só em função desse interesse as questões portuguesas vieram a ser tratadas por essa delegação.

A 'guerra colonial' ao tempo dominada em Angola, controlada em Moçambique e, em condições de ser ganha na Guiné, podia terminar em meia dúzia de meses. Se assim acontecesse Moscovo teria deixado perder uma rara oportunidade para se instalar em Angola e Moçambique sem levantar protestos internacionais. Na política portuguesa passaria a oportunidade para adquirir por um prato de lentilhas, a uma minoria ávida de honras e benesses, uma herança de quinhentos anos de história.

O montante posto pela Rússia em Paris, à disposição da esquerda portuguesa, para financiar a revolução, foi objecto de muitas conjecturas. Na altura falou-se em cinquenta milhões de dólares; não parece, porém, que tão pouco chegasse para satisfazer tantos encargos, mesmo tendo em conta que as despesas com as tropas mercenárias cubanas desde logo ficara assente serem pagas directamente por Moscovo.

O governo russo não estava interessado em economizar rublos e, naturalmente, menos ainda, em poupar copeks [Aliás, como refere Faits et Idées, ficou assente que o governo saído da revolução deveria pagar integralmente todos os dinheiros recebidos. O que fez com a compra de açúcar a Cuba a preços superiores aos do mercado internacional e, à Rússia, compra de madeira de pinho e sardinhas, e venda de vinho a dois escudos o litro e sapatos a cem escudos o par]. Na guerra todas as economias são sempre dispendiosas. O que interessava ao Kremlin era levar os sectores democratas tradicionalistas da primeira República - ou pelo menos uma parte representativa -, a maçonaria e elementos progressistas católicos, tipo Capela do Rato, a alinhar com os socialistas e comunistas no apoio a um grupo de militares que se propusesse transferir a solução do problema ultramarino do plano militar para o plano político onde o Kremlin estava seguro de poder impor os seus pontos de vista.

Esse apoio, ainda que fosse confuso e mal definido, teria acção decisiva no clima revolucionário que dominaria as semanas posteriores à eclosão do movimento militar. Com ele seria possível proceder a uma descolonização sem complicações 'democráticas', passando as províncias ultramarinas directamente da soberania portuguesa, sem ouvir as populações, para o controlo de forças dependentes de Moscovo. Sobretudo se os meios de comunicação fossem habilmente utilizados para desviar a atenção do país dos problemas africanos, onde o destino de Portugal estava em jogo, para a ameaça de comunização imediata do quadrilátero europeu que Moscovo, na altura, não tinha, por certo, a menor intenção de levar a cabo.

A partir da conferência de Paris os acontecimentos pelos quais se traduziu a escalada de subversão no nosso país, sucederam-se em rápida cadência.




Mário Soares e Holden Roberto




Ramos da Costa, Tito de Morais e Mário Soares em Genebra (Novembro de 1964).








Em Maio a Acção Socialista Portuguesa transformou-se no Partido Socialista que, desde logo se declarou "radicalmente anti-colonialista" pronto a bater-se pelo 'direito à autodeterminação dos povos coloniais'; em Setembro o PC e o PS subscreveram um comunicado em que afirmaram ser objectivo das forças 'democráticas portuguesas' pôr termo à 'guerra colonial' propondo 'imediatamente negociações com vista à independência dos povos de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique'. Entretanto em Julho, em volta de questões de ordem profissional, formou-se o chamado 'movimento dos capitães' que, no Outono, tendo relegado para segundo plano as suas reivindicações iniciais, tinha dado aos seus objectivos um nítido cariz político, pretensamente democrático mas, na realidade, de inspiração marxista.

Os milhões de dólares do Kremlin não tinham caído em terra sáfara".

Também na revista Newsletter de Boston (Agosto de 1976, Vo. I, n.º 2), se afirma (reportagem de John C. Wahno):

"Os Secretários-Gerais do Partido Comunista Português (PCP) e do Partido Socialista (PS), juntamente com outros membros dos Partidos, reuniram-se em Paris em Maio de 1973 para estudarem as possibilidades de canalizarem o descontentamento então evidente em certos sectores das Forças Armadas Portuguesas no sentido de estruturarem um movimento capaz de derrubar o Governo Português. Desde o início, o PCP provou ser tão altamente organizado e conhecedor da situação que maravilhou e convenceu o PS a juntar-se ao movimento.

O PCP tinha fichas detalhadas de todos os oficiais portugueses e contava com um número surpreendente de membros e simpatizantes nas Forças Armadas e nos sectores de Serviço Público. O Secretário-Geral do PCP decidiu, contudo, por razões óbvias, que não se aventuraria em certas actividades para evitar que arriscasse a posição que tinha adquirido. Portanto, delegou no PS, então praticamente desconhecido e por consequência menos susceptível de causar suspeita, a responsabilidade de fazer o trabalho sujo. O PS atacou as medidas do Governo Português enquanto o PCP generosamente financiou as operações. Moscovo, a fonte desses fundos, só impôs uma condição:

'Independência imediata a todas as colónias portuguesas e transferência das respectivas soberanias, sem eleições, aos movimentos pró-russos'.

O acordo final, respeitante às condições impostas pela Rússia, foi assinado numa reunião a que compareceram cinco comunistas e quatro socialistas, no primeiro andar de um restaurante de Paris adjacente à Farmácia da Ópera. Há quem afirme que o PCP ou o PS, mas não ambos, assinou o acordo final com a Rússia. Seja como for, o acordo tinha duas cláusulas:

1 - Entrega de dinheiro: a Rússia contribuiria com dois milhões de dólares para financiar a organização do golpe de Estado que derrubaria o Governo Português.

2 - Compromisso: o PCP e o PS comprometiam-se a dar independência imediata às Colónias Portuguesas representadas na Reunião, para a ocasião, pelo PAIGC, MPLA e FRELIMO.

O que sucedeu em Moçambique, Guiné, Cabo Verde e Angola foi de tal forma vergonhoso que os responsáveis pela concessão da independência só se atreveram a cobrir a sua traição a Portugal, e às populações locais, com loucas generalidades de óbvio cultivo soviético. Os partidos opostos à FRELIMO em Moçambique, ao PAIGC na Guiné e Cabo Verde e ao MPLA em Angola, foram perseguidos e por decisões totalitárias e fascizantes proibidos de defender os ideais que sustentavam"».

José Dias de Almeida da Fonseca («LIVRO NEGRO DO "25 DE ABRIL"»).











25 de Abril de 1974: a Revolução da Perfídia



AS BATALHAS DAS ARMAS E DO DESENVOLVIMENTO


As duas grandes batalhas (luta armada e desenvolvimento) em que Portugal se viu envolvido, mostram a qualquer observador atento que o esforço exigido ultrapassava em larga medida as nossas capacidades ou potencial estratégico. Foi uma luta que se arrastou por mais de treze anos durante os quais provámos abundantemente ao mundo que na nossas veias corria o mesmo sangue dos nossos antepassados que na majestosa epopeia dos Descobrimentos projectaram Portugal para a cúpula dos países mais empreendedores e capazes a nível mundial. A gesta dos nossos navegantes passaria à História como o apogeu deste pequeno povo. Uma História que outros portugueses cinco séculos mais tarde e pelas mesmas paragens iriam honrar e fazer jus aos feitos gloriosos que os seus avós haviam realizado.

No campo militar batemo-nos com brio no cumprimento do dever e na salvaguarda da honra. Naturalmente que a guerra, este tipo de guerra, não se ganha pela força das armas, mas pode perder-se na ausência ou na falta de eficácia e empenhamento. Todavia durante mais de treze anos foram criadas as condições que permitiriam encontrar a tal solução política desejada que teria evitado o desmoronar do mundo português.

(...) A verdadeira e consistente descolonização que, sem qualquer exagero, pode e deve ser considerada de exemplar e espectacular, foi a do desenvolvimento que teve lugar com o início da abertura das hostilidades até ao assinar do cessar-fogo com os chamados movimentos de libertação. O próprio Mário Soares, ignorando o que era de facto a nossa África, e quando já estava mergulhado nas negociações para entregar a tutela dos territórios administrados por Portugal aos líderes destes movimentos, classificou de "fabuloso" o desenvolvimento que se tinha processado naquela terra a par da luta armada.


Samora Machel e Mário Soares. Ver aqui



Ver aqui



(...) Era impensável que Angola, por exemplo, fosse em 1974 o terceiro maior explorador de café do mundo quando a região cafeeira se situava exactamente na zona mais afectada pela subversão (Quanza Norte e Uíje) e que, em Moçambique, tenha sido possível construir a barragem de Cahora Bassa (a primeira de toda a África e a quarta ou quinta de todo o mundo) numa zona onde a Frelimo concentrara o seu esforço de guerra, quando todos os materiais, mesmo os inertes necessários à sua construção, tiveram que ser transportados por via férrea ou estrada numa distância da ordem dos 500 quilómetros, atravessando áreas semi-desérticas. Mas mais importante foi a autêntica explosão estudantil que se verificou também durante o período de guerra, num sistema escolar devidamente organizado, funcional e com elevados índices de aproveitamento. O ensino superior tinha chegado a Angola e Moçambique e, inevitavelmente, teria de crescer para dar satisfação ao número cada vez mais elevado dos estudantes que terminavam o ensino secundário e pretendiam prosseguir os seus estudos. Em 1973/74 a realidade nos territórios africanos sob a jurisdição portuguesa era, sem qualquer margem para dúvidas, altamente promissora para a constituição de comunidades com padrões de vida substancialmente acima da média dos verificados nos países africanos que se tinham tornado independentes com os "ventos da História", especialmente na década dos anos 50.

Num artigo publicado num semanário, aquando da celebração dos vinte e cinco anos da "revolução dos cravos", afirmei: «Compare-se a situação dos países tornados independentes na década de 50 com os da África sob a administração portuguesa em Abril de 1974. Ninguém, minimamente isento e honesto, poderá deixar de verificar que, para todos os seus habitantes, a solução da defesa do Ultramar foi a que melhor defendeu os seus interesses e melhores condições de vida lhes proporcionou. Para isso apenas temos de comparar os "indicadores" que servem para definir, em cada momento, o bem-estar das populações».


(...) A PREPARAÇÃO E O GOLPE DO PCP


Recordemos que, fracassada a última jogada da URSS para quebrar a resistência nos territórios em África com o fortalecimento do potencial de combate do PAIGC, de imediato se lança para outros campos de acção e, muito especialmente, após o assassinato de Amílcar Cabral em Janeiro de 1973, morte que ainda se pretendeu imputar aos portugueses. Dentro da nova estratégia, a primeira preocupação centrou-se na eliminação da unidade da retaguarda considerada um dos pilares dos nossos sucessos nas frentes militar e social alcançados nos três teatros. Como exemplo dessa nova orientação merecem um realce especial as seguintes iniciativas:

- A Direcção da Organização do Sul do PCP, ainda em Janeiro de 1973, distribuiu um panfleto com o título Amílcar Cabral foi assassinado mas o PAIGC vencerá o qual terminava assim: «O dia 4 de Fevereiro, data do início da luta armada em Angola, e transformado em dia de solidariedade aos povos das colónias portuguesas, é este ano assinalado pelo acontecimento trágico do assassinato do secretário-geral do PAIGC - Amílcar Cabral. A indignação e o pesar sentidos pelos povos do mundo inteiro, ante tão grande perda para os Movimentos de Libertação das colónias portuguesas, serão transformados numa grande manifestação de solidariedade aos povos das colónias portuguesas e de protesto pelo assassinato de Amílcar Cabral, que sendo um crime da responsabilidade do colonialismo português, acarreta para o nosso povo a obrigação de se colocar na vanguarda desta jornada de solidariedade aos povos das colónias. 



Ao centro: Amílcar Cabral






Povo do Sul! Intensifiquemos a solidariedade para como os povos irmãos das colónias, responsabilizando o governo de Marcello Caetano por mais este crime! Exigindo que cessem os massacres na Guiné, Angola e Moçambique! Reclamando o regresso dos soldados e a Paz negociada! Enviando mensagens de condolências aos familiares de Amílcar Cabral e ao PAIGC.

Mulheres do Sul!

Impedi que os vossos filhos, maridos e noivos vão matar e morrer numa guerra injusta!. Exigi o fim da guerra colonial!

Jovens soldados!

Exigi o fim da guerra colonial! Recusai-vos a partir para as colónias!

Jovens trabalhadores e estudantes!

Protestai contra a guerra colonial, através de inscrições nos locais de trabalho e de estudo, nos transportes e nos muros, exigindo o fim da guerra colonial! Regresso dos soldados! Negociações com os movimentos de libertação!».

- O Comité Directivo da Resistência Popular Anti-colonial dirigiu uma mensagem "aos soldados e marinheiros, a todos os revolucionários na tropa colonial-fascista em que, depois de analisar os factos, naturalmente dentro da sua óptica, acrescentava:

«Nós, soldados e marinheiros, alistados à força na tropa colonial-fascista, devemos juntar a torrente da nossa indignação anticolonial ao grande oceano de oposição anticolonialista popular. Honremos a memória deste grande patriota guineense que desaparece sob os golpes do inimigo odiado. Intensifiquemos a solidariedade militante entre o povo português e os povos de Angola, Moçambique e Guiné. Denunciemos os assassinos de Amílcar Cabral. Guerra nos quartéis à guerra colonial-fascista!».

- A Federação dos Estudantes marxistas-leninistas difundiu um comunicado que salientava:

«A principal resposta a este assassinato será dada pelo povo da Guiné, mas também o povo português contribuirá para a vingança de Amílcar Cabral intensificando a sua luta!» Acrescentando que deviam: «cerrar fileiras em torno da sua vanguarda anticolonial, os Comités de Luta Internacional, para a vingança internacionalista de Amílcar Cabral, participando activamente e de todas as formas possíveis na denúncia de mais este crime e na intensificação da jornada anticolonial». Na realidade, alguns estudantes destes Comités organizaram a 9 de Fevereiro uma manifestação de rua, na Praça do Chile em Lisboa, que acabou por ser dispersa pela polícia.



Amílcar Cabral e Fidel Castro




Ver aqui









Mas já antes do assassinato de Amílcar Cabral, que ocorreu em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, como resultado de dissidências internas, tinham-se reunido na capela do Rato algumas dezenas de pessoas nos dias 30 e 31 de Dezembro que aprovaram várias moções das quais se salientam:

1.ª Moção - «Um grupo de cristãos e não-cristãos em reflexão sobre os problemas da guerra em África e alguns deles em greve de fome por solidariedade para com as vítimas dessa guerra, protestam veementemente contra o silêncio dos bispos portugueses, denunciam esse silêncio como claro apoio e cumplicidade na política de exploração colonial praticada pelo governo fascista português».

2.ª Moção - Contém diversos pontos todos numa condenação sistemática da guerra colonial afirmando que a luta dos povos das colónias era uma luta justa, pois eles procuravam através dessa luta conseguir a sua libertação e emancipação efectivas.

Assinada por várias centenas de pessoas foi nesta altura divulgada uma moção de solidariedade com o seguinte texto: «Os signatários solidarizam-se com os cristãos que, na Capela do Rato, se manifestaram pela paz no mundo e repudiaram a guerra que o Governo português conduz em África».

A campanha de intoxicação da população mantém uma intensidade pouco usual no espaço nacional da Metrópole como consequência de dois factores distintos já aliás indicados, mas que de novo realçamos:

- o primeiro, decorrente da mudança de estratégia da URSS em concentrar o seu esforço em desfazer a "unidade da retaguarda" após não ter conseguido os objectivos previstos para a Guiné com o reforço do PAIGC;

- o segundo, como consequência da incapacidade de Marcello Caetano em redefinir uma política clara no panorama nacional que tivesse em atenção a evolução ocidental mas, muito especialmente, nas províncias ultramarinas. Aí tornava-se imperioso, face aos êxitos alcançados no campo militar, definir uma nova política que apontasse, a médio prazo, para uma solução política que pudesse compreender a manutenção da unidade nacional com uma larga descentralização do poder, uma federação ou confederação, uma comunidade ou outros Brasil's.








Por isso rapidamente a epidemia do vírus "anticolonial" alastrou pelo território nacional sem que qualquer antídoto fosse utilizado para o neutralizar. Não foi difícil o êxito desta campanha na medida em que, como disse o poeta, "um fraco rei torna fraca a forte gente", e não surgiu capacidade para esclarecer que, a par da guerra com as armas, uma outra guerra muito mais importante para as populações se travava além-mar: a guerra do desenvolvimento e do progresso. O povo, a massa anónima, aqui neste velho rectângulo, apenas sabia que os seus filhos, irmãos, parentes ou amigos, partiam para a guerra, mas ignoravam que na missão que iam cumprir tinham ao seu lado militares guineenses, angolanos ou moçambicanos enquanto outros promoviam o bem-estar daquelas populações. Era a outra face da moeda, aquela que, de facto, representava um verdadeiro salto qualitativo no seu padrão de vida.

(...) Perante este cenário não é de estranhar que outras acções viessem a ter lugar um pouco por todo o país, centralizadas numa contestação sistemática à "guerra colonial", com o objectivo de prevenir a tal solução política, que se adivinhava, e que deixaria os territórios em causa na esfera de influência do mundo ocidental, contrariando assim os objectivos da União Soviética. Em 27 de Maio de 1973 teve lugar, em Aveiro, o congresso da Oposição Democrática, devidamente legalizado, conforme era usual em períodos pré-eleitorais. Este evento, que congregou as personalidades mais destacadas da oposição ao regime, tornou público um texto onde, entre outros, destacava a sua posição em relação à "guerra colonial":

«Considerar o discurso do Ministro do Interior proferido a 25 de Maio como extremamente revelador de que o Governo se prepara para limitar ainda mais drasticamente a actividade da Oposição Democrática durante a próxima farsa eleitoral, com vista a impedi-la de promover uma larga discussão pública dos graves problemas que afectam o povo português, nomeadamente a guerra colonial, e de exprimir as mais prementes reivindicações populares por uma vida melhor, liberta da exploração, da opressão e da guerra».

Mas, também na mesma altura, mais concretamente em fins de Julho de 1973 ocorreu em Lisboa "um encontro de liberais" onde foi debatida a cessação da "guerra colonial" e se admitiu a hipótese duma solução federativa. A 24 de Setembro de 1973, o PAIGC, em Madina do Boé, proclamava a independência da Guiné-Bissau que, de imediato, foi reconhecida por cerca de oitenta países e, a 2 de Novembro, pela Assembleia Geral da ONU, enquanto a Comissão de Descolonização da mesma organização, a 7 de Agosto, tinha condenado a política ultramarina portuguesa.

Muitos outros acontecimentos tiveram lugar em Portugal que ilustram bem todo o cenário de mudança, de fraqueza, tibieza, incapacidade de decisão, ziguezaguear de um governo que não encontrava um rumo para os problemas de que enfermava o país. Para contrariar toda esta onda de derrotismo e condenação da política ultramarina iniciada por Salazar e continuada por Marcello, reagem muitos combatentes e ex-combatentes, que tiveram a percepção clara de que a subversão chegara até à Metrópole. As armas eram diferentes mas não menos eficazes na conversão dos espíritos e mentalidades para o "anticolonial". A guerra, apregoava-se com demagogia e cobardia, não fazia mais sentido e tornava-se imperioso encontrar uma saída, naturalmente política, porque os militares estavam cansados e começavam a desesperar. Mas os verdadeiros portugueses, que se tinham batido com honra e patriotismo, sentiam, sem sombra de dúvida, que se tornava imperioso denunciar todo o cenário de derrotismo com que se procurava condenar a sua acção.










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A ideia nasce, difunde-se e é acarinhada por todos aqueles que conhecem bem o tipo de "peixe" que os vendilhões da Pátria apregoavam com a aparente cumplicidade ou passividade das entidades responsáveis. Mas é curioso notar que entre os impulsionadores do movimento patriótico não se encontravam só ex-combatentes, aqueles que tinham participado duma forma activa e consciente na defesa dos interesses nacionais, algumas vezes com o risco da própria vida. Rapidamente esta onda de revolta se alastra a todo o território português e nasce a organização que irá pôr de pé o I Congresso dos Combatentes do Ultramar. Não dispõem de apoio governamental e, inclusivamente, os militares no activo, embora também combatentes, são impedidos de participar. Após algumas diligências aos níveis mais elevados, esta ordem é revogada e o Congresso, que teve lugar no Porto nos dias 1 e 3 de Junho, foi mesmo presidido pelo General Augusto dos Santos, na efectividade de serviço.

Os congressistas vieram de todas as partes, mesmo do estrangeiro, num total da ordem dos dez mil ex-combatentes que durante três dias debateram toda a campanha orientada para denegrir e condenar a sua acção. Os objectivos do Congresso podem bem ser sintetizados em dois pontos:

- Reatar e manter os laços de camaradagem criados ao serviço da Nação no Ultramar;

- Celebrar os serviços prestados pelos que responderam à chamada da Pátria e exaltar a honra da missão cumprida, bem como o seu valor e significado na História Nacional.

Nas palavras de abertura o Presidente da Comissão executiva afirmou:

«Saúdo todos os combatentes que lutaram fiéis ao ideal que nos une, aos combatentes de Portugal aqui presentes em corpo e alma, àqueles que não puderam vir, impossibilitados pelos seus afazeres ou pela distância de além-fronteiras, aos que jazem nas cadeiras de rodas e nas camas dos hospitais e aos que tombaram para sempre nas picadas escaldantes de Angola e de Moçambique ou nas valas húmidas da Guiné. Vós, antigos combatentes como eu, sois os filhos mais ilustres desta Pátria e ninguém nos ensinará o amor que a ela devemos, pois que, de armas nas mãos, não sucumbimos perante as detonações das emboscadas e as ciladas das minas traiçoeiras. E por isso, a mais do que ninguém, nos assenta com inteira propriedade, pela justeza do termo, o epíteto [atributo] de Patriotas.

Nada exigimos em troca e tudo demos em holocausto da Bandeira: a nossa juventude, o nosso suor jovem, o nosso sangue quente.

Todos nós respondemos à chamada desde que, em 1961, eclodiu, em Angola e depois na Guiné e em Moçambique, deixando-nos adivinhar a sanha encarniçada do exterior, a subversão que tentou e ainda tenta, com um ardor avassalador, destruir os alicerces duma Nação possuidora duma invejável posição histórica no mundo...».

Foram largamente debatidas cerca de trezentas teses enviadas e que foram divididas pelas três secções do encontro. O Congresso foi encerrado no Palácio de Cristal do Porto que foi pequeno para albergar todos os que quiseram dizer "presente". Nas suas conclusões, constantes no livro Nós nunca seremos a Geração da Traição publicado em Março de 1974, pode ler-se:

«Orgulhosamente sós e orgulhosamente unidos, fizemos frente ao mundo, ao mundo cego de paixões baixas, despertado pela ideia do assalto que julgou fácil, enlouquecido pela ambição da rapina e do domínio ou estupidificado pela ignorância do que somos, do que valemos e do que queremos. Mas - não duvidemos - o mundo está já convencido do que somos, do que valemos e do que queremos.






Certos de que não podem vencer-nos lá, de armas na mão, pois vitoriosamente aniquilamos todos os ataques que de fora nos têm movido e cujas principais vítimas são as populações autóctones, decidiram os nossos inimigos, nos últimos anos, minar a retaguarda.

Há muito já se afirma que a guerra nunca se perderá em Angola, em Moçambique ou na Guiné, mas que pode perder-se na Metrópole.

Tem de ser esta uma das razões, se não a principal, do nosso Congresso. Assim como os portugueses da Metrópole, pelo ar e pelo mar, acorreram rapidamente a Angola, assim hoje, aqui estão Angola e Moçambique representados pelos seus bravos Combatentes, a dizer presente, ante a explosão e alastramento do terrorismo na Metrópole. A guerra já não está só nas fronteiras de África. Estendeu-se a toda a Metrópole e acentuadamente no Porto. Temos de defender a nossa soberania em todas as parcelas do território português.

É um momento histórico este nosso Congresso, realizado com total independência, patrioticamente, e acima de quaisquer ideologias ou facções políticas. Seria, porém, negarmo-nos como Combatentes se não nos resolvêssemos a conhecer e a procurar os inimigos da Pátria em plena retaguarda, que abertamente, livremente e - o que é muito grave - impunemente, tudo fazem para conseguir uma derrocada da nossa resistência em África.

O inimigo instalou-se em liceus, em escolas técnicas, em universidades, em professores de moral, em empresas editoras, em comissões de várias espécies, mesmo de carácter oficial e até em organismos corporativos. Censura e ataca as virtudes militares. Aconselha a deserção. Corrompe a juventude, tenta arrancar-lhes da alma o ideal da Pátria. Exalta o agressor e amesquinha Portugal que se defende. Apregoa a paz da fuga, da derrota, da entrega, a paz da infâmia e da desonra».

Neste I Congresso ficou abordado que o II Congresso dos Combatentes teria lugar em Angola em 1974. Cerca de um milhão de portugueses, ao longo de treze anos, tinha pegado em armas para suster os ataques dirigidos do exterior contra aquelas terras e as suas gentes e ali, uns tantos, tendo reconhecido a alteração da estratégia do inimigo, não só a denunciavam como acertavam formas de a neutralizar como vinha acontecendo nos três TOs. Para encerrar o Congresso, o seu Presidente, General António Augusto dos Santos, afirmou:

«Vai chegando a seu termo este primeiro Congresso de Combatentes do Ultramar. Nele tomaram parte homens das mais distantes regiões do país que aqui vieram afirmar bem alto a sua fidelidade permanente a esta nossa Pátria portuguesa.

Se é justo render homenagem aos organizadores esforçados deste Congresso, por terem conseguido realizá-lo, vencendo todas as dificuldades, obstáculos e até incompreensões, temos nós de congratularmo-nos pela forma elevada, digna e patriótica como o Congresso decorreu.

Durante ele, revivemos e reforçámos os laços de sadia e forte camaradagem de armas que nos uniu em terras do Ultramar; hoje como ontem, irmanamos pela mesma fé inquebrantável nos destinos da nossa terra.

Esta fé e união, agora reforçada, deve e tem de prolongar-se para além do Congresso, como um dos seus melhores frutos, para nos mantermos vigilantes, fortes e unidos na defesa dos sagrados interesses de Portugal».












Em Dezembro de 1972, as Brigadas Revolucionárias fazem explodir uma bomba no Quartel-Mestre General.







Destruição de armamento destinado ao Muxima, nos armazéns da Doca de Alcântara: uma acção da ARA (braço armado do PCP).







Mas esta fé e união não se reforçaram nem prolongaram para além deste Congresso. Em 1974, o II Congresso não chegou a realizar-se conforme acordado. A tentativa para travar a subversão que lavrava na Metrópole não resultara em consequência do amolecimento que as tácticas da esquerda comunista, trotskista, maoísta e anarquista tinham provocado nas instituições do Estado e na população em geral. Como afirmou o Major-General F. Kitson em Low Intensity Operations: «A população em geral deve ser preparada para aceitar as ideias subversivas de modo a agir de acordo com elas quando a ocasião for oportuna».

Se na guerra em África tinha sido possível conquistar as populações, umas das principais armas do inimigo, na Metrópole esse controlo parecia escapar aos orgãos de poder. Não dava abrigo nem apoiava ou suportava o inimigo que manobrava na clandestinidade sem dar o rosto, mas através duma propaganda bem orientada e com objectivos perfeitamente definidos tornava essa população como que apática, cansada e talvez mesmo descrente duma luta que se arrastava no tempo e para a qual não via uma saída. Este "grito" dos ex-combatentes não tivera o impacto desejado, mantendo-se uma atitude de aparente neutralidade passiva e descrente activada pelas forças subversivas.

A União Soviética sabia que a subversão, neste novo cenário, só teria êxito se conseguisse envolver as Forças Armadas, mesmo que fosse só uma pequena minoria dos seus elementos. A este respeito, escreveu Anthony Burton em A Destruição da Lealdade: «Provavelmente existem células comunistas em todos os exércitos e, desde que não sejam demasiado evidentes, são toleradas pelas outras tropas, que, de qualquer modo, não estão interessadas em política. A propaganda exterior, quer escrita, quer via rádio, é eficaz e perigosa, principalmente se as tropas estão aborrecidas e se os chefes das células puderem especular com agravos - reais ou imaginários.

Não é necessário que as Forças Armadas adiram ao Comunismo para se revoltarem. Os elementos comunistas não necessitam de ser muitos ou particularmente visíveis, mas devem ser unidos, dedicados e estar bem preparados. Em muitos casos, os agitadores trotskistas são mais perigosos do que os agitadores comunistas.

A comunização das Forças Armadas pode ter lugar após a revolução e não necessariamente antes dela. Isto é particularmente verdadeiro num exército de recrutas».

Não tive esta percepção, visto que no período em causa (1972/73) me encontrava em Angola onde a vida das pessoas e as actividades inerentes estavam praticamente normalizadas.

Só em finais de Setembro de 1973, quando regressei à Metrópole, comecei a aperceber-me duma certa agitação no seio do Exército resultante da legislação já referida, e que vinha afectar a carreira dos oficiais do quadro permanente ao nível de capitães e majores.



A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS


Agitação académica de 69














Em 1968 teve lugar a segunda contestação estudantil da década que, associada a um surto de greves e reivindicações de toda a ordem, abalou a estabilidade do país já fragilizada pela mudança do Chefe do Governo. O PCP, na clandestinidade, não deixa de estar por detrás de toda esta agitação social e, ao contrário da sua atitude anterior, passa a aconselhar os mancebos a ingressar nas Forças Armadas para cumprimento do serviço militar obrigatório. A escassez de oficiais do quadro ao nível de capitães e subalternos leva a que estes recrutas, após um treino especial, ascendam rapidamente às funções de comandantes de grupos de combate e de companhia com responsabilidades operacionais acrescidas. Muitos destes elementos, ligados ao partido comunista e em coordenação com os poucos oficiais do quadro de militantes deste partido, mantêm a sua actividade normal de acordo com as directivas recebidas não deixando, contudo, de mostrar alguma insatisfação, e mesmo discordância, em relação à luta que estão a travar criando um clima de insatisfação entre o pessoal combatente. Estas infiltrações comunistas têm lugar em todos os teatros de operações, mas muito particularmente na Guiné onde, entre outros, prestava serviço o "célebre" Capitão Duran Clement ao qual, no dia 25 de Novembro de 1975, foi cortada a palavra na RTP e que hoje é membro do Comité Central do PCP. Desta forma se ia criando uma onda de desmotivação dos homens em armas e, mais tarde, um espírito de revolta que seria explorado até às últimas consequências quando a retaguarda soçobrasse.

(...) A União Soviética, ao concentrar o seu esforço na Guiné, não conseguiu impor-nos uma derrota militar. Pergunta-se mesmo se seria esse o seu objectivo primário ou se se tratava tão-só duma manobra de diversão! Esta estratégia obrigou-nos a concentrar o nosso esforço de defesa naquela região, já que o aparecimento dos mísseis Strella contribuiu para uma maior desmotivação dos nossos combatentes. A URSS sabia que uma possível, mas duvidosa, vitória militar do PAIGC poderia não ter reflexos negativos em Moçambique e muito menos em Angola. Afinal Portugal já sofrera uma derrota militar nas possessões portuguesas da Índia em Dezembro de 1961, quando já grassava desde há nove meses a guerra em Angola e este facto não afectara minimamente o espírito e o posicionamento das Forças Armadas face a este novo conflito.

A URSS sabia que só quebrando a unidade da retaguarda e abrindo brechas na coesão das Forças Armadas, teria hipóteses de conseguir os seus objectivos: estender a sua influência aos territórios sob administração portuguesa. Admite-se que a partir de 1970, quando se previa já, ou era evidente, uma derrota militar do MPLA no Leste de Angola, a União Soviética tivesse de rever a sua estratégia. Ao actuarem sobre o moral das tropas não queriam cometer o mesmo erro quando instalaram o marxista Allende no Chile sem o envolvimento das Forças Armadas. A World Marxist Revue, de Abril de 1974, diz a este respeito: «Para se ser bem sucedido, é necessário conquistar oficiais e os homens progressistas e patrióticos... Os comunistas devem sempre lembrar as palavras de Lenine de que só o descontentamento nas Forças Armadas não é suficiente para conseguir que o movimento seja bem sucedido; também é necessário um acordo directo com os elementos democráticos e revolucionários nas Forças Armadas».












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A quebra da unidade na retaguarda iniciou-se logo após o desaparecimento de Salazar, com as indecisões de Marcello Caetano, a crise estudantil de 1968 e o movimento grevista onde o PCP, na clandestinidade, era certamente o motor. No campo da coesão das Forças Armadas, a passividade de Caetano foi certamente influente, mas a formação de células comunistas nos quartéis e cadeias de comando começou a corroer essa coesão. Estas células eram formadas a partir de elementos do quadro assumidamente comunistas, ou outros ciosos de protagonismo, e o pessoal miliciano cuja endoutrinação era feita antes da sua incorporação e que constituíam os germes fomentadores da indisciplina e desmotivação das forças para o combate. Aliás esta estratégia do Kremlin para destruir a lealdade nas Forças Armadas, não se limitava só a Portugal. Os senhores de Moscovo sabiam que, com os americanos envolvidos desastrosamente na guerra do Vietname, teriam as mãos livres para castigar os exércitos dos países da Europa Ocidental. Anthony Burton no seu livro A Destruição da Lealdade afirma: «Além do mais, e para os revolucionários, esta é a imagem mais sedutora de todas; as Forças Armadas podem tornar-se - elas próprias - o veículo da revolução. Não é necessário envolver um grande número de militares. As Forças Armadas modernas são ainda mais tecnologicamente sensíveis do que as sociedades que servem. Um pequeno número de pessoal-chave pode sabotar eficazmente toda a máquina militar durante algumas horas cruciais». E depois de várias considerações conclui:

«Todas estas considerações levam à conclusão de que a lealdade nas Forças Armadas do Ocidente deve ser um dos objectivos principais da subversão».

No Reino Unido, desde longa data, foi necessário criar legislação específica para prevenir e punir toda e qualquer tentativa de subversão nas Forças Armadas. Durante muitos anos o principal diploma sobre a matéria era consubstanciado na lei «Decreto do incitamento à Revolta de 1797», que concretamente explicitava:

«Qualquer pessoa que tente, maldosa e deliberadamente, desencaminhar qualquer pessoa ou pessoas ao serviço de Sua Majestade, ou que incite ou estimule tal pessoa ou pessoas a cometer qualquer acto de rebelião, ou que faça ou tente fazer qualquer reunião amotinadora, ou que cometa quaisquer actos traiçoeiros ou rebeldes, deve, ao ser legalmente condenado por tal delito, ser culpado de traição».

Na década de 1910 tiveram lugar algumas acusações relacionadas com actos de subversão tendentes a provocar a deslealdade nas Forças Armadas. O socialista John Maclean foi acusado, sucessivamente, em 1915, 1916 e 1918, tendo sido condenado a cinco anos de trabalhos forçados. Em 1925, doze comunistas foram considerados culpados, segundo o mesmo decreto, por incitarem à deslealdade. Para neutralizar estas tentativas de revolta nas Forças Armadas a legislação de 1797 foi actualizada com o Decreto de Incitamento à Deslealdade, que teve a aprovação real em 16 de Novembro de 1934.

(...) A destruição da lealdade foi, pois, a estratégia estabelecida pela URSS para minar o potencial militar do mundo ocidental. Esta estratégia terá sido definida mesmo antes do desaire sofrido pelo MPLA na frente Leste de Angola com o apoio total da URSS. Segundo Vasco Lourenço, numa entrevista que concedeu aquando dos 30 anos do 25 de Abril a Ana de Sousa Dias, que incluiu os acontecimentos que teriam ocorrido durante a única comissão que cumpriu na Guiné de 1969 a 1971, tinha chegado à conclusão que aquela guerra era injusta e só poderia ter uma solução política. Segundo as suas próprias palavras esta evidência tinha-se-lhe imposto quando o seu guia preto guineense foi abatido pelos nacionalistas que lutavam contra a presença portuguesa naquele território. Na sua opinião não era admissível que os naturais desta colónia na luta pela libertação se matassem uns aos outros. Adiantou que este facto, e principalmente as muitas conversas que tinha tido com os alferes e furriéis que lutavam a seu lado pela mesma causa, o tinha levado a tirar esta conclusão. Estes milicianos já faziam parte do esquema montado pelos comunistas para levar à "destruição da lealdade" dos nossos combatentes e convencê-los da injustiça desta guerra. A mesma acção se desenrolava em Angola e Moçambique.






Este vírus teve origem, na sua grande maioria, nos estudantes universitários protagonistas da agitação académica nos anos de 1968/69 que, estimulados para o cumprimento do serviço militar, o foram disseminando pelas forças militares que se encontravam no Ultramar. Este vírus, que já tinha infectado o então Capitão Vasco Lourenço, iria provocar no pessoal que já aspirava a uma solução política para o problema que enfrentavam havia mais de dez anos, uma espécie de revolta ou abertura a tomadas de atitude que não se enquadravam dentro do espírito que presidira, durante mais de uma década, à luta que travámos com êxito nos três teatros de operação. Vasco Lourenço, na entrevista já referida, afirmou que as forças empenhadas na defesa da Guiné iriam, a curto prazo, ser esmagadas pelo PAIGC. É estranha tal afirmação na medida em que, tendo estado empenhado nesta luta durante dois anos, não tivera qualquer baixa entre os homens da companhia que comandava. Deste facto pode deduzir-se que o potencial de combate do inimigo não era tão eficaz nas suas acções quanto se fazia crer. Naturalmente que o objectivo era só um: minar o moral das nossas forças, não só na Guiné mas também nas outras frentes de combate. Recordam-se as palavras do ministro Almeida Santos quando vaticinava uma mais que certa derrota militar a curto prazo na Guiné donde resultava a necessidade de se encontrar uma solução política para as guerras do Ultramar. Pelo contrário, o General Costa Gomes, nas suas funções de CEMGFA, ao passar pela Guiné em Janeiro de 1974, afirmou que a Guiné "era defensável e tinha de ser defendida".

Mas Vasco Lourenço, segundo rezam opiniões recolhidas, não teria sido iluminado pelo episódio já referido da morte do guia, mas sim quando numa emboscada sofrida pelas suas forças ele saltou da viatura e se abrigou debaixo dela enquanto os seus homens faziam frente ao fogo do inimigo. Foi nesta situação de puro medo físico que ele foi iluminado e só então compreendeu a injustiça da guerra.

O vírus revolucionário, segundo os planos de Moscovo, nasceu na Guiné e rapidamente alastrou pelos restantes teatros de operações, não só às unidades como igualmente a outros orgãos das Forças Armadas empenhados em debelar a subversão e proteger as populações. Assim, o espírito de missão, a noção de dever, a mística que envolvera os nossos militares parecia enfraquecer facilitando a acção do inimigo.

Também na Metrópole as iniciativas de grupos mais ou menos organizados e liderados pelos comunistas levaram a efeito acções tendentes a incrementar o espírito anti-guerra colonial como por exemplo os comunicados de:

- Direcção da Organização Regional do Sul do PCP;

- Comité Directivo da Resistência Popular Anticolonial;

- Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas;

- Contestação da Capela do Rato;

- Congresso da Oposição Democrática em Aveiro a 27 de Maio de 1973;

- Encontro de Liberais em Lisboa em 6 de Junho de 1973.

E outros eventos como greves, demonstrações de rua, etc., todos com o mesmo objectivo de quebrar a unidade da retaguarda.

(...) O plano da URSS estava em marcha segundo os objectivos fixados e na Guiné nascera o vírus revolucionário que rapidamente alastrou a Angola, bem como a Moçambique e à Metrópole, onde o projecto de integração dos quadros milicianos no quadro permanente viria a ser habilmente aproveitado para lançar o conhecido MFA.



(...) O 25 DE ABRIL







Vasco Lourenço



28 de Maio versus 25 de Abril. Num e noutro caso, tudo leva a crer que tinham pelo menos um ponto em comum: os chamados agentes ou activistas. Simplesmente, enquanto uns agiram por fervor patriótico, no respeito pelos regulamentos e elevado sentido de responsabilidade, os outros agiram por convicção ideológica, ambição e, na sua grande maioria, infectados pelo vírus revolucionário de obediência estrangeira e que rapidamente alastrou a todos os territórios nacionais. Também enquanto que no 28 de Maio a acção decorre no respeito pela hierarquia, no segundo surgem os "sprinters" sempre a pretender ultrapassar o seu parceiro de corrida, como no final duma etapa com a chegada em pelotão duma prova de ciclismo. Temos de reconhecer a capacidade multiplicativa do vírus revolucionário que, afectando largas franjas do edifício militar, acabou também por contaminar grande parte da sociedade civil em que os agentes já não se centravam nos chamados "milicianos", mas nos activistas do aparelho comunista ainda na clandestinidade.

Mas Spínola não descansava e, com o apoio dos seus "correios", especialmente o Coronel Carlos Morais, manteve um contacto estreito com o movimento. O Prof. Dr. Veiga Simão, então Ministro da Educação, tenta forçar um diálogo conciliatório entre Spínola e Marcello. E em 16 de Março de 1974 os revolucionários dão um primeiro passo, mas "em falso". O Regimento das Caldas sai do quartel e dirige-se para Lisboa. Também Mafra sai, mas ao tomar conhecimento que as outras forças previstas no plano de acção, como Santarém e Vendas Novas não tinham saído, regressa ao quartel, consta que por directivas emanadas pelo então Major Otelo S. de Carvalho. Entretanto os oficiais envolvidos nesta acção foram presos na casa de reclusão da Trafaria. Embora continuem a subsistir algumas dúvidas quanto aos objectivos desta acção absolutamente extemporânea, concluiu-se que a hipótese mais plausível teria sido uma armadilha forjada pelos oficiais esquerdistas tendente a provocar o afastamento temporário de alguns oficiais, ditos spinolistas, para que estes não afectassem o futuro planeamento do golpe marxista que o PCP, obedecendo à URSS, queria lançar. Spínola era, de facto, um sonhador e ainda não se apercebera da ingerência do PCP em toda a conjuntura que iria levar ao 25 de Abril.

Entretanto apareceu o programa político do movimento que foi presente a Spínola cerca de oito anos antes do golpe. Este mandou-lhe introduzir algumas alterações, porquanto logo detectou a sua inspiração comunista.

As opiniões dividem-se quanto ao autor ou autores do programa: o Major Melo Antunes e uma comissão de militares do movimento, ou tão-só o Coronel Vasco Gonçalves. Em qualquer caso parece não restarem dúvidas de que tinha forte inspiração marxista-leninista.

A partir de 16 de Março viveu-se um período de aparente acalmia. Entretanto Mário Soares e Cunhal tiveram várias reuniões tanto em Paris como em Praga e estavam perfeitamente a par dos planos de conjura. O primeiro não queria perder o comboio. Aliás, está no seu feitio nunca perder uma oportunidade que o catapulte para o círculo dos grandes deste mundo. Mário Soares tem de participar mesmo que para isso tenha de fazer o jogo de Cunhal. Em 1 de Julho de 1992, o Brigadeiro Manuel Monge, numa entrevista concedida ao Coronel Manuel Bernardo, responde à pergunta:

«P - Achas que o Álvaro Cunhal fez em Paris algum acordo com o Mário Soares?

R - Não tenho conhecimento, mas acho possível. Pois acredito no facto de Cunhal pensar que tinha o menino nas mãos; então porque iria distribuir parte do seu poder com o Dr. Mário Soares? O que me constou [...] mas que ainda ninguém disse, mas tenho esperança que os arquivos secretos venham a revelar as identidades dos tipos do MFA que foram a Praga e a Londres falar com o Cunhal e os seus delegados. Espero que apareçam algum dia. Pelo menos nós, quando estivemos presos na Trafaria, no pós 16 de Março, tivemos notícias nesse sentido».

Até hoje não apareceram, embora outras fontes tenham vindo a fazer referência a encontros entre Mário Soares, Cunhal e um ou dois elementos do MFA onde as linhas gerais da política ultramarina tenham sido definidas. Estes encontros terão tido lugar em Paris, Praga ou em qualquer outro local da Europa, onde certamente não faltaria Melo Antunes, o dito cérebro da descolonização. Importa recordar que Mário Soares disse ser este o único dos "Capitães de Abril" que conhecera antes da revolução ter tido lugar, tendo-se encontrado com ele por várias vezes. O poder, apesar de muitos homens de incontestável valor que o integravam, estava podre e viria a morrer sem deixar saudades.






O 16 de Março não travara o processo. A DGS teve conhecimento da sua evolução e informou as entidades superiores; chegou mesmo a receber instruções para prender os oficiais implicados. O director da Polícia Política, Major Silva Pais, negou-se a fazê-lo e teria mesmo afirmado que o problema era do foro militar. Assim, não competia à DGS, mas às forças Armadas, prender os oficiais envolvidos no movimento. Este foi o princípio seguido aquando do 16 de Março, metendo os oficiais envolvidos na casa de reclusão da Trafaria. Também alguns oficiais acusados de atitudes subversivas acabaram por ser transferidos de unidade, como foi o caso de Melo Antunes e Vasco Lourenço, colocados nos Açores.

Nada disto impediu que o projecto prosseguisse e, numa luta permanente pelas funções que mais agradavam a cada um, os "capitães" lá iam preenchendo os lugares segundo a estratégia montada pelo PCP e bem conduzida no seio dos revoltosos pelo sempre diligente e fiel discípulo Vasco Gonçalves. Quase não se dá por ele, mas vai manobrando as forças de acordo com os interesses do partido; é um pau mandado, que irá ser protagonista de cenas tragicómicas e de quem o PCP se serviu como "marionette".

A falha do 16 de Março veio, sem dúvida, provocar algumas alterações nos planos iniciais, falando-se até numa antecipação da data prevista para o golpe. No dia 24 de Abril tudo parecia estar devidamente planeado e pronto a arrancar. Nessa noite, Otelo contactou com o Coronel Carlos Morais a quem informou de que a revolução se desencadearia pelas três da madrugada do dia 25 e que os sinais de código relacionados com a preparação da saída dos quartéis seriam às 22:55 do dia 24 com a canção"E depois do adeus", de Paulo de Carvalho, transmitida pela Estação dos Emissores Associados de Lisboa e o sinal confirmativo das operações com a canção "Grândola Vila Morena", de José Afonso, a ir para o ar na Rádio Renascença pelas 00:20 já do dia 25. Otelo pediu na altura ao Coronel Carlos Morais para transmitir estas informações ao General Spínola que se encontrava em casa e onde o "correio" chegou cerca das 20:30.

Perguntar-se-á porquê estes sinais de código para encetar uma operação militar? As FA dispunham de meios humanos e materiais para coordenar e comandar as forças envolvidas em operações. Assim aconteceu durante aqueles 13 anos de guerra no Ultramar e o tipo de guerra que enfrentávamos obrigava a um contacto permanente entre os vários grupos de combate envolvidos. Esta ligação era obrigatoriamente conseguida através de meios electrónicos. Para a revolução, para coordenar meia dúzia de colunas que marchavam para Lisboa, houve necessidade de utilizar os meios de comunicação social. Porquê?

O verdadeiro motivo é que havia outras forças, não militares, envolvidas nas acções previstas nos planos elaborados por Moscovo para a tomada do poder em Portugal. Estas "forças" não dispunham de meios nem de técnica para coordenarem os movimentos e acções entre si e que se devia estender a todo o país. Recordem-se as afirmações feitas por Carlos Brito na noite de 24 de Abril. Na página 70 da revista Visão de 11/07/2002: «No balanço de uma vida, Brito continua a eleger o 25 de Abril como o melhor que lhe aconteceu, a ele e ao país. O golpe não o apanhou desprevenido. Era dos poucos que sabia o que ia acontecer nessa madrugada. Acompanha a célula militar do PCP e fora informado por alguns oficiais milicianos. A reunião marcada para a data com os militantes da UEC, nos arredores de Lisboa, converteu-se em jogo de sueca. Carlos Brito tentava não deixar transparecer a expectativa. Quando começaram os primeiros sinais, na rádio, pôde sossegar os camaradas: "É um golpe de gente boa". Correu a avisar os outros amigos e funcionários, seguiram-se as orientações em relação à PIDE e à libertação dos presos políticos, telefonou à mãe. Entretanto saboreou, pela primeira vez, os pequenos gestos autorizados pela liberdade: "Tomei uma bica na Estação de Oeiras"».











Álvaro Cunhal e Carlos Brito



Os activistas da estrutura do PCP, que desde a década de 30 tinham vivido na clandestinidade, surgem da sombra no enfraquecido todo nacional com missões bem definidas para remover os obstáculos que ainda se opunham à sua acção na tomada do poder. À hora prevista, as colunas saíram dos seus aquartelamentos, ou por coordenação entre elas, ou pelos sinais de código emitidos pelas estações de rádio. O "estratego", Major Otelo Saraiva de Carvalho, encontrava-se no quartel da Pontinha donde orientava, tomava conhecimento ou conduzia efectivamente o movimento das colunas. Não se sabe ao certo quem foi o estratego, apesar de Vasco Lourenço, desterrado em S. Miguel, reclamar para si esse papel visto, como ainda recentemente afirmou, ter sido ele próprio quem planeou toda a operação, mas acrescentando que, se as coisas corressem mal em Lisboa, ele e o Melo Antunes, seu parceiro de "cativeiro", estavam prontos a controlar as unidades militares da ilha! Mas as forças entraram em Lisboa pelos itinerários previstos e sem qualquer incidente. Apenas, já na capital, quando a força comandada por Salgueiro Maia atravessava o Terreiro do Paço, ao entrar na Rua da Alfândega, deparou com uma força militar comandada pelo Brigadeiro Junqueira dos Reis que parece ter dado ordem aos blindados para disparar sobre a coluna dos revoltosos. Este incidente foi rapidamente solucionado sem qualquer confronto e à coluna de Salgueiro Maia foi alterado o objectivo, conforme afirmou Vasco Lourenço, devendo seguir para o Largo do Carmo porquanto Marcelo Caetano e alguns dos seus ministros haviam-se refugiado no quartel da GNR. Entretanto, o "povo que mais ordena" foi surgindo de todos os lados assim como os cravos vermelhos, símbolos do comunismo. (O cravo vermelho foi inicialmente símbolo do trotskismo, mas quando este movimento e o seu lider, Trotski, foram aniquilados por Lenine, este passou a adoptar o cravo vermelho como símbolo do comunismo).

Era procedimento, sempre que se verificassem situações graves a nível nacional, o Governo seguir para o Comando Operacional da Força Aérea, em Monsanto, onde tinha todas as condições de segurança e meios de comunicação que lhe permitiriam continuar a governar. Por razões que não se conhecem, o Presidente do Conselho dirigiu-se para o Quartel do Carmo. Poderá admitir-se que ele só pretendia segurança e sabia que não tinha o mínimo de condições para continuar a dirigir os destinos da Nação. Recorde-se que, cerca de oito dias antes, tinha pedido a sua demissão ao Presidente da República e que este recusara. Entretanto, os centros nevrálgicos de Lisboa, como estações de rádio, RTP, centrais telefónicas, comando militar, etc., tinham sido ocupados por civis e milicianos às ordens do PC e bem orquestrado ou enquadrado o povo por toda a parte, e muito especialmente, nos grandes centros, saltam para a rua vitoriando o triunfo dos revoltosos.

Spínola, durante o dia 25, a pedido de Marcello (que pretendia que o poder não caísse na rua) vai ao Carmo, devidamente fardado e com o seu inseparável monóculo, e aceita a rendição de Marcello Caetano.

Antes desta rendição ter tido lugar, Salgueiro Maia permitiu que algumas rajadas de tiros fossem feitas contra a fachada exterior do quartel, vendo-se perfeitamente os buracos provocados pelo impacto das balas. Naturalmente que todas as portas estavam fechadas, mas um capitão da GNR, sabendo duma porta lateral não fechada, veio até ao Largo do Carmo e conversou com Salgueiro Maia. Ignora-se o teor da conversa, mas não andará longe dum acalmar dos ânimos, informando que o Presidente do Conselho já se rendera e só aguardava a chegada do General Spínola para se retirar. Recentemente, por alturas de mais um 25 de Abril, disse-se que Salgueiro Maia terá entrado no Quartel do Carmo para aceitar a renúncia de Marcello. Isto não passa de ficção que tem como finalidade "dourar" a figura de Salgueiro Maia como grande herói, assim justificando a proliferação de símbolos (estátuas, pontes, ruas, praças) para imortalizar a memória de um militar honesto, simples e leal. Estou certo que, se fosse vivo, seria o primeiro a não permitir tais honrarias. Mas tudo serve para imortalizar o 25 de Abril.







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(...) Também a 25, anuncia-se a formação de uma Junta de Salvação Nacional formada pelos Generais Spínola e Costa Gomes e Brigadeiro Jaime S. Marques, do Exército, Comandante Rosa Coutinho e Pinheiro de Azevedo, da Marinha, e Coronel Galvão de Melo e Brigadeiro Diogo Neto, da Força Aérea.

Desconhece-se se a Junta foi iniciativa do General Costa Gomes ou uma sugestão do Coronel Vasco Gonçalves, o certo é que a sua formação era algo bizarra:

- os Generais Costa Gomes e Spínola parecem normais, visto terem recusado fazer parte da "brigada do reumático";

- o Brigadeiro Jaime Silvério Marques seguiu para a Direcção dos Envios e Transportes, da qual era director, tendo ido, como normalmente, no dia 25 para o serviço; nesse mesmo dia, preso ou não, apareceu como membro da JNS;

- O CMG Rosa Coutinho era tido como um militar exemplar em todos os sentidos, mas alguém lhe tida dado a volta e mostrou-se claramente um homem às ordens do PC;

- o CMG Pinheiro de Azevedo, tido como bom militar, ignora-se por que foi escolhido e por quem;

- o Brigadeiro Diogo Neto era tão-só um operacional, encontrava-se em Moçambique e foi indicado pelo seu amigo Spínola com o qual tinha servido em Angola e na Guiné;

- o Coronel Galvão de Melo, que deve ter sido indicado pelos "capitães" da Força Aérea, estava na reserva; profissionalmente, era um bom piloto e, de resto, era corajoso, mas controverso. Numa entrevista que deu em Agosto de 1974, afirmou: "Havia oito anos que deixara as Forças Armadas voluntariamente, por não achar digno ascender ao posto de general dentro dos condicionalismos existentes, mas fui convidado pelo MFA para desempenhar parte activa no movimento revolucionário do 25 de Abril, ao qual devo, e só a ele, as estrelas de general, que desta vez aceitei usar".

Nessa mesma noite, a Junta apresentou-se à Nação através da RTP com todos os seus membros, com a excepção de Diogo Neto que ainda não chegara de Moçambique. É curioso notar que quando entraram no edifício onde funcionava a RTP, alguém se lembrou de perguntar quem era o Presidente da Junta. Olharam-se interrogativamente e pediram ao administrador da estação presente que lhes arranjasse uma sala para uma reunião limitada aos seus membros presentes. A reunião demorou 15 minutos e o General Spínola foi o escolhido, não se conhecendo os fundamentos da escolha porquanto o General Costa Gomes era mais antigo e também um militar com uma excelente folha de serviços. Foi a primeira alteração que a "revolução dos cravos" introduziu na cadeia hierárquica o que se iria repetir vezes sem conta. Depois Spínola falou à Nação com uma postura de seriedade, mas sem conseguir explicar ou deixar claro como seria o amanhã. E é nesse amanhã que nos começámos a interrogar quem afinal mandava no país. O Governo em bloco e o PR tinham sido demitidos; as cabeças começaram a rolar em todos os sectores do Estado e nas empresas civis, mas havia uma euforia convenientemente manipulada pelos donos da revolução: os comunistas, os antifascistas e muitos oportunistas. Os exilados regressam em massa. Vem o 1.º de Maio, o dia do trabalhador, amplamente festejado por todo o País, mas com o seu ponto mais alto em Lisboa, onde Cunhal e Soares, lado a lado, discursaram às massas no Estádio 1.º de Maio. Os portugueses, ingenuamente, festejaram. Havia alegria e sorrisos por toda a parte, que a curto prazo se iriam converter em dor, medo e lágrimas. Sobre este período da nossa história apareceram nos livros que se têm publicado muitas versões, mas importa salientar as duas mais significativas: a daqueles portugueses que consideram o 25 de Abril a maior catástrofe que podia ter acontecido e a versão dos antifascistas e oportunistas que se revêm no golpe e consideram que tudo é imperioso sofrer para se salvar a "democracia" e a liberdade. (...) Na realidade, o que se apregoa a sete ventos é que o 25 de Abril se fez para terminar com a criminosa e hedionda guerra colonial e daqui ser a grande preocupação dos novos senhores do poder proceder à descolonização dos territórios sob o "jugo" português. A descolonização que um dos principais responsáveis da revolução, Melo Antunes, acabaria por classificar de tragédia! (in«25 DE ABRIL DE 1974. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA», Prefácio, 2008, pp. 54-57; 70-79; 84-89; 102-109).




Melo Antunes







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Continua


25 de Abril de 1974: a Revolução da Perfídia (ii)

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Escrito pelo General Silva Cardoso






Vasco Garin e Franco Nogueira nas Nações Unidas (1960)



Vasco Garin










«... é lançado nas Nações Unidas novo ataque contra a posição portuguesa. Está em curso a XII Assembleia Geral da Organização, e como nos termos regulamentares qualquer assunto, ainda que decidido no ano anterior, pode ser retomado no ano seguinte, a Assembleia reabre o exame da resposta do governo de Lisboa sobre territórios não-autónomos. Na origem do debate estão as mesmas forças políticas: o bloco afro-asiático, o bloco soviético, a União Indiana. É duplo o seu objectivo: anular se possível o voto favorável a Portugal, obtido na Assembleia precedente; em qualquer caso, ir corroendo a posição portuguesa, não só retirando-lhe progressivamente apoios como pela erosão da opinião portuguesa, que se procura cansar. Mas agora os adversários da posição assumida por Portugal modificam a sua táctica. Para evitar que possam ser acusados de discriminação contra Portugal, generalizam o debate, e dão a este um carácter abstracto e de questão de princípio; e para frustrar a alegação, feita por Portugal, de que se a Assembleia era competente para examinar as declarações produzidas voluntariamente, não o era para compelir os governos a fazer declarações contra a sua lei constitucional, os adversários da posição portuguesa procuram levar a Assembleia a afirmar a sua própria competência activa. Neste particular encontram receptividade: todos os orgãos favorecem sempre o empolamento do seu poder e atribuições: e muitos delegados à ONU, em particular os do terceiro mundo e do bloco latino-americano, vêem no alargamento das funções da Assembleia possibilidades de desempenhar um papel que lhes atribua uma fama e uma importância que não têm no seu país. Nesta linha de ataque, os adversários de Portugal apresentam um projecto de resolução que reivindica para a Assembleia o estabelecimento dos critérios a que os países membros têm de obedecer na definição do que sejam os territórios não-autónomos; como alguns desses países têm expresso opiniões divergentes, a Assembleia deve eleger uma comissão de seis membros para examinar o problema e recomendar um critério uniforme e obrigatório; e convidam-se os Estados membros a submeter por escrito os seus pontos de vista, para consideração pela Assembleia. Em torno deste projecto de resolução se desencadeia o debate.

Por parte dos adversários, o tom do debate é aparentemente moderado. Não desejam qualquer discriminação contra Portugal. Não põem em dúvida a sinceridade da posição portuguesa; reconhecem à política de Lisboa o seu carácter não racista. Simplesmente, está-se perante uma questão de princípio; e para evitar que seja tratada no plano político convém examiná-la somente no plano jurídico e processual. Para o conseguir, não se descobre melhor maneira do que realizar um estudo imparcial, objectivo, desapaixonado, dos preceitos legais aplicáveis, da doutrina dos tratadistas. E por isso se propõe que o secretariado faça uma compilação da doutrina e que a comissão a eleger seja formada por três membros ocidentais, com responsabilidades de potências administrativas, e três membros que as não tenham. Pode exigir-se maior isenção de atitude? Mas nem o governo de Lisboa, nem a delegação portuguesa em Nova Iorque se deixam iludir. Sob o aspecto da moderação, destinada a conquistar apoio e a retirar aos delegados latino-americanos os motivos que os haviam levado a alinhar com Portugal, os objectivos prosseguidos são rigorosamente idênticos aos que se buscavam na sessão anterior: impugnar a resposta portuguesa, internacionalizar o problema português africano, decretar que Portugal possui colónias com estatuto análogo às de outros países coloniais, e que tais territórios hão-de ser declarados independentes [Convém mencionar nesta altura que a Espanha, que nenhuma resposta dera de início, declarou depois que, embora não administrasse territórios não-autónomos, estava pronta a fornecer informações sobre as suas províncias ultramarinas, para esclarecimento do secretário-geral. Esta atitude espanhola, foi também rejeitada pela Assembleia, e a Espanha passou a ser atacada. Esta se encarregou assim de dar uma resposta aos que em Portugal afirmavam que, se fornecesse informações à ONU reservando ao mesmo tempo o carácter unitário da Nação portuguesa, Portugal não seria atacado].  Do lado português, todavia, a defesa também foi feita no plano dos princípios. Sublinharam os delegados portugueses que a nova proposta contrariava as cláusulas do artigo 73.º da Carta, e a interpretação que a Assembleia lhes dera desde o início sem desvios; uma nova comissão, além de se sobrepor à Assembleia, é desnecessária, e não pode conduzir a resultados úteis; e além disso, atendendo ao contexto em que é proposta e seria criada, constitui discriminação contra um Estado membro. Em qualquer hipótese, o problema era de importância maior, consoante na sessão anterior e nesta fora afirmado pelos que atacavam a atitude do governo de Lisboa; e por isso, nos termos regulamentares, a nova proposta teria de ser também aprovada por uma maioria qualificada de dois terços. Neste último ponto, abre-se novo debate: os autores da proposta mantêm que o estabelecimento de uma comissão é assunto de rotina, a ser decidido por maioria simples; Portugal replica que uma comissão destinada a dar nova interpretação à Carta e a firmar novos princípios compulsivos não é matéria de rotina, mas do mais alto significado e consequência, impondo voto qualificado.














Já entra o mês de Novembro de 1957, e na Quarta Comissão e no Plenário da Assembleia ainda se arrastam os debates. Portugal defende sempre a separação entre os aspectos processuais e os de substância. É uma táctica parlamentar que encerra um objectivo: permite aos países que querem apoiar o ponto de vista português uma saída que não atinge os seus princípios anticolonialistas: ao considerarem e votarem que o problema é importante e requer dois terços dos votos, e sabendo que o governo de Lisboa dispõe de votos que excedem o terço bloqueador, estão a apoiar Portugal; ao votarem depois em favor da proposta, são fiéis aos seus princípios, e não podem ser acusados de incoerentes. Este recurso táctico revela-se decisivo para obter o auxílio dos latino-americanos, que ao mesmo tempo, são anticolonialistas e não desejam hostilizar Portugal. Submetida ao Plenário a proposta portuguesa para que seja aplicado o princípio dos dois-terços, é aprovada por 38 votos contra 36. Submetida depois a proposta dos adversários de Portugal é aprovada por 41 votos contra 30, com 10 abstenções. Está derrotado o projecto de resolução afro-asiático e soviético.

(...) Quando Humberto Delgado, ao iniciar a sua campanha, se refere a Salazar e diz que se eleito o demitirá - obviamente, demito-o - abre-se uma nova época no Estado Novo. Para uns, a frase é de um louco: como tem a ousadia de afrontar a autoridade incontestada de Salazar, o seu prestígio sem mácula, o seu vulto intocável? Para outros, é uma frase audaz que afinal reduz o chefe do governo às proporções de homem comum: acaso Salazar é sacrossanto ou eterno? De súbito, pelo país além, tudo parece posto em causa: está quebrada a redoma em que o Estado se diria envolto, vê-se apeado o andor em que se diriam transportados os governantes, parece que são frágeis as instituições que se diriam de bronze. É outra a atmosfera da nação, do povo. Não é a figura de Delgado que impressiona: nos homens esclarecidos, mesmo entre os oposicionistas, não há ilusões quanto ao seu primarismo, falta de bom senso, incoerência, demagogia, incapacidade de encarar os problemas no plano superior do Estado. Encontrando-o no seu pouso da Livraria Bertrand, depois da campanha, pergunta Santos Costa ao seu amigo Aquilino Ribeiro: "Mas você acha que aquele homem tem as condições para exercer algum dia, com proveito para a nação, as funções de Presidente da República?" Responde o mestre escritor: "É evidente que não, meu caro amigo! É a política! Nós precisamos acima de tudo alguém que nos abra a porta. O resto se verá depois!" Mas a candidatura de Delgado, conduzida como o foi, rompe os moldes estabelecidos, derruba padrões assentes; e a sociedade portuguesa é batida por uma rajada que a faz estremecer até aos seus fundamentos. Em si, o acontecimento transcende o candidato, que se transforma em instrumento. E os reflexos projectam-se sobre Salazar. São os seus sessenta e nove anos, e a conclusão de que está necessariamente gasto e ultrapassado; são as suas três décadas de governo, e a idade de que abafa tudo e todos; é o mundo salazarista, de repente visto como camarilha que, em nome de interesses pessoais, rodeia e domina o chefe do governo; e é a erosão inerente ao exercício do poder, reflectida nos homens e nas instituições. No fascínio de Salazar, que cega amigos e desespera adversários, há uma quebra; e o seu carisma tem uma fractura. Salazar não se apresenta como vulto a que tudo é reconduzido, nem parece afinal constituir o centro único de decisão e de poder. Cruamente, pergunta-se que força efectiva tem Salazar, e em que se apoia? E os observadores mais atentos não encontram resposta. Não tem partido político que o apoie: porque a União Nacional não pode ser considerada como partido e, ainda que o fosse, não teria eficácia política bastante para o sustentar. Não dispõe de uma guarda pretoriana, militar ou militarizada, que pela sua fidelidade e efectivos possa constituir base do poder: nem as Forças Armadas se dispõem a desempenhar esse papel, nem as corporações para-militares de ordem pública ou a Legião Portuguesa, apagada e esquecida, contam para o efeito. Não comanda interesses económicos ou financeiros que sejam determinantes pela sua influência: justamente entre aqueles encontram-se alguns dos seus críticos mais aguerridos. E do seio da Igreja Católica, de que fora militante destacado e cujo apoio contribuíra para a sua ascensão ao poder, erguem-se hoje algumas vozes de discordância, e muitas que preconizam o descomprometimento. E no plano internacional, porque a política portuguesa se choca com a de terceiros, encontra hostilidade de uns governos, e a frieza de outros. E no entanto Salazar está e continua. Como? Porquê? Por quanto tempo?



Oliveira Salazar



Três gerações se sucederam já: a que fizera o 28 de Maio, trinta e dois anos atrás; a dos homens que, tendo na altura entre trinta e quarenta anos e perante instituições e sistemas completamente desacreditados, aderiram com fé ao Estado Novo; e a dos que, muito jovens na época, cresceram no regime e por este foram absorvidos. Mas agora à superfície quer intervir na vida colectiva uma nova geração para quem o ponto de partida das instituições, e do regime e seus princípios, está esquecido: para estes, recordações dos tempos antigos e a comparação com os actuais são desprovidas de significado; o contacto com ideias que supõem novas e modernas leva à tentação da aventura, da mudança pela mudança; e julgando que não podem percorrer novos caminhos e satisfazer as suas ambições políticas no quadro do regime, há que derrubar este, ainda que não haja projecto assente para o futuro e sejam quais forem as consequências para interesses nacionais, já encarados à luz daquelas ideias, e a curto prazo. «Depois se verá», dizia mestre Aquilino. Por detrás de tudo, há a massa do povo português. Ao cabo de mais de trinta anos do mesmo regime, os portugueses viram subir o seu nível de vida, o país caminhou; e, dentro dos seus recursos e sem embargo de faltas e desvios, a sociedade portuguesa ampliou os seus horizontes, incorporou as novas técnicas, avançou no plano material. Sociologicamente, houve uma circulação de elites. Não são rígidas as classes do sistema, nem são fechadas, e comportam o ingresso de novos valores, e o seu acesso até aos mais altos escalões. Salazar viera do nada; e do nada viera a esmagadora maioria dos seus ministros. No sector privado, muitos homens também surgidos do nada atingem, por trabalho e iniciativa, os mais elevados postos na economia, na indústria, na banca, nas profissões liberais, na vida social. Alarga-se a classe média, e a esta ascende toda uma massa que vem dos assalariados e do proletariado. Generalizam-se, sobretudo nas cidades, alguns sinais exteriores do progresso, do conforto, do desafogo económico. Não aumenta velozmente o poder de compra, os salários são modestos; mantém-se o valor da moeda, todavia, e são firmes os preços; e o crescimento da sociedade, se é lento, é estável também. Mas o sistema, ao mesmo tempo que é sociologicamente aberto, não cria mecanismos de defesa ideológica: conduz uma sociedade que lhe aproveita as vantagens sem lhe absorver a mística nem lhe suportar os inconvenientes. Quase de repente, fica perante um quadro de novos princípios e de novos valores, importados sob pressão exterior. É antes de mais o internacionalismo. De novo, como em épocas passadas, a humanidade é uma só: os homens são todos irmãos, as fronteiras entre países são um artifício sem fundamento, as soberanias das nações são um entrave à felicidade colectiva. Estas convicções conduzem directamente ao mito dos organismos internacionais, a que se atribui pureza de objectivos, e isenção de procedimentos, e cujas decisões, por espelharem a consciência da humanidade, devem ser respeitadas como imperativos categóricos. Daqui o apego ao pacifismo; a paz é valor supremo, superior ao direito, à justiça, à verdade: e que não se aceita como lícita a defesa em face de uma violência ou de um ataque que, se invocarem os novos princípios em curso, são criadores da sua própria legitimidade. São por isso de condenar as estruturas militares, os gastos com a defesa. E no plano religioso surge o progressismo no seio da Igreja Católica: esta é acusada de autoritarismo, de imobilismo, de apego a um passado que não se conforma com o progresso e a ciência, de comprometimento com César: e procura-se transferir para uma sociedade, que se transforma em messiânica, os atributos de Cristo. Da Cúria de Roma, o progressismo é disseminado em larga parte do mundo católico; e crescem os seus adeptos na Cúria de Lisboa, na Hierarquia, em sectores da Acção Católica, e entre membros do clero secular. Está-se à beira de uma nova civilização, de um mundo novo e sem raízes; e a Igreja tem de lhe corresponder. Por outro lado, há toda uma concepção sociológica que deve comandar a política: é a sociedade permissiva, é a sociedade de abundância, é a sociedade de consumo. São opressivas as peias morais, e a consciência de cada homem é o juiz último dos seus actos; e apenas é livre o homem pletórico, e sem passado. Há a certeza da felicidade pelo progresso contínuo; a obsessão do crescimento constante; a ânsia do futuro; e os conceitos de diálogo, de contestação, de abolição de hierarquias entram na vida e nos hábitos correntes. Surgem as crises de camadas sociais: a alta burguesia está receosa da sua própria função; a classe média descrê dos seus princípios; a classe operária reivindica uma economia independente dos recursos; e os homens não devem estar ao serviço de nada, salvo de si próprios. É cega a fé na ciência e na técnica para resolverem problemas sociais ou morais. Negam-se as hierarquias por destruírem a igualdade. Qualquer constrangimento é entrave à liberdade. E para debater todo o acervo de novas ideias multiplicam-se em Lisboa, e pelo país, os cursos, as conferências, os colóquios, os seminários, os centros de estudo e cultura, e são discutidas as ciências sociais, as ciências económicas, as ciências políticas, as novas disciplinas, as novas técnicas, os novos temas do presente e do futuro que apaixonam os homens. Influenciável pela última verdade, que toma como definitiva; volúvel, e crédulo, de entusiasmo tão súbito como fugaz; facilmente deslumbrado pelo que é alheio - o povo português sente um peso, uma fadiga, um desejo de mudar: a habitualidade de Salazar é um travão. Contrapõem-se a estes sentimentos o receio de aventuras, a defesa dos bens alcançados, a suspeita perante o desconhecido: então, a habitualidade de Salazar constitui uma garantia. Até quando? E se há que mudar, mais tarde ou mais cedo, não é preferível mudar imediatamente? Ou será melhor fazê-lo o mais tarde possível?

(...) Em que são compatíveis o mundo das novas ideias e o mundo expresso na criação estética com o mundo de Salazar? Para este, o mundo baseia-se nas sociedades nacionais, no patriotismo, no cristianismo de matriz, na hierarquia de valores, na autoridade que administre a liberdade, nas classes que colaboram e ascendam por mérito e trabalho, no engrandecimento de Portugal, na defesa do seus valores e do seu património. Como se conciliam os dois mundos? Na aparência e para os coevos, não se conciliam: os homens de visão histórica desentendem-se com o presente. No momento em que se inicia um novo mandato presidencial, e em que a sociedade portuguesa atravessou um sobressalto, e em que o chefe do governo se avizinha dos setenta anos, e em que cumprira trinta anos de poder sem interrupção - o mundo e o universo de Salazar erguem-se ao arrepio das grandes correntes, das grandes ideias-forças que mobilizam os homens, e parece em escombros. Está à vista o fim da sua vida política. Depois de alguma experiência do novo chefe do Estado, não se imagina que Salazar possa continuar no governo. Está desgastado, puído por mil trabalhos; e para mais, desiludido, amargurado. Afigura-se claro o seu futuro a curto prazo: decerto quererá, antes de cumprir setenta anos, ministrar algum curso na Faculdade de Direito de Coimbra, e assim regressar às origens, fechar o círculo de uma vida intensa; e depois descansar enfim entre as árvores e as latadas do Vimieiro, praticando com as irmãs da sua pequena lavoura e com o pedreiro Ilídio de muros e portais, e contemplando à distância um mundo em que interveio, que lhe parece enlouquecido, e que já não é o seu. É uma questão de tempo, e pouco: quanto?».

Franco Nogueira («Salazar. O Ataque - 1945-1958», IV).


«A proibição em 1962 da realização do Dia do Estudante (...) marcou definitivamente a ruptura do regime com as futuras elites. Basta cotejar os nomes dos dirigentes associativos desse ano com as personalidades políticas actuais para concluir que a memória do Dia do Estudante de 1962 nunca mais se apagou, mesmo nos [presumíveis] sectores da direita política (...). Jorge Sampaio, Medeiros Ferreira, Eurico de Figueiredo, António Sousa Franco, Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa, uns à esquerda, outros ao centro demo-cristão, todos eles desempenharam um papel nessa contestação ao regime de Salazar».

 António Melo («Crise Académica: a Greve da Fome», in «Os Anos de Salazar», 19).









O agitador universitário Jorge Sampaio em 1962








«Na Universidade de Lisboa, sustenta Irene Pimentel [universitária apostada na desfiguração histórica do Estado Novo], as prisões de 20 de Janeiro de 1965 representam "um verdadeiro terramoto". "A estrutura estudantil do PCP", explica a historiadora, "desabou, gorando-se anos de trabalho persistente, de alargamento, de reforço da influência política, precisamente por efeito das denúncias de um dos que, tendo trabalhado praticamente desde o início nessa construção, a renegou completamente".

Entre os presos, cujo número terá atingido cerca de meia centena, estão Luís Salgado Matos, Fernando e Filipe Rosas, Aguinaldo Cabral, Antonieta Coelho, Sara Amândio, Gina Azevedo, Paula Massano e Fernando Baeta Neves - todos eles destacados dirigentes dos estudantes.

(...) Dois dias depois das prisões, uma concentração com cerca de 300 estudantes impede o reitor, Paulo Cunha, de discursar no Dia da Universidade. "Aos gritos de 'assassinos', os manifestantes invadem o salão nobre e denunciam as cumplicidades entre as autoridades académicas e o regime", contam Gabriela Lourenço, Jorge Costa e Paulo Pena...

(...) Só nos jornais de 18 de Janeiro surge a primeira declaração do regime sobre as prisões: "A organização ilegal denominada Partido Comunista Português tem procurado, nos últimos tempos, penetrar mais intensamente nos meios estudantis, com dois objectivos essenciais: preparar, se possível através de uma universidade comunizada, os futuros dirigentes do País, e afectar a coesão das Forças Armadas pela infiltração nos seus quadros de elementos comunistas, alunos das escolas militares ou sargentos e oficiais milicianos". "Assim", assume-se, finalmente, "a PIDE [Polícia de Intervenção e Defesa do Estado] teve de proceder recentemente à detenção de certo número de estudantes, inteiramente identificados como militantes da referida organização subversiva, os quais estavam a distribuir tarefas concretas de organização, cujo extenso programa se encontra na posse daquela entidade"».

João Mesquita («Uma crise estudantil quase desconhecida. Na origem da "crise estudantil" de 1965 está uma onda repressiva contra os líderes dos estudantes [ou melhor: na origem da onda repressiva da "crise estudantil" de 1965 estão os líderes comunizados dos estudantes]», in «Os Anos de Salazar», PDA, 2008, vol. 21).


«É certo que nem todos os membros das direcções de Estudantes e nem todos os directores de secções eram militantes do Partido Comunista e, reciprocamente, nem todos os estudantes comunistas ocupavam cargos de relevo nas Associações, mas a sobreposição ocorria nos casos principais e deve dizer-se que o Partido Comunista formava então a espinha dorsal do movimento estudantil.

(...) A ultrapassagem do corporativismo académico, virando os alunos universitários para os problemas sociais do País, acentuou-se nos anos seguintes e deu lugar a uma enorme explosão política de 1967/68 em diante. A partir de então, o movimento estudantil confundiu-se com a preparação maciça de militantes contra a guerra colonial. Concluídos os cursos, os recém-chegados iam prestar serviço militar como oficiais do Movimento das Forças Armadas, que nascera com objectivos estritamente corporativos. Foram muitos os factores que levaram as lutas sociais a progredirem velozmente após o 25 de Abril de 1974, mas entre eles conta-se sem dúvida o facto de desde os primeiros dias os delegados enviados pela Junta de Salvação Nacional para resolverem os mais variados problemas serem jovens oficiais influenciados por um movimento estudantil radical e atento às questões da sociedade. Depois, consolidada a democracia capitalista e já sem quaisquer motivos para contestar o quer que fosse, esses antigos estudantes rebeldes integraram-se alegremente na nova ordem dominante que haviam ajudado a edificar, e na qual constituem hoje os quadros dirigentes. Mas ainda hoje aqui a politização e a compreensão dos problemas sociais lhes serviu de muito, embora com um desfecho oposto àquele que candidamente haviam imaginado há quarenta anos atrás».

João Bernardo («Universidade de Lisboa, 1965. O testemunho de um dos protagonistas da crise estudantil de 1965, membro das comissões de apoio aos estudantes presos», in «Os anos de Salazar», PDA, 2008, vol. 21).




Américo Tomás e José Hermano Saraiva (Ministro da Educação entre 1968 e 1969)



Coimbra, 17 de Abril de 1969: Américo Tomás interpelado pelo agitador universitário Alberto Martins, após ter sido interdita qualquer interpelação. Resposta de Américo Tomás: «Bem... bem, mas agora fala o sr. Ministro das obras Públicas».



Ver aqui









O cómico alemão: Herman José





Mário Soares









«Os alunos que desejam, na realidade, estudar e cooperar com espírito ordeiro na melhoria da Universidade, e são, felizmente, a grande maioria, têm sido acautelados da agitação que se instalou em diversos estabelecimentos de ensino?

E os pais e encarregados de educação, muitíssimos deles suportando encargos pesados e lutando com dificuldades de toda a ordem para assegurarem o futuro dos filhos, têm sido ouvidos num processo em que, como partes legítimas e altamente interessadas, também devem participar?

Há poucos dias, o presidente Pompidou, que à eminente posição política junta o prestígio da inteligência e do título de "normalien", depois de aludir às enormes despesas com as Universidades, afirmava que ele e os ministros tinham de prestar contas à Nação do sacrifício que a esta custam os seus estudantes, considerando intoleráveis as perturbações que impedem de trabalhar quem não deseja outra coisa, as injúrias a professores e os estragos nos edifícios e material escolar.

Apetece perguntar onde está a Universidade autónoma ou o Estado intervencionista (quando a ordem pública é afectada, o termo do dilema pouco importa) que ponha cobro a uma situação alarmante para o País e afrontosa para a juventude que se bate nas frentes africanas. Não se diga que exagero, pois continua por aí às escâncaras, através de livros, folhetos e cartazes, de canções ou baladas, e até de colóquios contra a nossa luta no Ultramar, realizados em estabelecimentos universitários, a propaganda que defende a ideia de se pôr termo, pelo abandono ou pela entrega, à guerra travada pela Nação em obediência a irrefragáveis imperativos de honra e de sobrevivência, e movida, pelos vistos, não apenas de fora, pelos verdadeiros colonialistas, mas também de dentro, pelos seus servidores.

O Sr. ALBERTO DE MEIRELES: - Muito bem!

O ORADOR: - Os mortos na Guiné, em Angola e em Moçambique hão-de clamar sempre menos contra as balas que os prostraram do que contra as campanhas e os conluios inqualificáveis que na retaguarda visam tornar inútil o seu sacrifício».

Henrique Veiga de Macedo («Intervenções na sessão de 17 de Abril de 1970», in «Problemas da Universidade»).


«Algum tempo antes do 25 de Abril, constava a nível público que determinada legislação criara um diferendo entre os oficiais do quadro permanente e os do quadro complementar, pelo facto de os primeiros se considerarem prejudicados nas promoções.

Um problema, como vemos, aparentemente, de natureza puramente militar que gerou, entre os que se consideravam prejudicados, descontentamento generalizado, como é perfeitamente compreensível. Este conflito deu origem como era natural a reuniões clandestinas de oficiais, certamente, a princípio, para discutirem o problema que os afectava e procurarem uma saída para a sua resolução.

Não surpreende que a partir daquele descontentamento, outros descontentamentos se lhe tenham juntado. Motivos não faltavam e no mundo da política há sempre quem esteja atento às oportunidades que possam servir os seus interesses, pelo que não custa a acreditar que o conhecimento deste descontentamento, aliás bastante público, tenha despertado a atenção dos inimigos, internos e externos, do regime vigente, para o seu possível aproveitamento.

Nas forças armadas não deviam faltar elementos comprometidos e simpatizantes com forças adversas ao Estado Novo, muito especialmente da política ultramarina seguida pelo Governo, que logo se devem ter aproveitado da oportunidade para se aproximarem do descontentamento desses oficiais, com espírito de colaboração mas com secretas intenções, estranhas, se não hostis, aos objectivos patrióticos [???] do Movimento.








Estandarte da Legião Portuguesa












Bandeira da Legião Portuguesa






Bandeira da Mocidade Portuguesa



Bandeira da Mocidade Portuguesa Feminina



Guião de grupo de castelos da Mocidade






A solidariedade destes novos descontentamentos vinha dar ao descontentamento inicial uma nova força transformando as reuniões clandestinas para resolver um problema militar, em empolgantes preparativos de uma revolta política.

Pensavam, com certeza esses oficiais, mas erradamente, que este alargamento numérico os iria beneficiar, mas o que aconteceu, porém, foi os seus iniciadores terem perdido, a partir daí, o comando do que quer que fosse e passarem a ser, sem o saberem, comandados por políticos escondidos atrás dos Melos Antunes e dos Costa Gomes, entretanto infiltrados.

Como sempre tem acontecido os militares iam uma vez mais ser traídos pelos políticos, fardados ou à paisana.

Esta facção estava atenta e bem apoiada na CIA e no KGB, dois poderosos instrumentos ao serviço do Projecto Global.

O Embaixador Fernando Neves, no seu livro"As Colónias Portuguesas e o seu futuro", refere-se a um documento a que tivera acesso em que se preconizava, em relação a acções a levar a cabo em Portugal, "... elevar a formas superiores, e na base dos princípios do internacionalismo proletário, a luta no seio do exército colonialista português para a vitória das guerras de libertação dos povos africanos. O Exército colonialista deve ser minado pelo interior através de um trabalho de agitação e propaganda maciço que tem por objecto a organização da subversão nos quartéis", o que, como é sabido, veio a acontecer.

Não, naturalmente, por excitação democrática da soldadesca, mas, como se vê, devidamente comandado.

Por outro lado, era igualmente do conhecimento público que interesses hostis aos nacionais, especialmente de matriz americana e soviética, se empenhavam havia muito e abertamente, em acções de vária natureza, com o objectivo de ocupar, com os seus interesses, o vazio que uma vez expulsos dos territórios, ali deixaríamos. Desta maneira acrescentariam alguns ricos e extensos territórios da África Negra ao seu impiedoso neocolonianismo, ao insaciável apetite dos grandes grupos económico-financeiros em jogo. Os portugueses que ali tinham nascido e ali viviam, de todas as cores e credos, apenas ficariam privados, segundo o seu frio ponto de vista, daquilo que havia 500 anos lhes tínhamos dado — uma nacionalidade e com ela uma convivência fraterna que nenhum outro povo europeu soube dar aos povos de cor.




Por outro lado, com excepção da África do Sul, Angola e Moçambique apresentavam índices de crescimento económico e social sem paralelo com quaisquer outros territórios africanos, o que representava um verdadeiro escândalo mundial, devidamente propalado, com laivos de humana indignação, pela corte desses malvados da inteligência que durante décadas esconderam a realidade do regime soviético ao público ingénuo que os seguia, atrás do rótulo de intelectuais, o que lhes dava uma falsa autoridade ante os ignorantes.

Estas realidades transformaram as nossas províncias africanas num escândalo que não podiam tolerar, por pôr claramente em cheque os autores da libertação de muitos povos africanos e os governos locais por eles ali implantados contra-natura, para servirem os seus interesses, como está hoje à vista de todos os que não negam evidências, resultado de uma descolonização motivada por interesses exclusivamente económicos, totalmente estranhos a qualquer tipo de objectivo humanitário.

Promovida em nome da dignidade humana, esta cínica ironia, resiste, na mentalidade pública, mesmo perante a evidência de guerras fratricidas, da corrupção, da incompetência, da fome e das doenças em que conscientemente se lançaram impiedosamente milhões de indivíduos, por mero interesse económico e de poder, na selva política internacional.

A estes interesses, nada importam as destruições materiais e os milhões de mortos e de estropiados que, nestes últimos trinta anos, têm ensanguentado países como a Nigéria, Etiópia, Moçambique, Angola, Chade, Congo, Libéria, Sudão, Somália, Afeganistão, etc, por obra e graça dessa aliança diabólica entre os EUA e a Rússia. Chamam-lhe, para uso mental de tolos, opinião pública mundial.

Opinião pública mundial?

Melhor seria chamar-lhe canalha manipulada pelos grandes interesses mundiais, ou então, como Julien Green já lhe chamou,estupidez em acção.

Bastaria recordar que os governos africanos saídos desta descolonização comandada pelos altos interesses materiais e apoiada pela inconsciência pública e não pelos motivos humanitários proclamados, gastam mais de doze biliões de dólares por ano na importação de armamentos e manutenção das suas Forças Armadas — soma igual à que recebem das diversas fontes de assistência internacional.

Não se entra em conta com as mortes e as destruições resultantes da utilização destes armamentos, mas quem lhos fornece, entra, porque sem estas vítimas não os venderiam.

Para tentarem alcançar o seu objectivo, aquelas forças hostis a Portugal criaram e financiaram grupos de terroristas, sediados em bases situadas em territórios vizinhos aos das províncias, donde era fácil, dadas as extensas fronteiras, nelas se infiltrarem.

E passaram a chamar-lhes, cinicamente, movimentos de libertação...


Forças Portuguesas no Norte de Angola



Samora Machel e Eduardo Mondlane no 'paraíso socialista'














1975: os novos donos de Moçambique (as denominadas Forças de Libertação de Moçambique). Na então cidade de Maputo batiam à porta das pessoas às 5 da manhã para as mandar varrer as ruas.



Fidel Castro e Samora Machel



Chou En-Lai e Samora Machel (1976)



Yasser Arafat e Samora Machel



O Senhor Dr. Freire Antunes, muito recentemente, em artigo publicado no jornal Diário de Notícias, diz-nos que, segundo René Pélissier, investigador da História Angolana, "a UPA não tinha, em 1961, uma estratégia nacional, mas uma estratégia meramente tribal para os povos de Bacong e Dembos".

Não nos diz o Senhor Dr. Antunes, nem o Senhor Pelissier, quem financiou este grupo terrorista, mas sabem, com certeza, que foi especialmente a Fundação Ford sob o alto patrocínio dessa sinistra figura que foi a Senhora Eleanora Roosevelt, a mulher do Presidente que entregou metade da Europa ao goulag soviético.

A partir de todos estes auxílios e após muitos anos de luta armada sem conseguirem os seus objectivos — os grupos terroristas estavam na iminência de depor as armas — compreenderam que só com uma acção em Lisboa, conseguiriam alcançá-los.

A dificuldade, porém, com que tinham deparado, noutras tentativas fracassadas, era a de não terem encontrado, nem terem conseguido promover, um descontentamento, que é sempre o ponto de partida para qualquer acção de subversão política. Tinham tentado criá-lo, várias vezes, ao longo de anos, mas sem êxito. O aproveitamento do descontentamento entre os oficiais veio dar-lhes a oportunidade de, a partir dele, conseguirem em Lisboa o que não tinham conseguido com o terrorismo no Ultramar.

A oportunidade era, de facto, excepcional, não só pelos motivos iniciais apontados, mas principalmente pela consciência que todos tinham da necessidade imperiosa do País sair da grave crise em que se encontrava, resultante de não se ter dado ao problema do Ultramar a solução que se impunha de natureza política e não militar [???].

As Forças Armadas, por outro lado, estavam na sua quase totalidade, nos territórios ultramarinos. Na Metrópole estavam sobretudo generais na Reserva, oficiais instrutores e recrutas.

Vejamos o que nos diz um órgão da imprensa estrangeira, sobre esta franja não operacional das Forças Armadas. "Resta apenas o problema da NATO: Spínola promove o contacto com o próprio Secretário da Nato, Joseph Luns, [através] de um dos seus amigos da Finança — o Director dos Estaleiros Navais Portugueses, Lisnave, Thorsten Anderson — que participa em Megève, França (de 19 a 21 de Abril) numa misteriosa reunião de importantes homens da política, da diplomacia e do mundo dos negócios internacionais reunidos num igualmente misterioso clube: o Clube de Bilderberg. 

De 19 a 21 de Abril, Megève é zona vigiada pela polícia francesa como se o visitante fosse um Chefe de Estado. De facto, no Hotel Mont Arbois, propriedade de Edmond Rothschild, reúne-se a flor e a nata da política e das Finanças ocidentais. A reunião é discreta, à porta fechada: os jornalistas não falarão dela; mas é ali que será decidido o destino do mundo ocidental. Desde 1954, e do dia da primeira reunião no Hotel Bilderberg, na cidade holandesa de Oosterbeek, sob a presidência do Príncipe Bernardo da Holanda, que os homens mais influentes do Ocidente se reúnem anualmente para estudar a situação'política e financeira e estudar ou aprovar programas para o futuro'. 

Bastam os nomes dos participantes daquele ano na reunião do Clube para que possa compreender-se a sua importância. São os seguintes: Nelson Rockefeller, Governador do Estado de Nova York; Frederick Dant, Secretário Norte-Americano do Comércio; General Andrew Goodpaster, Comandante das Forças Aliadas na Europa; Denis Healey, Ministro da Fazenda inglês; Joseph Luns, Secretário Geral da NATO; Richard Foren, Presidente da General Electric na Europa; Helmut Schmidt, Ministro da Fazenda alemão, actualmente chanceler, após a demissão de Brandt; Franz Joseph Strauss, definido como homem de negócios alemão; Joseph Abs, Presidente do Deutsche Bank; Guido Carli, Governador do Banco de Itália; Giovanni Agnelli, Presidente da Fiat; Eugénio Cefis, Presidente da Montedison e além destes Thorsten Anderson, homem de negócios português que sonda Joseph Luns sobre as possíveis reacções da NATO perante a possível mudança de regime em Lisboa.









Joseph Luns (secretário-geral da NATO)



Membros da NATO por contraponto a membros do Pacto de Varsóvia na chamada guerra fria






Organização do Pacto do Atlântico





A resposta de Luns, certamente positiva, vem a ser confirmada pelo comportamento, já citado no início, dos navios da NATO defronte da capital portuguesa durante as primeiras horas do golpe de Estado. A sua presença actuou como um silencioso dissuasor contra quem, entre os generais ultras, tivesse tentado opor resistência a Spínola. Os generais sabem da presença dos navios e sabem muito bem interpretar a sua saída de Lisboa na madrugada de 25 de Abril. É evidente que a NATO julga saber quem são os iniciadores do movimento, conhece o seu programa e aprova-o. A reunião do Clube de Bilderberg cumpriu os seus objectivos e neste momento Spínola tem o caminho livre".

O Poder político, por outro lado, estava nas mãos de um homem fraco, hesitante e pressionado pelos que viam na Europa do mercado comum a solução para todos os problemas pessoais e nacionais, dominados por uma estranha mística de Terra Prometida, donde esperavam que um fácil maná viesse alimentar os seus apetites, insuficiências e vaidades. Para todos eles os territórios ultramarinos eram o único obstáculo à realização dos seus sonhos europeus. Muitas vezes me disseram que entre os marcelistas se afirmava que era preciso abandonar o Ultramar a qualquer preço. Não me surpreende que tenham vindo a desempenhar um papel de relevo na descolonização exemplar, como, impudicamente, alguém chamou ao vergonhoso e sangrento abandono do Ultramar.

Não me surpreende, na verdade, porque quando o chefe é fraco, tudo à sua volta enfraquece. Por isso mesmo não foi necessário derrubá-lo. Apenas caiu.

"O estudo das diversas informações disponíveis respeitantes aos acontecimentos do 25 de Abril permite uma curiosa contagem dos efectivos humanos reais mobilizados no Movimento das Forças Armadas: entre 160 a 200 oficiais, incluídos os de Complemento, e um número não muito superior a 2.000 homens e tropas. A debilidade destas Forças, o seu escasso apetrechamento em material blindado e móvel e o facto de que na mobilização inicial apenas estiveram implicados os oficiais das classes incorporadas na conspiração, fazem suspeitar de que se contava com a falta de resistência do Estado. 

Apesar da sua minuciosa preparação, a execução do plano do MFA deixou muito a desejar na prática. Cedo se tornou evidente a inexperiência ou deficiente preparação dos oficiais para tal tarefa. Não se providenciou o armamento mais conveniente e as posições perante os quartéis não comprometidos ou fiéis em princípio ao Governo, foram tomadas de modo bastante incorrecto. Nem sequer se procedeu a uma ocupação sistemática dos pontos-chave. 

Na realidade, a situação de madrugada era objectivamente muito frágil para os sublevados. Diversas unidades, como o Regimento Motorizado de Lanceiros 7 e a Guarda Nacional Republicana, permaneciam fiéis ao Governo, que além do mais contava com todos os efectivos da Direcção-Geral de Segurança. Por outro lado a maioria dos efectivos da Aviação e da Marinha, permaneciam em absoluto silêncio. Uma acção enérgica do Governo teria arrumado completamente o MFA. Porque não se terá produzido? É este, outro dos elementos confusos deste golpe de estado. 


Muito pouco tempo depois de conhecidos os efectivos dos sublevados e a sua distribuição na cidade, o Director Geral de Segurança pôs-se em comunicação via rádio com o Presidente do Governo refugiado no quartel da GNR, explicou a situação ao Prof. Caetano e informou-o da força real do MFA e das unidades afectas ao Governo ou que até então se não tinham manifestado e solicitou-lhe autorização para actuar, assegurando-lhe que a situação estaria dominada por completo até às 17 horas desse mesmo dia. No entanto o Prof. Caetano não lhe concedeu a autorização solicitada, desejoso, disse, de evitar derramamento de sangue. O Director Geral de Segurança insistiu com o Prof. Caetano por esse mesmo meio em mais duas ou três ocasiões, sem obter a resposta que ansiava. As conversações, emitidas por um posto de rádio de emergência da Direcção Geral de Segurança , puderam ser nitidamente captadas por um razoável grupo de pessoas, incluindo membros do Corpo Diplomático, através dos seus aparelhos de rádio normais. Foram também gravadas por um rádio amador que as passou de imediato para os oficiais do MFA. Essa gravação foi rapidamente levada ao Rádio Clube Português e outras emissoras que o MFA tinha sob o seu controle e ao longo de todo o dia a sua transmissão foi feita de modo ininterrupto. 


Ao tomar conhecimento da passividade do Presidente do Governo, as unidades que se mantinham fiéis, ficaram abatidas, e o moral dos ministros do Governo não implicados na conspiração e de outros sectores políticos e administrativos ficou abalado, ao mesmo tempo que as unidades de Aviação e da Marinha que se mantinham na expectativa dos acontecimentos decidiram incorporar-se no MFA".


A má organização, a insuficiência de meios militares das forças que saíram para a rua, que mais pareciam bandos de arruaceiros do que forças disciplinadas, estão bem patentes em declarações do chamado estratego do 25 de Abril, o capitão Otelo, a um jornal espanhol, em que afirmou ter dado instruções aos seus subordinados para se renderem se encontrassem a mais pequena resistência.


 Marcello Caetano discursa perante Generais (1973)



25 de Abril de 1974



A soldadesca do 25 de Abril












































Salgueiro Maia no local onde se dirigiu aos sitiados no Quartel do Carmo


































Otelo e Salgueiro Maia



A cambada do 25 de Abril: Costa Gomes acompanhado de Vasco Gonçalves, Pinheiro de Azevedo e Rosa Coutinho, entre outros.




Vasco Gonçalves, Otelo e o 'almirante vermelho' (Rosa Coutinho)








Como se vê, a vitória do movimento não se deve, como é evidente, ao famoso estratego Otelo, pois é ele próprio a confirmar que não tinha a mais pequena hipótese de vencer se tivesse encontrado a mais pequena resistência.

Penso que, muito mais importante do que a contribuição deste ingénuo útil, foi, sem dúvida, a dada pelo Presidente do Conselho. Contrariando o que havia muitos anos estava estabelecido a nível do Estado, em caso de emergência, seria para Monsanto e não para o Quartel do Carmo que o Presidente do Conselho se devia ter dirigido. Quebrou, com a decisão tomada, a unidade do Governo, abrindo caminho a indecisões e interpretações que paralisaram qualquer hipótese de oposição à intentona que tinha saído para a rua com a face visível dos capitães e a invisível de interesses hostis aos nacionais.

Tive conhecimento, em Madrid, através de um oficial que na altura prestava serviço no Quartel do Carmo, que o Prof. Marcelo Caetano, logo que entrou, se dirigiu ao Gabinete do Comandante, que ocupou, dando ordens terminantes para que, em circunstância alguma, o interrompessem, tendo fechado a porta à chave. Esteve horas ali dentro, sem contactar com os ministros que o tinham acompanhado, até ao momento em que o General Spínola chegou ao quartel para o proteger de arruaceiros a soldo, que na rua o ameaçavam.

Soube depois, por outra via, que o Comandante Geral da Legião Portuguesa, General Castro, fora uma das pessoas por ele contactadas, tendo-lhe dado ordens para desarmar e dispersar o batalhão que estava no momento a ser municiado. É de presumir que tenha contactado outras entidades militares, dando-lhes instruções para não intervirem. Nesta altura ainda devia estar convencido de que o movimento se fazia a seu favor, o que lhe iria permitir libertar-se do Ultramar, ideia antiga que o obcecava e não conseguira até ali levar a cabo.

Mais tarde, em Espanha, viria a saber pelo Eng. Santos e Castro, que o Presidente do Conselho, quando o convidou para desempenhar as funções de Governador Geral de Angola, lhe dissera que ia com a missão específica de preparar, o mais brevemente possível, a independência do território, informando-o de que igual incumbência fora cometida ao Dr. Baltasar Rebelo de Sousa em relação a Moçambique.

Não tenho dúvidas de que na sua intenção estava a preparação de independências inspiradas no modelo da África do Sul.

Simplesmente o projecto do Professor não estava de acordo com o plano americano-soviético, aprovado na Conferência de Bilderberg, pelo que não passou de um ingénuo útil, mais um, a servir interesses hostis aos de Portugal.

Pelo que ficou dito poderá o leitor melhor avaliar da importância que certamente teve aquela reunião do Clube de Bilderberg na eclosão e desenvolvimento do 25 de Abril e sobretudo tomar consciência das vezes sem conta, quando insuficientemente informados, em que tomamos a aparência pela realidade. Por isso não deve ter sido difícil ao embaixador do CFR, Carlucci e seus ajudantes, aconselhar os nossos aprendizes de feiticeiro a seguir-lhes as sugestões de que dependiam os seus futuros políticos que talvez se possam reduzir a uma só: não façam nada que contrarie o projecto do Governo Mundial, porque nele está a Esperança e fora dele a Tragédia.

O Partido Comunista, por outro lado, o único com quadros bem preparados, apesar da massa militante ser de terceira categoria, o que o impediu de ir mais longe na destruição do País, conseguiu, no entanto, em curto espaço de tempo, ocupar posições-chave que lhe permitiram lançar a confusão generalizada, utilizando técnicas bem conhecidas dos especialistas na manipulação de massas.


Chegada de Álvaro Cunhal a Portugal













Ao centro: Álvaro Cunhal na Assembleia da República



Tudo estava bem estudado e planeado para preencher com a desordem, a intimidação e a arbitrariedade, o vazio do poder.

Surpreenderam-se muitos comentaristas da imprensa internacional que num País com uma História tão antiga e tão rica como a portuguesa, fosse possível a desordem manter-se durante tanto tempo e durante ela os portugueses assistirem impassíveis à sua auto-destruição, se não mesmo a aplaudi-la».

Fernando Pacheco de Amorim («25 de Abril. Episódio do Projecto Global»).






A DESCOLONIZAÇÃO

ENTREGA DO ULTRAMAR AOS MARXISTAS DA URSS



Nestes trinta e três anos que já passaram sobre o 25 de Abril, nas múltiplas análises que os vencedores fizeram sobre os seus fundamentos, ressaltam de imediato duas razões: a necessidade de se pôr fim à guerra do Ultramar e acabar com o obscurantismo em que diziam termos mergulhado havia mais de quarenta anos, consequências inevitáveis do que alguns mais "esclarecidos" teimam em chamar fascismo. Muito recentemente vi no canal História da televisão uma reportagem sobre os regimes autoritários na Europa durante o Séc. XX. Iniciava-se com o comunismo, dizendo das linhas programáticas da ideologia e informando que, tendo surgido em 1917 na Rússia, só neste país tinha provocado 70 milhões de mortos, acrescentando que na China chegara aos 100 milhões. Seguia-se o nazismo da Alemanha Hitleriana onde foram focados os cerca de 7 milhões mandados sacrificar, na sua maioria judeus. Vinha depois o fascismo na Itália de Mussolini que, depois de se aliar a Hitler na II Grande Guerra, enveredou também pela mortandade, não havendo números exactos, mas calculando-se que mais de 1 milhão de seres humanos tenham perecido até ao final da guerra; em seguida tratou-se do franquismo na Espanha em que, nos finais da guerra civil, cerca de 70.000 terão sucumbido às mãos de Franco. Fiquei aguardando pelo salazarismo e nem uma só referência.

Antes de me debruçar sobre a tragédia da entrega do Ultramar, quero reafirmar que nós não perdemos a guerra nem a iríamos perder. Curioso que, se a tivéssemos perdido, ou se se vislumbrasse a curto ou médio prazo o soçobrar do nosso fraco potencial militar em termos de meios humanos ou materiais, não teria havido o 25 de Abril. Mas como a situação estava absolutamente controlada era preciso realizar um golpe que foi o 25 de Abril.


(...) O PROTAGONISMO DE MÁRIO SOARES


«Aconteceu então o que ficou conhecido por descolonização, de que Mário Soares, por convicção ou por ordens do PCP, foi um dos maiores responsáveis e autores. Como já acontecera antes, e que lhe valera uns tantos anos atrás das grades, colara-se mais uma vez ao PC de Álvaro Cunhal com o qual teria conjuntamente planeado a estratégia a cumprir logo a seguir ao pseudo-golpe militar do 25 de Abril. E não perdeu tempo pois havia uma fita do tempo a cumprir. Enquanto no primeiro 1.º de Maio vociferava ao lado de Cunhal que era imperioso acabar rapidamente com a vergonhosa guerra colonial, logo no dia seguinte marchava rumo às capitais europeias para explicar aos vários governos a situação em Portugal e no Ultramar na sequência do 25 de Abril. Afirmou que ia cumprir instruções do General Spínola, com o qual tinha estado reunido cerca de meia-hora!!! Não sei que directiva podia ter recebido pois, nem Spínola, nem muitos elementos do golpe, tinham a ideia rigorosa sobre os fundamentos, a génese do movimento e sua provável evolução. Acredita-se que soubessem do que gostariam que viesse a passar-se para darmos o tal salto para a frente com que todos sonhávamos, mas todos pareciam um pouco atordoados. Mário Soares, sentindo-se excessivamente dependente da estrutura do PCP, tinha fundado o seu próprio partido em Maio de 1973, para ver se conseguia um pouco mais de autonomia e, sobretudo, projecção ou protagonismo não só no espectro nacional como europeu. Na Alemanha reúne-se com meia dúzia de exilados políticos e leva a efeito o que se chamou de Congresso da AES (Associação de Esquerda Socialista), da qual era co-Fundador. Dali saiu, com pompa e circunstância, o partido socialista português, do qual Mário Soares era secretário-geral. E nesta função segue para a Europa, fazendo uma primeira escala em Bruxelas. Aqui encontra-se por mero acaso ou coincidência com Agostinho Neto que, por acaso, tinha decidido vir à Europa à procura de apoios. O homem do MPLA, derrotado politica e militarmente, parecia ressuscitar da longa agonia em que estava mergulhado. Ignora-se o teor da conversa entre os dois "lutadores antifascistas". Mário Soares sempre afirmou que não revelaria o teor da conversação havida entre ambos. No entanto, Agostinho Neto, sem qualquer projecção tanto a nível europeu como angolano, no dia seguinte, através de comunicados, incita os naturais de Angola a lutarem com toda a determinação contra o domínio e a opressão levados a cabo na sua terra, que sem qualquer benefício para o seu povo continuava a ser espoliado pelo colonizador. O que leva Agostinho Neto, que não dava sinais de vida desde 1971 e estava no Canadá aquando do 25 de Abril, a pedir ajuda aos angolanos para prosseguir a sua luta? Vem para Bruxelas, não se conhece a mando de quem e, após a conversa com Mário Soares, incentiva o povo angolano a pegar em armas e a expulsar o colonizador. Cheira a recado do nosso "mensageiro". Primeiro Acto de uma trágica odisseia que se vai arrastar por mais alguns meses, que perdura até hoje e jamais se apagará da memória dos portugueses e dos povos que a sofreram na pele.



Chegada de Mário Soares a Portugal



Mário Soares e Álvaro Cunhal



Ver aqui














Na sequência do golpe, Spínola ascende a Presidente da República e forma o primeiro governo provisório. Contra a vontade do PCP, Palma Carlos é o primeiro-ministro, mas sem liberdade para escolher os elementos do seu elenco ministerial. A comissão coordenadora do MFA, com Vasco Gonçalves à cabeça, segue as instruções do PCP que, de facto, é a sede do poder neste país desgovernado. Pereira de Moura, ex-comunista, contra a vontade de Spínola, assume a pasta da Educação onde irá ter lugar uma outra revolução. Todos nos recordamos das passagens administrativas. Conheci um jovem que em 1973 tinha reprovado no 5.º ano do liceu e que em Outubro de 1974 entrou para a Universidade de Coimbra!!! Recorde-se ainda um outro ministro, Capitão Costa Martins, da Força Aérea, que servira comigo na 3.ª Rep. do EMFA, onde não mostrara um mínimo de capacidade para o desempenho das suas funções, que foi chamado para a pasta do Trabalho onde teve como Secretário de Estado o Dr. Carlos Carvalhas o qual, logicamente, organizou o ministério e procedeu à respectiva purga.

Mário Soares, com toda a naturalidade, assume a pasta dos Estrangeiros enquanto Cunhal só é Ministro de Estado. Começam a rolar cabeças em todo o tecido nacional. Uns são demitidos, outros seguem para a prisão sem qualquer nota de culpa. Recorde-se que Kaúlza de Arriaga esteve enclausurado dezoito meses porque se negou a sair sem conhecer os crimes de que era acusado. Muitas outras figuras públicas foram metidas nas prisões sem que, a qualquer delas tenha sido elaborada nota de culpa. Espantoso! Foram enjaulados sem ninguém saber os crimes que tinham cometido. Casos como este foram às centenas, senão milhares. Portugal foi decapitado e os notáveis que foram saindo, substituídos por elementos preparados e instruídos pelo PCP.

Mas Mário Soares tem uma importantíssima missão a cumprir: a descolonização.


A ENTREGA DA GUINÉ: ACORDO DE ARGEL


A situação militar antes do 25 de Abril, contrariamente ao que muitos "entendidos" afirmaram, estava perfeitamente controlada. O PAIGC dispunha de 5.000 guerrilheiros e as nossas Forças da Ordem, só em tropas guineenses, dispunham de 12.000, fora o contingente metropolitano. Os mísseis SAM-7 de fabrico Soviético trouxeram uma certa instabilidade mas que foi rapidamente solucionada. O único problema que subsistia era travar as acções realizadas pelo PAIGC contra as populações que Spínola tinha definitivamente conquistado. Os Congressos do Povo, por ele criados e com os quais reunia com frequência, levando-os a participar nas decisões que interessavam ao território, foram o maior estímulo para essas gentes que encontraram no Governo e Comandante-Chefe a plataforma de progresso e de segurança.

A notícia do golpe de Lisboa chegou a Bissau pelas cinco horas da manhã de 25 de Abril. As vinte e quatro horas que se seguiram foram de confusa discussão e de cuidadoso planeamento da parte do MFA local. Embora o Movimento estivesse bem implantado em Bissau, havia muitas dúvidas quanto às intenções do General B. Rodrigues, como da omnipresente DGS. A decisão para avançar chegou na manhã do dia 26, quando uma delegação de dez oficiais do MFA com uma escolta de pára-quedistas prendeu o governador. Os presos políticos foram libertados e os funcionários da DGS substituíram-nos nas celas. Com efeito, a Guiné-Bissau tivera o seu próprio golpe militar no dia seguinte ao da Metrópole. O General Bettencourt Rodrigues foi demitido em 26 de Abril de 1974 e mandado regressar a Lisboa. Sai de Bissau com as honras que lhe eram devidas, mas no Sal, onde muda de avião, segue para Lisboa sob prisão, sendo no dia seguinte posto em liberdade. As suas funções como governador e comandante militar foram assumidas por oficiais que gozavam da confiança do MFA. Preocupada com outros assuntos em Lisboa, a JSN não estava em posição de intervir na Guiné durante os primeiros dias que se seguiram ao golpe, apesar de ter razões para isso.


Guiné Portuguesa
















Aeroporto Craveiro Lopes



Manifestação por Portugal na Guiné


Entretanto, a 6 de Maio o Comité Executivo do PAIGC reuniu-se em Madina do Boé para analisar os termos em que deveriam iniciar-se conversações com o novo regime estabelecido em Lisboa. A 17 de Maio, Soares, escassas horas depois de tomar posse como Ministro dos Negócios Estrangeiros do 1.º governo provisório, seguiu para Dacar no jacto pessoal de Senghor a fim de se encontrar com Aristides Pereira, o secretário-geral do PAIGC. Nesta reunião concordou-se com um período de tréguas (embora ainda não definitivo) sob condição que fosse parte de um processo conducente à retirada total dos portugueses. O Ministro Britânico dos Negócios Estrangeiros, James Callaghan, oferecera entretanto os seus bons ofícios, e em Dacar concordou-se que as conversações deviam começar em Londres dentro de dez dias.

Mário Soares, sedento de mostrar trabalho na sua nova função, inicia, ainda em meados de Maio, contactos com o PAIGC em Londres, procurando negociar com Aristides Pereira a autodeterminação para o território. Mas o PAIGC limita-se a afirmar que a Guiné era um estado independente e que o governo português só teria que reconhecê-lo e acordar uma data para a transmissão de poderes. Mário Soares sabia que não era isso que constava do programa do MFA. A 25 de Maio tem lugar uma nova reunião em Londres com o PAIGC, com os mesmos resultados, mas M. Soares, nas declarações que fez, afirmou que no final as duas delegações se tinham abraçado. Entretanto, o Ten. Cor. Fabião é graduado em brigadeiro e mandado por Spínola para a Guiné, onde assume as funções de Governador e Comandante-Chefe. O PAIGC acaba com toda a actividade armada e os militares de um e outro lado confraternizam como se nada tivesse acontecido no passado. Entretanto, os oficiais ditos "progressistas" iniciam uma campanha de politização nas unidades e orgãos militares. São responsáveis por disseminarem o vírus revolucionário nas FA da Guiné.

Logo após a declaração que Spínola foi forçado a fazer (seria o seu último contributo para a revolução) a 27 de Julho, reconhecendo aos territórios ultramarinos o direito à autodeterminação e independência, Mário Soares ficou com toda a liberdade para assinar todos os acordos como muito bem entendesse. Por isso, e ainda por considerar o país ingovernável, o primeiro-ministro Palma Carlos demite-se. A sua substituição envolveu-se numa certa polémica, pois todos os nomes indicados por Spínola à comissão coordenadora do MFA e à JSN não serviam ou não estavam disponíveis e acabou por nomear Vasco Gonçalves, como pretendiam os seus rapazes mais chegados.

M. Soares continua as negociações com os novos amigos do PAIGC, mas agora em Argel, e a 26 de Agosto acabaram finalmente por chegar a um acordo que apenas se limitava ao reconhecimento da independência da Guiné, à data para a transmissão de poderes ao PAIGC e à saída das tropas portuguesas, sem qualquer referência à situação no interior do território, onde as populações foram totalmente ignoradas.

A este respeito disse Jacques Soustelle:"Em tudo isso qual é o valor das necessidades, das aspirações, das misérias ou das esperanças dos Balantas, dos Papéis, dos Mandingas, dos Manjacos e doutros povos da Guiné? Aquele cujo interesse apaixonado que pretendem sentir por eles é só de boca, apenas os traem cinicamente na realidade".

Importa ainda referir que no n.º 17 do Anexo ao acordo, Portugal obrigou-se a desarmar os comandantes guineenses que tinham combatido ao nosso lado. É importante realçar isto pois na sequência da independência foram todos sumariamente fuzilados pelo PAIGC. Sobre quem os abandonou fica este vergonhoso labelo. Que o opróbrio se lhe cole à pele até ao fim dos tempos.



Vala comum de antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas às ordens de Luís Cabral (1980).



O acordo foi assinado em 26 de Agosto do lado português por Mário Soares, Almeida Santos, Almeida D'Eça, então CMG, e Alto-Comissário, e o ainda Major Hugo dos Santos. Creio que os dois principais responsáveis pelas negociações, Mário Soares e Almeida Santos, jamais tinham pisado o solo da Guiné e pouco conheciam da sua situação no 25 de Abril. Almeida Santos inclusivamente afirmou que era importante proceder rapidamente à descolonização, pois uma derrota militar na Guiné estava iminente. Mário Soares terminava aqui a sua primeira batalha da descolonização que começou por classificar no seu todo como "um sucesso espectacular"!!! Começara a cumprir a missão sonhada por Cunhal dentro da estratégia concebida pela URSS. E a chamada Guiné-Bissau lá ficou com os novos senhores, os seus dramas e tragédias.

Cabo Verde teria que ser negociado à parte, porquanto os guineenses não aceitaram os quadros do PAIGC, na sua grande maioria de origem cabo-verdiana.



A ENTREGA DE MOÇAMBIQUE


A situação no terreno aquando do 25 de Abril não se encontrava totalmente resolvida, mas também não era, de qualquer forma, inquietante. As forças da Frelimo, após o fracasso na missão de Cahora Bassa, a integração nas nossas forças do recrutamento local, em especial os GE e GEP, o agrupamento das populações em aldeamentos, subtraindo-as ao controlo da Frelimo, as inúmeras deserções, a dureza da sua luta, trouxeram os efectivos para qualquer coisa da ordem dos 1.200 guerrilheiros, incluindo muitos marginais da Tanzânia e Zâmbia. A grande maioria destes homens, ao fim de dez anos de luta sem qualquer sucesso, tinha deixado de acreditar. Nesta altura o seu principal objectivo era atacar os aldeamentos que eram defendidos por milícias de recrutamento local. Esta nunca poderia ser a sua estratégia, porquanto em vez de conquistar as populações ainda as afastava mais. Recorde-se que neste Abril de 1974 os efectivos do recrutamento local atingiam cerca de 60% da totalidade das Forças Armadas em Moçambique. Mas o contingente europeu estava já em grande parte contaminado pelo vírus revolucionário vindo da Guiné. O então Major Aniceto Afonso, com o seu lugar-tenente Capitão Mário Tomé, que tinha exercido as funções de ajudante do General Kaúlza de Arriaga, assumiram ser a cabeça do Movimento dos Capitães em Moçambique. Segundo declaração de A. Afonso, no documentário da RTP"Combatentes do Ultramar", a comissão coordenadora do MFA fizera a sua primeira assembleia em 13 de Setembro de 1973, durante a qual se ficou a saber que a sua estrutura em núcleos regionais já tinha sido estabelecida e estava a trabalhar. Recorde-se que foi na sequência do levantamento académico de 68/69 que o PCP aconselhou os estudantes, já devidamente preparados para a sua luta, a ingressar nas Forças Armadas para cumprimento do chamado "serviço militar".

Como escreveu Anthony Burton: "a guerra provocou uma expansão extremamente rápida do Exército, com a entrada de milhões de jovens, vindos directamente da Universidade, como milicianos.

Os portugueses tinham um sistema extraordinário, pelo qual os alunos universitários, independentemente das suas qualidades de chefia e depois de algumas semanas de treino básico, eram promovidos a oficiais, enquanto que jovens sem o exame de admissão à universidade só podiam tornar-se oficiais em circunstâncias raríssimas. O resultado deste sistema foi, por um lado o descontentamento e, pelo outro, infiltrou directamente nas Forças Armadas, com o posto de alferes, agitadores vindos das organizações de protesto universitário, para continuarem, entre os militares, a agitação política. Eram estes os homens que, graduados em capitão, comandavam as tropas em postos avançados. E como não havia, praticamente, entretenimentos nessas zonas da guerra em África, os "comandantes-agitadores" tinham amplas oportunidades de fomentar debates políticos com os seus homens".








Esta foi uma técnica usada a partir do final dos anos sessenta para mentalizar as forças armadas da injustiça da guerra e pressionar no sentido de regressarem o mais rapidamente possível. Foi assim na Guiné, onde o nosso conhecido Vasco Lourenço foi contaminado, foi assim em Moçambique e, em muito menor escala, em Angola.

A insurreição em Moçambique foi a última a desencadear-se. Eduardo Mondlane, nascido em Moçambique em 1920, emigrou para os EUA no início da década de 50 e aí, durante seis anos, conseguiu a licenciatura, mestrado e doutoramento em Biologia e Antropologia. No princípio da década de 60 volta para Dar-Es-Salaam, onde se encontra sua mulher, Directora do Instituto Moçambicano, através do qual a Frelimo chegou a receber alguma ajuda financeira dos EUA, embora as suas maiores fontes de financiamento se situassem em alguns países africanos, na União Soviética e até na China.

A sua actividade registou-se sobretudo na região Norte da província, nunca se tendo aproximado do asfalto nem de centros populacionais. Os confrontos tinham lugar quase exclusivamente no mato. Em 1968 desce para Sul, cria uma base na Zâmbia donde partem os raids para a zona de Tete a fim de impedir a construção da barragem de Cahora Bassa, sobre a qual Mondlane afirmou: "se nós não destruirmos esta barragem, ela destruir-nos-á para sempre".

Na realidade, o projecto Cahora Bassa iria ter tão profunda repercussão na economia da província que impediria, de forma irreversível, o objectivo da subversão na conquista das populações. Mas a barragem foi uma realidade, assim como as linhas de transporte de energia ao longo de 1300 Km, quinhentos dos quais em território Moçambicano.

A Frelimo, debilitada com as guerras internas e pela não aceitação por parte das populações, acabou por não cumprir a missão de destruir Cahora Bassa e antes do 25 de Abril todos os projectos estavam prontos sem terem sofrido atrasos ou aumento de custos. A barragem estava construída, as linhas para transporte de energia foram instaladas. O recrutamento e a preparação do homem moçambicano continuavam a ritmo elevado. A população rural, entretanto concentrada em aldeamentos protegidos por milícias, passaram a ser o principal alvo dos guerrilheiros da Frelimo que, segundo comunicado do Comité Central da Frelimo em 25 de Setembro de 1967 afirmava: "Há muitas dificuldades. Os guerrilheiros têm por vezes de passar dias inteiros sem comer, têm de dormir ao relento e, às vezes, têm de marchar dias ou mesmo semanas para fazer um ataque ou uma emboscada".

Numa guerra deste tipo, o guerrilheiro tem de viver no seio da população. Em Moçambique tal não acontecia. É de destacar que, numa cidade como Lourenço Marques, com mais de 420.000 habitantes, dos quais 5/6 africanos, a Frelimo não conseguira adesão suficiente para levar à prática de um só acto de terrorismo, e a segurança dos governantes esteve sempre entregue a africanos, deslocando-se por todo o lado sem quaisquer medidas especiais de protecção. Se o 25 de Abril não tivesse acontecido, a situação em Moçambique não seria muito diferente da que se vivia já em Angola. 

Mas a URSS nos últimos anos da década de 60, por volta de 1967, sentiu necessidade de alterar radicalmente a sua estratégia para conseguir os objectivos fixados. Em Moçambique, o maior movimento de libertação, a Frelimo, tinha à sua frente um homem totalmente pró-americano e, como tal, teria que ser eliminado, pois após uma eventual autodeterminação e independência este território ficaria na esfera de influência do Ocidente. Isto não era aceitável ou possível para os planos soviéticos e, como tal, haveria que afastar Mondlane. Assim aconteceu, em Fevereiro de 1969, com a utilização do célebre envelope-armadilha que matou o fundador do movimento. Ainda hoje este acto permanece associado a uma nebulosa conjura interna. Não importa quem preparou o envelope, importa sim o porquê e o para quê. O mesmo viria a acontecer a Amílcar Cabral na Guiné, quando se preparava para um cessar-fogo com o então Governador-Geral General Spínola. É claro e evidente o porquê do seu desaparecimento e a origem das ordens ou directivas para a sua execução. A forma como o fizeram não interessa, era importante e essencial fazê-lo.













Aquando do 25 de Abril, a estrutura do MFA em Moçambique estava a funcionar. Nos primeiros meses de 1974 (Janeiro e Fevereiro) a Frelimo sofreu numerosas baixas na sequência de acções de limpeza levadas a cabo pelas unidades especiais (GE e GEP) do recrutamento local. As unidades da metrópole estavam já contaminadas pelo vírus revolucionário e, pura e simplesmente, evitavam a luta. Ficavam nos quartéis, só disponíveis para acções defensivas como determinara o MFA. Assim, no dia 1 de Agosto, as primeiras indicações do que poderia implicar esse colapso militar chegaram com a rendição à Frelimo da guarnição militar de Omar, na fronteira com a Tanzânia, e a sua evacuação para o outro lado da fronteira, como prisioneiros de guerra. Não ficou bem claro se na realidade os soldados portugueses se renderam ou se estavam a participar numa manifestação de propaganda pró Frelimo que fora mais longe do que aquilo com que contavam. O que é certo é que os guerrilheiros da Frelimo que ocuparam a base deram-se ao trabalho de fazer uma gravação audio de todo o incidente. Spínola não tinha dúvidas quanto à cumplicidade dos supostos defensores do quartel. Para ele, o caso constituía "prova irrefutável do índice de prostituição moral a que haviam chegado alguns militares portugueses". Outra opinião de diferente perspectiva política, foi a de Pezarat Correia, uma importante figura do MFA em Angola, para quem os militares haviam sido levados a crer - erradamente - que se chegara a um acordo de cessar-fogo geral e que, por isso, haviam autorizado os guerrilheiros a entrar na base, de acordo com o novo espírito de confraternização.

Face à pressão do MFA de Moçambique, a primeira reunião tem lugar ainda em Junho e a delegação portuguesa é chefiada por Mário Soares, então MNE, assessorado pelo Major do MFA Otelo S. de Carvalho, que foi a pedido de Spínola para travar os ímpetos descolonizadores de Mário Soares, pois apenas devia estar em jogo o cessar-fogo. A reunião teve lugar em Lusaca nela também tendo participado o Presidente Kaunda. Logo que entrou a delegação da Frelimo chefiada por Samora Machel o qual, após várias vicissitudes, sucedera a Mondlane, Mário Soares, após uma breve troca de palavras com Otelo, levantou-se, circundou a mesa e, dirigindo-se a Samora Machel, deu-lhe um enorme abraço numa atitude absolutamente indigna e patética o que conferiu a Machel uma importante situação de força no diálogo que iriam travar. Um dos jornalistas presentes, algo estupefacto, disse que em Evian, onde franceses e argelinos discutiram o problema da Argélia, só na última ronda os membros das duas delegações apertaram as mãos. As tentativas de Soares para acordar no cessar-fogo foram totalmente rejeitadas, acabando Samora por dizer: "recuso liminarmente o referendo para auscultar a população e afirmo que só a Frelimo tem legitimidade para negociar".

Otelo pede para intervir e depois de referir que ali apenas representa o MFA, que é quem manda em Portugal e, como tal, ele se estivesse no lugar de Samora Machel faria exactamente o mesmo.

Isto conduziu a um certo burburinho ao ponto de Samora Machel dizer a Otelo que devia estar do outro lado da mesa, ao seu lado. Mário Soares regressa de mãos completamente vazias, mas com os poderes de Samora Machel substancialmente aumentados, na sequência do abraço. Uma cena idêntica já ocorrera na segunda reunião em Londres com o PAIGC, onde nada havia a negociar, acabando as duas delegações por se abraçar. Tudo era uma festa para Mário Soares, que nada conhecia de África e muito menos dos territórios sob administração portuguesa, onde grassava a guerra.

E as negociações prosseguiram, agora já com a presença indispensável do lugar-tenente de Mário Soares, o Ministro da Coordenação Iter-Territorial, Almeida Santos. Mário Soares tratava dos itens das negociações, mas sem qualquer resultado positivo porque ou não conhecia minimamente o terreno onde se movimentava, ou não podia porque era sistematicamente ultrapassado por figuras aparentemente de segundo plano. Mário Soares era então o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Pelo seu lado, Almeida Santos limitava-se a pôr em bom português os textos dos acordos firmados. Isto era necessário porque parece que os nossos interlocutores não eram muito dotados no campo da escrita. Outros agrupamentos formam-se, entretanto, até com o apoio de Spínola para se criar uma plataforma alternativa à Frelimo. Entretanto, vão ocorrendo os encontros informais e secretos com a Frelimo, que o MFA acabou por considerar como o único movimento representante do povo moçambicano. Já depois da publicação da Lei 7/74, que conferia aos territórios ultramarinos o direito à autodeterminação e independência, a delegação portuguesa, que incluía logicamente a dupla Mário Soares/Almeida Santos, parte para Lusaca, e Melo Antunes (dito o intelectual da revolução) faz um desvio por Dar-Es-Salaam, onde se encontra com um oficial do MFA de Moçambique e membros da Frelimo. Aqui são definidas e acordadas as linhas principais do acordo final que seria assinado em Lusaca, a 7 de Setembro de 1974, onde se afirmava ser a Frelimo o único movimento em Moçambique que iria fazer parte, já em maioria, dum governo de transição, sem se auscultar a população, e que a transmissão de poderes teria lugar a 25 de Junho de 1975.







Tudo isto é definido em Dar-Es-Salaam, enquanto em Lusaca, M. Soares e A. Santos aguardavam a chegada de Melo Antunes e a delegação da Frelimo.

A dupla socialista sentiu-se ultrapassada e não percebia o que estava ali a fazer. Após a reunião fingiu a sua insatisfação pela situação criada. A sessão serviu para se acertarem os detalhes e Almeida Santos corrigir o português dos textos. E o acordo foi assinado com glória para Mário Soares e os homens do MFA. A comunidade branca reagiu, mas foi travada no seu desespero. A tropa, as Forças Armadas, saíram humilhadas, como que envergonhadas pelo peso da derrota que jamais teria acontecido. Estou certo que vinham de consciência tranquila com a certeza do dever cumprido. A população negra aceita a situação e procura adaptar-se às orientações políticas e sociais do novíssimo patrão - Samora Machel, o ajudante de farmacêutico que há alguns anos se juntara à Frelimo para servir os desígnios de certos senhores.

Samora Machel teve sempre o controlo das negociações. Quando se tratou da questão do referendo não só o recusou, como declarou "que quem votasse nesse referendo era traidor". Tinha a consciência de que a solução Frelimo não interessava à grande maioria das populações. O seu potencial de combate, após as deserções e as baixas causadas pelos comandos negros moçambicanos, era insignificante e só actuavam quando não tinham de entrar em confronto com as forças da ordem. Limitavam-se a atacar aldeamentos, colocar minas, e, esporadicamente, montar uma emboscada. Aquando do 25 de Abril, as forças metropolitanas estavam anestesiadas pelo vírus revolucionário, mas os guerrilheiros da Frelimo não passavam dum brinquedo para as forças do recrutamento local que, na altura, constituíam 60% dos meios totais presentes em Moçambique.

Apenas as questões que interessavam à Frelimo foram discutidas ou impostas por Machel nas negociações. Questões tão importantes como o Banco emissor e Cahora Bassa não foram abordadas e o governo de transição que se seguiu também ignorou estas questões de magna importância.

A respeito da auscultação da população que a Frelimo recusara, Almeida Santos afirmou, cerca de 4 meses após os acordos de Lusaca que a "alternativa era uma guerra cuja continuidade era um preço demasiado alto para contrabalançar o peso de um princípio". Será curioso lembrar que nem sempre foi esta a posição de Almeida Santos. Desde que se pôs o problema da descolonização  sempre afirmou"que devem ser os próprios territórios a escolher o seu futuro estatuto político através de uma consulta universal e directa". Mas acrescentava:"a vontade dos povos tem de ser um dogma para todos nós, pelo que não se pode sair fora deste princípio para estabelecer para Angola, Moçambique e demais territórios os regimes que não sejam o resultado de uma ampla e directa consulta às populações". Esta foi a posição defendida pelo Sr. Ministro até finais de Julho de 1974. Depois deu o dito por não dito. Porquê, perguntar-se-á? Ele, aparentemente, só tinha que participar numa descolonização que não ignorasse a realidade desses territórios e a vontade das suas gentes. Estes objectivos não eram os de Mário Soares. Este tinha de ultrapassar Spínola e entregar as ditas colónias à tutela da URSS. Eram atitudes completamente diferentes e, assim, o seu amigo A. Santos não podia estar a criar obstáculos à concretização da grande traição. Para não hipotecar o seu próprio futuro político, Almeida Santos renega todos os princípios que tinha defendido e "cola-se" como uma lapa a Mário Soares. Além do mais, Almeida Santos, que tinha a sua vida organizada em Lourenço Marques, não se apercebera que, militarmente, a guerra estava ganha.

Também Mário Soares, após os acordos de Argel e de Lusaca, reuniu os jornalistas para, como afirmou, "fazer um primeiro balanço e, ao mesmo tempo, ilustrar as grandes linhas da política que conduzia". Em 21 de Dezembro de 1974 acrescentava que tinha estado, pessoalmente, desde o início, ligado ao processo da descolonização das nossas colónias e pensava que ela estava a seguir, de uma maneira geral, uma forma extraordinariamente favorável.

Com o empenho indispensável dos rapazes do MFA e o protagonismo de Mário Soares, assim se completou a estratégia definida pela URSS para esta terra e estas gentes, agora entregues à "bicharada".






















Samora Machel, logo após o acordo de Lusaca, mandou recrutar 5000 moçambicanos entre os deslocados na Tanzânia, que aí fizeram o seu treino militar para no dia da independência desfilarem em Lourenço Marques perante o novíssimo Presidente e o povo que, certamente, não deixaria de comparecer. Na altura, Samora Machel faria o seu discurso às massas, do qual se extraiu o seguinte excerto:

"nós derrotámos as forças portuguesas, derrotámos os generais mais qualificados em crimes, derrotámos os soldados fascistas; nós derrotámos oficiais qualificados pelas academias reaccionárias..."

O Almirante Vítor Crespo foi o Alto-Comissário no período de transição e, sempre que se dirigia aos orgãos de comunicação social, não se cansava de elogiar os esforços dos dirigentes da Frelimo para governar o país que iria ter, sem qualquer dúvida, um futuro altamente promissor, embora depois, noutras circunstâncias, tivesse afirmado:"que se tornou patente a falta de quadros técnicos e administrativos da Frelimo".

Também Mário Soares, bastante mais tarde, depois de consumado o crime, diria a respeito da Frelimo: "que se tratava de um movimento com falta de quadros, falta de preparação e que não estava suficientemente amadurecido para garantir um governo". Mas mesmo assim não deixava de qualificar a descolonização como um "incontestável sucesso", que fora possível graças ao seu saber, à sua capacidade de negociação e à sua determinação e, acrescento eu, graças à sua incansável sede de poder e vingança, preparando assim a sua ascensão ao estrelato nacional. Triste, vergonhoso, criminoso, etc..., mas infelizmente verdade.


A ENTREGA DE ANGOLA: ACORDO DO ALVOR


Foi sem dúvida o caso mais complexo pois, para além das suas riquezas, era sem dúvida o território mais desenvolvido de África e os seus movimentos de libertação tinham as suas capacidades política e militar reduzidas à expressão mais simples.

A FNLA, após a intercepção e aniquilamento de alguns dos seus grupos abastecedores entre o Zaire e o seu santuário nos Dembos, praticamente deixara de existir até porque o apoio exterior dos EUA lhe fora completamente retirado. Sobrevivia mal, sem qualquer crédito entre as populações que dizia controlar e que agora se encontravam em aldeamentos construídos nas imediações dos nossos aquartelamentos provendo à sua própria defesa e segurança.

O MPLA, que sempre viveu envolvido em escaramuças com a FNLA, só a partir de 1966 mostrou alguma capacidade militar quando abriu a frente Leste e se propôs chegar ao Atlântico, mas não chegou nem ao planalto. Foi batido em toda a linha e os guerrilheiros (os que não desertaram ou morreram) regressaram à Zâmbia, ficando sob as ordens de Chipenda, que, sem apoios, nada pôde fazer.


Desfile de terroristas do MPLA


Agostinho Neto ainda fez um congresso na Zâmbia, com todas as facções do movimento, mas quando se apercebeu que teria os mesmos votos que a facção Chipenda, resolveu desistir e abandonou o congresso. Aquando do 25 de Abril não tinha qualquer expressão militar e encontrava-se no Canadá em busca de apoios, pois em Janeiro de 1974 a URSS deixara totalmente de o apoiar. Este corte já tinha sido iniciado em 1972 e, a partir daí, foi sendo gradualmente reduzido à sua expressão mais simples, não sendo viável, ou mesmo possível, reorganizar-se com base em apoios externos que já não existiam, para reiniciar a sua luta pela independência de Angola.

A UNITA surgiu no panorama angolano muito mais tarde, em 1966, e resultou de dissidências no seio da FNLA. Fixou-se no Leste, mas, sem apoios, nunca constituiu uma ameaça para as forças da contra-subversão. Chegou mesmo a estar ao nosso lado quando o MPLA abriu a frente Leste. Em finais de 1973, com a mudança do Comandante da Zona Militar Leste, este decide, sem se perceber muito bem porquê, acabar com a UNITA. Esta volta para o seu refúgio nas margens do Lungué Bungo e ali resiste até ao 25 de Abril. Após o desencadear da revolução em Portugal, Savimbi, o dono e patrão do movimento, resolveu reiniciar a sua luta e, numa área bem longe do seu santuário, ataca uma patrulha das nossas forças, provocando dezanove mortos e um grande número de feridos. Parecia ser o único com capacidade, diminuta, para prosseguir a luta. O então Major Pezarat, chefe da comissão coordenadora do MFA em Angola, apressa-se a entrar em contacto com a UNITA e desloca-se com outro oficial às matas do Leste, onde assina um acordo de cessar-fogo. Desta forma, um movimento sem qualquer tipo de expressão, sem apoios exteriores e que a ONU não reconhece, acaba por ser reconhecido por Portugal. Esta atitude de Pezarat Correia, o então grande senhor de Angola a mando dos milicianos, abriu a porta à UNITA para se tornar mais um interlocutor nas negociações que se seguiriam com o MPLA e a FNLA.

Era este o panorama geral de Angola onde a luta armada tinha terminado e o desenvolvimento e progresso, em todos os campos, era algo de muito sólido, para espanto dos que lá se deslocavam. A descolonização de Angola foi cuidadosamente planeada pela URSS, tendo como principais executores Álvaro Cunhal, Mário Soares e Melo Antunes. Embora, como se sabe hoje, nenhuma das principais figuras do PCP tenha participado directamente na descolonização de Angola, nem em qualquer outra. Acompanhavam todos os processos passo-a-passo, mas não se envolviam, limitando-se a, indirectamente, corrigir desvios do objectivo final que se viesse a verificar.

O processo de descolonização de Angola foi o primeiro a ser iniciado e o último a terminar com a independência em 11 de Novembro de 1975.

Logo em 2 de Maio de 1974, Mário Soares encontra-se com Agostinho Neto em Bruxelas. Nesse já falado encontro que terá Soares dito a Neto? Que ele seria o primeiro Presidente de Angola com o apoio dos novos protagonistas do panorama político português? Ele, Soares, sabia perfeitamente qual a génese do 25 de Abril, que só ocorrera porque Portugal soubera vencer, durante treze anos, a subversão no Ultramar levando a URSS a mudar a sua estratégia e empenhar-se no desencadear do golpe de 1974.

Vivi todo o processo da descolonização de Angola na pele, como se costuma dizer. Em 2000 publiquei o livro ANGOLA - ANATOMIA DE UMA TRAGÉDIA, onde tive a oportunidade de descrever, com o pormenor possível, a trágica e desastrosa entrega daquela portentosa terra ao imperialismo soviético. Na sequência desta entrega, não a qualquer um dos movimentos, mas a uma entidade abstracta designada por "povo de Angola", iniciou-se a sempre horrorosa guerra civil, envolvendo a UNITA, com o apoio da África do Sul, a FNLA, apoiada pelos EUA através de Mobutu, e o MPLA pela URSS, directamente e com a participação de um largo contingente de cubanos.

Foi assim que aquele país, altamente promissor e no auge do seu desenvolvimento, caiu, ao fim de mais de três décadas, para o que se designa por "terra queimada", onde palavras de ordem foram matar e destruir. Ainda hoje Angola continua a ser um dos países com maior densidade de minas anti-pessoal ainda instaladas no terreno.







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Logo após o 25 de Abril, o Dr. Almeida Santos fez uma visita a Angola, para auscultar as forças vivas do território e para indicarem o perfil da personalidade que iria desempenhar as funções de Governador-Geral. A escolha recaiu no General Silvino Silvério Marques, que já tinha desempenhado as mesmas funções, conhecendo muito bem o território e as suas gentes. Mas foi sol de pouca dura. Em breve, cerca de um mês, estava em conflito com o MFA regional, liderado por Pezarat Correia. Para o substituir fui eu o escolhido pela comissão coordenadora do MFA mas recusei. Era militar e, por muito que tentasse, não entendia o que se passava na sociedade portuguesa. Segui, no entanto, para Angola, onde, poucos dias mais tarde chegou Rosa Coutinho, um dos mais prestigiados membros da Junta de Salvação Nacional. A missão era complexa e ele reuniu-se com os homens do MFA. Ficou decidido que eu iria encabeçar uma junta governativa constituída por : Eu próprio, que acumulava com as funções de Comandante da 2.ª Região Aérea; o General Altino de Magalhães, que passou a comandar a Região Militar de Angola; o Almirante Leonel Cardoso, também Comandante Naval e ainda o Major Engenheiro José Emílio da Silva, que não conhecia. Rosa Coutinho, logo após a sua chegada, foi apontado como "almirante vermelho" pela comunidade branca. Na fase inicial não acreditei, mas mais tarde não tive quaisquer dúvidas de que se tornara um devoto servidor do comunismo. Senti que a sua principal missão, e a do Major Emílio da Silva, era reabilitar o MPLA, política e militarmente. Foi possível conseguir o cessar-fogo com os três movimentos, arbitrariamente considerados os verdadeiros e únicos representantes do povo angolano, com os quais Portugal teria que negociar as condições para a entrega de poderes. Isto apesar de apenas uma pequena minoria da população estar ainda ligada aos movimentos. Para cumprir este propósito da entrega de poderes, era necessário vencer a carência de quadros técnicos e administrativos. Era uma questão da maior relevância que deveria ter solução a curto prazo.

Mas assim não entendia Moscovo e os seus súbditos que actuavam no terreno. Em Angola, o trio dirigente, Rosa Coutinho, Pezarat Correia e Emílio Silva, sempre em grande actividade, não passavam de lacaios do comunismo. A acção principal era conduzida pela estrutura de milicianos que agiam por conta própria segundo as directivas recebidas. Algumas vezes, o Chefe de Gabinete do Membro da Junta Major Emílio da Silva, tomava decisões que, na minha opinião, eram questões para serem analisadas e decididas ao mais alto nível (Junta Governativa), mas esse alferes tomava a dianteira. Insurgi-me contra esta prática e propus o seu regresso imediato à Metrópole. Então o Emílio da Silva fixou-me e disse, com firmeza: "O meu brigadeiro fixe este nome, pois ele ainda vai ser alguém de grande importância no nosso país". Referia-se, naturalmente, ao alferes miliciano chefe do gabinete. Esqueci o seu nome e ignoro o que faz hoje. Esperava uma reacção dos outros membros da Junta, em especial do Rosa Coutinho, mas nem um só gesto, e continuámos a nossa reunião, tratando dos assuntos do dia-a-dia. O trabalho de reabilitar o MPLA continuava a ser realizado pela chamada "arraia-miúda", a quem o PCP, tentáculo do PCUS, dava instruções muito concretas. A luta entre os movimentos, nomeadamente MPLA e FNLA, continuava não só em Luanda, mas por todo o território. A ordem era a destruição, a instabilidade em todos os sectores de actividade, públicos e privados, e o medo, direi mesmo terror, que começava a invadir as pessoas, em especial a comunidade branca que se interrogava quanto ao seu futuro naquela terra. Começou também a "caça às bruxas" e muita gente foi presa ou expulsa sem qualquer tipo de acusação. Inventaram-se grupos reaccionários, a quem acusavam de provocar distúrbios por toda a parte. Era preciso fazer rolar cabeças. Esta estrutura do MFA trabalhou em perfeita sintonia com o MPLA, e muitas decisões eram tomadas em conjunto. Mas a missão estava a ser cumprida e os homens do recrutamento local que estavam nas nossas Forças Armadas eram desmobilizados e ingressavam, na sua quase totalidade, no MPLA, nas chamadas FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola). Conversava regularmente com os dirigentes de delegações estabelecidas em Luanda e não me foi difícil concluir: o MPLA, com o apoio soviético e do MFA, e até do governo de Lisboa, preparava-se para tomar o poder pela força; a FNLA, com o apoio dos americanos, mas muito especialmente, de Mobutu, estava exactamente na mesma linha; a UNITA, sem apoios exteriores e sem ser reconhecida pela ONU, pretendia que a solução final fosse encontrada democraticamente através de eleições. Mas primeiro havia que dialogar com Portugal antes da transferência de poderes, havendo que escolher a data e o local. Em Novembro fui confrontado com a decisão, aparentemente do triunvirato (R. Coutinho, Emílio da Silva e Pezarat Correia), para que a reunião ocorresse a 21 de Dezembro de 1974, nos Açores. Mas entre os movimentos havia um enorme contencioso que se arrastava praticamente desde a sua fundação, com escaramuças de vária ordem, desde as verbais ao combate armado. Parece-me que os movimentos tinham necessidade absoluta de discutir entre eles esse contencioso e aparecerem com uma só proposta para discutir com o nosso país. Tomei a iniciativa e viajei até à capital do Zaire, Kinshasa, onde sabia estarem os presidentes da UNITA e da FNLA, respectivamente Jonas Savimbi e Holden Roberto. Assim aconteceu, tendo havido compreensão e abertura, e quando informei da minha intenção de falar também com o Agostinho Neto, que se encontrava ali ao lado, no Congo-Brazaville, Savimbi disse-me que não era necessário, pois ele próprio trataria do assunto e não tinha dúvidas de que o MPLA alinharia de imediato com a ideia. Assim nasceu a pré-cimeira de Mombaça, que teve lugar já em meados de Janeiro, antecedendo a cimeira que teve lugar no Hotel de Penina, no Algarve, onde nasceu o célebre Acordo do Alvor.

Em Mombaça, onde os três movimentos se reuniram, tudo ficou acordado rapidamente com o projecto de acordo lavrado pelo MPLA e cozinhado em Argel com alguns rapazes do MFA. Previa a formação de um governo de transição, eleições, como pretendia a UNITA, cujos planos não podiam passar pelo uso da força para a tomada do poder, e ainda o dia 11 de Novembro de 1975 para a transmissão de poderes de Portugal para o movimento vencedor das eleições. Este projecto satisfazia todas as partes, porquanto a FNLA contava usar a força para a tomada do poder e a assinatura do "papel" era-lhe indiferente.


















Acabou por ser este projecto que Melo Antunes nos deu a conhecer, no Alvor, já depois das 24:00 horas, antes de se iniciar a cimeira que arrancaria nessa manhã. Tudo isto não passava de "teatro" apenas para dar uma justificação ao mundo que tanto pressionara Portugal para sair das suas "colónias". Fui nomeado para a delegação portuguesa com Melo Antunes, Mário Soares, Almeida Santos, Pezarat Correia, Embaixador Fernando Reino e Coronel Gonçalves Ribeiro. Discutiu-se o projecto do acordo redigido em Argel e apresentado pelo MPLA em Mombaça aos outros dois movimentos. O diálogo foi conduzido por Melo Antunes, com pequenas intervenções de Mário Soares e Pezarat Correia só para assinalarem a sua presença, enquanto Almeida Santos ia corrigindo os textos já aprovados. Tudo corria sobre rodas, e do documento inicial pouco foi alterado. Lá estava indicado:

- os três movimentos como únicos representantes do povo angolano;

- o governo de transição constituído por entidades das quatro partes envolvidas;

- o esclarecimento de que Cabinda era parte integrante de Angola;

- a realização de eleições antes da independência;

- o dia para a transferência do poder para o movimento que ganhasse as eleições;

- o retraimento do dispositivo militar português e a sua saída até à independência;

- um Alto-Comissário representante do Presidente da República de Portugal como primeiro orgão de soberania para o período de transição.

Não houve polémicas: o documento foi analisado na sua totalidade, tendo sofrido pequenos ajustamentos. Nos bastidores, conversando com o Dr. José N'Dele, que iria ser o primeiro-ministro da UNITA, propus-lhe para eles exigirem a permanência das Forças Portuguesas até à realização das eleições. Compreendeu, mas era impensável os outros movimentos acordarem neste ponto, até porque os seus projectos passavam pela tomada do poder pela força e as eleições eram tão-só uma cláusula para calar a UNITA. Entretanto, e enquanto decorria a conferência, comecei a ser pressionado para desempenhar as funções de Alto-Comissário. Disse sempre da minha total indisponibilidade mas, entretanto, Costa Gomes deslocou-se ao Algarve e encontrámo-nos num hotel das redondezas da Penina. Após uma longa argumentação, disse-lhe:"Sei que a UNITA e FNLA querem-me a mim; se o MPLA me pedir, aceitarei". Assim ficámos, e nessa noite fui convidado para jantar com o Agostinho Neto que me formulou o convite. Agora não podia recusar, embora com a consciência plena que iria tentar cumprir a "missão impossível". Com pompa e circunstância o acordo do Alvor foi assinado com a presença do Presidente da República, a 15 de Janeiro de 1975.

Cheguei a Luanda como Alto-Comissário a 30 de Janeiro de 1975. Recebido com as honras que me eram devidas, cheguei ao palácio e deparei-me com uma situação absolutamente impensável. Rosa Coutinho, Pezarat Correia e Emílio da Silva, que permaneceram em Luanda, enquanto eu partia para a Metrópole a fim de participar na conferência do Alvor. Ao regressar já como Alto-Comissário vi que tinham criado uma situação de tal forma gravosa para a FNLA que esta não podia deixar de reagir absolutamente. Foi o primeiro incidente grave entre os dois movimentos, que se viriam a repetir por toda a Angola até à data da independência. No livro "ANGOLA - ANATOMIA DE UMA TRAGÉDIA", tive oportunidade de descrever em pormenor o que foram estes meses de total loucura em que a morte de seres humanos parecia não ter qualquer significado e a destruição em todos os sectores parecia ser uma constante. E Angola caiu abruptamente. Considerado o território, conjuntamente com Moçambique, de melhor padrão de vida de todos os países a Sul do Sahara, transformou-se numa das maiores tragédias que a África conheceu. E assim se fechava mais um ciclo da nossa História, cumprindo-se desta forma a vontade dos que traiçoeiramente gritavam no 25 de Abril: acabar com a guerra e descolonizar. Célere e espectacular como a classificou Mário Soares, que acabava de conseguir mais uma brilhante vitória para somar ao seu palmarés.



Leonel Cardoso proferindo o discurso na entrega de Angola (10.11.1975)




O arriar da Bandeira Portuguesa





































Mas recordando o que foi o seu enorme e importante contributo, temos:

- Na Guiné, e por sua iniciativa, viajou por duas vezes para Londres, a fim de negociar com o PAIGC tendo tudo ficado concluído com o abraço a Aristides Pereira. Depois foi duas vezes a Argel onde acabou por assinar um protocolo fixando a data para a entrega de poderes, a saída das nossas tropas e a entrega dos comandos guineenses ao PAIGC para serem fuzilados;

- Em Moçambique, esteve duas vezes em Lusaca; da primeira para negociar o cessar-fogo que não resultou e dar um apertado abraço a Samora Machel; da segunda para assinar o acordo com a Frelimo que Melo Antunes negociara em Dar-Es-Salaam enquanto ele e Almeida Santos esperavam em Lusaca;

- Finalmente em Angola, em 2 de Maio encontrava-se com Agostinho Neto em Bruxelas ao qual deve ter transmitido que ele iria receber Angola e, por fim, apareceu no Alvor sem conhecer os termos do acordo redigido em Argel, limitando-se a apresentar pequenas alterações que ninguém ouvia.

Foi este o grande descolonizador. Cumpriu, não a vontade do povo português que ninguém ouviu, não o interesse dos povos em questão, mas, objectivamente, a estratégia que interessava à URSS e deu largas ao seu ódio vesgo ao regime do Estado Novo.

E era ver este senhor pavonear-se com grande altivez no meio de todas as delegações e jornalistas, distribuindo sorrisos à esquerda e direita, pensando que tinha dado mais um salto positivo na sua carreira ascensional a caminho do apogeu da traição. Agradeço que, durante esse período, nunca me tenha dirigido a palavra, pois talvez desconfiasse que eu suspeitava dos tortuosos meandros da sua personalidade, onde transparecia o seu espírito vingativo, uma enorme vaidade e um desamor a Portugal causado por inveja e frustrações. Depois, a partir do Alvor, Mário Soares desligou-se completamente da descolonização. As consequências para aquela boa gente que assim ficou entregue à voracidade impiedosa dos novos patrões e o desenvolvimento dos territórios onde grassara a guerra pouco ou nada contavam para o projecto de projecção nacional e internacional, que a sua vaidade e a Internacional Socialista acalentavam...


A ENTREGA DE CABO VERDE


Cabo Verde, depois do PAIGC ter conseguido a independência da Guiné, declarou que rejeitava toda e qualquer união com a Guiné. Assim, aquelas ilhas de grande importância geo-estratégica foram empurradas para uma total separação de Portugal. Apareceram vários agrupamentos políticos, mas o MFA local, dirigido sabiamente pelo 1.º Ten. José Judas [o nome já diz tudo], que posteriormente viria a ser membro do Conselho da Revolução, considerou que o PAIGC era o único e legítimo representante da população de Cabo Verde. A data para a transmissão de poderes acabou por ser acordada com o lugar-tenente de Mário Soares, Almeida Santos, visto àquele não lhe interessar intervir. Tudo foi rápido e pacífico.


Assinatura do acordo para a entrega de Cabo Verde. Da esq. para a dir.: Mário Soares, Melo Antunes, Vasco Gonçalves, Pedro Pires, Almeida Santos e outros dois representantes do PAIGC.


A ENTREGA DE S. TOMÉ E PRÍNCIPE


Em S. Tomé e Príncipe não se formaram movimentos políticos na luta pela independência. A própria OUA reconhecia que as ilhas não possuíam potencial estratégico para adquirem o estatuto de Estado Independente. No início dos anos 70 várias personalidades de S. Tomé reuniram-se no Gabão e procuraram formar uma organização independentista que designaram por Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe (MLSTP) que a própria OUA não reconheceu. Só em 1973 este movimento foi reagrupado já com um secretário-geral, Pinto da Costa, e que acaba por ser reconhecido pela OUA.

Após o 25 de Abril, o esquema que levou à independência de S. Tomé e Príncipe foi praticamente o mesmo dos outros territórios. Começaram a formar-se outras organizações políticas, mas Pinto da Costa vem para S. Tomé com o apoio do Gabão e em Argel acabaria por assinar o acordo que fixou a data de independência a 12 de Junho de 1976. A saída da população branca (cerca de 2000 colonos) foi imediata e as suas terras foram nacionalizadas. E um novo estado surgiu no panorama mundial, mas sem recursos para a sua sobrevivência, acabando por viver à custa de empréstimos a fundo perdido.

Neste caso, o Dr. Mário Soares não fez contactos directos com o MLSTP. Para esse trabalho encarregou o secretário-geral dos Negócios Estrangeiros, D. Jorge Campinos, que estabeleceu os contactos com o MLSTP e declarou este movimento como o único representante do povo de S. Tomé. Foi tudo demasiado rápido, de tal maneira que nem chegou a aperceber-se que a maioria dos S. Tomenses nem sabia da existência do movimento. Também A. Santos foi fazendo alguns comentários, chegando mesmo a inventar quatro hipóteses para esta província ultramarina, a saber: independência pura e simples, ligação a Portugal numa situação federalista, ligação a Angola, visto a população de S. Tomé e Príncipe ter todos os seus ascendentes com raízes em Angola e, finalmente, ligação ao Gabão ou Guiné Equatorial onde nasceu o tal movimento MLSTP.

Vingou a primeira hipótese, com o Sr. Pinto da Costa eleito como Presidente do novíssimo Estado.


A ENTREGA DE TIMOR


Após o 25 de Abril, naquela terra longínqua algo esquecida nada mudou e continuava a ser o mais português de todos os territórios além-mar. Tinha um Governador, o Coronel Alves Aldeia, que era estimado por toda a gente, que permaneceu em Dili até Julho, quando foi substituído pelo Ten. Cor. Nívio Herdade como encarregado do Governo. Os descolonizadores estavam tão ocupados com a Guiné, Angola e Moçambique que quase se esqueceram de Timor. Mas em Julho de 74, o lugar-tenente de Mário Soares visita Timor e é surpreendido por um portuguesismo quase fanático. Aquela população era uma miscelânea de povos, cada um com a sua língua e os seus costumes próprios. O que os une, permitindo-lhes viver em paz, é a veneração que nutrem pela Bandeira Portuguesa e por Portugal. Almeida Santos confessa que ficou estarrecido com a devoção daquelas gentes a Portugal. Ainda em Timor, em Julho de 74, numa conferência de imprensa afirmou: "para além dos programas políticos, o que conta são as realidades humanas, e a realidade humana de Timor que eu pude testemunhar e que os senhores também puderam testemunhar é que efectivamente existe aqui muito vivo o sentimento de respeito e amor a Portugal. É um fenómeno sociológico que me parece que sai fora das regras normais da sociologia política".

E Almeida Santos acrescentaria mais tarde: "os timorenses não querem ser descolonizados pela simples razão de que não se sentem colonizados". Perante a hipótese de uma descolonização recebeu como resposta das forças-vivas de Timor: "a nossa resposta ao problema da descolonização é que o que nós precisamos é de mais cultura, mais saúde, mais desenvolvimento agro-pecuário, mais tractores, mais comunicações, mais indústrias".



Brasão de Armas do Timor Português (1935-1975)




O desenvolvimento que teve lugar nos territórios onde grassara a guerra desde 1961 não se verificou em Timor. O pequeno território não foi objecto da cobiça dos imperialistas. Aos EUA agradava o seu actual estatuto e à URSS o seu potencial estratégico ou geo-estratégico não justificava o seu envolvimento, mesmo indirecto.

No acto de posse do novo Governador, ao tempo, Ten. Cor. Lemos Pires, o ministro Almeida Santos afirmaria:

"Prepare-se V. Exaª para o mais espantoso fenómeno de dedicação a Portugal. Quando de lá regressei, rendido a essa heterodoxa sociologia de divinização da Bandeira portuguesa, que venceu o tempo, a distância e o universalismo político, alguns me terão julgado possesso de romantismo caduco ou de heroicismo "carlyleano". Não se trata disso. Apenas realcei, entre atónito e emocionado, factos que sem defesa possível emocionam e espantam".

Esta era a atitude de Almeida Santos que correspondia à vontade dos timorenses, expressa não em votos, mas em actos e sentimentos. Mas Mário Soares, que de tudo sabe e jamais disse a qualquer questão "NÃO SEI", e "profundo conhecedor da realidade timorense", reagiu negativamente à posição do seu lugar-tenente, acabando por afirmar: "É necessário convencer o mundo da intenção sincera de Portugal de abandonar as suas colónias. Manter diversos laços entre os territórios e a Metrópole conduziriam, a meu ver, a formas de neo-colonialismo larvar que o governo português rejeita em bloco. Nós comprometemo-nos com um trabalho histórico".

Esta posição do "patrão" da descolonização coloca em xeque a opinião de Almeida Santos que, com o seu grande à-vontade e discernimento, rapidamente faz a agulha, acabando por afirmar: "Que independência está em dúvida? Nenhuma. Apenas a de Timor não tem ainda data. Mas tê-la-á em breve". Nada havia a fazer! O rei da descolonização não poderia hesitar pois, no fim, era o seu ego que estava em causa. Para subir ao mais alto pedestal na nova plêiade dos políticos portugueses, teria de começar por realizar algo que o imortalizasse e provasse à sociedade a sua enorme capacidade intelectual, cultural e, principalmente, sede de poder.

Mas vamos prosseguir com Timor. Lemos Pires lá seguiu até aos antípodas com um séquito cujos propósitos não conhecia. Chegaram e agitaram as águas, tendo concluído que a sociedade timorense estava despolitizada, altamente despolitizada, o que não interessava para a concretização dos seus objectivos. Mas, como afirmaram, tudo se havia de resolver com umas "campanhas de dinamização". Esta, para os portadores do vírus revolucionário, seria a solução. A população timorense composta por vários povos, que atingiam o número de vinte e oito, embora quatro ou cinco fossem predominantes, que vivia em paz em torno da Bandeira de Portugal, viu-se de repente sem saber qual o rumo a seguir, ou para onde os iriam conduzir, tendo-se alterado todo o panorama político que existia no território. Conhecedores da agitação que reinava na Metrópole pouco depois do 25 de Abril, surgem várias tentativas para criar agrupamentos políticos, dos quais apenas um, a UDT (União Democrática de Timor), se afirmou. Os princípios que levaram à formação deste movimento estavam claramente orientados para uma forte ligação com Portugal, defendendo mesmo a sua integração numa comunidade portuguesa, repudiando qualquer outra potência estrangeira. Assim, a UDT defendia aquele portuguesismo tão profundo e sincero que Almeida Santos teve oportunidade de constatar. Congregava a maioria da elite local e defendia, como o sentiu Almeida Santos, a sua ligação a Portugal, e que era apoiada pelo Ten. Cor. Magiollo Gouveia, que acabaria por ser fuzilado por ordem de Mário Alkatiri.

Em Maio de 1975, inicia-se a formação de um outro movimento na orientação das notícias que chegavam da Metrópole sobre a revolução que teve lugar após o 25 de Abril. Intitulava-se um movimento progressista onde começaram a aderir oficiais sargentos do recrutamento local, acabando por constituírem a conhecida FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), onde figuras como Ramos Horta, Carvarimo, Mário Alkatiri, exigiam que Portugal a reconhecesse como "único interlocutor para o processo de descolonização, sendo um movimento vanguardista que encarna as aspirações mais profundas, o pensar, o sentir e a vontade de libertação dos povos de Timor-Leste". Surgiu nos finais de Maio de 75 com o espírito revolucionário do 25 de Abril, defendendo a autodeterminação e independência do território, considerando-se o único interlocutor válido de Portugal. A este movimento aderiram a quase totalidade dos conselheiros marxistas que acompanhavam o Ten. Cor. Lemos Pires, os oficiais e sargentos do recrutamento local, estudantes que frequentavam a Universidade na Metrópole, e toda aquela juventude que pensava que Timor também tinha que fazer a sua revolução. As campanhas de dinamização contribuíram fortemente para esta atitude.












José Ramos-Horta








Proclamação da alegada independência de Timor-Leste em 1975. Da esq. para a dir.: Mari Alkatiri, Nicolau Lobato, Xavier de Amaral, Rogério Lobato (era alferes do Exército português), Guido Soares e Afonso Redentor, irmão de Abílio Araújo.



J. Ramos-Horta presidindo à "Conferência dos Direitos Humanos" na "Association for the Promotion of the Status of Women" (22.07.1994). O primeiro a contar da direita é Mário Alkatiri.




J. Ramos-Horta e o Bispo Ximenes Belo recebem, em 1996, o Prémio Nobel








J. Ramos-Horta e Nelson Mandela



















Xanana Gusmão








Localização de Timor-Leste



Bandeira da República Democrática de Timor-Leste






Brasão de Armas de Timor-Leste






Ilha de Ataúro









Finalmente a APODETI (Associação Popular Democrática Timorense), dos poucos que defendiam a integração - não inserção - na Indonésia como um mal menor no caso de os laços com Portugal cessarem. O Major Arnão Metelo foi o grande impulsionador deste movimento por pensar que esta seria a melhor solução para dividir a direita, facilitando a vida aos progressistas. Recorde-se que Arnão Metelo era um dos elementos permanentes do gabinete para a descolonização de Melo Antunes.

Numa sessão de esclarecimento que teve lugar em Dili nos fins de Janeiro, o Major Mota afirmou: "Está a operar-se uma revolução. Não podemos pensar que esta revolução se fará sem lágrimas. Problemas graves que agora defrontamos são uma consequência muito grande, numa medida larguíssima, do regime anterior fascista e irresponsável. Podemos agora discutir somente as ideias que, de facto, ajudem a edificar e ajudem a restituir ao Povo de Timor a sua dignidade".

Por sua vez, o Major Jónatas, nessa mesma sessão, falou do ensino que em Timor era "colonialista, elitista e veículo de um aparelho fascista; o próprio aproveitamento dos quadros não é feito e então há o recurso quase exclusivamente a professores metropolitanos: só o povo timorense pode saber das suas próprias necessidades; as escolas deviam ser vossas; há, portanto, necessidade de fazer uma alteração profunda nos quadros dos professores timorenses".

O Ten. Cor. Lemos Pires não se terá apercebido de que o figurino que os seus "conselheiros" levaram para Timor foi o mesmo que os antifascistas aplicaram em todos os territórios africanos sob administração portuguesa. Tanto Mário Soares como Almeida Santos afirmavam e reafirmavam que nada se faria contra a vontade do povo timorense. Contudo Almeida Santos tinha lá estado e não tinha quaisquer dúvidas do sentido de voto num referendo caso se viesse a fazer um em Timor. Não era necessário e, como ele afirmou, o portuguesismo daquela gente ultrapassava tudo o que a nossa imaginação pudesse conceber.

Em Timor, Lemos Pires e os seus comparsas deambulavam no meio daquela população e recordemos o que escreveu Francisco de Sousa Tavares no Jornal Novo de 6 de Setembro de 1974: "Que acção dinamizadora foi esta que conseguiu, num ano, transformar uma sociedade amável e tranquila numa banheira de sangue? Quem actuou com o objectivo de que a revolução marxista tivesse mais um palco? Que política foi esta que consistiu em pôr as populações em revolta, em armar as mãos inconscientes, em incitar à violência, à luta de classes, às vinganças tribais, e depois renunciar à tutela, embarcar os soldados e pedir o socorro às outras nações? Quem fica com a responsabilidade que é de todos nós, da descolonização de figurino que resolveram aplicar a Timor, que pouco ou nada se sentia colónia? A quem cabe a responsabilidade de Timor se ter transformado numa imensa fogueira, num campo de guerra civil, onde não houve piedade nem limites?"

E assim naquele inferno em que os descolonizadores transformaram Timor surgiu uma guerra civil, arvorando-se a FRETILIN em único representante do território. Entretanto os senhores da descolonização fizeram uma cimeira em Macau onde compareceram Almeida Santos, Major Vítor Alves (tinha estado em Dili como "embaixador itinerante" da descolonização), Jorge Campinos e delegados da APODETI e UDT. A FRETILIN, que mantinha a sua posição como a "única força com poderes para dialogar com Portugal", não compareceu à reunião e assim não ficaria amarrada a qualquer tipo de acordo, podendo agir, quando achasse oportuno, para a tomada do poder.

A UDT, tendo tido conhecimento da data (20 Agosto 1975) em que a FRETILIN tencionava desferir o golpe para a conquista do poder, antecipa-se e 4 dias antes ocupa o Quartel-General e toma a Polícia Militar. O Governador Lemos Pires, conhecedor das intenções da FRETILIN, e sentindo-se impotente para mediar o conflito, retira-se com o seu Estado-Maior para a ilha de Ataúro, durante a noite. No período de 21 a 26 de Agosto travam-se violentos combates em Dili entre as duas forças, da qual sai vitoriosa a FRETILIN. Na noite de 26/27, os quadros metropolitanos que se tinham instalado numa "zona neutra" junto ao porto, mudam-se para a ilha de Ataúro sem que a população dê conta da "fuga". A FRETILIN, dominada pelos comunistas, assume o poder e declara a independência de Timor. De imediato a Indonésia, com a conivência dos EUA, ocupa Timor-Leste, enquanto os revoltosos se refugiavam nas montanhas e Lemos Pires e os militares metropolitanos partem para Portugal. Esta situação arrastar-se-ia por vinte anos, quando o massacre de timorenses no cemitério de Santa Cruz, da responsabilidade das forças ocupantes, parece ter despertado a atenção do mundo, surgindo então a solução diplomática que leva à independência de Timor-Leste, um pequeno território de 20.000 Km2 altamente deficitário e que isolado não pode sobreviver como um estado independente. A situação de instabilidade, de insegurança e de carências de todo o género são bem a prova disso. O Dr. Almeida Santos, da primeira vez, em 1974, quando se deslocou àquelas paragens, e depois de ver com os seus próprios olhos o apego daquelas gentes a Portugal, não tinha dúvidas de que ali não seria necessário qualquer referendo para se cumprir o estabelecido no programa do MFA. Mas Mário Soares sustentou que, perante o mundo, Portugal teria que deixar as suas colónias, e Timor não podia ser excepção. Foi a sua vontade que se cumpriu e hoje, passados mais de trinta anos, os povos timorense e português estão a pagar bem caro as loucuras do Sr. Soares, que pretendia, tão-só, tirar dividendos em proveito próprio para se guindar ao estrelato dos políticos da actualidade. Ele sempre primeiro, acima de tudo e de todos. E assim se cumpriu a estratégia definida por Moscovo e que levou ao golpe comunista do 25 de Abril.


Golpe comunista de 1974






























































































O programa do MFA - respeitar a vontade das populações - acabaria por não se respeitar em qualquer território. Na Guiné, o PAIGC declarava que a Guiné já era independente antes do 25 de Abril; em Angola havia 3 movimentos de libertação, o que tornava a realização de qualquer referendo uma tarefa impossível; em Moçambique, no primeiro encontro que tiveram, Samora Machel afirmou que todo o moçambicano que votasse num referendo era um traidor; em S. Tomé e Príncipe inventou-se um movimento no Gabão ao qual Jorge Campinos, em nome de Mário Soares, entregara o poder; em Cabo Verde, o Tenente Judas resolveu rapidamente a questão, mandando um ultimato ao governo central, e Almeida Santos entregou o poder ao PAIGC, contra a vontade dos cabo-verdianos, E assim se cumpriu o programa do MFA.

Mas enfatizemos que, antes do Ten. Cor. Lemos Pires e do seu grupo de colaboradores terem chegado a Timor, se deu a entrega da Guiné ao PAIGC, o que significou ser autor moral do fuzilamento de milhares de guineenses; que o então ministro dos Negócios Estrangeiros andou aos abraços a Samora Machel, quando os soldados das nossas FA continuavam a lutar e a morrer na província em defesa das suas populações; que tudo se preparava para reconhecer o MPLA, a FNLA e a UNITA como únicos e legítimos representantes da população de Angola, aceitando o que o nosso Ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos, afirmara em Lusaca: "a legitimidade que se conquistou pelo sangue não é menos límpida do que a que se justificou pelo voto, ao contrário do que, na sequência das distorções mentais do passado, propendem a pensar alguns".

Também o secretário-geral do PS afirmou que era"necessário convencer o mundo da intenção sincera de Portugal de abandonar as suas colónias". Em resumo, que a responsabilidade do Ten. Cor. Lemos Pires e do seu grupo de colaboradores se tem de situar dentro da chamada descolonização, que Mário Soares, ainda em princípios de 1976, classificava de incontestável sucesso.

Acontecia que Almeida Santos desconhecia a estratégia de Moscovo, ignorava que o 25 de Abril tivesse sido, tão simplesmente, um golpe comunista, veio para a Metrópole por pensar que poderia ser útil na chamada descolonização, dada a sua grande experiência em África. Ambicioso, dotado de excelente capacidade intelectual, tribuno por natureza, dispunha de todos os predicados para triunfar no manicómio onde Portugal mergulhara. Quando me encontrava em Luanda, nas funções de Alto-Comissário, na tal missão impossível, foi o único responsável político que se preocupou pela tragédia que se vivia em Angola. Todas as semanas me contactava telefonicamente e, com alguma frequência, deslocou-se até Luanda para tentar encontrar uma solução para a guerra que grassava entre os três movimentos. Chegou mesmo, depois de muitas horas de reuniões com as delegações dos movimentos, a conseguir acordos de cessar-fogo que todos assinavam e prometiam cumprir, talvez só por algumas horas. Chegámos à conclusão que o problema não era solúvel ali mas sim entre as superpotências que pretendiam estender a sua influência àquela enorme e rica região. Em todo este processo Almeida Santos cometeu erros como todos os que nele estiveram envolvidos, mas desconhecia, contrariamente ao seu amigo Soares, que estava a cumprir uma missão imposta por Moscovo (ibidem, pp. 111-143).












Ainda a "descolonização de Angola"

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Escrito por Silvino Silvério Marques





António de Spínola na tomada de posse do I Governo Provisório.



Álvaro Cunhal na tomada de posse como ministro sem Pasta do I Governo Provisório.

























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«Da autoria de José Pestana, transcrevo, com a devida vénia, da Revista Visão de 6 de Outubro de 1994, o artigo intitulado KGB recrutou oficiais das FA portuguesas. Numa Europa varrida pelo euro-comunismo, Álvaro Cunhal era um amigo com que se podia contar...

"Álvaro Cunhal era, na Europa Ocidental, um dos comunistas em quem melhor se podia confiar", afirmou à VISÃO o major-general Oleg Kalugin, antigo chefe da contra-espionagem do KGB — o Primeiro Directório. "Toda a operação foi possível devido ao envolvimento do PCP", acrescenta, a propósito do desvio de arquivos da ex-PIDE/DGS para a embaixada soviética em Lisboa e, posteriormente, para Moscovo. "Os comunistas portugueses tinham os seus próprios amigos infiltrados nas forças de segurança e nos que tomavam conta dos arquivos da PIDE e foram eles que ajudaram a transportar os documentos para a nossa embaixada", recorda.

O antigo dirigente da polícia secreta soviética afirma que foram recrutados agentes entre os oficiais das Forças Armadas Portuguesas, no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974.

"Foram recrutados pelas afinidades ideológicas", acrescenta, esclarecendo que, por essa razão, não trabalhavam em troca de remuneração.

Na conversa com a VISÃO, Oleg Kalugin demonstrou um perfeito conhecimento da situação política e dos protagonistas do pós-25 de Abril. E revelou conhecer em profundidade a situação então vivida nas ex-colónias portuguesas. Acima de tudo, o ex-chefe da contra-espionagem soviética mostra que sabe do que está a falar.

Referindo-se a Álvaro Cunhal, Kalugin abriu um sorriso e disse que o antigo secretário-geral do PCP era um dos melhores amigos que os soviéticos podiam ter. E recorda que o euro-comunismo que varria a Europa e tinha a sua expressão maior no PC italiano de Enrico Berlinguer, provocava grande inquietação em Moscovo.

O ex-oficial soviético esclarece que o maior interesse era o de obter informações relativas ao funcionamento da NATO. Interrogado se os oficiais então recrutados ainda estão no activo, respondeu com um lacónico "não sei".

GROTESCO. Na sequência da Revolução portuguesa, e numa operação descrita como uma das mais audazes do mundo da espionagem, Oleg Kalugin conta, num livro acabado de publicar nos EUA, como simpatizantes comunistas portugueses passaram aos serviços secretos da União Soviética um camião carregado de documentos que permitiriam a Moscovo forçar alguns antigos agentes da PIDE a espiar para o KGB.

A obra, intitulada precisamente O Primeiro Directório, escrita com a ajuda do antigo correspondente em Moscovo do The Philadelphia Inquirer, Fen Montaigne, foi editada pela St. Martin's Press, Nova Iorque. Numa das suas 364 páginas, o antigo oficial de Moscovo relata:

"Um dos mais grotescos episódios das operações europeias do KGB durante a minha comissão ocorreu em meados dos anos 70 em Portugal, logo a seguir à queda da ditadura de Salazar. O Partido Comunista Português era o terceiro maior da Europa (depois do italiano e do francês), e na segunda metade da década o socialismo e o comunismo gozavam de amplo apoio no país. A verdade é que nós tínhamos agentes em todos os escalões do serviço secreto português, e no caos que sucedeu à revolução socialista que derrubou Salazar (sic) os nossos agentes executaram um audacioso golpe. Certa noite, com o auxílio de toupeiras e simpatizantes no interior do aparelho de segurança, portugueses ao serviço do KGB foram de camião até ao Ministério da Segurança (sic) e tiraram de lá para fora um monte de documentação classificada, incluindo listas de agentes da polícia secreta que haviam trabalhado para o regime de Salazar. O carregamento foi entregue na nossa embaixada de Lisboa e mais tarde transportado por via aérea para Moscovo, onde os analistas gastaram meses a analisar todos esses papéis. Portugal era membro da NATO, de onde haver algum material sobre operações militares norte-americanas na Europa, se bem que de limitado interesse. Mas o material realmente importante era a lista de milhares de agentes e informadores que tinham trabalhado para a ditadura de Salazar - informação que os nossos funcionários posteriormente usaram para forçar alguma dessa gente a trabalhar para nós. Na história dos golpes de informação secreta da guerra fria, a operação portuguesa não terá sido um êxito colossal; mas pela sua absoluta audácia - safar do próprio Ministério da Segurança (sic) um camião repleto de material - poucas acções terão rivalizado com ela".


Assinatura do Tratado do Atlântico Norte (1949)



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A referência ao inexistente "Ministério da Segurança"é explicável pela confusão instalada em Portugal nessa altura. As atribuições de segurança estavam repartidas entre diversos organismos, no seio dos quais simpatizantes de várias tendências políticas de esquerda lutavam pelo controlo das informações. Destacavam-se, entre eles, a 2.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas e o Copcon. Mas quem, no seu perfeito juízo, poderia conceber, em plena guerra fria e num país da NATO, tão inacreditável operação?

(...) Da Revista Visão de 6 de Outubro de 1994, p. 24, transcrevo, com a devida vénia, o artigo que segue de Pedro Vieira



O Mistério dos Arquivos Voadores 

Se a operação de transferência de material dos arquivos da PIDE para Moscovo foi feita com a colaboração do PCP, então Álvaro Cunhal teve a última palavra.

"Aquilo está a saque», diz-nos um oficial no activo e antigo membro do MFA (Movimento das Forças Armadas), referindo-se à situação na sede da PIDE nos primeiros dias a seguir ao 25 de Abril de 1974. Terá sido nesse período inicial de euforia e de confraternização que se operou a primeira "limpeza" nos arquivos. Militantes comunistas terão avançado para se apropriarem dos dossiers dos dirigentes do PCP e de outros militantes, designadamente daqueles cujo comportamento na polícia interessava verificar: se tinha denunciado alguém, se foram informadores a troco da liberdade, se só falaram depois de torturados. Coincidência ou não, Canais Rocha, um sindicalista e ex-preso político, inicialmente indicado pelo PC para ministro do Trabalho do I Governo Provisório, acaba por ser preterido a favor de Avelino Gonçalves, que haveria de ter a mesma sorte sob a acusação de "pecados" idênticos. Entretanto, desembarcavam em Lisboa funcionários soviéticos com o estatuto de quase-libertadores. O Hotel Tivoli foi um dos seus centros operacionais. Para evitar escutas, utilizavam a velha técnica da torneira aberta: o ruído da água cobre a voz humana.

O advogado José Augusto Rocha, jurista da Comissão de Extinção e da Associação de Presos Anti-Fascista, lembra-se de que poucos dias depois do 25 de Abril entrou na Rua António Maria Cardoso, onde viu não só arquivos - por exemplo os processos de escutas a Pinto Balsemão e Sá Carneiro - mas o seu próprio processo e o de Saldanha Sanches (MRPP), bem como equipamento de escuta.

A facilidade de acesso às instalações da Rua António Maria Cardoso explica-se pelo amadorismo político da maioria dos militares, apenas preocupados em controlar um alvo estratégico sem derramamento de sangue.

FOGUEIRA. O brigadeiro Manuel Monge, membro da Casa Militar do Presidente da República e um dos conspiradores do falhado golpe das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, regista que oficiais da Marinha, apesar de serem minoritários no MFA, tentaram controlar tudo o que se relacionava com informações, só não tendo tomado conta da Legião Portuguesa graças à oposição de Adérito Figueira, actualmente general do Exército.

O general Galvão de Melo assumiu a tutela da Comissão de Extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa até Junho, data em que foi substituído pelo almirante Rosa Coutinho. Galvão de Melo, que voltou àquela comissão quando o almirante foi nomeado presidente da Junta Governativa de Angola, disse à VISÃO que, na altura, alguns oficiais da Marinha lhe confessaram pertencer ao PCP, mas que tal facto não os inibiria de colaborar com ele.

"Tive ocasião de consultar o volume que me era dedicado. Tinha um tamanho razoável, o que me levou mesmo a perguntar como seria a 'biblioteca' de Álvaro Cunhal. Claro que esse era um dos ficheiros que já lá não estava", acrescenta.




Álvaro Cunhal








Por decisão da JSN, que assumiu o poder na sequência do golpe, a documentação da PIDE/DGS fora transferida ao fim de um mês ou dois para o reduto Norte de Caxias, um espaço amplo e seguro tornado disponível pela libertação dos presos políticos. No entanto, o material de escuta continuava na Rua António Maria Cardoso, sede da extinta PIDE. Os fuzileiros guardaram o material e armadilharam os ficheiros. Se alguém tentasse retirá-los, explodia tudo.

No reduto Sul de Caxias, onde a polícia política procedia a interrogatórios e torturas, também havia documentação relativa a presos políticos. Segundo nos afirma o comandante Conceição da Silva, antigo presidente da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, nos dia 25 e 26 de Abril os agentes da polícia queimaram muita dessa papelada numa piscina, cujas paredes até rebentaram devido ao calor. Também no terceiro andar da António Maria Cardoso, os agentes da PIDE, surpreendidos pela Revolução, queimaram a maioria dos ficheiros relativos aos seus informadores. Em Caxias, o principal responsável era o comandante Abrantes Serra, que dirigiu a operação de libertação dos presos políticos na noite de 26 para 27 de Abril.

"Quando fui nomeado rodeei-me de pessoas de confiança, nomeadamente o jurista Alfredo Caldeira [afecto ao MRPP] e Fernando Oneto, que ficou encarregado do caso Humberto Delgado, um processo emblemático que ficou pronto antes de eu sair da Comissão de Extinção", disse à VISÃO o comandante Conceição e Silva. Acrescentou que não tinha conhecimento do que se passava em Caxias, mas salienta que, quando foi para a sede da polícia política, "no terceiro andar, onde se encontravam os arquivos, havia sinais de armários arrombados. Eram armários metálicos verticais e as fechaduras apresentavam indícios de violação".

Uma outra fonte que não se quis identificar refere também que os dossiers relativos à África seriam fundamentais para a URSS, nomeadamente no acesso a toda a estrutura dos movimentos de libertação e dos contactos, em particular com os serviços secretos sul-africanos e rodesianos. Aliás o KGB terá contado também com o auxílio dos serviços secretos da ex-RDA para a espionagem tanto em Portugal como nas suas colónias africanas.

Depois da subida ao poder de Yeltsin, em 1991, o KGB dividiu-se em Serviço Federal de Contra Espionagem (SSK) e Serviço de Espionagem Exterior (SVR). Mas o pardo edifício, de aparência sinistra, é o mesmo, na Praça Lubianka, antiga Praça Djerzinski, homenagem ao fundador da polícia política soviética. Vladimir Avrovski, número dois da Embaixada da Rússia, disse à VISÃO que a sua representação diplomática está a seguir o assunto apenas através dos meios de informação, salientando que o "caso tem a ver com um Estado que já não existe".


Praça Lubianka


Ultrapassados os primeiros dias que se seguiram à Revolução, com a situação mais controlada, desenha-se o plano de desmantelamento da PIDE. Apesar de estar enquadrada por militares, designadamente da Marinha, as tarefas de análise dos documentos cabia aos civis que actualmente [agem] de acordo com uma lógica partidária. Por decisão da JSN, os partidos políticos então existentes poderiam ter acesso à documentação da PIDE/DGS. Cada força política encarregava-se dos "seus" dossiers. Havia elementos do PCP, do PS, da LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) e do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado). Não se discriminava ninguém, mas, na prática, só o PCP dispunha de estrutura, organização e funcionários em número suficiente e com capacidade para aproveitar essa possibilidade de acesso. 


O PCP destacou para a Comissão de Extinção elementos de primeira linha, como Rogério de Carvalho, António Graça, Gaspar Ferreira, João Honrado e Veiga de Oliveira. 


Segundo uma fonte muito bem colocada, durante cerca de um mês, Rogério de Carvalho, membro do comité central do PCP, caminhou diariamente para o reduto Norte de Caxias com uma equipa de 10 funcionários do partido. Eles cumpriam um horário de trabalho de oito horas, com saída às 18, vasculhando os arquivos de ponta a ponta. 


Um alto dirigente militar do MFA, que pediu para não ser identificado, classificou Rogério de Carvalho como o "elemento-chave do PCP dentro da Comissão de Extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa". Revelou ainda que se encontrou por diversas vezes com aquele elemento do comité central do PCP em casa de militantes comunistas, onde lhe eram fornecidas informações específicas que constavam dos arquivos da polícia política. 


Veiga de Oliveira, ex-preso político e dissidente do PCP, que também trabalhou na Comissão de Extinção, interrogado pela VISÃO, disse que passou por lá pouco tempo e só no início, nada sabendo a esse respeito. 


Fernando Oneto, já falecido, que estava na Comissão de Extinção em nome da dupla ligação ao PS e à LUAR, fez em Março de 1975, com grande impacto público, a denúncia de que se pretendia criar uma nova polícia política e reclamou uma sindicância à Comissão de Extinção da PIDE/DGS. 


Uma fonte digna de crédito disse à VISÃO que elementos do PCP utilizaram os ficheiros da PIDE para exercer chantagem política sobre militares. Citou o caso concreto de um oficial do Exército que, para surpresa dos amigos, viria a assumir posições radicais durante o processo revolucionário. Mais tarde, esse oficial confidenciou que foi convidado a colaborar com o PCP ao mesmo tempo que era confrontado com uma carta em que se dispunha a ingressar na DGS (novo nome da PIDE). Entretanto, conseguiu matricular-se na Academia Militar e desistiu do emprego na PIDE.


KGB. Numa entrevista a Carlos Fino, transmitida pelo Canal 1 no Telejornal do último dia 27 (e que despoletou este caso), Oleg Kalugin afirmou que "directamente sob a minha responsabilidade, foram criados núcleos de agentes nas Forças Armadas, no Exército, na Marinha e na Polícia".





Atenta, a NATO levou a sério a suspeita de que Lisboa passava segredos para o Leste, e, assim, desde Agosto de 1974 até Junho de 1980, deixou de mandar para Portugal documentação classificada. Durante esse período, o nosso país foi tratado como se não fizesse parte da estrutura militar da Aliança Atlântica. A situação só foi resolvida na sequência da participação do general Ramalho Eanes numa cimeira da NATO.

Antigos colaboradores da Comissão de Extinção, que trabalhavam no reduto Norte da Prisão de Caxias, contaram à VISÃO que um dia, às 7 da manhã, encontraram "a fotocopiadora a ferver" e os funcionários afectos do PCP a trabalhar. No entanto, os serviços encerram, como habitualmente, no fim do dia anterior: durante a noite ou de madrugada, aqueles elementos entraram nas instalações e fotocopiaram documentos.

"Num dia faltavam umas folhas, na semana seguinte faltavam mais e, pouco depois, o dossier resumia-se a meia dúzia de folhas sem qualquer significado", afirma um ex-funcionário da Comissão de Extinção, que solicitou o anonimato. 


APETITES. Um dissidente comunista assegurou à VISÃO que o PCP tem em Moscovo numerosos documentos - cópias ou originais - relativos à sua vida interna e à sua história: até 1943, no Centro de Conservação de Documentação Contemporânea, antigo arquivo do Instituto de Marxismo-Leninismo, onde se conserva o espólio da Internacional Comunista (e de onde acabam de sair revelações concernentes nomeadamente a esse ponto escaldante chamado Pavel); de 1943 até Agosto de 1991, no Centro Russo de Conservação e Utilização de Documentos da História Contemporânea, antigo arquivo do PCUS.


O arquivo oficial do PCP, esse está na Rua Soeiro Pereira Gomes, aberto à consulta de investigadores. No entanto, mantém um núcleo de documentação secreta, havendo alguns documentos que, de tempos a tempos, são libertados para o arquivo oficial.

As grandes questões que se colocam é saber que documentos da PIDE foram entregues ao KGB, com a colaboração de quem, e como e quando foram enviados para Moscovo.

O major Sousa e Castro, antigo membro do Conselho da Revolução e responsável da Comissão de Extinção desde o pós-25 de Novembro de 1975 até 1982, diz-nos que qualquer polícia secreta tinha interesse em determinados documentos portugueses. Aliás, duas fontes asseguram-nos de forma taxativa que um dos elementos da Comissão, não afecto ao PCP, trabalhava para os serviços secretos franceses. Admitem, por isso, que alguns documentos (originais e fotocópias) estejam em França.

"É credível que alguns documentos tivessem ido para a URSS, mas não nessa quantidade que se diz. Quando se fala em vários camiões ou contentores é um exagero, é um provincianismo. As secretas da URSS o que queriam eram informações sobre sistemas de armas e doutrinas militares" - de acordo com a tese de Sousa e Castro.

Segundo Rosa Coutinho, alguns documentos poderão estar em Moscovo, mas também estarão em Washington, Paris e Berlim Leste.

OAS. O facto é que, além de pastas individuais de membros do PCP, dossiers tão sensíveis como o das relações com outros serviços secretos ocidentais, designadamente a CIA (Agência Central de Informações) norte-americanas, o SDECE (Serviço de Documentação Externa e Contra-Espionagem) francês - um parceiro privilegiado, rebaptizado DGSE (Direcção Geral de Segurança Exterior) na era Mitterrand - o Ml5 inglês e a Mossad israelita, acabaram por desaparecer.










Vista aérea do quartel-general da CIA (Langley, Virginia).

























Do mesmo modo, os dossiers da OAS (Organisation de L'Armée Secrète/Organização do Exército Secreto), uma força terrorista-defensora da manutenção da Argélia francesa, que chegou a atentar contra a vida do presidente de Gaulle, também levou descaminho. À pasta do "caso Angoche" aconteceu o mesmo do que à tripulação daquele navio, desaparecida sem deixar rasto depois de levantar âncora da Beira, no início da década de 70.

O dossier da OAS não pertencia à PIDE, mas foi descoberto na sequência dos contactos da polícia política com a Aginter Press, uma agência de informação francesa criada por ex-elementos da OAS, que tinha escritório na Rua das Praças, em Lisboa. A Aginter era dirigida por Jacques Ploncard d'Assac, um francês já falecido que vivia em Portugal desde 1945. O seu braço direito era Jean Haupt, que também já morreu. Este serviço identificava-se com o governo de Vichy, que colaborou com os invasores alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Os seus dirigentes eram frequentadores do Círculo Eça de Queiroz, onde tinham contactos frequentes com o cineasta António Lopes Ribeiro e com Ramiro Valadão, presidente da RTP à data de 25 de Abril de 1974.

Foi através da Aginter Press que a Comissão de Extinção teve acesso aos dossiers da OAS, um dos mais disputados pelos serviços secretos. Nas instalações foram encontrados passaportes falsos, fotografias, carimbos e muitos relatórios que revelavam a rede da organização em Portugal, Espanha e Brasil. O chefe da OAS em Lisboa era um francês com o nome de guerra [Ives] Sérac.

CAMIÕES - Um antigo dirigente comunista disse à VISÃO que uma operação de transferência de arquivos para Moscovo, se envolveu o PCP, teve de ser decidida ao mais alto nível do poder real dentro daquele partido, o que, na prática, quer dizer Álvaro Cunhal e o seu número dois Octávio Pato. No entanto, Oleg Kalugin atribui quase a uma movimentação informal a participação do PCP nesse processo. Outras fontes salientam ainda que, de qualquer forma, a entrada e saída de Caxias de um camião com documentação só poderia acontecer com autorização expressa dos militares.

De acordo com o general do KGB, os arquivos, uma vez entregues na Embaixada da URSS, seguiram para Moscovo numa carreira regular da Aeroflot. Como viajaram de Caxias ou da António Maria Cardoso até à Embaixada? De camião, responde Oleg Kalugin. Mas quem o carregou e quem o conduziu?

A prevalecer a afirmação do envolvimento do PCP ou de alguns dos seus membros, só depois das crises de 28 de Setembro de 1974 ou, até de 11 de Março de 1975, o ascendente daquele partido poderá ter criado condições para uma operação de tal envergadura. No 28 de Setembro, o PCP receou uma reviravolta da situação política e pôs a salvo ficheiros do partido, entregando-os a pessoas da sua confiança. É plausível que nessa altura tenha também despachado documentos para Moscovo. 







A dita Junta de Salvação Nacional (1974)


Em Agosto de 1974, por decisão do general Galvão de Melo enquanto membro da JSN, o material relativo às relações com polícias estrangeiras foi transferido da sede da PIDE para a 2.ª Divisão - DINFO, instalado no Palácio da Cova da Moura (onde está hoje na Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus). Criada por Costa Gomes no âmbito do EMGFA (Estado-Maior General das Forças Armadas), controlava informações militares e de segurança do Estado. O primeiro chefe da 2.ª Divisão foi o general Melo Xavier, mas adoeceu e foi substituído pouco tempo depois pelo brigadeiro Pedro Cardoso, uma figura de consenso entre Spínola, Costa Gomes e Vasco Gonçalves. A 2.-ª Divisão ainda sobreviveu algum tempo às mudanças revolucionárias de 11 de Março de 1975, mas em Maio foi substituída pelo SDCI (Serviço Director e Coordenador da Informação), na dependência do Conselho de Revolução e dirigido por três dos seus membros: director, o comandante Almada Contreiras; subdirectores, o major Pereira Pinto (Força Aérea) e o capitão Ferreira Macedo (Exército). "Era o trio revolucionário", segundo comentou uma fonte militar. 

Carlos Carvalhas, secretário-geral do PCP, disse à VISÃO não estar preocupado com as recentes acusações de o seu partido ser o responsável pelo desvio de arquivos da PIDE/DGS para Moscovo. "Nesta última semana ninguém do partido dormiu a pensar nos arquivos da PIDE", ironizou. Considerou "absurdas" aquelas acusações e classificou de "manobra de distracção" desenterrar agora uma história com 20 anos».

Fernando Pacheco de Amorim («25 de Abril. Episódio do Projecto Global»).


«É no Partido Comunista, nas novas gerações da oposição democrática e nos católicos liberais, que a oposição à guerra de África encontra os seus apoiantes. Mas foi nas universidades - donde entretanto foram saindo aquelas centenas de oficiais milicianos que em cada incorporação eram necessários - que o movimento anti-guerra encontrou melhores dias.

A guerra, ao permitir e justificar o investimento de recursos nos territórios africanos, deu origem, sobretudo em Angola, a uma dinâmica de crescimento que facilitou, depois do confronto e reconquista de 1961-1965, o disparar de um desenvolvimento económico-social rapidíssimo, que embora beneficiando em primeiro lugar e em maiores proporções "os colonos", acabou por beneficiar toda a sociedade.

Isso explica a melhor situação militar na então jóia da Coroa do Império português, em relação aos outros territórios. Aí funcionou a contenção militar e a consolidação desse controlo que trouxe a estabilidade que permitiu o desenvolvimento económico e social.











Outro factor importante, foi a participação crescente do pessoal local no esforço de guerra. Em 1974, em Moçambique, havia nas forças governamentais mais militares do recrutamento local, que metropolitanos. Em Angola equivaliam-se. Só na Guiné, o número do contingente metropolitano, continuava a ser dois terços dos cerca de 36.000 homens em operações.

Até ao 25 de Abril de 1974, nunca se registou um caso de uma povoação ou um aquartelamento importante que tivesse sido tomado ou ocupado pelo inimigo; os prisioneiros portugueses eram, até essa data, em números ínfimos.

Mao Tse-Tung, tão celebrado pela "Intelligentsia" esquerdista pelos seus escritos e feitos de guerra, tinha considerado que o problema militar das guerras revolucionárias não era de como acabar com a guerra. Este - como "acabar e vencer a guerra" - era questão à qual os pensadores militares ocidentais dirigiram a maior parte da sua atenção e esforços intelectuais e práticos. Mas para Mao, a questão era saber não como acabar, "vencer a guerra", mas continuá-la indefinidamente, fazendo o opositor perder.

Ou seja, para o grande Timoneiro, estas guerras (as guerras "subversivas", "coloniais" ou "revolucionárias") não se ganhavam mas podiam perder-se. E quando uma parte perdia, a outra, o inimigo, ganhava.

Salazar pensava assim e procurou equacionar a defesa do Ultramar nesses mesmos termos: organizar o país e as Forças Armadas para um conflito de longa duração, esperando que "os outros" se cansassem primeiro.

Até que ponto, a alteração desta perspectiva, a partir de 1968, com a recolocação do "problema do Ultramar" como "problema nacional" e alguma ânsia e nervosismo quanto à sua solução, não veio atingir, politicamente, essa vontade? Até que ponto a não alteração do modelo de organização militar, não respondendo a problemas centrais do Corpo de Oficiais - os Exércitos territoriais podiam ter sido uma alternativa - não contou para a deterioração, não tanto da situação militar mas da situação política e psicológica da população e do país, tornando-os vulneráveis à propaganda e aos "ventos da mudança"?

Não sabemos e a História acontecida, com todo o peso e pedagogia dos factos consumados, impede-nos de especular na linha de um what if, ainda que este seja sempre intelectualmente gratificante».

Jaime Nogueira Pinto («Prefácio in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).









«... tive a honra de conhecer e de contactar numerosas vezes com o Senhor Contra-Almirante Pinheiro de Azevedo. Tive então ocasião de perguntar ao Senhor Contra-Almirante a que tinha obedecido a alteração do programa das FA e da legislação então publicada, em relação ao Ultramar, isto é, porque não se tinha aguardado uma nova Constituição para então dar cumprimento às resoluções da ONU.

O Senhor Contra-Almirante informou-me então que o que levou a alterar o compromisso assumido pelo MFA perante a Nação, tinha sido uma resolução tomada em reunião do Conselho de Estado. Disse-me que estivera várias vezes para denunciar publicamente este facto, mas que sempre hesitara com o receio de aumentar ainda mais, com a sua revelação, a grande confusão então existente.

Que se passara em tão importante reunião do Conselho de Estado, mantida tão secreta pelos seus membros num País onde não é possível guardar segredos?

Logo me assaltou a suspeita de que só a má consciência dos seus membros poderia conseguir um tal milagre neste País de linguareiros.

O Senhor Contra-Almirante confirmou-me essa suspeita! Na verdade informou-me que em determinada reunião daquele órgão de soberania, o Prof. Freitas do Amaral defendera, numa extensa exposição, que não seria necessário esperar por uma nova Constituição para se dar início ao processo de descolonização, pois que a legislação em vigor permitia que se lhe desse início.

O Senhor Contra-Almirante, ainda a propósito do Prof. Freitas do Amaral, disse-me que após a sua exposição, os militares, embaraçados, se entreolharam, surpreendidos, mas naturalmente sem argumentos para combater os da tese apresentada e que, os restantes membros do Conselho que poderiam ter argumentado dada a sua formação académica, logo se manifestaram em calorosos elogios à proposta apresentada, tendo ficado desde logo decidido dar-se início à descolonização.

Estava dado o primeiro passo de uma grande tragédia.

Tendo, mais tarde, procurado informar-me de quem tinha acesso às actas do Conselho de Estado, para me certificar da exactidão da informação que o Senhor Contra-Almirante me tinha dado, constou-me que o Senhor General Eanes, logo após a tomada de posse da Presidência da República, tendo querido chamar a si aquelas actas e as da Comissão da Descolonização foi informado do seu desaparecimento. Será verdade? Não me surpreende que o seja. Haverá alguém que se surpreenda?».

Fernando Pacheco de Amorim («25 de Abril. Episódio do Projecto Global»).
















Freitas do Amaral, Sá Carneiro e Ribeiro Teles



Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal











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«Em Abril de 1973, entrei para a tropa e parti para uma outra África. Depois de fazer o curso de APSIC (Acção Psicológica), e tendo ficado bem classificado, não devia ser mobilizado para servir no Ultramar, já que a escala de mobilização começava pelos últimos. Paradoxalmente era assim que funcionava. Por isso achei que o mínimo que podia fazer era oferecer-me voluntariamente. Foi o que fiz em Janeiro de 1974, mas como, ainda assim, não fui chamado, troquei com um outro aspirante do meu curso que tinha sido mobilizado para Angola - o Arnaldo Cadavez.

Tudo isto em vésperas do 25 de Abril.

E acabei por embarcar para Angola em Julho de 1974. Desta vez ia para a África real - a física, a viva, a verdadeira. Dois meses depois do 25 de Abril, quando se jogava a perder o projecto político em que acreditava, mas ia. E era por isso que ia, talvez ainda a tempo de uma última cartada que pudesse emendar a mão.

Lisboa vivia então aquele caos benevolente do princípio do PREC, em que choviam promessas de tudo para toda a gente. Com o governo de Palma Carlos, variando de Sá Carneiro a Álvaro Cunhal, Spínola tentava gerir o fervilhar de um caldeirão tapado há quase meio século. Valiam os brandos costumes e o sermos uma nação antiga em que quase toda a gente se conhece ou relaciona, uma nação com uma identidade - religiosa, étnica, linguística - consolidada por novecentos anos de vida em comum. Eu estava discretamente na linha da frente da organização das "forças de direita", fazendo o go-between entre estas e alguns possíveis beneméritos.

Nas Forças Armadas confrontavam-se o MFA, apoiado pelo PC e pela extrema-esquerda, minoritário mas com estratégia, e uma massa de oficiais conservadores, despolitizados e sem estratégia alguma, que se acolhiam à sombra do "spinolismo".

A questão de África era vital. Em Moçambique e na Guiné, a FRELIMO e o PAIGC intensificavam os ataques, ao mesmo tempo que a propaganda esquerdista contribuía para a indisciplina das tropas. Tratando-se de um exército de contingente geral, era até compreensível a desordem: se o abandono incondicional estava iminente, ninguém queria ser o último a morrer na véspera do cessar-fogo.

A estratégia das forças civis e militares que ainda se preocupavam com o destino do Ultramar, e onde Spínola se inseria, era tentar salvar os interesses portugueses em Angola, retardando o processo de independência e animando ali os sectores pró-portugueses e anticomunistas.

Para pôr em prática esta política, Spínola e a Junta de Salvação Nacional escolheram para governador-geral o general Silvino Silvério Marques. O general já tinha sido governador de Angola e de Cabo Verde. Era um nacionalista católico e integracionista, pai de uma numerosa família, conhecido pela sua honorabilidade e humanidade nas relações com as populações. O alegado excesso de zelo com que sempre defendera e promovera as gentes do ultramar chegara-lhe até a valer, nalguns sectores mais apoplécticos, o epíteto de "governador dos pretos". Silvino Marques estivera primeiro para ir para Moçambique, mas, por oposição de Almeida Santos e do grupo de Democratas de Moçambique que queriam um homem seu para o cargo, acabou por ir para Angola. O que dava mais algum espaço à minha esperança.

(...) Em poucos dias estava em acção: visitei as pessoas a quem ia recomendado - o João Raposo Magalhães, o Carlos Eugénio Paço d'Arcos, o Comandante Carlos Almeida Pinheiro. Enquanto aguardava destino, ia até ao Palácio do Governo na Cidade Alta, onde estava o Nuno Cardoso da Silva. Havia grande tensão em Luanda, formavam-se grupos e grupúsculos, com o MPLA a actuar através da LNA - Liga Nacional Africana. Mas no resto a vida seguia igual, com a força de uma cidade com grandes carros, bons restaurantes, bons hotéis - o Trópico, o Continental - mulheres bonitas e a praia na ponta da ilha, na Barracuda. Uma cidade muito portuguesa onde parecia não ter chegado o 25 de Abril - ou eu, que vinha da Metrópole, assim o entendi.






Barcos ancorados na então chamada Praia da Câmara em Lourenço Marques, no segundo decénio do século XX. Ao fundo vê-se o Paiol e à sua esquerda o edifício da então Câmara Municipal.


Vista da Praça Mouzinho de Albuquerque, em Lourenço Marques (1960).




A 24 de Julho



A fachada do edifício da Câmara Municipal de Lourenço Marques (1960).



A escadaria em frente da Câmara Municipal




Vista da Câmara Municipal de Lourenço Marques (1969).



Vista da Praça Mouzinho de Albuquerque em Lourenço Marques (1960).




A estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque que existiu entre 1930 e 1975.




Vista de longe da então Praça Mouzinho de Albuquerque - hoje Praça da Independência (10 de Junho de 1973). Na cidade realizava-se uma parada militar. No ar, quatro helicópteros Alouette voando em formação.



O desmantelamento da estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque no primeiro semestre de 1975. Foi substituída por uma estátua de Samora Machel.










A cidade era, como todas as cidades de África, duas cidades. A cidade do asfalto, onde viviam os brancos, os mestiços e os negros das classes médias; e os muceques, os bairros negros da periferia. Embora a separação não fosse rígida (tal como havia negros assimilados a viver no asfalto, também havia famílias brancas de menores recursos a viver nos muceques), notavam-se diferenças. Mas ainda assim, o clima inter-racial em Angola era diferente e mais relaxado do que o de Moçambique. Havia, em Luanda, engraxadores e criados de mesa brancos, coisa que não se via na outra costa, muito influenciada pela África do Sul e pela tradição britânica.

Enquanto corria na Metrópole o Verão morno de 74, Silvino Silvério Marques procurava fazer qualquer coisa a partir do Palácio. Era vigiado de perto e muito controlado pelos MFAs - chefiados pelo Pezarat Correia, que tinha estado como comandante dos catangueses e era o homem do MFA em Angola. Mas Pezarat vivia isolado da grande maioria da oficialidade e sob desconfiança dos civis.

Entretanto, recomeçara a minha guerra. Andava a conspirar desde o 25 de Abril, e fazê-lo agora ali, naquela Luanda onde não se fazia outra coisa, era estar como os peixes na água de Mao Tse-Tung. A diferença em relação a Lisboa era que ali já não era a feijões, ali morria-se.

A violência em Luanda, que fora tremenda entre Fevereiro e Abril de 1961, ressuscitara com o 25 de Abril. A agitação, muito contida pela DGS e pela sua rede de informadores, renascia em força e começava a ter reflexos raciais.

Quando, no dia 11 de Julho, foi esfaqueado um taxista no muceque do Marçal, os taxistas de Luanda, que eram uma corporação forte e exclusivamente branca, uniram-se para exercer represálias e partiram para os bairros periféricos em expedição punitiva. Com mortos e feridos.

Na sequência da investida dos taxistas, foi convocada por passa-palavra uma grande manifestação dos soldados negros da guarnição de Luanda, organizada, entre outros, pelo então aspirante Joaquim David (mais tarde Presidente da Sonangol, ministro da Indústria e uma das figuras políticas importantes de Angola). Fardados, desarmados, silenciosos, os soldados marcharam sobre a Fortaleza de S. Miguel, a sede do Comando-Chefe. Eu estava lá nessa manhã. Era impressionante a enorme espiral de muitas centenas, senão milhares, de homens, subindo o caminho de acesso ao forte, vindos da cidade e da ilha, sem tumulto, naquela ameaça muda da disciplinada indisciplina. Quando as primeiras filas chegaram, pôs-se a questão: abria-se-lhes as portas ou chamava-se a tropa de intervenção? Predominou a ideia de deixar entrar uma representação.

Mas entre os soldados e graduados brancos continuava a discussão. Perante a prevalência da linha conciliatória, a que defendia a entrada da delegação, disse-me um sargento: "Oh meu Alferes, deixe lá esses bimbos! Eu armo a minha secção e vou lá para cima! Não confio nestes gajos!". E foi mesmo. Eu fiquei.

Ganhou o modo dialogante. Uma representação dos manifestantes acabou por entrar e ficou a discutir com os oficiais, MFAs incluídos. E lá se chegou a uma solução, com garantias dos manifestantes de que dispersariam ordeiramente, e dos responsáveis militares de que não se repetiriam actos de violência de civis armados contra os muceques.

No dia seguinte, uma representação da Liga Nacional Africana (uma espécie de organização cultural frentista muito influenciada pelo MPLA) avançou para o Palácio do Governo em manifestação ruidosa. O General Silvério Marques recebeu-os como o fazia a toda a gente.

Com os dirigentes da Liga entrou, como se fosse um séquito, uma multidão de dezenas de militantes exaltados, hostis, gritando muito, embora contidos. Enquanto o general recebia os dirigentes, nós - eu, o Cardoso da Silva, o Dr. Pinheiro da Silva, que era membro do Governo, e os ajudantes - ficámos a discutir com eles na sala dos secretários, como num comício ou plenário. Alguns dos LNA eram bem preparados e até com sentido de humor. Como um que, quando Pinheiro da Silva disse que até o tinham ameaçado de morte, retorquiu: "Oh, Doutor Pinheiro da Silva, isso deve ter sido lá em Viana do Castelo!", aludindo a Pinheiro da Silva ter sido deputado por Viana, no tempo de Salazar.


Palácio do Governo (Luanda)


Silvino Silvério Marques foi sempre um homem de coragem - as portas do Palácio estavam e continuavam abertas e sem segurança especial. Tinha um jeito de ser tranquilo, aberto, muito nos antípodas dos tradicionais altos funcionários do regime - emproados, quando não arrogantes. Mas faltava-lhe o lado maquiavélico, o dark side ou o que se quiser chamar-lhe, aquela astúcia das serpentes, essencial para sobreviver e triunfar num período como o pós 25 de Abril, com um processo revolucionário em curso e em pleno centro do vendaval, numa Angola tão cobiçada, onde se teciam guerras e intrigas. No seguimento das represálias dos taxistas, da manifestação dos militares negros e da ida dos delegados da LNA ao Palácio, o MFA, de conluio com elementos esquerdistas de Luanda, fizera a cama ao Governador e preparava-lhe agora a queda.

Para tirar definitivamente o general do caminho, os dirigentes da LNA decidiram ir a Lisboa apresentar queixa de Silvério Marques. E dirigiram-se ao Banco Pinto & Sottomayor para levantar o dinheiro das passagens. O João (Jana) Raposo Magalhães, que era o Administrador-Delegado do Banco, telefonou-me a prevenir-me da jogada e disse-me: "Diz ao General que se for preciso eu demoro os tipos, não lhes dou já o dinheiro". Fui ter com o general e transmiti-lhe a mensagem. E ele: "Não, o Jana que lhes dê o dinheiro, que vão à vontade...".

E foram. Uma semana depois, estava Silvério Marques a ser chamado a Lisboa, por Spínola e pela Junta de Salvação Nacional - "para consultas".

(...) Assisti ao episódio: na casa de jantar de todos os dias do Palácio estávamos o Governador, a D. Marcelle, sua mulher, o Vasco Silvério Marques, seu filho e ajudante, o ten.coronel Mariz Fernandes, o Nuno Cardoso da Silva, eu e a Zezinha, que entretanto tinha vindo ter comigo a Luanda.

Quase no fim do jantar, um criado entrou para dizer ao Governador que tinha uma chamada de Lisboa, do Presidente da República. O general disse que atendia mesmo ali ao lado e que lhe passasse para lá a chamada. E assim foi.

Seguiu-se uma conversa tensa - de que nós íamos ouvindo parte e concluindo o resto. A meio, caiu a ligação e o general insistia com a menina da rede para repor a chamada: "Minha Senhora, esta chamada é muito importante!" E a menina da rede, do lado de lá: "É histórica, Senhor Governador, é histórica!".

Quando o general terminou a conversa, disse para a Mulher num tom ligeiramente emocionado: "Celinha, faz as malas!" Resposta: "Nunca as desfiz, Silvino!".

Seguiu-se uma discussão cerrada à volta da mesa, discussão muito pouco hierárquica, em que todos falávamos ao mesmo tempo, dizendo ao general que não podia nem devia ir a Lisboa, que se fosse não voltaria e que, com a sua saída, se acabava a hipótese de fazer qualquer coisa a partir de Angola, por Angola e por Portugal.

Partiu no dia seguinte. Pouco depois, a 27 de Julho, era o discurso de Spínola oficializando o fim do Império Português. Nessa noite, em Luanda, enquanto afogava a tristeza a beber qualquer coisa, veio-me à memória a frase de um fuzileiro de partida para uma operação:"Oh meu alferes, acha que vale a pena ir combater os turras pró mato se eles já estão no Governo em Lisboa?"

Esperava-se Rosa Coutinho, o novo Alto-Comissário, uma espécie de Yul Brynner com cara de mau e riso sardónico que ficaria conhecido como o almirante vermelho.








Yul Brynner




Na véspera da chegada do almirante, jantámos pela última vez na salinha do Palácio. Estávamos sós, os mais novos - o Vasco Silvério Marques, o Nuno, a Zezinha e eu. Reinava uma grande tristeza pela partida do general e pela chegada do tenebroso Rosa Coutinho, figura a todos os títulos sinistra, e sobretudo pelo caminho irreversível para o fim desse Portugal grande, imperial, das Descobertas, que era o nosso.

Foi um jantar melancólico - mas divertido. No fundo éramos uns miúdos, genuinamente tristes com o andamento que as coisas estavam a levar, conscientes da gravidade do momento, com a perfeita noção do que estava em jogo, mas incapazes de resistir ao lado lúdico das coisas, continuando sempre a reinventar esperanças nos destroços, cheios daquela excitação de estarmos a viver a história em primeira-mão. E porque essa era também a nossa maneira de continuarmos vivos e actuantes, acabámos a recordar amigos comuns e a efabular planos de contingência. Uns mais delirantes que outros, como o de precipitar o fim do Alto-Comissário armadilhando-lhe, logo ali, a cama.

Quando saímos com o Cardoso da Silva, a caminho do hotel D. João II, olhámos como se fosse a última vez, a fachada iluminada do Palácio. E seguimos na noite estrelada de Luanda, no cacimbo, cruzando as luzes da cidade indiferente e vazia, a caminho do Largo do Quinaxixe.

Com a partida de Silvério Marques e a chegada de Rosa Coutinho a situação agravou-se muito em todos os sectores. O Almirante Vermelho, que logo se fizera rodear de uma segurança nunca vista e que assustara os locais com a sua fama de comunista, mostrava-se frio e eficaz no prosseguimento dos seus objectivos. Achei que era tempo de passar a formas superiores de luta.

Jaime Nogueira Pinto («Jogos Africanos»).





«Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos...».

Carta de Rosa Coutinho dirigida a Agostinho Neto





Ver aqui








Fuga de portugueses da cidade angolana de Gabela em 1975




Refugiados abandonam Angola (Janeiro e Setembro de 1975)

















«No Verão de 1975, Angola lembrava um desses mundos de utopia negativa, uma antestreia em cenário real do Mad Max ou de outras ficções pós-catástrofe dos anos 80. O êxodo dos portugueses, a saída da tropa e da polícia, a chegada fragmentada dos movimentos armados com militares recrutados à pressão, adolescentes em farrapos fardados e armados ao calhas, rapidamente transformara a paisagem humana e a própria paisagem física das cidades.

As estradas asfaltadas, antes rapidíssimas vias de comunicação cheias de tráfego de camiões e ligeiros, estavam agora, não só a deteriorar-se por falta de manutenção, mas cortadas, aqui e ali, por barreiras e controlos. Para tal tudo servia: bidões de gasolina vazios, árvores, peças de mobiliário e as habituais tábuas de pregos. Os raríssimos viajantes - que não fossem dos movimentos -, ao chegar a estas barreiras, tinham que ter um único cuidado, mas um cuidado que lhes seria literalmente vital: ao dirigirem-se aos controladores armados, deveriam fazê-lo de modo correcto - "Camaradas" se fossem do MPLA, "Irmãos" ou "Maninhos" se fossem da FNLA ou da UNITA. Qualquer engano - aqui como noutras situações de guerra civil - seria eventualmente fatal, acabando o equivocado por ser despachado pelos homens das barreiras.

(...) A partir de [Julho] o movimento de Neto dominava a futura capital. Uma força portuguesa residual permanecia ainda ali com o COPLAD [Comando Operacional de Luanda], registando-se alguns incidentes entre estas e as FAPLA [Forças Armadas para a Libertação de Angola]. O caso mais importante foi o da Vila Alice. Um sargento do exército português foi gravemente ferido por elementos de um controlo do MPLA. O movimento recusou-se a entregar os culpados. O comando português decidiu que ou os culpados eram entregues ou haveria represálias imediatas. Deixar impune o acto era um perigoso precedente, com muitos soldados ainda por embarcar. Como o MPLA não entregou o culpado ou os culpados, a Vila Alice, onde se encontrava o comando militar do MPLA, foi investida por forças dos Comandos e de um agrupamento blindado, chefiados pelos tenentes-coronéis Almendra e Moreira Dias. Estas forças causaram vários mortos e feridos entre as FAPLA. O MPLA, curiosamente, não reagiu. Era claro que percebia as culpas próprias no caso e que não queria uma nova frente de conflito.

Por essa altura, intensificou-se o êxodo dos portugueses de Angola. Entre Setembro e Outubro de 1975, embarcaram dos aeroportos de Luanda e Nova Lisboa para a Metrópole cerca de 85 000 pessoas. Entre o 25 de Abril de 74 e o 11 de Novembro de 75, saíram para Portugal, por via aérea ou marítima, cerca de 300 000 pessoas e umas 17 000 viaturas. E há ainda que somar-lhes os 10 000 portugueses do Sul de Angola que seguiram para o Sudoeste Africano em colunas automóveis. E a esquadra de 25 traineiras que zarpou rumo a Walvis Bay, com famílias inteiras de pescadores (mais de 500 pessoas).

No fim deste êxodo, Luanda, a cidade do asfalto, era uma cidade fantasma, uma espécie de grande metrópole no fim do Verão, desertificada pelos seus habitantes. Com o fim do cacimbo e a chegada das chuvas e do calor vinha uma outra doença de morte para a cidade: os serviços públicos tinham acabado. Não havia polícia, nem lixeiros, nem bombeiros, e as imundícies acumulavam-se junto dos prédios e das vivendas abandonadas pelos habitantes da cidade "branca". Nas ruas ficaram muitas viaturas, restos de caixotes, salvados, memórias. E grandes bandos de cães de raça, abandonados pelos donos, vagueando pela cidade procurando comida junto dos hotéis também sem clientes. Sobreviveram enquanto a tropa portuguesa os alimentou com os seus restos. Depois, um dia, sumiram também.

As faltas de luz e água tornavam-se a regra. A cidade fantasma e os seus senhores preparavam-se para proclamar, em 11 de Novembro, a independência. Apesar de quase sem força militar no 24 de Abril, o MPLA, graças à "solidariedade internacionalista", recebera rapidamente muito material de guerra desembarcado pelos soviéticos e seus aliados: blindados ligeiros, as BM-21, os lança-foguetes de 122 mm, popularmente conhecidos por "orgãos de Estaline", e outras armas pesadas e convencionais. Este material desembarcou em Porto Amboim, ou entrou a partir do Congo-Brazaville (Ponta Negra) e seguiu para Luanda. E no final chegaria em força ao próprio aeroporto de Luanda, perante a indiferença da tropa portuguesa: "Não queriam saber, diziam que não era nada com eles, que não tinham nada a ver, que era a descolonização total!", conta o general Ndalu, na altura um dos comandantes militares das FAPLAs. E chegavam também os conselheiros e militares regulares cubanos. Desde Março que os primeiros tinham aparecido ali como civis. Mais tarde tinham-se fixado em Henrique de Carvalho, nas Lundas, na base aérea. E no Verão chegavam às centenas. Seriam 2000 nas vésperas do ataque.








A direcção do MPLA, agora em força na capital, calculara bem a sua estratégia: conquistar a capital antes da independência, constituindo ali o seu feudo forte, fazendo-se valer do apoio popular nos bairros periféricos. O MPLA concentra ali a logística, contando com reforços exteriores dos países amigos - URSS, países do Leste e Cuba.

"Foi uma política deliberada, não foi ao calhas". Confirma Ndalu. "Em todos os países do terceiro mundo, quem toma conta da capital é que conta. E nós tínhamos muitas pessoas das cidades antigas e então éramos menos étnicos, mais cosmopolitas e naturalmente atraíamos as pessoas da cidade. Ao princípio ainda estávamos a ver o que ia acontecer, mas quando começaram os confrontos, aquilo não era bem afastar os outros movimentos de Luanda, era derrotá-los mesmo. Na zona do Palácio ninguém tocava, ainda estavam lá os portugueses. Mas mesmo as casas da cidade ficaram quase todas fechadas, todas como estavam, não houve saque. Como os automóveis, abandonados nas ruas. Alvalade não se ocupava, que ia ser para as Embaixadas, e as outras casas, casas grandes daquelas, para nós, naquela modéstia, eram uma oversose".

(...) O João Ferreira da Fonseca, que trabalhava com o Miguel Quina e que acompanhava as andanças de Holden pelo Norte nas vésperas do ataque a Luanda, assistiu à proclamação da independência feita pela FNLA na então cidade de Carmona, hoje Uíge.

Com a praça cheia de povo, a cerimónia, presidida por Daniel Chipenda, começou com um discurso moderado e simpático para os portugueses e à meia-noite lá se arriou a bandeira nacional. Na falta de uma autoridade portuguesa para receber a bandeira, esta foi dobrada com muito cuidado e alguém sugeriu que se mandasse pelo correio. Entretanto, os ânimos e os espíritos foram aquecendo e a dada altura o João Ferreira da Fonseca vê um importante dirigente da FNLA atirar para o chão a bandeira portuguesa - a tal dobrada com todo o respeito - e começar a dançar em cima dela. Eis senão quando vem de lá o Chipenda, enfia um murro no líder-dançante e recolhe outra vez a bandeira com a maior reverência.

Incomodado com o ritmo dos acontecimentos, o João decide abandonar o palanque e deslocar-se até à varanda da Câmara Municipal onde se encontravam as personalidades mais selectas da assistência. Chegado à varanda, uma jovem dirigente, mesmo ao seu lado, desata a gritar "morras" a Portugal, aos colonialistas portugueses e aos brancos, mas, reparando na cor e no aspecto do vizinho do lado, interrompe momentaneamente os berros furiosos e as palavras de ordem exaltadas com um "o Senhor não leve a mal que não é nada consigo!". Mais incomodado, o João Ferreira da Fonseca volta para a praça... onde é abordado por uma velha que irrompe intempestivamente do meio de um grupo e lhe grita: "Não se vá embora, Senhor! Os portugueses não podem deixar-nos!" E voltada para o grupo de patrícios mais ou menos indiferentes de onde irrompera, a dita velha passa então a explicar-lhes que sem os brancos caminhariam todos rapidamente para a desgraça...».

Jaime Nogueira Pinto («Jogos Africanos»).


«Revejo o meu País, o que dele resta e o que encontro? Uma tremendíssima falta de respeito para com o Povo, em nome do qual se cometem os maiores dislates. O povo tão falado, tão evocado, mas tão humilhado.

Que se me depara a cada passo? À minha frente uma cambada. Nas minhas costas outra cambada. De ambos os lados mais outra cambada, ainda.

(...) Quem pôs o País em ruínas a partir do 25 de Abril? Quem nos arrasou, criou e cria um clima constante de intranquilidade? Quem desestabiliza? Quem todos os dias faz comícios, "festas", gritaria demagógica?












(...) Culpa têm os governos que nos têm desgovernado e que têm passado a vida a apontar o papão do fascismo. Já cansa.

O fascismo é nosso inimigo? Evidentemente. Não pretendemos, não desejamos e não devemos consentir que volte a instalar-se no nosso País? Evidentemente. Temos que nos unir para enfrentar os seus perigos? Evidentemente. MAS MÁRIO, O PERIGO NÃO É SÓ ESSE!

Para dizer a verdade, a minha verdade, o perigo contra o qual temos de nos unir e lutar é o perigo Cunhalista. O perigo que nos ameaçou implacavelmente em 1975. Ter-te-ás, Mário, esquecido?

É lá possível esquecer as maquinações do Cunhal, e dos seus lacaios, o Pato, o Carlos de Brito, o Vital Moreira, o Vítor Louro (de Sá)? E da cambada subalterna e solícita do PC, do Luso Soares, do João de Freitas Branco, do Miguel Rodrigues, do Urbano Tavares Rodrigues, do Artur Ramos, do Castrim, do Teixeira Ribeiro, do Rogério Paulo, do Sttau Monteiro que já desmascarei nos "Revolucionários que eu conheci"? E o traste do Luís Filipe Costa? E a sinistra Alcina Bastos? E o sacripanta do Lopes Cardoso? E o ignóbil Mário Ruivo? E o abominável Pedro Ramos de Almeida? E o mentecapto do Pereira de Moura? E o canalha do Mário Murteira? E o António Vitorino de Almeida - o "Manolo" de Viena de Áustria?

Mário Soares, eles vêm aí! Eles estão em escalada. Eles estão em todas as greves. Eles estão em todos os boicotes. Eles estão em toda a parte.

Posso perder amigos, posso perder empregos, posso inclusivamente perder a vida. Mas não sem ter tentado, a todo o preço, impedir que a Cambada se instale.

Revejo o meu País. Pois não é verdade que o "gonçalvismo" - agora que o "Salazarismo" está demasiado longe para justificar a agudeza da crise - apesar de apontado pelo próprio PS como a principal fonte das nossas desgraças após o 25 de Abril, continua a ser permitido na prática? Pois não é verdade que o PS ao mesmo tempo que formula essas críticas, manteve, cultivou leis gonçalvistas e sancionou e prorrogou decisões e intervenções do tempo de Gonçalves e seus capangas? Por outro lado, em particular nos meios empresarial e laboral, isto é evidente. Há ainda - e por quanto tempo? - "comissões administrativas", por exemplo, abusiva e ilegalmente impostas pelo companheiro Vasco a empresas que eram prósperas (e agora estão na ruína) e que continuam a ser renovadas mensalmente, numa real e escandalosa contradição. Critica-se a figura de Gonçalves, mas mantêm-se muitas das suas directivas, normas, leis e decisões. Critica-se a figura de Gonçalves, mas aceita-se e perpetua-se o gonçalvismo, com todas as suas consequências altamente lesivas da economia nacional e da harmonia laboral. Desvaloriza-se, por exemplo, o escudo para, entre outras coisas, "incentivar a exportação", mas acontece que para exportar é preciso produzir. E a produção está cada vez mais emperrada e sabotada por situações decretadas por Gonçalves e exigidas por Cunhal, a que o PS não pode ou não quis pôr cobro. Uma Cambada!

Melo Antunes (a sinistra figura)



Melo Antunes


(Mais outra ida à Judiciária...)

acaba a viagem a Cuba, vai à Roménia, segue para a Jugoslávia e volta a Angola. Apresenta as suas "ideias". Ideias? Reabilitar e proteger de novo o PC? Ou o paizinho?

Não é Pezarat (outra figura sinistra), que também vai à Hungria? Fazer o quê? Conquistar a promoção por "escolha" a brigadeiro? Toda essa escumalha vive à tripa forra, anda à solta e é paga por nós!

E Vítor Crespo, impune depois do que se soube sobre o caso "Angoche", continuando empunhando o copo que o celebrizou? Para quando o castigo? Para quando a justiça?

Uma Cambada!...

Revejo o meu País. Junho de 1978. Dia 13, dia fatídico. Fatídica notícia. Foi instaurada a pena de morte em Angola. Pena de morte que já existia, mas apenas para militares e que agora abrangerá também os civis. E aos civis estrangeiros que residam naquele "país", agora satélite da URSS e de Cuba.

Portugal que foi uma das primeiras nações a abolir a pena de morte, tem hoje um governo que se ufana das relações com um regime totalitário, escravo de Moscovo, que tem por símbolo a morte.

Portugal tem hoje um governo (é bom lembrar que os direitos humanos são também aqui atropelados) que, sabendo embora que o MPLA não representa senão uma minoria de fanáticos agentes comunistas, pretende legislar de modo a que a resistência à tirania em Angola seja por todos os modos impedida no nosso país.

O "enxofrável" Antunes foi a Luanda.

(Podem julgar-me cem vezes, que nunca o chamarei de outra forma)

e como resultado trouxe-nos - rica prenda - o seu amigo Costa Martins!

Mas não trouxe mais nenhum prisioneiro. Qual o futuro que espera os outros portugueses que jazem nas masmorras angolanas? Irão eles ser vítimas da pena de morte que Neto acaba de proclamar?

Que diligências já fez o Governo de Lisboa para obter a liberdade desses novos compatriotas? Como foi possível aceitar (e com que alegria!...) a nomeação de um embaixador do MPLA em Portugal, sem que, ao menos, esse gravíssimo problema fosse resolvido?

A pena de morte vai ser, pois, aplicada "legalmente" em Angola. E o governo que temos não só recebe de braços abertos o embaixador de Neto, como vai tentar proibir que os portugueses contactem (ou ajudem) com os angolanos que não se submetem à ilegítima tirania russo-cubana.

Impunidade absoluta. A Cambada continua à solta - o Costa Gomes, o Vasco Gonçalves. O Rosa Coutinho, o Melo Antunes, o Corvacho, o Costa Martins, o Diniz de Almeida, o Fabião, o Durant Clemente, o Judas, o Almada Contreiras, o Arnão Metelo, o Correia Jesuíno, o Montez, o Paulino, o Fernandes (das G3), os torcionários da Polícia Militar, os energúmenos da 5.ª Divisão, os "gajos porreiros" do Ralis...






(...) Revejo o meu País. Aparecem todos nas recepções das embaixadas. E quem vai a essas recepções? Ora todos os de antigamente e os de agora. Isso mesmo. A nova burguesia toda de vestido comprido. Todos se odeiam e se cumprimentam ternamente. Alguns mesmo aos beijinhos...

Plumas, senhoras que foram pegas e agora são intelectuais (está muito na moda ser-se intelectual e toda a gente escreve um livro contando o seu passado anti-fascista).

(...) E na despedida de Carlucci? Caíram lá todos! Toda a Cambada! Come-se bem na Embaixada, pois não há razão nenhuma para estarem em "austeridade", como certas embaixadas estiveram o ano passado.

(...) Eles aparecem em toda a parte. Quantas e quantas vezes tenho deparado até com o "capachinho vermelho" Carlos do Carmo, ao lado do Ary e do novel progressista Paulo de Carvalho, cada vez mais marrequinho (nem o PC o endireitou, caramba!). Comem desvairadamente. O que admira, pois têm comido muito, sempre. Mesmo durante a "longa noite fascista". O Zé Viana também faz parte da Cambada.

E a Sophia de Mello Breyner Andersen de Sousa Tavares (o seu a seu dono) ela tem estes nomes todos. Tareco não usa (oh, diabo!) porque é só do marido.

Sousa Tavares falta. Sousa Tavares rola, rola, rola, rola...

Sousa Tavares nunca está onde está a oposição!

No verão quente de 75, onde estava o Tareco?

Em Madrid, a beber copos, fazendo várias "revoluções" na capital espanhola... Alguém o viu em manifestações contra o Gonçalvismo? Quando o camarada Vasco estava no Poder, alguém viu o Tareco no Norte, onde o "possível" explodir da guerra civil estava latente em cada esquina?

Mas onde estava o Tareco, logo após a invasão da Índia em 1961? Na rua, à frente duma manifestação, chorando a perda de Goa, Damão e Diu. A manifestação era a favor das teses do governo: manter as colónias.

Sousa Tavares está sempre onde está o governo.


Sousa Tavares filho




Vera Lagoa




E a Gulbenkian? O sub-mundo incrível e infecto dos concertos, das exposições, das recepções? É o mesmo. Precisamente o mesmo. Cai lá toda a Cambada. O casal Perdigão sempre a esperar todos os presidentes. É uma das suas especialidades. Tal como no tempo do Thomás, as mesmas curvaturas, os mesmos Beija-mãos, os mesmos "vosselências".

(...) E também o Joaquim Letria, com a sua irresistível vocação de PIDE (tem estado desde o 25 de Abril com todas e todos - mas, até quando?), o vómito do Jacinto Baptista, o nauseabundo do Baptista Bastos (a sua vocação são as retretes, desde as do Ribadouro na noite em que regressava do Porto Humberto Delgado) e tantos e tantos outros!...

(...) Revejo o meu País. No que nos reduziu o PC. Ao que nos reduziu também o PS. Sim, o PS! O PS donde obviamente saí a tempo e horas. Ao contrário da frase cuspida por Mário Soares (aquele que não sabe perder), em Catalazete: "Quem deve governar o País é o PS".

(Citada pelo "Diário" amigo dele Mário)

É justamente o PS quem não deve governar o País. Porque já demonstrou largamente a sua incapacidade para o fazer. Lançando-nos na miséria, deixando reinar o compadrio de Argel, com a cumplicidade do PC.

Quem se poderá esquecer do coio de mentirosos, de imbecis, de oportunistas, de vendidos e delinquentes do PS que deixaram este pobre País em pantanas? E, ainda têm o descaramento de falar em "pesada herança". Quem se poderá esquecer do celerado Almeida Santos, o advogado dos grandes monopolistas de Moçambique, o responsável pela trama jurídica da desgraça da descolonização, o presumível passador de moeda para a Suiça antes da independência de Moçambique (isso não chega para o classificar de crápula?), a alma danada da intriga, da perfídia de todas as etapas do PREC? O tenebroso manobrador dos últimos conluios do PS para encostar Eanes à parede, com uma ardilosa interpretação do artigo 190.º da Constituição, na chamada crise do III Governo Constitucional ou, se quiserem, do IX Governo Provisório?

Quem poderá esquecer do caquético e prostático arranjista que dá pelo nome de António Macedo, o tal da "casa" no Porto, do café e das "viagens" a Angola e das "conversas" com o Agostinho Neto? E do tartufo do Campinos que nunca é carne nem peixe, antes pelo contrário? E, também do Zenha (custa-me, mas é verdade!) que dizia que não existiam presos políticos em Portugal, quando as nossas cadeias estavam ainda mais cheias do que as do Chile? E o pobre Raul Rego (também me custa, mas também é verdade) que, a pretexto de um anti-fascismo idiota fez aumentar o ódio e as divisões quando se impunha e se impõe a reconciliação e a pacificação de todos os portugueses? E do demagogo e ditador Manuel Alegre que só lhe resta ir-se embora - já! - para Argel? E da arteroesclorose itinerante do Tito de Morais que arrumou toda a família em bons empregos e também deverá arrumar - enquanto for tempo! - as malas para Argel?

E do vendedor da banha da cobra, do parlapatão de província Arnaud (que até levou o Torga à certa, mas nunca terá o nome nas páginas do 13.º volume do "Diário", com grande mágoa sua!) e que insiste em assoprar nos comícios de fim de semana gaitadas do S.N.S.? E do submarino vesgo Saias, que sabe tanto de Agricultura como eu sei de trânsito? E do intrujão do Marcelo Curto que até deixou crescer as barbas para fingir que é o Antero de Quental a dar ordens ao José Fontana? E do assexuado José Luís Nunes que não passa de um fala-barato, com tiques, ou de um idiota útil e que foi atirado para o julgamento no caso Delgado como uma cronista do Parque Mayer para ver se safa o bando de Argel?

Uma Cambada! Uma Cambada!... Uma Cambada que dava para uma enciclopédia ou para uma biblioteca, quanto mais para um livro...

Revejo o meu País. Quem não deve governar o País é o PS.

O povo não se deixou enganar mas o certo é que essa "maioria de esquerda" esteve sempre em exercício (embora por vezes veladamente) e, por fim, até com a cobertura imbecil e oportunista das cúpulas do CDS. Não me refiro evidentemente à grande maioria dos militantes e aderentes deste partido, que foi gente que sofreu na carne e na alma a tragédia de Abril e agora está lançada na maior perplexidade.






O facto de o PS e o PC (ainda bem que mostraram o jogo) se recusarem a colaborar no governo orientado por Nobre Costa, é a prova do conluio que vem de longe e cujo objectivo é tornarem impossível a governação patriótica e independente que ponha o interesse nacional acima dos partidos. Acima dos partidos e, em especial, acima dessa autopropagandeada "maioria de esquerda". Os interesses da nação não são, com efeito, os seus interesses. Pretendem o poder não para salvar o país (pois destruíram-no e venderam-no), mas para satisfazer longas e antiquíssimas ambições pessoais e de grupo. Não têm o sentido de Pátria, bem pelo contrário: a Pátria foi por eles traída, esquartejada, vendida. Vendida às internacionais comunistas e capitalistas».

Vera Lagoa («A CAMBADA»).


«Vale a pena referir a visita de Mobutu, Presidente do então Zaire - agora República Democrática do Congo. Os serviços da Diamang foram solicitados para tão solene acontecimento. Mas desta vez o convidado trazia consigo coisas surpreendentes. Com ele, de avião, veio uma série de macacos congelados para serem cozinhados. A iguaria não era conhecida entre o nosso pessoal, por isso, com os macacos, vieram também os respectivos cozinheiros. A carne cozinhada não se distinguia muito, no aspecto, de uma carne de borrego, mas a sua apresentação deixou muitos presos ao espanto. Em cada travessa vinha uma cabeça de macaco inteira, tal como aquela que conhecemos dos macacos em vida, separada do resto da comida por um pano branco. Esse jantar, junto à piscina do Palácio Presidencial, ficou na memória de todos.

No curso das minhas actividades de gestão, fui acumulando conhecimentos sobre a jovem Angola no dealbar da independência. Por vezes, foi-me dada a possibilidade de estabelecer alguns contactos privilegiados. Recordo, por exemplo, que acolhemos no palácio da administração da Diamang o Embaixador cubano, que gostava de ali passar alguns dias. Com ele vinha uma comitiva de oficiais cubanos, bem como outros militares equipados com câmaras de filmar - havia já o interesse claro de registar o real valor dos equipamentos e bens daquela empresa. Tirando a missão de espionagem, esta era até uma ocasião interessante, pois permitia perceber o estado de espírito dos oficiais cubanos.

Lembro, em particular, o general cubano Ochoa, comandante supremo das forças cubanas, sempre interessado em conhecer os diversos equipamentos da empresa - mas, também, as queixas dos seus militares ali destacados da sua pátria, apesar das compensações económicas. Os momentos passados com esta alta patente cubana eram, por vezes, preenchidos de humor. Como quando me falou do acidente em que um militar teria morto um tal "burro com cornos" - tratava-se do animal a que os angolanos davam o nome de "boi-cavalo", ou quando se lançou a uma merenda de croquetes pensando estar perante chocolates. Fiquei chocado quando, poucos anos depois, soube da prisão e condenação, e imediato fuzilamento, em Cuba.


General Ocho e Fidel Castro (1972)


(...) Sambala (Manuel Sebastião Silva) tinha sido um dos responsáveis pelo Departamento de Investigações de Segurança. Mas, agora, estava ali junto de nós, em São Paulo... nem o França, seu irmão e elemento da DISA [Departamento de Informação e Segurança de Angola], lhe pôde valer, nem o facto de ser ainda parente de Neto desmobilizou a violência que sobre ele se abateu.

Estávamos no dia 17 de Junho de 1977. Era mais um daqueles dias em que a exibição de violência nos vinha alimentar de medo e recordar que o caminho para a execução estava permanentemente desimpedido. Sambala vinha das bandas do posto de socorros - acompanhava-o o Miranda e uma escolta de Akas -, descalço, as mãos manietadas atrás das costas, o tronco nu expondo uma outra nudez, a das feridas que lhe cobrem de sangue o corpo (algumas parecem ter sido feitas com golpes de faca, talvez aquela espécie de sabre que o chefe da guarnição militar de São Paulo, o tenente Miranda, empunhava). Foi uma via de horror aquela até à Automotora, onde depositaram aquele corpo quase abandonado, de mãos atadas, durante cinco dias, comendo de um prato que lhe colocavam no chão como se de um animal se tratasse.

Sambala terá sido preso algures, naquela primeira quinzena de Junho de 1977. Quando entrou em São Paulo, contava-nos o americano Marcelo Grillo, que tinha estado ao serviço da FNLA, trazia já as chagas que denunciavam um primeiro acolhimento de choque num outro qualquer departamento de tortura. Mas ali, em São Paulo, esperava-o a humilhação e o sofrimento desmedidos. Aqueles cinco dias foram a antecâmara da morte que viria a conhecer. Viemos a saber que foi queimado vivo, com as chamas de um maçarico. A notícia invadiu as celas de incredulidade e repugnância... apesar da experiência permanente da violência de assassínio, a DISA conseguia, ainda, surpreender-nos.

(...) Cabinda tinha a infelicidade de conhecer também o major Margoso; havia pertencido à UPA [União das Populações de Angola] de Holden Roberto e, agora, membro do Conselho da Revolução do MPLA, era a principal chefia militar em Cabinda. Os cabindas não abandonavam a memória daqueles cerca de quarenta militares, que tinham pertencido à FNLA, assassinados barbaramente sob as ordens de Margoso, com a cooperação "executiva" de um outro oficial, Mar Vermelho. Depois de amarrados com as mãos atrás das costas foram distribuídos pelo pavimento da estrada. Em seguida, o próprio Mar Vermelho os cilindrou até à morte com um jipão num espectáculo de horror desmedido.

Este militar era um dos delfins de Agostinho Neto, e essa condição explicava a sua presença em Cabinda, terra do petróleo - aí era necessário alguém da sua total confiança.

(...) O MPLA implementou uma intensa acção de "limpeza" de todos os afectos à UNITA e à FNLA, na Huila. O são-tomense Lourenço de Vasconcelos foi, a este respeito, muito explícito: recebeu uma ordem por escrito, na Vila Alice, na sede do MPLA em Luanda, que anunciava o iminente extermínio. À boleia da retórica da reconstrução nacional, depois da independência, estas investidas tornaram-se um caminho curto para a ditadura do partido único.

O impacto desta maquinação do MPLA no Lubango foi tal que o próprio Comissário Provincial se viu obrigado a pedir contas aos agentes de tal barbárie. Entretanto, é descoberto o segredo, mal disfarçado, da Tundavala - um precipício de cerca de dois mil metros, na Serra da Leba, onde tinham sido despejados cadáveres aos montes, no contexto de processos de "limpeza política". Em São Paulo soube da permanência na cadeia de elementos de um tal "Grupo de Acção Talahady" do Lubango que terá tido um papel preponderante neste circuito de terror. O nome de Lourenço Vasconcelos surgia também, com frequência, associado a esta chacina. Só numa visita àquela falha geológica - outrora de interesse turístico - foram encontrados cinquenta cadáveres (entre eles, um português). Mas era muito difícil, dadas as condições topográficas, chegar perto do número de corpos que ali terão sido lançados.



Fenda da Tundavala













A indignação generaliza-se e Agostinho Neto vê-se impelido a deslocar-se ao Lubango em missão de apaziguamento - demite os directores da operação, bodes expiatórios de uma missão sempre sancionada por ele próprio. Aliás, o Camarada Presidente sabia que tudo continuava sob o seu controlo, pois ali permaneceu Quiosa, que passou a orientar as acções da DISA segundo um recorte mais cirúrgico, barbárie que se prolongou até Agosto de 1977, altura em que o mandaram para Moscovo para aperfeiçoar as suas metodologias nos alfobres do KGB (estes estágios nas fileiras do KGB eram fundamentais para que os mecanismos de controlo se aperfeiçoassem; em muitos casos, esta experiência revelava-se uma boa oportunidade para que as portas da ascensão política se escancarassem - constava que Nzage, Director da Segurança de Angola para o sector militar, se deslocava a Moscovo com alguma frequência para aperfeiçoar as estratégias de contra-espionagem militar, caminhos que o seu substituto, o comandante Kito, terá, também, calcorreado).

(...) Camacho tinha sido funcionário do campo de São Nicolau, mas agora estava em São Paulo gozando uma prisão preventiva que já durava há dois anos. Quando Kundi Payama veio a São Paulo, no dia 16 de Dezembro de 1979, dirigiu-se a este descendente de portugueses, que havia sido seu colaborador no Cunene, num tom claramente amistoso. Camacho tinha sido chefe do Departamento de Transportes daquela província e parecia ser mais uma vítima das operações de cosmética que o MPLA realizava frequentemente - foi o próprio Kundi Payama quem referiu que nada havia contra aquele preso. O seu percurso deu-lhe, no entanto, a qualidade de testemunha preciosa das consequências da política do MPLA nos anos que se seguiram à independência de Angola. Algumas das informações que aqui se noticiam passaram pelo crivo desta importante fonte.

As palavras de Camacho sobre o campo da Serra da Leba (Lubango) eram impressionantes. Situado a uns setenta quilómetros do Lubango, numa antiga exploração de Venâncio Guimarães, este campo estava saturado de simpatizantes (ou suspeitos disso) da UNITA. A sua bandeira era a fome, aquela morte que devagarinho espreita e vai revestindo os corpos de fragilidade e horror.

Enquanto chefe dos serviços de transportes da província do Cunene, Camacho foi encarregado de levar presos para o campo de São Nicolau. Depois de lá chegar, disseram-lhe que não cabia mais um único preso para além dos muitos milhares que já lá estavam entregues à dureza do trabalho nas salinas sem a alimentação e a assistência médica adequadas.

Camacho conhecia bem o que se passava no Sul de Angola. Segundo o seu testemunho, no Lubango matava-se frequentemente com a finalidade de roubar. Em concreto, Camacho recorda aquele par de irmãos portugueses - eram conhecidos como os "irmãos Judas": o próprio chefe da polícia do Lubango, o Martinha, se encarregou de os mandar prender e conduzir ao precipício conhecido por Tundavala. Com a boca violentamente tapada, foram precipitados para a morte, porque o chefe da polícia se queria apoderar dos seus bens. Mais tarde, este Martinha foi preso. Mas, pouco tempo depois, era posto em liberdade. Ao que parece, matar para roubar portugueses não era grande coisa.

Camacho falou-me, também, de Oswaldo Neto (as suas notícias foram confirmadas pelo testemunho do Juca, ele próprio vítima da actividade de Oswaldo Neto). Tratava-se de um dos responsáveis máximos da DISA no Cunene, bem conhecido pelos seus métodos sanguinários. De entre o cardápio de violências refira-se a sua paixão por aquelas torturas e execuções em que usava uma viatura como instrumento de suplício. Atava as vítimas ao carro, pelas mãos, e arrastava-as até ao abismo da morte. Era conhecido pelas vítimas que fazia quando cobiçava a mulher ou a namorada de alguém.

A revolta das populações do Cunene contra este assassino tomou proporções perigosas. Resolveram prendê-lo. Veio para a Casa de Reclusão, mas foi sempre bem tratado. Não tinha passado muito tempo sobre a sua prisão quando o libertaram para exercer a sua actividade na DISA.






Malange (1971)


(...) Através do americano George Reginald Gause Jr. e do companheiro de cela, Vasconcelos, tive conhecimento do sucedido a algumas famílias alemãs com propriedades muito produtivas em Malange e no Cuanza-Sul, vítimas da violência disseminada pelo território - são relatos de destruição e ocupação (e de fuga, pois outra coisa não restava a estas famílias). Eram proprietários de empreendimentos que davam trabalho a muitos angolanos. Foram os próprios trabalhadores que avisaram os seus patrões acerca da iminente ocupação por parte de forças governamentais. Em alguns casos, só com o auxílio de religiosos missionários foi possível a estes cidadãos alemães regressarem ao seu país.

Em concreto recolhi notícia de uma fazenda de ananases, situada entre Lussusso e a Kibala, junto ao rio Luati, da baronesa Von Loen, senhora que conheceu o pior dos destinos - depois de lhe matarem os cães de guarda, arrombaram-lhe a casa e mataram-na à catanada sem que os seus trabalhadores pudessem evitar a tragédia. A exemplaridade da violência era uma mensagem para todos estes estrangeiros, sublinhando que não havia lugar para eles em Angola. Do mesmo modo tive notícia de uma fazenda de café, cujos proprietários, senhores de melhor sorte, conseguiram fugir para a Alemanha, antes de mais desgraças.

(...) As mulheres jovens eram particularmente visadas pela máquina de humilhação. Quando se preparavam interrogatórios, inspecções e torturas, apareciam todos, e sobre os seus corpos desnudados despejavam a mais torpe violência. A tortura tornava-se, neste caso, abuso sexual, uma vez que era frequente usarem objectos vários para penetrar as vaginas das jovens presas (recordo imediatamente uma delas, a portuguesa Dulce Helena Fonseca, que com desassombro cuspiu na cara dos agentes). Em São Paulo, alguns estavam sempre disponíveis para este espectáculo canalha: Talahadi, Limão, Nelo Ambrósio, Bonifácio, Kanhangulo, Silva, Cardoso, Brandão, Nelson (Pitoco), Kassua, Leopoldino, Ferro, Nhianga, Baião, capitão Carlos Jorge, N'Gunga, Nascimento Cadete e Domingos Cadete.

(...) Diga-se que as agressões da zona genital dos presos não se restringiam às mulheres. Zeferino Campos, também preso por ser simpatizante ou militante da OCA [Organização Comunista de Angola - maoísta], foi vítima de um golpe que o fez sofrer até aos limites do suportável: como noutros casos, amarraram-lhe um fio eléctrico aos testículos e puxaram várias vezes. Neste domínio, o tenente Nelo, que chegou a director de São Paulo, e o seu primo, o agente Lopes, pesavam na memória de muitos presos. Eram conhecidos por uma especialidade em concreto, a urológica. O mesmo é dizer que tinham um particular interesse em exercitar a violência sobre os testículos dos interrogados. E não se tratava apenas de golpes de pancadaria, porque o requinte exigia mais. Como já se sublinhou noutro lugar, era bem conhecida a táctica de queimar, com cigarros ou outros objectos, os testículos dos presos torturados. Os presos que eram vítimas destas agressões facilmente se reconheciam, pois tendo os testículos terrivelmente inchados eram obrigados a caminhar ou a sentar-se de forma notoriamente alterada. Quando apanhávamos sol, eles esticavam-se nos bancos de pedra que estavam fixos às paredes exteriores dos edifícios. Sempre que podia, eu fazia-lhes chegar medicamentos que os ajudassem a calar um pouco a sua dor. O Mendes de Carvalho, governador da Província de Luanda, passava muitas vezes por lá, mas apesar da sua formação na área não se dignava intervir nestes casos. Os presos comentavam:"Já lá vai o homem do chinó".

(...) Devo dizer que enfrentei sempre muitas dificuldades para contactar pessoalmente com as mulheres presas - as que identifiquei pertenciam à OCA, precisamente a força política que reunia algumas das sensibilidades mais críticas do MPLA. Estavam instaladas num complexo junto do Comando. Na prática, apenas podia observá-las quando vinham receber tratamentos ao posto de socorros. Só nessas alturas eu as podia ver passeando a sua magreza sob o escárnio da guarnição atenta.

Quando elas passavam pelo pátio, os agentes e militares lançavam comentários indecorosos exibindo o conhecimento que tinham da intimidade daqueles corpos femininos. Como já foi referido, durante os interrogatórios, os seus corpos eram completamente desnudados para assim ficarem disponíveis para a pancadaria e a humilhação. As suas vaginas eram frequentemente violadas por canos de armas e os corpos domados à cacetada.








Registem-se os nomes de algumas dessas mulheres (boa parte delas sob a acusação de pertencerem à OCA): a Nandy, da unidade militar de Luanda e irmã do Comandante Kissang (como estava grávida, deixaram que o fim do tempo chegasse para depois a conduzirem ao fuzilamento); a Dalila Fonseca, com quem falei pessoalmente e a quem vi os joelhos massacrados pela violência das agressões feitas com uma tábua (durante meses, só com muito sacrifício conseguiu andar); a Graça Vieira Lopes, jovem irmã do subdelegado de saúde do Moxico, morto depois do 27 de Maio, com mais algumas centenas de pessoas, como noutro momento deste livro se dá conta; a mulher de um militar, o Dédé, que tinha experimentado nua a humilhação de um interrogatório no Ministério da Defesa, humilhação que acabou mais cedo do que o previsto devido à intervenção de Carlos Macedo, indignado pelo facto de a tal submetida ser a mulher de um oficial (Carlos Macedo viria também ele a ser preso e a fazer-nos companhia em São Paulo).

A Dulce Fonseca, madrinha do agente Cadete, que tinha pertencido ao comité central da OCA. Num daqueles teatros de humilhação, não tendo já palavras para gritar a sua repulsa, cuspiu na cara daquele seu afilhado e no agente que o acompanhava, o Rasgado, naquela tortura insultuosa. O caso, entre as falas dos outros presos, deu-lhe ares de heroína; mas o corpo desta heroína continuava magro, com uma tuberculose pulmonar cada vez mais perigosa, habitado por muitos vestígios de violência. Em Portugal contava com a coragem determinada de um irmão que, em Coimbra, iniciou uma greve de fome para chamar a atenção para a situação de sua irmã. Depois de dois anos de cárcere, deram a Dulce Fonseca a liberdade, expulsando-a para Portugal.

Acrescente-se a estes nomes o de Dina, a secretária de Nito Alves - chegou a ser uma pessoa influente no MPLA antes de ser presa. Em 14 de Dezembro de 1979 estava encarcerada na Casa de Reclusão. Era acusada, com mais cinco mulheres, de ter participado no 27 de Maio. Doía-lhe o amiguismo e o compadrio reinantes no sistema: "Se eu fosse de Catete já tinha saído daqui há muito tempo. Mas como sou de Malange, ainda estou presa" - Catete era a terra natal de Agostinho Neto.

Contou ela ao Luís Lopes que, quando foi operada ao estômago, no Hospital Militar, se viu forçada a uma alta, oito dias passados, sem que a sua situação tivesse ultrapassado os perigos do período pós-operatório. Como o próprio Carlos Jorge lhe confessaria: "os médicos não mandam nada". Foi nesse estado de risco para a Kibala, onde se encontrava desterrada desde Fevereiro de 1979, e onde naquele estado continuou a ser forçada a trabalhar nas hortas deste campo prisional. O seu estado era tal que incomodava os próprios companheiros de desterro - tinha tecidos já necrosados. Esse alarme chegou a Luanda, mas só passado um mês a fizeram regressar ao hospital para remediar o mal causado. Depois de nova alta, despejaram-na na Casa de Reclusão.

Entre as mulheres contavam-se, também, Margarida e Maria José Simões. Acerca de Margarida ouvi o inglês McIntyre contar que ele próprio, numa altura em que foi levar café ao Comando, assistiu a uma sessão de agressões em que ela, no centro de um grupo de agentes e militares, inteiramente nua, sob uma forte iluminação, era alvo dos piores insultos e apreciações jocosas relativas ao seu corpo. Como se a humilhação não bastasse, a esses comentários grosseiros seguia-se o prazer sádico da agressão física.

No dia 21 de Abril de 1980, o Tribunal Popular Revolucionário mandou chamar a Margarida Simões, a sua irmã Maria José Simões, a Dalila, o Hélder e o Liras. A ansiedade era grande, uma vez que estes presos nunca tinham tido direito a uma defesa, nem oficial, nem particular. Margarida Simões foi a primeira a entrar. A sentença não demorou a sair do Presidente daquele tribunal, Adolfo João Pedro: quatro anos de prisão. E antes que alguma dúvida pudesse ser levantada ou contestação proferida, foi despachada com um "ponha-se na rua". Do mal, o menos, uma vez que ela sabia que alguns influentes no MPLA tinham pedido a sua condenação à morte. As sentenças continuaram: à irmã coube a conta de três anos, o mesmo que ao Liras; ao Hélder, a soma mais pesada, quatro anos.

(...) João Faria contava de forma muito viva a história daquele seu amigo, adjunto do 1.º Secretário da JMPLA que foi enviado a Cuba para participar numas jornadas da Juventude Comunista. Mal chegou a Havana foi imediatamente informado por um delegado da Juventude Comunista Cubana de que a reunião teria lugar no dia seguinte, este era um dia livre. O jovem angolano, gozando a companhia deste delegado cubano, acabou por se ver, sem que o esperasse, numa rota turística pelos meandros da cidade. Quando voltou ao hotel, esperavam-no, no quarto, uma garrafa de whisly e uma cubana.

Segundo observação corrente esta era uma das estratégias usadas para cativar os angolanos que se deslocavam a Cuba. Mas nem todos viam aquela oferta da mesma forma. Luís Kitumba, filho do Comissário Provincial de Malange, exigiu mesmo, telefonando para a recepção, que lhe retirassem do quarto a mulher que aí haviam instalado para si. Kitumba acabou fuzilado no contexto do 27 de Maio, bem como um seu irmão e a sua irmã.




Proliferavam as notícias tristes acerca do comportamento dos cubanos. Esta dizia respeito ao aproveitamento que faziam da sua posição de força para se apropriarem das mulheres que queriam. O Sanga, de quem já falámos noutros momentos, sublinhava que o sucedido em Duque de Bragança, na província de Malange, tinha ultrapassado todos os limites. Nenhuma mulher estava a salvo, nem mesmo as mulheres dos sobas. Entre o assédio e a mais torpe violação, tudo se passava como se as mulheres angolanas fossem propriedade destes "amigos" de Angola.

Muitas destas violações passavam-se nas lavras, quando as mulheres estavam a trabalhar. Aí, com frequência, eram surpreendidas por bandos de cubanos. Por vezes, uma só mulher era a vítima de um grupo numeroso. Foi este o caso daquela que foi violada por uma dúzia de cubanos - acabou por morrer, já no hospital. Não menos impressionantes eram os ditos que se referiam ao sucedido em Agosto de 1977, quando os cubanos violaram um homem, e de seguida a sua mulher, também quando estes cuidavam do seu sustento. A dimensão da indecência e do horror levou os sobas a Luanda para apresentarem os seus protestos indignados ao camarada presidente Neto.

(...) Como foi referido, os jovens angolanos que estudavam fora do país, em Cuba, na URSS ou na RDA, viam frequentemente interrompidos os seus cursos e carregavam uma ordem de regresso com a máscara de uma qualquer missão urgente e secreta. Em tais circunstâncias, regressou da URSS, no ano de 1979, um grupo de dezassete estudantes - pelo que apurei, todos eles eram militares -, que foi recebido por militares, de Akas em riste, e conheceu o imediato destino da Cadeia de São Paulo.

Neste grupo vinha João Van Dunem, ex-aluno da Universidade de Lisboa, que havia regressado a Angola embalado pela cantiga da reconstrução nacional. Depressa deu conta de que algo de estranho se passava. Quando percebeu que ninguém sabia do paradeiro de dois irmãos seus que pertenciam aos quadros da DISA, não pôde deixar de suspeitar que os teriam entregado à morte - viria a ser objecto de uma condenação de três anos em trabalhos forçados.

Um a um, todos os elementos daquele grupo foram submetidos a cerrado interrogatório. O próprio Carlos Jorge, na companhia de Carmelino Pereira, chamou a si o testemunho de outros estudantes regressados de Cuba sobre aquele grupo recém-chegado. Mas o "monte não tardou a parir o rato". Era já proverbial o interesse dos jovens angolanos pela música popular. O cantor brasileiro Roberto Carlos era um dos eleitos mais venerados. Acontece que este cantor estava no "índice" cubano - por qualquer conotação política que não me foi dado discernir -, e ouvi-lo era uma ofensa ao regime de Castro.

É claro que todos os jovens negaram terem difundido a música do popular cantor brasileiro, mas não custa a crer que o tivessem feito dada a simpatia que nutriam pela sua música. Mas esta simpatia viria a sair-lhes cara: foram remetidos para o campo da Kibala com um comentário cínico dos militares responsáveis pela viagem: "Agora vão ouvir música do reaccionário Roberto Carlos".

A história destes jovens repetia-se com alguma frequência. Tinham recebido a oportunidade de estudar fora do país pela mão de alguém com alguma influência no MPLA. Mas, frequentemente, esses estudos eram interrompidos, ou porque por alguma razão o MPLA perdia a confiança neles, ou simplesmente porque o seu "padrinho" tinha sido preso. Pelos depoimentos que recolhi, os procedimentos tenderam para a normalização. Aquele que perdia a confiança era chamado à embaixada angolana nesse país, e aí lhe era comunicada a urgência de participar numa missão secreta. Quando chegavam ao avião descobriam que o segredo era partilhado por outros, ou seja, essas viagens de retorno juntavam quase sempre um bom número de indesejados. Em Luanda, as coisas começavam a complicar-se e a desconfiança crescia, mesmo se lhes era contada a história de que o carácter secreto da missão exigia a renúncia ao contacto com a família e a estadia num estabelecimento prisional».

Américo Cardoso BotelhoHOLOCAUSTO EM ANGOLA»).









«Em África, onde em larga medida ainda pontificam os regimes prepotentes, há líderes que, embora isentos de responsabilidades por delitos de genocídio político acontecidos no tempo dos seus antecessores, se têm esforçado desde o princípio por proteger os carniceiros do passado, perdoando-lhes os crimes e confiando-lhes cargos no governo e em empresas públicas. Angola é, inquestionavelmente, o maior paradigma onde este tipo de impunidade tem feito escola depois dos crimes hediondos de 1977-78 no regime de Agostinho Neto. Aqui milhares de pessoas foram vítimas de execuções sumárias, fuzilamentos, torturas e desaparecimentos forçados».

Carlos Pacheco («Repensar Angola»).


«Diz o dr. Domingos Arouca, que foi durante anos militante da Frelimo:

"Muitos negros têm sido presos e até mortos por se terem indignado com as atitudes anti-portuguesas de Samora Machel e dos poucos oportunistas que com ele pactuam. Não devemos de modo algum confundir a actuação da Frelimo com o povo de Moçambique, no que se refere à sua actuação em relação a Portugal".

À semelhança do que fez o dr. Domingos Arouca, parece-nos que, também, nos cabe o direito de recomendar que não se confunda o Povo Português com a chamada "descolonização", pois aqueles que conseguiram impor as suas concepções, na resolução do "problema ultramarino", não receberam qualquer mandato dos portugueses - que, na quase totalidade, encara como figuras odiosas alguns dos que colaboraram no processo, e, se não teve ainda posição ampla de repúdio, que é de esperar da sua maneira de sentir, isso deve-se a não estar suficientemente esclarecido sobre a importância de todos os que tiveram lugar de relevo na chamada "descolonização".

(...)"O homem moçambicano", diz o dr. Domingos Arouca, "esse ficará e permanecerá sempre em Moçambique enquanto a Frelimo e outros do mesmo jaez passam". "É preciso não esquecer que os Samoras" são apenas um acidente e que "essa realidade cultural e sanguínea que une Portugal e Moçambique voltará de novo à superfície, talvez ainda mais vivificada". (...) "Em escassos meses, os homens daquela confraria de malfeitores, tanto ao nível das cúpulas, como a nível regional, conseguiram levar a zero e ao caos toda a vida nacional em Moçambique. Dir-se-á e com toda a razão, que sendo a Frelimo um corpo totalmente inepto e desorganizado, sem quaisquer possibilidades de assumir tarefas governamentais, administrativas ou outras dentro de um país, a ruína e a miséria seriam a consequência da tremenda fraude que foi a entrega de Moçambique nas suas mãos".

(...) Se antes dos seus guerrilheiros aparecerem nas áreas urbanizadas, já era muito pequena a sua representatividade junto dos povos de Moçambique, só quem não estava na "Província" poderá duvidar de que as afirmações do dr. Domingos Arouca correspondem ao sentimento dominante dos que ali estavam e não faziam ainda uma ideia segura do nível da gente da Frelimo.

"Guerrilheiros cujo nível cultural não podia ser mais baixo. Facto este a que se junta ainda a agravante de, na sua quase totalidade, não serem moçambicanos, mas marginais de países vizinhos".

 "O que vimos quando da entrada dos seus guerrilheiros em Moçambique e se tem verificado ao longo da sua permanência são amostras de tal modo incoerentes e desajustadas, que muitas perguntas se põem quanto à sua própria actividade de guerrilha. O que é óbvio é que a Frelimo não ganhou militarmente Moçambique, e muito menos à data da entrega do território moçambicano àquele movimento"»

Luiz Aguiar («Livro Negro da Descolonização», 1977).




Oliveira Salazar




«No vetusto e augusto sentido romano, Salazar é ditador. Com efeito, só do escol saía o ditador romano: realmente, frente à crise que punha seriamente em perigo a vida do Império, o Senado elegia um ditador dotado de poderes excepcionais, que duravam enquanto persistisse a crise. O ditador ditava - e eis a origem da dignidade - os caminhos a trilhar para vencer a crise... No sentido actual, porém, Salazar nunca foi nem poderia ser ditador. Não lho consentiriam nem o seu natural, nem a sua formação moral, estruturada no mais puro Cristianismo, nem, ainda, o seu profundo conhecimento do ser humano, em geral, dos portugueses, em particular. Além disso, Salazar era um autêntico humanista, no lídimo sentido em que no século de Quinhentos se empregava a amena expressão, para definir a riqueza da cultura literária e a actuação, rica de consequências, do escol sócio-político. Por isso, é preciso ser muito ignorante, estúpido, psitacista e perverso para atribuir a Salazar o apodo infamante de ditador.

Efectivamente, dos textos dos discursos e entrevistas, da lavra de Salazar, escritos no seu primoroso estilo seiscentista, dos numerosos livros que em torno da sua incomparável figura e insuperável obra em prol de Portugal e do Ocidente foram trazidos a lume por nacionais e estrangeiros de alto merecimento, não se colhe absolutamente nada que autorize quem quer que seja a considerar Salazar como ditador... Mereceu o respeito da generalidade da população, não tanto pelo alto cargo que desempenhou, mas por ser indiscutivelmente carismático. A nobreza de carácter e a genialidade do intelecto eram de todos reconhecidas. Desconhecia a indolência, pelo que trabalhava incansavelmente. Não era prepotente. Longe disso. Era um excelso governante que se impunha pela compostura e pela competência. Acreditava piamente no imperativo da História. Por isso, a defesa intransigente do nosso Ultramar, descoberto, povoado e valorizado secularmente por nós, era indiscutível e exigia a colaboração dos "portugueses europeus e africanos", segundo Salazar afirmou em memorável discurso de 1965.

É de notar que a esmagadora maioria da população de cor transmarina colaborou de alma e coração na defesa em apreço, de armas na mão, permitindo que fosse realidade o reconfortante surto de desenvolvimento material da retaguarda, designadamente em Angola e Moçambique. Na verdade, esse desenvolvimento, motivo de admiração e espanto de todos os que conheciam a África sub-sariana, apenas superado pelo da República da África do Sul, no caso de Angola, não seria possível sem a estreita colaboração de europeus, luso-africanos e nativos. Era o corolário dum estrénuo e bem orientado trabalho levado a efeito em clima de franca, livre comunhão de interesses e objectivos, proporcionado pela "pax lusitana", que de longe vinha...

Trabalho forçado em Angola, em Moçambique, na Guiné? A OIT (Organização Internacional do Trabalho) investigou oportunamente o assunto no terreno, tendo concluído sem rebuço pela sua inexistência e elogiado sinceramente a alta qualidade e a sã aplicação do Código de Trabalho, que visava inquestionavelmente a protecção da mão-de-obra aborígene.

(...) Por outro lado, a Organização Mundial de Saúde, em 1963, fez um relatório sobre as nossas três Províncias do Continente Africano, relatório que é prova insofismável de como Portugal é um gigante em matéria de realização do progresso humano. Efectivamente, eis as suas conclusões, amoravelmente referidas por Jacques Soustelle na sua obra intitulada "Carta aberta às vítimas da descolonização", de impressionante actualidade:

"1.º Que os Serviços de Saúde destes três territórios são 'exemplares';

2.º Que o Código de Trabalho (destinado a proteger a mão-de-obra autóctone contra o abuso) é estritamente aplicado;

3.º Que os hospitais são first class;

4.º Que não existe discriminação racial"

Direi, entre parêntesis, que recordo, emocionado, a luta tenaz contra a tripanossomiase (doença do sono), no Congo, Angola, na minha adolescência, e bem assim contra a furunculose, a biliarziose, a biliosa, o paludismo, a lepra, etc, etc..

Ausente na Metrópole durante dezoito anos, ao regressar a Angola, em 1963, as doenças tropicais haviam sido debeladas, continuando, porém, os Serviços de Saúde a exercer acção pertinaz de vigilância.

Curiosamente, Portugal, cioso do legado árabe, é o maior difusor da flora e fauna do Ocidente. Com efeito a base da alimentação dos africanos é constituída de milho, mandioca, batata doce, amendoim, muitas variedades de feijão, e fruta denominada tropical, como o abacaxi, a manga, o caju, etc, etc., tudo levado para a África pelos portugueses, do Brasil e da Ásia, em especial. É de notar que tudo quanto é de fina qualidade, vegetal ou animal, assaz utilizado na alimentação, de Cabinda ao Cunene, na Angola Portuguesa era tido pelos nativos como sendo do "Puto", isto é, Portugal...


Uma patrulha de soldados portugueses, africanos incluídos (1961)














Rádio em Angola com o locutor José Guize (anos 60)




A estação central dos correios em Lourenço Marques (anos 60). Situada na Baixa da capital moçambicana, na Av. da República (hoje Av. 25 de Setembro).



Av. da República em Lourenço Marques (1960). Em vermelho, um Machimbombo.



A esquina do Café Continental, no cruzamento entre as avenidas da República e Dom Luiz (hoje avenidas 25 de Setembro e Marechal Samora Machel).



Baixa de Lourenço Marques (anos 60)




O Café-Restaurante Djambu, no edifício do Hotel Tivoli na Baixa de Lourenço Marques (anos 60).



Desfile militar na Baixa de Lourenço Marques (27 de Outubro de 1963).




Av. da República em Lourenço Marques (1970)




Baixa de Lourenço Marques 



Quem diz Angola ou Moçambique diz corolário da actuação lusíada naqueles territórios africanos, em todos os domínios materiais e morais. Desde a delimitação das fronteiras ao que concerne à língua culta, à saúde, educação, vias de comunicação, agricultura e pecuária, comércio e indústria - tudo quando é fruto da civilização é obra incontestável de portugueses, civis, militares e religiosos, que tiveram o condão de merecer a colaboração franca e leal dos nativos... Antes da presença lusíada não havia Angola nem Moçambique, sequer no nome...».

José Pinheiro da Silva («Algumas Palavras», in «Comentários às Quase Memórias de Almeida Santos», de Silvino Silvério Marques).


«... Outra vila do Alentejo. O homem abre-nos a porta. Conduz-nos por corredores silenciosos até uma sala enorme, ao fundo de uma casa deserta. Quando chega o momento de falarmos do que há a fazer pela minha candidatura, o homem baixa a voz, embora ninguém nos pudesse ouvir, e encolhe os gestos num reflexo instintivo de defesa e medo. Diz-nos: "Só os comunistas é que são activos. Nada os faz recuar. Nem mesmo matar um homem". E conta-nos, em voz cada vez mais baixa, histórias de crimes. Não há dúvidas: o Alentejo está amedrontado... e amordaçado, como dizia outrora Mário Soares. 

(...) Mais histórias do medo que amordaça o Alentejo. Dizem-me que numa aldeia vive o famoso, já esquecido, sempre desgraçado, assassino de um lavrador que, vinda a revolução comuno-socialista, foi celebrado como um herói, louvado em prosa e verso, e fez cercar o Tribunal de Tomar, onde ia ser julgado, por uma multidão de punho erguido que exigia um "julgamento popular" como o que, há dois mil anos, condenou Jesus Cristo. O homem acabou por ser transferido para Lisboa e aí condenado. Mas depressa o transportaram para Moçambique - já independente e marxista - e de lá voltou ao fim de três anos, todos os tempos somados. Voltou para a aldeia. Mas os vizinhos afastam-se dele. Os próprios comunistas, que tanto o celebraram, procuram ignorá-lo. Ali fica, numa aldeia do Alentejo, fixado em sua imagem trágica, exemplo da impunidade, pedra do amedrontamento...» 

Orlando Vitorino («O processo das PRESIDENCIAIS 86»).


«Os meus anos oitenta foram marcados por esta segunda Guerra Fria, a campanha ou a cruzada dirigida por Ronald Reagan contra a União Soviética.

Tinha-me tornado um expert na África Austral e na África lusófona. Reforcei relações com os movimentos de oposição dos PALOPS's e com os círculos europeus e norte-americanos que se ocupavam destas áreas e passei a ser uma fonte e uma opinião a considerar.

A base de tudo isto era ideológica, mas nos dois círculos que ligava consolidei um núcleo de relações fortes. Algumas transformaram-se em amizades.












A política activista da administração Reagan no apoio aos movimentos anticomunistas foi decisiva. Multiplicaram-se as iniciativas, não só no eixo Washington-Londres, mas também em Paris e em Roma. Lembro-me, por exemplo, de terem aparecido três livrarias polacas em Paris no espaço de 3 meses, isto logo a seguir ao golpe militar da Polónia, quando o general Jaruselski sufocou a liberalização e deteve os dirigentes da Solidarnosc. Nos Estados Unidos, habitualmente pouco internacionalistas, surgiram, por iniciativa da administração Reagan, os institutos dos partidos - o International Republic Institute e o National Democratic Institute - semelhantes às fundações partidárias alemãs e destinados a promover os valores ocidentais em todo o mundo. E choviam iniciativas político-culturais como, em 1984, o "Ano Orwell", que em Londres promoveu um encontro de representantes das oposições de todos os países do mundo dominados pelos comunistas, numa conferência presidida por Jeane Kirkpatrick e por Lord Chalfont, onde estive. Ou o encontro promovido, também em Londres, por Melvin Lasky, do Encounter, para editores de revistas culturais antimarxistas (eu fui pelo Futuro Presente), onde pontificavam judeus e emigrados do leste, como Leo Labedz e todos os ex-trotskistas de Nova Iorque passados ao neoconservadorismo: Norman Podhoretz, Irving Kristol, Midge Decter.

Nesse encontro, durante o jantar, Edward Shills, com quem conversava, disse-me, meio a sério, meio a brincar:"I guess you, Johnson and I are the only people in this room who are not ex-leftists, jews or Eastern-European émigrés..."

Por detrás de tudo isto, ou de quase tudo isto, estava o dedo dos americanos e uma série de fundos expressamente libertados para esta batalha cultural. Nos Estados Unidos houve três nomes centrais nesta guerra ideológica - William (Bill) Buckley, que com a National Review manteve uma linha geral de pensamento e filosofia de direita; Ed Feulner, que com a Heritage Foundation criou um instrumento de estudo de ideias e de soluções à direita para os temas e os problemas contemporâneos; e Robert (Bob) Barteley, que na página editorial do Wall Street Journal divulgou e popularizou, durante mais de 30 anos e até à sua morte em 2002, uma visão alternativa à posição liberal dos grandes jornais da Costa Leste.

São anos cheios de memórias e de histórias que o tempo vai tornando nostálgicas. O Cercle reunia-se duas vezes por ano: uma sempre em Washington DC, geralmente no primeiro fim-de-semana de Dezembro, com o frio e o sol a caírem sobre a cidade iluminista desenhada por Lanfant, um dos grandes arquitectos de Paris. A outra podia ser em qualquer ponto do mundo, variando o local em função da importância dos acontecimentos ou das facilidades logísticas de alguns membros do grupo. E assim se ia encontrando pelo mundo fora a confraria dos cold-warriors do Cercle: ora na Vila Adenauer, em Cadenabia, no Lago de Como, ora na Fleur du Cap, em Stellenbosh, na África do Sul, a convite de Pik Botha e de Anton Rupert; quer em Wildbathkreuth, na Baviera, na Hans-Seidel Stiftung de Franz Joseph Strauss, quer em Muscate, no Sultanato de Oman, a convite do Sultão Qaboos; em Londres como em Paris, Nice, Berlim, Atenas, Viena ou Bruxelas.

A função destes grupos informais, desta espécie de clubes políticos internacionais, nem sempre é entendida. A sua vantagem para os membros depende, num quase ciclo vicioso, de quem lá está e de quem lá vai. A composição mista - políticos, empresários, académicos, militares, serviços - pretende, dentro de um denominador comum de princípios (que ao tempo era o activismo anticomunista), juntar diversas experiências profissionais, sociais e nacionais. Mas estes grupos só podem e devem funcionar como um círculo de informação, de discussão e de encontro. E estão acabados no dia em que queiram ter um papel activo como grupo ou enveredar pelo tipo de acção conjunta, formal e coordenada que alguma imprensa sensacionalista e de teoria da conspiração atribui a grupos como o Clube de Bilderberg.












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José Sócrates na reunião de Bilderberg, em Stressa, na Itália (Junho de 2004, antes de se tornar secretário-geral do PS e depois primeiro-ministro de Portugal).



O bilderberger Santana Lopes



António Guterres da reunião de Bilderberg em Rottach-Egem, na Alemanha (Maio de 2005 antes de ser indigitado para Alto Comissário da ONU).




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Francisco Pinto Balsemão. Ver aqui



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António Vitorino. Ver lista de convidados para a reunião de Bilderberg de 2015



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David Rockefeller e Nelson Mandela








Christine Lagarde, directora do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ver aqui




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Há, nestes encontros, sínteses informativas de bons conhecedores dos temas num espaço de discrição e confidencialidade e, sobretudo, a criação de relações que, no caso de interesses bilaterais, podem evoluir para projectos comuns. Mas é sempre de uma influência difusa e indirecta que se trata, de uma influência dos seus membros.

Ao Cercle foram, em diferentes épocas, personalidades como Henry Kissinger, David Rockfeller, William Simon, Franz Joseph Strauss. Para o rapaz nado e criado num pequeno país periférico e saído do exílio era interessante - mas não ofuscante - esta vizinhança dos "grandes"».

Jaime Nogueira Pinto («Jogos Africanos»).






AINDA A "DESCOLONIZAÇÃO DE ANGOLA"


«...os Estados Unidos da América, a União Soviética, a Nato, a França, a Holanda, os "bilderbergers", membros influentes e esquerdistas da Igreja estão na origem pecaminosa dessa revolução que se diz libertadora, mas que na realidade abandonou ignominiosamente os nossos amoráveis territórios e populações de Além-Mar - vasto campo da capacidade de realização de portugueses de lei de todas as etnias, durante séculos. O 25 de Abrilé filho dilecto do conluio diabólico de todos os inimigos de Portugal, internos e externos, da aliança sacrílega do execrável mundo da alta finança e da sida ideológica do terrível século XX - o comunismo.

Para a obtenção dos objectivos anti-portugueses, nascidos da estreita colaboração entre o famigerado Movimento das Forças Armadas e a estranja, já se vê que o General Silvino Silvério Maques, português de alma e coração, era quem nos servia... Nunca participou no MFA e a sua presença em Angola deveu-se ao Ministro da Coordenação Interterritorial, Dr. Almeida Santos... O MFA precisava dum traidor e não de um homem, com maiúscula, que tinha o amor e respeito dos nativos de Angola - sentimentos granjeados brilhantemente durante o tempo em que fora Governador-Geral, quando Salazar olhava pelos verdadeiros interesses da Nação, com inteira obediência aos ditames do ser nacional. Caluniá-lo, impedi-lo de trabalhar eram exigências inelutáveis dos torvos interesses que moviam o MFA.




Silvino Silvério Marques










Estou em crer que este trabalho esclarece quanto se viveu naqueles dias em que os comunistas, dominantes no seio do MFA, usaram todos os meios de que são mestres na subversão das sociedades...».

José Pinheiro da Silva («Duas palavras», in «Governo Geral de Angola. Dias do Fim», de Silvino Silvério Marques).




Foi ultimamente publicado novo livro (Gen. Gonçalves Ribeiro, A Vertigem da Descolonização, Ed. Inquérito, Lisboa, 2002), muito importante, sobre a história da denominada "descolonização" de Angola e nela especialmente sobre o refugir, e não "o retorno", dos portugueses que decidiram não ficar no novo Estado cujas populações tiveram de ser abandonadas à sua independência. Pormenorizadamente descrita, a organização e o accionamento da operação "refugir", põem em relevo a complexidade de que se revestiu e as qualidades de humanidade, devoção, coragem e iniciativa de quem a foi concebendo, a dirigiu e a levou a bom termo e do grupo de que se soube rodear para tal efeito.

É justo e será consolador que muitos portugueses conheçam as dificuldades enfrentadas e vencidas para que meio milhão de ultramarinos, sem distinções, que quisessem acolher-se ao Portugal europeu o pudessem fazer atempadamente, como desejavam, isto é, antes da independência. Será consolador, pois os sentimentos de respeito e gratidão que tal missão cumprida, merecidamente provocam em gente sã, só assim podem ser reconhecidos.

Mas, além de tudo, trata-se de um documento para a história de um período confuso, de acontecimentos muito graves e de comportamentos sujeitos a juízos nem sempre sérios. Pois andam por aí réus de política partidária a acusar o "refugir" das culpas do que veio a acontecer?...

Valorizo especialmente a referência a esta missão, tão pouco recordada nos meios de comunicação, pelo muito que me deu a conhecer. Mas não quero obscurecer todas as restantes peças do livro as quais são relatos fundamentais de situações passadas, e muitas sofridas, em Angola, por alguém que as viveu, nesses tempos de especial agitação.

Alguns lapsos merecem ser corrigidos. Refiro os que me pareceram essenciais, numa primeira leitura que fiz de um texto que lerei mais vezes (com especial interesse nas páginas baseadas em informação do Diário de Notícias da época que não na vivência do autor).

Na 2.ª quinzena, isto é: na primeira quinzena do meu último Governo Geral de Angola (desembarquei na Província a 15 de Junho), não se deu, como se diz, e sugere, no livro, Cap. 7 a pág. 65, um motim de reclusos na cadeia de Luanda, não se evadiram 200 de entre eles, passando os restantes a ocupar as instalações, nem foram libertados de imediato mais de mil presos de delito comum. É mesmo a primeira vez que tomo conhecimento de ter havido um motim, evasão de presos e ocupação de instalações. Em "A descolonização - 24 de Abril de 1974 a 11 de Novembro de 1975 - os mensageiros da guerra - Angola", outro livro importante que estou lendo do jornalista Marques Rocha, escreve-se que, em Maio, teria havido agitação entre os presos da Cadeia Central de Luanda da qual, antes, haviam sido libertados 85 presos, classificados de políticos, e que, também em Maio, havia sido fechado o Posto Administrativo de São Nicolau (Posto Administrativo do meu tempo onde desde o Governo do Gen. Deslandes se fixava residência temporária do inimigo detido, na retaguarda, pela Polícia Internacional) e saíram 1220 africanos com mais de 2800 familiares, por ordem da Junta de Salvação Nacional.






Também não é correcto referir-se o assassinato do enfermeiro Benge como acontecido no meu Governo. Já há tempo corrigi, em escrito publicado, ao Alm. Rosa Coutinho, este lapso que deve ter origem num opúsculo escrito por pessoa, já falecida, a mando do Movimento dos Democratas de Angola (MDA) cujos dirigentes acabaram, em geral, por se acolher ao Portugal europeu, por não suportarem a agitação que ajudaram a desencadear. O escritor, por razões que desconheço, resolveu hostilizar-me depois do 25 de Abril. Quereria branquear-se de algo, como aconteceu com tantos? Seja como for, li em jornais de Lisboa, dias antes de partir, a notícia do assassinato, e fixei o facto por conhecer bem o enfermeiro Benge que me havia ficado grato pela atenção que havia tido consigo e sua família, quando Governador de Cabo Verde, ante uma doença fatal de seu pai, ali detido, depois de julgado e condenado em Luanda.

Estas ocorrências relatadas não são pois do meu tempo. Antecederam a minha chegada a Luanda e certamente tiveram influência no agravamento do ambiente gerado com o 25 de Abril.

Já é do meu tempo, mas nunca referida, a insistência para a demissão da vereação eleita do Município de Luanda e sua substituição por um grupo ad-hoc de mplas. Não deixei. Seria iniciar as ocupações selvagens que se verificavam nos municípios do Portugal europeu. Aguardar-se-iam eleições. O meu sucessor, mal chegado, logo sancionou o assalto e a ocupação da Câmara, segundo o padrão daqui (1). E assim o Mpla se apoderou do governo da capital, recebendo em relação ao resto da Província a ajuda dos mfas...

A versão que tem sido difundida de se ter desencadeado em Luanda uma "conflitualidade" entre o Governador e os mfas de Luanda, é incorrecta, falsa e injusta. Não conhecia praticamente nenhum dos raros mfas com quem falei em Luanda. Não tinha quaisquer razões para os hostilizar. Quando cheguei, nas palavras da minha apresentação fui sincero, como costumo ser, e esclareci a disposição em que ali me encontrava, e os ajustamentos que a situação criada pelo 25 de Abril me impunham. Um camarada militar, em livro publicado, denomina o meu texto de "discurso bissectriz", dando a entender que procuro com ele agradar a todos. Está enganado. Sou apenas sincero, dando voz a sentimentos que na altura o Programa do Mfa consentia criar. E é pena que militares, em geral de promoções mais recentes, pensem que a todos nós esta política estragou... Pensou por ele?

Fui para Angola dependendo do Governo que me havia nomeado e directamente do Ministro da Coordenação Interterritorial que me havia convidado. Do Mfa pretendia cumprir o respectivo programa e as declarações que sobre ele tinham sido feitas pelo Primeiro Ministro e pelo Ministro da Coordenação Interterritorial: ia, essencialmente, preparar o referendo que decidiria do futuro de Angola. Alguns dias depois de chegado, convoquei o Conselho de Defesa. Perguntado pelo seu secretário, Gen. Igrejas, sobre quem deveria comparecer, disse-lhe que os Generais que o constituíam e os Comandantes da Polícia de Segurança Pública de Angola e da Organização Provincial de Voluntários e de Defesa Civil de Angola (vim a saber que a PSPA tinha passado à tutela do Comandante-Chefe, por um despacho do Gen. Costa Gomes que me fora omitido). Quando cheguei à reunião, estavam instalados na sala seis ou sete mfas trazidos pelos generais por indicação do Comandante-Chefe. Fiquei surpreendido! Ninguém me pedira nada. Facto consumado! Deslealdade! Reagi, naturalmente, com o grave acto de falta de consideração.

O Dr. Savimbi suspendera hostilidades na altura em que cheguei a Luanda. O Dr. Almeida Santos, Ministro de quem eu dependia, comunicou-me que alguém viria de Lisboa contactar o Dr. Savimbi. Pedi-lhe que quem viesse passasse pelo meu Gabinete, pois pretendia juntar-lhe um representante do Governo (desejava convidá-lo a representar-se no Governo, como estava tentando com o hoje Cardeal Alexandre Nascimento que considerava simpatizante do Mpla e era pessoa moderada, e inteligente). Certo dia apareceu-me, vindo de Lisboa com tal missão, o Maj. Charais que eu conhecia por ter despachado comigo algumas vezes no Estado-Maior do Exército. Combinámos que o Secretário-Adjunto Dr. Pinheiro da Silva o acompanharia para a diligência que eu desejava que fizesse. Ficou combinado entre os três. O Maj. Charais despediu-se e nunca mais soube dele nem da sua missão. Ninguém me disse nada! Facto consumado!




A situação vinha-se mantendo agitada. A polícia comandada por um excelente oficial (o Cor. Segismundo Revés) e tutelada pelo Comando-Chefe, estava procurando dar conta da ordem pública. Mas surgiu o assassinato do taxista. Preveni o Comandante-Chefe e os taxistas que qualquer retaliação podia provocar efeitos explosivos. Infelizmente de 11 para 12 de Julho, houve retaliação, não soube se de taxistas se de outra gente. A agitação subversiva, certamente reforçada, com muitos dos libertados, penetrou em Luanda, o que nunca tinha acontecido desde 1962. O Comando-Chefe (com os mfas nele instalados) detentor de toda a informação e das forças adequadas para enfrentar tal emergência fez o que lhe foi possível. Logo ao meio-dia de 12, reuni elementos do Governo e do Comando-Chefe, no meu Gabinete, para analisar a situação. Resolvemos pôr restrições na circulação em certas zonas e certas horas e passar a fazer patrulhamentos em conjunto por militares africanos e europeus. A 16, dei uma conferência de imprensa sobre o mês de governo que havia decorrido e a situação surgida com o assassinato do taxista.

O resultado nefasto da agitação em vítimas foi sendo conhecido e difundido dia-a-dia por informação do Comando-Chefe e pelos jornais, praticamente pela última vez. Desde então, e até à morte do Dr- Savimbi, pode dizer-se que já não houve organização administrativa, nem sensibilidade ou conveniência que pudessem ou quisessem dar conta das vítimas que o prosseguimento da agitação foi produzindo.

Como reagiram perante este evoluir do 25 de Abril os mfas e o Comandante-Chefe? Atribuindo a culpa ao Governador-Geral e sem lhe dar uma palavra, reunindo-se, escrevendo e enviando delegação a Lisboa, pedindo a sua cabeça. Isto é branqueando-se. É claro que inteiramente apoiados por alguns companheiros do Mpla e até por empresários europeus que tinham esperanças de virem também a ser governo e acabaram, em geral, por ter de se refugiar aqui... Última deslealdade para quem, anos antes em Cabo Verde e Angola, muito mais novo, apenas major e tenente-coronel, lidando com coronéis e generais muito mais antigos, sempre fora respeitado.

A 19 de Julho, o último Governador-Geral de Angola deixou Luanda. Foi substituído por uma Junta Governativa que incluía representantes do Mfa como os mfas de Luanda desejavam e preparavam...

Será legítimo que face a tudo isto se continue com a afirmação de "conflitualidade" do Governador para com os mfas e não destes (e não só) para com o Governador? É curioso que no outro livro citado do jornalista Marques Rocha o sentido desta conflitualidade está apresentado de forma mais correcta, como o está a situação do Governador e do Comandante-Chefe face à ordem pública.

Finalmente diz-se que a minha nomeação foi mais um equívoco

Equívocos?...

Foram muitos os criados com o 25 de Abril. Houve-os antes da minha escolha. Mas foram tantos e tão graves os originados já depois do meu regresso que, no que se refere à descolonização, em que não cheguei a poder intervir, houve quem com definitiva autoridade os classificasse de tragédia. A dificuldade estará em reconhecer os que seriam saudáveis e os que saíram perversos (in Governo Geral de Angola. Dias do Fim, Nova Arrancada, 2003, pp. 18-23).



(1) A ocupação da Câmara Municipal de Luanda foi festejada com o içar da bandeira do MPLA no edifício camarário. Logo que conhecido o facto no QG da Região Militar, foi mandada a Polícia Militar arriar a bandeira do MPLA e içou a bandeira nacional. A ocupação da CML foi sancionada por portaria do Alm. Rosa Coutinho, lida aos mplas, no Salão Nobre do Palácio do Governo, pelo hoje Brigadeiro Pezarat Correia. Ficou como Presidente o arquitecto Troufa Real.































Princípios da Novilíngua

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Escrito por George Orwell





Aldous Huxley





















«Todos os sistemas oficiais de educação são sistemas para bombear os mesmos conhecimentos pelos mesmos métodos, para dentro de mentes radicalmente diferentes. Sendo as mentes organismos vivos e não caixotes do lixo, irredutivelmente dissimilares e não uniformes, os sistemas oficiais de educação não são como seria de esperar, particularmente afortunados. Que as esperanças dos educadores ardorosos da época democrática cheguem alguma vez a ser cumpridas parece extremamente duvidoso. Os grandes homens não podem fazer-se por encomenda por qualquer método de ensino por mais perfeito que seja. O máximo que podemos esperar fazer é ensinar todo o indivíduo a atingir todas as suas potencialidades e tornar-se completamente ele próprio...».

Aldous Huxley («Proper Studies»).


«Em 1937, desencantado com a "Europa dos Ditadores" que, após o ter inspirado a escrever Admirável Mundo Novo, se preparava agora para mergulhar o planeta na II Guerra Mundial, Huxley emigrou para os Estados Unidos da América acompanhado pela mulher e por Gerald Heard. Instalando-se nas colinas de Los Angeles, passou a alternar a escrita de romances e ensaios com a de argumentos para os estúdios de Hollywood, e a manifestar os novos caminhos que trilhava no seio da high life da Meca do cinema. Tornou-se vegetariano, praticou meditação vedanta no círculo de Swami Prabhavananda, relacionou-se com o místico indiano Krishnamurti e dedicou-se a coligir uma antologia de textos espirituais em que procurava identificar os traços comuns - a "filosofia perene" - de todas as religiões ocidentais e orientais.

(...) Ciente dos perigos totalitários do "ataque farmacológico" possibilitado pela tecnologia moderna, nem por isso Huxley excluía que a via química pudesse levar à elevação espiritual. A sua curiosidade na matéria fora despertada em 1931 ao ler Phantastica, um tratado do farmacólogo alemão Louis Ludwig Lewin sobre as substâncias visionárias usadas ritualmente desde o alvorecer da humanidade, hoje considerado a primeira obra de etnobotânica: "[A] história da ingestão de drogas constitui um dos capítulos mais curiosos e creio que também mais significativos da história natural dos seres humanos", considerou Huxley após ter lido o tratado "de ponta a ponta com um apaixonado e crescente interesse".

À época as drogas visionárias eram desconhecidas da ciência ocidental à excepção da mescalina, que foi sintetizada laboratorialmente em 1919 e que suscitara o interesse da psiquiatria devido aos seus efeitos "psicotomiméticos" ou "alucinogénicos", isto é, geradores de estados de insanidade que podiam ajudar a compreender e tratar as patologias mentais. A ideia de Huxley era porém radicalmente diferente: queria saber quais os efeitos destas drogas nos "relativamente sãos" e, acreditando contar-se entre estes, ansiava servir de cobaia.

(...) Huxley está presente na origem do próprio termo "psicadélico", criado em 1955 numa troca de correspondência que manteve com Osmond. Tentando encontrar uma designação adequada para a nova categoria das drogas visionárias sintéticas, Huxley sugeriu num verso a palavra grega fanerotime, que significa "tornar a alma visível": "Para tornar este mundo trivial sublime, / Tome meio grama de fanerotime". Ao ler isto, ocorreu a Osmond um neologismo derivado do grego, "psicadélico", literalmente "que manifesta a psique", apresentando a sua sugestão a Huxley na mesma veia poética: "Para abraçar o inferno ou fazer um voo angélico, / Tome uma pitada de psicadélico". Estava encontrado o termo por que seriam designados os agentes químicos de expansão da consciência até à última década do século XX, quando o termo "psicadélico" passou a ser preterido em prol de "enteógeno", "que manifesta a divindade interior".


















"Num certo sentido", escreveu Huxley, "podemos dizer que a experiência visionária é por assim dizer simultaneamente uma manifestação do belo e do verdadeiro, da beleza e realidade intensas, e que enquanto tal não carece de alguma outra forma de justificação".

Assim sendo, para Huxley, o valor ético, sociológico e espiritual da experiência visionária ultrapassava a vivência do êxtase transcendente. "Estas coisas são graças, são-nos dadas, não nos esforçamos para obtê-las. Vêm até nós e são gratuitas, o que quer dizer que não são nem necessárias nem significativas para a salvação, a iluminação ou o que quisermos chamar-lhe. Se forem porém devidamente usadas, se com elas colaborarmos, se sentirmos que a memória que delas temos é importante e se trabalharmos conformemente ao que ocorre na visão, então poderão ser de um inestimável valor e de uma grande importância para a mudança nas nossas vidas". E considerou que a forma de beneficiar duradouramente desta "graça gratuita" consistia em recorrer ao "misticismo aplicado", que definiu como "uma técnica para ajudar as pessoas a tirarem o máximo partido da sua experiência transcendental e fazerem uso das revelações do 'outro mundo' nas questões d'este mundo".

Quanto ao "misticismo instantâneo" que o acusavam de promover, Huxley replicou: "Quem ficar ofendido com a ideia de que engolir um comprimido pode contribuir para uma experiência genuinamente religiosa deverá recordar que todas as modificações normais - o jejum, a vigília voluntária e a autoflagelação - que os ascetas de todas as religiões se auto-infligem com o objectivo de adquirir mérito são também, como as drogas alteradoras da mente, poderosos dispositivos para alterar a química do corpo em geral e o sistema nervoso em particular".

Para Huxley, a religiosidade suscitada por estados de transcendência mística - quer alcançados com o auxílio de drogas quer não - era claramente superior à que os crentes das religiões organizadas podiam aspirar; segundo uma máxima sua da época, "a religião é para aqueles que ainda não tiveram uma experiência espiritual". Acreditava que o poder transformador da experiência visionária induzia sanidade individual e colectiva ao confrontar as pessoas com estados de consciência que revelavam a relação íntima que mantinham com os seus semelhantes e o universo.

Finalmente, para Huxley era crucial aproveitar uma curta janela de oportunidade para aplicar a terapia psicadélica de choque à cultura humana: "O ritmo cada vez mais acelerado do avanço tecnológico, os preparativos bélicos e a sobrepopulação deixam à espécie humana muito pouco tempo para escapar à desordem prevalecente", escreveu em 1957. "Aqueles de nós que trabalharam com drogas psicadélicas acreditavam que neste curto período de tempo devíamos tentar educar uma minoria suficiente e efectiva de indivíduos capazes de tirar partido da língua e da cultura sem por elas serem estultificados ou enlouquecidos, capazes de alterar padrões comportamentais obsoletos de modo a que a humanidade pudesse viver em conformidade não com desastrosos lemas e dogmas do passado mas com o processo da vida, com a Talidade (Suchness) essencial do mundo".

"Como deverão ser administrados os psicadélicos? Em que circunstâncias, com que tipo de preparação e acompanhamento?", escreveu Huxley em Culture and the Individual, um texto publicado pouco antes de falecer no qual mostra a sua predilecção por uma abordagem científica da questão de como introduzir estes métodos de expansão da mente na sociedade. "Devemos responder empiricamente a estas questões, através da experimentação em larga escala. (...) A experimentação pode dar-nos a resposta, pois o sonho é pragmático; as hipóteses utópicas podem ser testadas empiricamente".








Huxley acreditava que a iniciação em condições controladas de um número suficiente dos "melhores e mais brilhantes" espíritos da época poderia ser suficiente para catalizar uma transformação da cultura ocidental. Com este objectivo em mente, juntamente com Osmond, Smythies e o psiquiatra Abram Hoffer, concebeu um projecto que visava ministrar mescalina a uma centena de cientistas e intelectuais, com o objectivo de testar as suas reacções à experiência visionária. Apresentado à prestigiada Fundação Ford, e apesar de esta ser dirigida por um amigo de Huxley, o projecto foi de imediato recusado, com a justificação de que a fundação não alargava as suas actividades à medicina. Porém, Huxley não teve dúvidas: a rejeição devera-se à aversão à mudança característica dos cérebros "sáurios" instalados nas cadeiras do poder.

A oportunidade para colocar o plano em marcha surgiria em breve, porém. No Outono de 1960, Huxley apresentava um semestre de conferências no Massachusetts Institute of Technology quando conheceu Timothy Leary, um psicólogo de 40 anos recém-chegado à vizinha Universidade de Harvard para aí realizar um projecto pessoal de investigação. Leary estava idealmente receptivo ao "cenário psicadélico" que Huxley promovia: seu admirador desde a leitura de As Portas da Percepção, poucos meses antes tivera a sua própria epifania psicadélica por efeito de cogumelos psico-activos no México. (Estes haviam sido recentemente descobertos pelos micólogos Gordon e Valentina Wasson na remota província mexicana de Oaxaca, onde eram usados em rituais xamânicos milenares; o seu princípio activo, a psilocibina, fora sintetizado em 1958 por Albert Hofmann).

Huxley foi pois a eminência parda do "Projecto Psilocibina" de Harvard, lançado em 1960 sob a direcção de Leary com o objectivo declarado de explorar os efeitos da psilocibina sintética (e mais tarde LSD) na personalidade e na criatividade, e que viria a consagrar-se como o epicentro da revolução psicadélica ao iniciar nas drogas visionárias figuras como Jack Kerouac, Alan Watts e Allen Ginsberg - isto antes do programa ter sido cancelado em 1963, na sequência do alarme que as heterodoxas investigações psicadélicas causaram entre os membros mais conservadores de Harvard.

De facto, a metodologia subscrita por Huxley e Leary estava nos antípodas da prática convencional da investigação psicológica. "Não iríamos limitar-nos ao ponto de vista patológico. Não iríamos interpretar o êxtase como mania ou a serenidade calma como catatonia; não iríamos diagnosticar o Buda como um esquizóide isolado, Cristo como um masoquista exibicionista, a experiência mística como um sintoma, o estado visionário como uma psicose-modelo", escreveu Leary em High Priest. "A partir destes encontros [com Huxley] desenvolveu-se o plano de um estudo-piloto naturalista, no qual os voluntários seriam tratados como astronautas - cuidadosamente preparados e informados sobre todos os factos disponíveis, esperava-se que conduzissem as suas próprias naves, que fizessem as suas próprias observações e que no regresso elaborassem um relatório para o controlo terrestre. Os nossos voluntários não eram pacientes passivos mas heróis exploradores".

Mau grado o bom relacionamento pessoal entre Huxley e Leary, cedo a visão elitista do escritor introvertido e cerebral se confrontou com o populismo inato de Leary. "Estas questões são evolucionistas", disse Huxley a Leary após este ter manifestado vontade de propagandear indiscriminadamente o uso de LSD, "não é possível apressá-las. Trabalhe em privado. Inicie artistas, escritores, poetas, músicos de jazz, cortesãos elegantes, pintores e boémios ricos e estes iniciarão os ricos inteligentes. É assim que tudo o que respeita à cultura, à beleza e à liberdade filosófica tem sido transmitido". Huxley advogava a máxima cautela, pois muito embora o LSD fosse uma droga farmacêutica legítima, estava ciente de que usá-lo como catalizador para a transformação cultural perturbaria os "filisteus" - "do Vaticano a Harvard, os gestores da consciência estão no ramo há muito e não fazem tenção de abrir mão do seu monopólio". A propósito, disse a Leary: "Há pessoas nesta sociedade que farão tudo quanto estiver ao alcance do seu considerável poder para impedir a nossa investigação".















O problema era que mesmo que se procedesse com a possível discrição, a divulgação dos psicadélicos acarretava um efeito de bola de neve, pois como Huxley e Leary, a maioria dos que experimentavam o êxtase químico tornavam-se prosélitos do seu uso. Assim, o "ácido" passara a ser liberalmente prescrito por psicoterapeutas, muitos dos quais se iniciaram também no LSD. Um deles, o psicólogo Oscar Janiger, introduziu um milhar de voluntários ao psicadélico no seu consultório de Berverly Hills, entre os quais o próprio Huxley, a escritora Anaïs Nin, os actores Cary Grant e Jack Nicholson e o compositor e maestro André Previn. Cedo o uso de LSD extravasou das clínicas para os salons de metrópoles anglo-saxónicas como Los Angeles, Nova Iorque e Londres, desaparecendo no processo qualquer veleidade das sessões psicadélicas decorrerem em contextos terapêuticos científicos. O importante era "abrir as portas da percepção" que davam acesso ao "Outro Mundo" da transcendência extática e a chave estava à distância de uma dose de LSD.

Na América desta época nem sequer era preciso pertencer às elites para experimentar o Mysterium tremendum. A quem desejasse tomar LSD bastava oferecer-se como voluntário para uma das inúmeras investigações sobre psicadélicos aprovadas oficialmente; entre os muitos que foram assim iniciados no êxtase químico conta-se o então estudante Ken Kesey que, começando por escrever Voando Sobre um Ninho de Cucos sob o efeito da mescalina, se tornaria, com o seu grupo de agitação cultural Merry Pranksters, um dos mais empenhados missionários do psicadelismo. Havia até quem tomasse LSD sem ter conhecimento do facto, como vítimas do projecto secreto MK-ULTRA da CIA, que se socorria de cidadãos insuspeitos para testar o potencial da droga no controlo da mente. O LSD terá mesmo chegado à Casa Branca, que a partir de Janeiro de 1960 passara a ser ocupada pelo mais jovem presidente norte-americano de sempre - persistem rumores de que John F. Kennedy terá sido iniciado na "droga do amor" por uma da suas amantes, Mary Pinchot Meyer.

Neste curto período em que além de ser legal o LSD mantinha uma imagem social positiva, foram realizadas inúmeras investigações sobre o seu uso terapêutico, contando-se aos milhares as monografias científicas que detalhavam o tratamento mediante o psicadélico de dezenas de milhar de casos de alcoolismo, depressão, autismo, neuroses sexuais, síndromes compulsivas e psicopatologia criminal, reivindicando por vezes elevadas margens de sucesso. (Mesmo no Portugal de Salazar foram realizadas investigações sobre o uso terapêutico de alucinogéneos como as documentadas em A Psicose Experimental pela Psilocibina, tese de licenciatura do médico Emílio Guerra Salgueiro, publicada em 1963).

Por esta época, Huxley fora afectado por graves infortúnios pessoais. Em 1960 foi-lhe diagnosticado um cancro na garganta, que passou a combater com quimioterapia; no ano seguinte, um incêndio reduziu a cinzas a sua residência em Los Angeles, deixando o escritor, nas suas próprias palavras, "um homem sem bens nem passado".

Ainda assim, no que viriam a ser os seus últimos anos de vida, em conferências e congressos nos Estados Unidos e na Europa, o "sábio transatlântico" continuou a promover incansavelmente os benefícios terapêuticos e educativos dos psicadélicos. Enquanto isto, ocorria a sua consagração literária: juntou-se a Churchill e a Somerset Maugham ao receber o título de Companion of Literature da Sociedade Real de Literatura Britânica, e a Hemingway e Thomas Mann quando em 1959 a Academia Americana de Artes e Letras lhe concedeu o Prémio para o Romance; há quem considere que só não recebeu o Prémio Nobel devido às suas posições excêntricas em favor dos psicadélicos.

(...) No final da manhã de 22 de Novembro de 1963 - praticamente no momento em que as cadeias de televisão norte-americanas interrompiam a programação para informar que o presidente Kennedy fora assassinado em Dallas - Aldous Huxley, moribundo numa cama de hospital em Los Angeles, escrevia num pedaço de papel as suas últimas palavras: "Tenta LSD - intramuscular - 100 mcg". Tendo entregado a nota à mulher, Laura, passados alguns minutos ministrou-lhe a injecção do psicadélico que solicitou e uma hora depois outra idêntica, enquanto lhe lia passagens de uma tradução do Livro Tibetano dos Mortos, um manual budista para manipular o estado da consciência na altura da morte e assegurar uma transição pacífica para a "Clara Luz do Vazio". Horas depois, Huxley expirava tranquilamente. Numa carta que escreveu a parentes e amigos descrevendo os últimos momentos da vida do marido, Laura Huxley diria: "Aldous morreu como viveu, fazendo o melhor possível para desenvolver plenamente em si próprio uma das coisas essenciais que recomendava aos outros: a consciência".

Huxley morreu sob o efeito de LSD precisamente quando o uso do psicadélico começava a assumir proporções incontroláveis. Com os jovens norte-americanos da classe média a lançarem-se em massa na senda da auto-transcendência química, desencadeou-se uma reacção anti-LSD alimentada pelos média, que resultou - alguns meses antes do "Verão do Amor" de 1967 em São Francisco, considerado o apogeu do movimento hippie - na proibição não apenas do uso de psicadélicos como também de qualquer investigação sobre os mesmos. A responsabilidade por esta situação, que até hoje se mantém praticamente inalterada, costuma ser assacada a Timothy Leary que, ignorando os avisos de Huxley, embarcara na apologia do uso livre dos psicadélicos como detonador da ruptura com o "Sistema", posição resumida no seu famoso lema turn on, tune in, drop out ("ligar-se, sintonizar-se, desligar-se" [da sociedade]. Deste modo, Leary garantiu o lugar na história que Huxley recusara, o de "guru dos psicadélicos".

















Não obstante a repressão e demonização de que foram vítimas, o interesse pela exploração de substâncias psico-activas não desapareceu, recrudescendo até em décadas recentes. Para tanto contribuiu o trabalho de uma nova geração de antropólogos e etnobotânicos como Richard Schultes, Terence McKenna e Jeremy Narby, que comprovaram junto de culturas "primitivas" remotas do nosso planeta o que Huxley constatara cinco décadas antes ao ler Phantastica: o uso de drogas visionárias é tão antigo quanto os próprios seres humanos. Como resultado das investigações conduzidas in loco, o mundo "civilizado" ficou a conhecer plantas usadas sacramentalmente há milénios (como a amazónica Banisteriopsis caapi, a partir da qual é preparada a poção xamânica ayahuasca) cujos efeitos visionários estão ordens de magnitude além dos psicadélicos tradicionais, induzindo alegadamente verdadeiras experiências interdimensionais.

Em anos recentes e com o aliviar do tabu sobre os psicadélicos, voltou a ser permissível abordar a relação entre as drogas visionárias e a religiosidade. Assim, a maior autoridade norte-americana actual em questões religiosas, Huston Smith (amigo e "discípulo assumido de Huxley), escrevia no ano de 2000 em Cleansing the Doors of Perception (Purificar as Portas da Percepção): "Não vejo como seja possível negar que a perspectiva tradicional e teomórfica do eu humano subscrita pelos enteógenos seja mais nobre que a que o senso comum e a ciência moderna (mal interpretada) trouxeram". Na mesma obra, admitindo que "o secularismo moderno, o cientismo, o materialismo e o consumismo conspiraram para formar uma carapaça que a Transcendência tem agora dificuldade em perfurar", Smith pergunta-se, ecoando Huxley quase meio século antes, se "não haverá uma necessidade, talvez uma necessidade urgente" de legitimar socialmente "o uso construtivo e vivificante das drogas enteogénicas propiciadoras do céu e do inferno".

Começa também a emergir do estrito underground intelectual a que estivera remetida a ideia de que as plantas e fungos visionários desempenharam um papel fulcral na evolução da cultura ocidental, a começar pela religião. Assim, em The Botany of Desire, um best seller recente que aborda a relação mutuamente benéfica das plantas domesticadas com a humanidade, Michael Pollan argumenta que novos ramos da história natural mostrariam que "a experiência humana do divino tem raízes profundas nas plantas e fungos psico-activos". Quanto à literatura, o crítico David Lenson escreve: "Por mais que a crítica tenha tentado higienizar o processo, temos de aceitar o facto de que embora alguns dos nossos poetas e estudiosos canónicos pareçam estar a falar sobre a imaginação, na realidade referem-se a um estado de inebriamento (getting high)". E a propósito dos celebrados Mistérios de Elêusis realizados anualmente na antiga Grécia, nos quais os participantes, que incluíam os maiores pensadores da Antiguidade, consumiriam uma poção alucinogénea, Pollan levanta a questão: "Será absurdo perguntar se tal experiência poderá ter ajudado a inspirar a metafísica sobrenatural de Platão?"

(...) A passagem para o terceiro milénio assistiu à consolidação planetária da tendência mais espiritualista da contracultura no fenómeno New Age, cuja origem é normalmente situada no "movimento do potencial humano" lançado em 1962 no Instituto de Esalen (Califórnia) por Michael Murphy e Richard Price, dois psicólogos influenciados pelas ideias de Huxley sobre o autodesenvolvimento espiritual; não é por acaso que aos 94 anos Laura Huxleyé hoje informalmente considerada a grande dame da New Age, continuando empenhada em concretizar a utopia que o marido exprimiu em A Ilha. Prefigurações da visão utópica de Huxley podem aliás ser concentradas na cultura rave ou trance, e em comunidades alternativas espalhadas pelo mundo. A própria contracultura não se aposentou ou foi inteiramente cooptada. Pode mesmo estar a conhecer uma renovação, como sugere o sucesso crescente do festival anual Burning Man, durante o qual, numa cidade efémera propositadamente construída num deserto do Nevada (Estados Unidos), a fusão entre todas as sensibilidades contraculturais é levada ao limite.

A associação do psicadelismo a mundivisões "alternativas" obscurece porém o papel crucial que drogas como o LSD assumiram na génese do mundo contemporâneo. Relativamente à sociedade da informação, logo em 1969 Marshall McLuhan, o teorizador dos média, assinalou que "o LSD consiste numa forma de emular o mundo electrónico invisível"; três décadas mais tarde, Jaron Lanier, pioneiro da realidade virtual, garantia que "quase todos os fundadores da indústria dos computadores pessoais eram hippies do tipo psicadélico". Quanto ao ciberespaço, o próprio termo foi popularizado por John Perry Barlow, letrista da banda psicadélica arquetípica Grateful Dead e co-fundador da Electronic Frontier Foundation, organização dedicada a proteger a liberdade de expressão na Internet. Dizendo-se inspirado a ligar o mundo em rede pela visão do universo que lhe fora revelada pelo LSD, Barlow comentou a propósito dos muitos acidheads anónimos que partilham a sua missão: "É como se o seu futuro estivesse a ser criado por um culto secreto".


















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Por outro lado, soube-se recentemente que o LSD está associado à descoberta mais importante do século XX a par da fusão nuclear: o biólogo britânico Francis Crick"estava sob a influência de LSD quando deduziu a estrutura da dupla hélice do ADN há quase 50 anos". (Esta descoberta, feita em colaboração com James Watson, valeu-lhe o Prémio Nobel e o epíteto de "o homem que descobriu o segredo da vida"). O despacho noticioso contendo a revelação surgiu apenas 10 dias após a morte de Crick, ocorrida a 29 de Julho de 2004, informando ainda que o cientista obrigara os seus próximos a fazerem completo segredo do facto. A notícia adianta que Crick era "um entusiasta do romancista Aldous Huxley", tendo sido um dos fundadores de um grupo britânico para a legalização da canábis chamado Soma, no final dos anos 60.

Sendo raras as personalidades que ousam assumir em vida o efeito positivo das substâncias psico-activas nas faculdades mentais, o seu número vem porém aumentando. Uma delas é o biólogo norte-americano Kary Mullis. Prémio Nobel da Química em 1993 pela invenção da PCR (Polymerase Chain Reaction, "reacção em cadeia da polimerase"), uma técnica de amplificação exponencial do ADN que abriu caminho à revolução biotecnológica, Mullis afirmou numa entrevista à BBC ter dúvidas de que teria feito a descoberta se não tivesse tomado LSD, cujo uso, garantiu, o tornara mais inteligente. Outro exemplo: Mark Pesce, co-inventor da linguagem de programação de realidade virtual VRML, não esconde o facto desta descoberta ter sido "especificamente catalizada numa experiência psicadélica".

Em Tecnognose, Erik Davis assinala um aspecto menos aparente da influência dos psicadélicos no mundo actual, "a integração de certas técnicas contraculturais de êxtase no tecido da sociedade da informação": "Um dos grandes boatos paranóicos dos anos 60 era o de que os freaks tencionavam despejar LSD na rede de abastecimento de água; pode vir a acontecer que os dispositivos digitais e a máquina dos média acabem por drogar a população, infundindo um modo de cognição inegavelmente psicadélico na cultura geral. Os modems desatarraxam a 'válvula redutora' mental de Huxley e deixam entrar a Mente sem Limites (Mind at Large ligada em rede. (...) Os computadores e os média electrónicos estão a 'ligar' todas as pessoas e o ciberespaço a tomar forma enquanto paisagem virtual mutável da mente colectiva fundida. As energias libertadoras do êxtase, definido como a expansão explosiva do eu para o exterior das suas fronteiras quotidianas, e incensadas pelos ideólogos da contracultura dos anos 60, são hoje um facto tecnológico».

Luís Torres Fontes (prefácio de 2005 in Aldous Huxley, «As Portas da Percepção/Céu e Inferno»).


«...Tomara o meu comprimido às onze horas. Uma hora e meia mais tarde estava sentado no meu escritório, olhando atentamente para uma pequena jarra de vidro. Continha apenas três flores - uma rosa Belle Portugaise rosa-amarelado em plena florescência com uma pincelada de um matiz mais quente e flamejante na base de cada pétala, um grande cravo carmim e creme, e um vistoso e heráldico lírio púrpura-pálido no extremo do seu caule partido. Fortuito e provisório, o pequeno bouquet quebrava todas as regras do bom gosto tradicional. Durante o pequeno-almoço naquela manhã ficara impressionado com a dissonância cheia de vida das suas cores, mas agora tal já não acontecia. Agora já não via um arranjo floral invulgar mas o que Adão vira na manhã da sua criação - o milagre, momento a momento, da pura existência.

- É agradável? - perguntou alguém. (Durante esta parte da experiência todas as conversas foram registadas num gravador de voz, o que me tornou possível refrescar a memória do que fora dito).

- Nem agradável nem desagradável, - respondi - é apenas. Istigkeit - não era a palavra que Meister Eckhart gostava de usar? "Estado de ser" (is-ness). O Ser da filosofia platónica - salvo que Platão parece ter cometido o enorme e grotesco erro de separar o Ser do devir e de identificá-lo com a abstracção matemática da Ideia. O pobre nunca poderia ter visto um ramo de flores a brilhar com a sua própria luz interior, mas só quase que estremecendo sob o peso da significação que lhe havia sido imputada. Nunca poderia ter compreendido que o que aquela rosa, aquele lírio e aquele cravo tão intensamente significavam era nada mais nada menos que o que era - uma transitoriedade que não obstante era a vida eterna, um perecimento perpétuo que ao mesmo tempo era puro Ser...

(...) É assim que devíamos ver - repeti uma vez mais. E poderia ter acrescentado: "É para este tipo de coisas que devíamos olhar". Coisas sem pretensão, a que basta serem meramente elas próprias, suficientes na sua talidade, não representando um papel, não tentando insanamente lutar sozinhas, isoladas do Darma-Corpo [o Vazio], desafiando diabolicamente a graça de Deus.

- A melhor aproximação - disse - seria um Vermeer. Sim, um Vermeer.



Oficial e moça sorridente (1658), de Johannes Vermeer




Vista de Deft (1660-1661)



Cristo na Casa de Marta e Maria (1654-1655)



Moça com pichel de água (1662-1663)



Rapariga com Brinco de Peróla (1665-1666)




Alegoria da pintura (1666-1667)



O Geógrafo (1669)



Pois esse misterioso artista era triplamente dotado - com a visão que apreende o Darma-Corpo como a sebe ao fundo do jardim, com o talento de traduzir a visão tanto quanto as limitações da capacidade humana permitem, e com a prudência de se confinar aos aspectos mais controláveis da realidade nas suas pinturas, pois ainda que Vermeer representasse seres humanos, foi sempre um pintor de naturezas-mortas. Cézanne, que dizia aos seus modelos femininos que fizessem os possíveis para parecer maçãs, tentou pintar retratos no mesmo espírito. Mas as suas mulheres, quais camoesas-rosa, estavam mais próximas das Ideias de Platão que do Darma-Corpo na sebe. Elas são a Eternidade e Infinidade enquanto vistas não na areia nem na flor, mas nas abstracções de uma escala geométrica muito superior. Vermeer nunca pediu às suas raparigas que parecessem maçãs. Pelo contrário, insistia que fossem raparigas até ao limite - mas sempre com a condição de se absterem do comportamento típico das raparigas. Podiam sentar-se ou ficar calmamente de pé, mas nunca soltar risinhos, mostrar timidez, rezar ou ansiar pelos namorados ausentes, tagarelar, invejar os bebés das outras mulheres, namoriscar, amar, odiar ou trabalhar. Ao fazerem qualquer uma destas coisas, sem dúvida que se tornariam mais intensamente elas próprias, mas por essa mesma razão deixariam de manifestar o seu Não-Eu divino essencial. Nas palavras de Blake, as portas da percepção de Vermeer estavam apenas parcialmente purificadas. Só uma almofada se tornara quase perfeitamente transparente; o resto da porta continuava baço. O Não-Eu essencial podia ser apreendido muito claramente nas coisas e nas criaturas vivas aquém do bem e do mal. Nos seres humanos, só era visível quando permaneciam em repouso, as suas mentes tranquilas e os seus corpos imóveis. Nestas circunstâncias, Vermeer podia ver a Talidade em toda a sua beleza celestial - podia vê-la e em pequena medida reproduzi-la numa subtil e sumptuosa natureza-morta. Vermeer é indubitavelmente o maior pintor de naturezas-mortas humanas...

(...) Subitamente senti que isto já ia longe de mais. Longe de mais, ainda que a ida fosse no sentido de uma beleza mais intensa, de uma significação mais profunda. Analisado retrospectivamente, esse medo era o medo de ser esmagado, de me desintegrar sob o peso de uma realidade muito mais poderosa do que a que uma mente habituada a viver a maior parte do tempo no mundo confortável dos símbolos poderia suportar. A literatura sobre a experiência religiosa é abundante em referências ao sofrimento e terror que esmagam os que confrontam demasiado subitamente uma manifestação do Mysterium tremendum. Na linguagem teológica, este medo é atribuído à incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina, entre o seu apartamento, agravado por ele próprio, e a infinidade de Deus. De acordo com Böhme e William Law, podemos dizer que para as almas pecadoras o pleno resplendor da Luz divina só pode ser apreendido como um fogo queimante, do purgatório. Uma doutrina quase idêntica pode ser encontrada no Livro Tibetano dos Mortos, onde a alma do defunto é descrita a recuar em agonia perante a Clara Luz do Vazio e mesmo perante as Luzes menores e menos intensas, precipitando-se nos braços da reconfortante escuridão da individualidade sob a forma de um ser humano renascido ou mesmo de um animal, um fantasma infeliz, um habitante do inferno. Tudo menos o brilho queimante da Realidade não mitigada - tudo!
























(...) Num mundo onde a educação é predominantemente verbal as pessoas com um elevado nível cultural consideram quase impossível prestar a devida atenção a tudo o que não seja palavras e noções. Há sempre dinheiro e doutorados para a tontice erudita da investigação sobre o que os académicos consideram o problema sumamente importante: quem influenciou quem para dizer o quê quando? Mesma na era da tecnologia, as Humanidades verbais são reverenciadas. As Humanidades não verbais - as artes da consciência directa dos factos reais da nossa existência - são quase completamente ignoradas. Um catálogo, uma bibliografia, as obras completas com a ipsissima verba de um poestrato de terceira categoria, um formidável índice que ponha fim a todos os índices - qualquer projecto genuinamente abstruso tem aprovação e apoio financeiro garantidos. Mas quando se trata de saber como cada um de nós, os nossos filhos e netos nos poderemos tornar mais perceptivos, mais intensamente conscientes da realidade interna e externa, mais abertos ao Espírito, menos passíveis, devido a vícios psicológicos, de ficarmos fisicamente doentes e mais capazes de controlar o nosso sistema nervoso autónomo - quando se trata de uma forma de educação não verbal mais fundamental (e mais susceptível de uma utilização prática) que a ginástica sueca, nenhuma pessoa realmente respeitável em nenhuma universidade ou igreja respeitável fará alguma coisa. Os verbalistas desconfiam do não verbal, os racionalistas temem o facto real não racional, os intelectuais consideram que "o que apreendemos visualmente é-nos estranho enquanto tal e não deverá impressionar-nos profundamente". Além disso, esta questão da educação no âmbito das Humanidades não verbais não vai encaixar em nenhuma das categorias estabelecidas. Não se trata de religião nem de neurologia, ginástica, moralidade ou educação cívica, e nem mesmo de psicologia experimental. Assim sendo, em termos académicos e eclesiásticos esta disciplina não existe e pode ser completamente ignorada sem qualquer problema, ou relegada com um sorriso condescendente àqueles a quem os fariseus da ortodoxia verbal chamam aves raras, curandeiros, charlatães e amadores sem qualificações».

Aldous Huxley («As Portas da Percepção»).




«...GUERRA É PAZ
 LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
 IGNORÂNCIA É FORÇA 

O Ministério da Verdade tinha, segundo se dizia, três mil salas acima do nível do solo, e outras tantas ramificações subterrâneas. Espalhados por Londres havia apenas outros três edifícios com aspecto e dimensões semelhantes. Esmagavam tão completamente a arquitectura circundante que, do telhado das Mansões Vitória, era possível ver todos os quatro ao mesmo tempo. Tratava-se das sedes dos quatro Ministérios entre os quais se repartia todo o aparelho governativo. O Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, dos divertimentos, do ensino e das belas-artes. O Ministério da Paz, que se ocupava da guerra. O Ministério do Amor, que garantia a lei e a ordem. E o Ministério da Riqueza, responsável pelos assuntos económicos. Os seus nomes, em novilíngua: Minivero, Minipax, Minamor e Minirrico.








(...) "Quem controla o passado", dizia a palavra de ordem do Partido, "controla o futuro; quem controla o presente controla o passado". E no entanto o passado, embora por natureza alterável nunca tinha sido alterado. A verdade actual era verdade desde todo o sempre e para todo o sempre. Para tal bastava uma série contínua de vitórias de cada qual sobre a sua própria memória. "Controlo da realidade", assim se lhe chamava; ou, em novilíngua, "duplopensar".

(...) Saber e não saber, ter uma noção de absoluta veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as contraditórias e acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral, acreditar na inviabilidade da democracia e que o Partido é o guardião da democracia; esquecer o que quer que fosse preciso esquecer, para depois o trazer de volta à memória quando necessário, e em seguida de novo o esquecer prontamente; e, acima de tudo, aplicar este mesmo procedimento ao próprio procedimento. Tal era a suprema subtileza: induzir conscientemente a inconsciência, para depois, num segundo passo, tornar-se inconsciente do acto de hipnose acabado de levar a cabo. A própria compreensão da palavra "duplopensar" implicava o recurso ao duplopensar.

(...) - Como é que vai o Dicionário [de Novilíngua]? - disse Winston...

- Vai avançando devagar - retorquiu Syme. - Estou agora nos adjectivos. É fascinante.

(...) A décima primeira edição vai ser a definitiva - disse. - Estamos a dar ao idioma a sua forma final, a forma que há-de ter quando ninguém falar nenhuma outra língua. Quando chegarmos ao fim, pessoas como tu terão de a aprender de novo. Talvez penses que a nossa principal tarefa é inventar palavras novas. Mas não é nada disso! Estamos é a destruir palavras, dezenas, centenas de palavras por dia. Estamos a reduzir a língua ao seu esqueleto. A décima primeira edição não há-de conter uma única palavra susceptível de se tornar obsoleta antes do ano de 2050.

(...) Coisa magnífica, a destruição de palavras. Claro que a grande quebra é nos verbos e nos adjectivos, mas também há centenas de substantivos que podem ser dispensados. E não são só os sinónimos; há também os antónimos. Afinal de contas, qual a razão de ser de uma palavra que seja simplesmente o contrário de outra? Cada palavra contém em si o seu próprio contrário. Olha, "bom", por exemplo. Se temos a palavra "bom", para que é que precisamos da palavra "mau"? "Imbom" faz o mesmo efeito. Melhor, até, porque é rigorosamente o oposto de "bom", coisa que "mau" não é. Ou ainda, se queremos uma versão mais forte de "bom", que sentido faz termos toda uma gama de palavras vagas e inúteis como "excelente", "esplêndido" ou outras que tais? "Extrabom" cobre perfeitamente este sentido; ou "duploextrabom", se se pretender um termo ainda mais forte. É, claro, nós já usamos estas formas, mas na versão final da novilíngua não haverá outras. No fim todo o conceito de bondade e maldade será abarcado apenas por seis palavras... que são, no fundo, uma única. Não vês a beleza de tudo isto, Winston? É claro que a ideia inicial foi do G.I. [Grande Irmão] - acrescentou Syme à guisa de esclarecimento.

(...) - Tu não aprecias verdadeiramente a novilíngua, Winston - disse quase com tristeza. - Mesmo quando nela escreves continuas a pensar em velhilíngua. Já tenho lido algumas das coisas que escreves para o 'Times'. Não são más de todo, mas são traduções. No teu íntimo, preferias que se conservasse a velhilíngua, com toda a sua imprecisão e os seus inúteis matizes de sentido. Não compreendes a beleza da destruição das palavras. Sabias que a novilíngua é a única língua do mundo cujo vocabulário diminui ano após ano?






(...) Não vês que a finalidade da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensamento? Acabaremos por conseguir que o crimepensar seja literalmente impossível, pois não haverá palavras para o exprimir. Todos os conceitos de que possamos ter necessidade serão expressos, cada um deles, exclusivamente por uma palavra, de significação rigorosamente definida, sendo eliminados e votados ao esquecimento todos os seus sentidos subsidiários. Na décima primeira edição já não estamos longe desse objectivo. Mas o processo continuará muito depois de tu e eu termos morrido. Ano após ano, cada vez menos palavras, e o alcance da consciência cada vez mais limitado. Mesmo hoje, como é evidente, não há motivo ou desculpa para se cometer um crimepensar. Simples questão de autodisciplina, de controlo da realidade. Mas no futuro nem mesmo isso será necessário. A Revolução ficará completa quando a língua for perfeita. A novilíngua é Socing e o Socing é a novilíngua - acrescentou com uma espécie de exaltação mística. - Já alguma vez pensaste, Winston, que no ano 2050, o mais tardar, não haverá um único ser humano capaz de entender uma conversa como a que estamos a ter agora?

(...) Em 2050 (provavelmente até antes) todo o verdadeiro conhecimento da velhilíngua terá desaparecido. Toda a literatura do passado terá sido destruída. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron só existirão em versões de novilíngua, não simplesmente transformados numa coisa diversa, mas no contrário daquilo que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mesmo as palavras de ordem mudarão. Poderá subsistir um slogan como "liberdade é escravidão" quando o próprio conceito de liberdade tiver sido abolido? Toda a atmosfera mental será diferente. No fundo, não haverá pensamento, tal como hoje o entendemos. A ortodoxia significa ausência de pensamento: ausência da necessidade de pensar. A ortodoxia é inconsciência.

Um dia destes, pensou Winston com súbita e profunda convicção, Syme vai ser vaporizado. É demasiado inteligente. Vê as coisas com excessiva lucidez e fala com excessiva franqueza. O Partido não gosta de gente assim. Um dia destes ele vai desaparecer. Está-lhe escrito na cara.

(...) - Agora - segredou.

- Aqui não - respondeu ela, também num sussurro. - Vamos para o esconderijo. É mais seguro.

Rapidamente, fazendo estalar um ou outro ramo seco, dirigiram-se de novo para a clareira. Quando se viram no meio do círculo de árvores novas, ela parou e voltou-se para ele. Estavam os dois ofegantes, mas o sorriso voltara a surgir nas comissuras dos lábios de Julia. Ficou por instantes a fitá-lo, depois procurou com os dedos o fecho do fato-macaco. E foi, sim, como no sonho de Winston. Ela despiu-se praticamente com tanta presteza como ele imaginara, e quando atirou a roupa para o chão foi com aquele gesto magnífico que parecia aniquilar uma civilização inteira. O seu corpo branco cintilava ao sol. Mas só decorridos alguns segundos ele a olhou; tinha os olhos presos àquele rosto sardento, ao leve sorriso atrevido. Ajoelhou diante dela e pegou-lhe nas mãos.

- Já fizeste isto alguma vez?

- Claro que já fiz. Centenas de vezes. Bem, dezenas, pelo menos.

- Com membros do Partido? - Sim, sempre com membros do Partido.

- Do Partido Interno?

- Não, com esses javardos não. Mas muitos deles também haveriam de gostar, se tivessem oportunidade. Não são tão santos como se fazem. O coração dele deu um pulo. Ela fizera aquilo dezenas de vezes: oxalá tivessem sido centenas, milhares. Tudo quanto sugerisse corrupção enchia-o sempre de louca esperança. Quem sabe, talvez o Partido estivesse podre por dentro, talvez o seu culto do esforço e da abnegação não passasse de simples máscara a esconder iniquidade. Estivera na sua mão infectá-los a todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo o que pudesse corrompê-los, miná-los! Puxou-a para baixo, fazendo-a ajoelhar à sua frente.






- Escuta. Quanto mais homens tiveres possuído, maior o meu amor por ti. Percebes?

- Percebo perfeitamente.

- Odeio a pureza, odeio a virtude! Só desejo que não haja no mundo uma única alma virtuosa. Quero toda a gente corrupta até à medula.

- Bem, neste caso, devo ser a pessoa ideal para ti. Sou corrupta até à medula.

- Gostas de fazer isto? Quero dizer, mesmo que não fosse comigo? Gostas da coisa em si?

- Adoro!

Era precisamente o que ele queria ouvir. Não o mero amor humano, mas o instinto animal, o simples desejo indiscriminado: essa força que havia de destruir o Partido. Deitou-a na relva, entre as campainhas espalhadas. Desta vez nada o impedia. Pouco depois, o arquejar serenava, os peitos retomavam a sua oscilação normal, e com agradável sensação de moleza tombaram cada um para seu lado, sonolentos. Winston estendeu a mão para o fato-macaco, tapando o corpo de Julia. Quase instantaneamente deixaram-se dormir durante cerca de meia hora.

- Winston foi o primeiro a acordar. Sentou-se, ficou a olhar aquele rosto sardento, ainda tranquilamente adormecido, apoiado na palma da mão. À excepção da boca, não podia dizer-se que Julia fosse bela. Observando-a com atenção, descobriam-se-lhe algumas rugas à volta dos olhos. O cabelo curto e escuro era extraordinariamente espesso e macio. Winston lembrou-se de que ainda não sabia nem o apelido dela, nem onde morava.

Esse corpo jovem e forte, agora indefeso no sono, despertou nele sentimentos de piedade e protecção. Mas já não conseguia experimentar a ternura descuidada que sentira debaixo da aveleira, enquanto o tordo cantava. Afastou para o lado o fato-macaco, pondo a descoberto o flanco alvo e macio. Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma rapariga, achava-o desejável, e pronto. Mas agora já não podia haver amor puro ou puro desejo. Nenhuma emoção era pura, pois em tudo se infiltrara o medo e o ódio. O enlace dos seus dois corpos fora uma batalha, o clímax uma vitória. Um golpe contra o Partido. Um acto político.

(...) Com Julia, todos os caminhos iam dar à sua própria sexualidade. Sempre que, por uma razão ou por outra, se abordava o tema, ela revelava grande perspicácia. Ao contrário de Winston, compreendera o sentido oculto do puritanismo sexual do Partido. Não se tratava apenas de o instinto sexual criar um mundo próprio à margem do controlo do Partido, devendo por isso ser destruído, se possível. O mais importante residia no facto de a privação sexual provocar uma desejável histeria, podendo esta ser transformada em ímpeto guerreiro e em culto do chefe. Julia punha a questão do seguinte modo:

- Quando fazes amor estás a gastar energia; e a seguir sentes-te bem e estás-te lixando para o resto. Eles não suportam que uma pessoa se sinta assim. Querem que estejamos sempre cheios de energia. Toda esta treta de andar cá e lá a dar vivas e a agitar bandeiras é simplesmente a forma que o sexo toma quando azeda. Se uma pessoa se sentir bem na sua pele, como é que há-de ficar excitada com o Grande Irmão e os Planos Trienais e os Dois Minutos do ódio e as outras tretas que eles inventam?






Realmente, pensou Winston. Ali estava a relação directa e íntima entre castidade e ortodoxia política. De facto, como poderiam manter-se nos níveis desejados o medo, o ódio e a louca credulidade que o Partido exigia dos seus membros, a não ser reprimindo um instinto poderoso e utilizando-o como força propulsora? O impulso sexual era perigoso para o Partido, o Partido conseguira usá-lo em seu proveito. Com o instinto parental a manobra fora semelhante. A família não podia ser totalmente abolida, por isso as pessoas eram até incitadas a gostar dos filhos, quase à velha maneira. As crianças, em contrapartida, iam sendo sistematicamente viradas contra os pais e ensinadas a espiá-los e a denunciar os seus desvios. A família convertera-se, afinal, numa extensão da Polícia do Pensamento. Dispositivo mediante o qual cada indivíduo acabava dia e noite rodeado de informadores que o conheciam na intimidade.

(...) Conversando com ela [Julia], Winston percebeu a facilidade em exibir uma aparente ortodoxia sem se ter a menor noção do que era a ortodoxia. De certo modo, a visão que o Partido fomentava do mundo e das coisas impunha-se com maior êxito às pessoas incapazes de a compreender. Podia-se levá-las a aceitar as mais flagrantes violações da realidade, porque nunca viam claramente a enormidade do que se lhes pedia, nem se interessavam suficientemente pela vida pública para se aperceberem do que estava a acontecer. Graças à falta de entendimento, conservavam saúde de espírito. Engoliam tudo e mais alguma coisa, e o que engoliam não lhes faria mal, pois não deixava atrás de si o menor resíduo, como grãos de milho entram e saem pelo corpo de um pássaro sem serem digeridos.

(...) [Winston] pensou no telecrã, nos ouvidos sempre à escuta. Espiavam as pessoas dia e noite, mas mesmo assim, se se conservasse o sangue-frio, conseguia-se ludibriá-los. Por muito clarividentes que fossem, nunca resolveriam o enigma de saber quais os pensamentos dos outros seres humanos. Talvez não fosse bem assim, depois de uma pessoa lhes cair nas mãos. Ninguém sabia o que se passava dentro do Ministério do Amor, mas dava para adivinhar: torturas, drogas, delicados instrumentos que registavam as reacções nervosas do preso, esgotamento gradual pela privação do sono, pelo isolamento e pelos interrogatórios constantes. Factos, em todo o caso, tornava-se inviável ocultá-los. Eles podiam reconstituí-los procedendo a averiguações, ou arrancá-los ao preso com torturas. Mas se o objectivo, em vez de ser continuar vivo, for continuar a ser-se humano, bem vistas as coisas, tudo o mais que diferença faria? Eles não podem alterar os sentimentos... Aliás, nem nós próprios poderíamos alterá-los, mesmo que quiséssemos. Podiam pôr a nu, com todo o pormenor, quanto houvéssemos feito, dito ou pensado; mas o mais fundo do coração, há-de ser sempre inexpugnável.








(...) Espera-se de qualquer membro do Partido que não tenha sentimentos pessoais nem quebras de entusiasmo. Pretende-se que viva num frenesi contínuo de ódio aos inimigos estrangeiros e aos traidores internos, de euforia pelas vitórias e de auto-aviltamento ante o poder e a sabedoria do Partido. O descontentamento advindo da sua vida miserável e insatisfatória encontra-se deliberadamente canalizado para o exterior e dissipado de dispositivos como os Dois Minutos de Ódio, e as especulações que poderiam dar origem a atitudes cépticas ou rebeldes antecipadamente sufocadas numa disciplina interior precocemente adquirida. O primeiro e mais simples estádio dessa disciplina, que pode ser ensinado até mesmo a crianças de tenra idade, chama-se em novilíngua pára-crime. Pára-crime significa a faculdade de parar, como por instinto, no limiar de qualquer pensamento perigoso. Inclui a faculdade de não captar certas analogias, de omitir erros de lógica, de não compreender argumentos elementares se forem hostis ao Socing, e de sentir enfado ou repulsa por qualquer raciocínio susceptível de tomar um rumo herético. Pára-crime, em resumo, significa estupidez protectora. Mas a estupidez não basta. Muito pelo contrário, a ortodoxia, no pleno sentido do termo, exige dos indivíduos um domínio tão completo dos próprios processos mentais como o que um contorcionista tem do corpo. A sociedade oceânica assenta, em última análise, na convicção de que o Grande Irmão é todo-poderoso e o Partido é infalível. Mas como na realidade nem um é todo-poderoso nem o outro é infalível, torna-se necessária, a todo o instante, certa flexibilidade infatigável na abordagem dos factos. Aqui, a palavra-chave é pretobranco. Como tantas outras palavras da novilíngua, também esta tem dois sentidos antagónicos. Aplicada a um opositor, significa o hábito de afirmar despudoradamente que o preto é branco, contrariando a evidência dos factos. Aplicada a um membro do partido, designa a lealdade diligente em afirmar que o preto é branco quando a disciplina do Partido assim o exige. Mas significa também a capacidade de acreditar que o preto é branco, e mais ainda, de saber que o preto é branco, e esquecer que alguma vez se tenha pensado o contrário. Isto implica a constante alteração do passado, só possível pelo sistema de pensamento que na verdade abarca tudo o resto, e que se designa em novilíngua pela palavra duplopensar.

(...) - Como é que um homem afirma o seu poder sobre outro, Winston?

Winston reflectiu.

- Fazendo-o sofrer - disse.

- Exactamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como posso eu ter a certeza de que obedeceu à minha vontade e não à dele? O poder consiste em infligir dor e humilhação. O poder consiste em desagregar a mente humana para a reconstituir sob uma forma nova, sob a forma que entendermos dar-lhe. Começas agora a ver que tipo de mundo estamos a criar? Precisamente o oposto das estúpidas utopias hedonistas que os antigos reformadores imaginaram. Um mundo de medo, traição e tortura, mundo onde se pisa e se é pisado, mundo que se tornará mais impiedoso, e não menos, à medida que se for aperfeiçoando. O progresso, neste nosso mundo, será um progresso no sentido de cada vez maior sofrimento. As antigas civilizações afirmavam basear-se no amor ou na justiça. A nossa baseia-se no ódio. Não haverá lugar para outras emoções além do medo, da raiva, da humilhação e do triunfo. Tudo o mais será por nós destruído. Tudo! Já hoje estamos a liquidar hábitos mentais que sobreviveram dos tempos anteriores à Revolução. Cortámos os laços entre filhos e pais, entre homem e homem, entre homem e mulher. Já ninguém se atreve a confiar na própria mulher, no filho ou nos amigos. E no futuro suprimiremos esposas e amigos. Os filhos serão tirados às mães à nascença, como se tiram os ovos às galinhas. O instinto sexual também será suprimido. A procriação transformar-se-á numa formalidade anual, como a renovação dos cartões de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Os neurologistas já estão a estudar o assunto. Não restará lealdade, senão a lealdade ao Partido. Nem amor, senão o amor ao Grande Irmão. Nem riso, senão o riso da vitória sobre um inimigo aniquilado. Nem arte, literatura ou ciência. Desaparecerá a distinção entre beleza e fealdade. Não haverá curiosidade, nem o gozo de viver. Todos os prazeres que possam fazer concorrência ao Partido serão destruídos. Mas haverá sempre (nunca te esqueças disto, Winston), haverá sempre a embriaguez do poder, cada vez mais intensa, cada vez mais subtil. Sempre, a todo o momento, a emoção da vitória, a sensação de esmagar um inimigo indefeso. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota a pisar um rosto humano. Para sempre.


























































Fez uma pausa, como se esperasse de Winston alguma reacção. Winston tentava de novo enterrar-se mais na cama. Não conseguia dizer nada, tinha o coração gelado. O'Brien prosseguiu:

- E não te esqueças de que isto é para sempre. Há-de lá estar sempre esse rosto pisado. O herege, o inimigo da sociedade, estará sempre presente, para ser de novo derrotado e humilhado. Tudo aquilo por que passaste desde que caíste nas nossas mãos, tudo isso vai continuar, vai tornar-se ainda pior. A vigilância policial, as traições, as prisões, as execuções e os desaparecimentos nunca acabarão. Será um mundo tanto de terror como de triunfo. Quanto mais poderoso o Partido, menos tolerante há-de ser; quanto mais ténue a oposição, mais cerrado o despotismo. Goldstein e as suas heresias viverão para sempre. Todos os dias, a todo o instante, serão derrotados, desacreditados, ridicularizados, cobertos de escarros; e no entanto subsistirão sempre. A peça de teatro que para ti representei durante sete anos há-de ser representada vezes sem conta, geração após geração, sob formas cada vez mais subtis. Havemos de ter sempre o herege aqui à nossa mercê, gritando de dor, arrasado, desprezível... e por fim completamente arrependido, salvo de si próprio, rojando-se aos nossos pés de livre vontade. É esse o mundo que estamos a preparar, Winston. Um mundo de vitórias sobre vitórias, triunfos sobre triunfos: assédio constante, constante, constante, ao âmago do poder. Vejo que começas a perceber como será esse mundo. Mas por último não te limitarás a perceber. Aceitá-lo-ás, saudá-lo-ás, passarás a fazer parte dele.

Winston recompusera-se o suficiente para conseguir falar:

- Não podem! - disse debilmente.

- Que queres dizer com esse comentário, Winston?

- Não podem criar um mundo como o que acabas de descrever. É um sonho. É impossível.

- Porquê?

- É impossível fundar uma civilização sobre o medo, o ódio e a crueldade. Nunca poderia durar.

- Porque não?

- Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia.

- Que disparate. Estás convencido de que o ódio é mais esgotante do que o amor. Porque havia de ser assim? E se fosse, que diferença faria? Imagina só que decidimos consumir-nos mais depressa. Imagina que aceleramos o ritmo da vida humana a pontos de os homens ficarem senis aos trinta anos. Mesmo isso, que diferença faria? Não percebes que a morte do indivíduo não é a morte? O Partido é imortal.

Como de costume, aquela voz reduziria Winston à impotência. Além disso, ele receava que, ao persistir naquela discordância, O'Brien tornasse a puxar a alavanca. Contudo, não conseguiu ficar calado. Debilmente, sem argumentos, sem nada a que se apoiasse senão o horror indistinto pelo que O'Brien acabava de dizer, voltou ao ataque.

- Não sei... não me interessa. Vocês hão-de falhar. Alguma coisa irá acontecer-vos. A vida há-de vencer-vos.

- Nós controlamos a vida, Winston, a todos os níveis. Tu imaginas que existe uma coisa chamada natureza humana que vai ficar indignada com o que fazemos, virando-se contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os homens são infinitamente maleáveis. Se voltaste à tua antiga ideia de que os proletários ou os escravos se hão-de erguer para nos derrubar, tira daí o sentido. Eles estão impotentes, como animais. A humanidade é o Partido. Os outros situam-se fora... são irrelevantes».

George Orwell («1984»).






«Os inacreditáveis horrores da Guerra dos Trinta Anos ensinaram alguma coisa aos homens, e durante mais de cem anos os políticos e generais da Europa resistiram conscientemente à tentação de usar os seus recursos militares até ao limite da sua capacidade de destruição, ou (na maior parte dos conflitos) de continuar a lutar até que o inimigo fosse completamente aniquilado. Eram agressivos, bem entendido, ávidos de lucro e de glória; mas eram igualmente conservadores, resolvidos a conservar intacto, a todo o preço, o seu mundo, na medida em que o consideravam uma florescente empresa. Durante os últimos trinta anos, não têm existido conservadores; apenas tem havido radicais nacionalistas das esquerdas e radicais nacionalistas das direitas. O último homem de Estado conservador foi o quinto marquês de Lansdowne; e quando ele escreveu uma carta ao Times sugerindo que se pusesse fim à Primeira Guerra Mundial através de um compromisso, como havia sido feito na maioria das guerras do século XVIII, o redactor-chefe desse jornal outrora conservador recusou publicá-la. Os radicais nacionalistas fizeram o que lhes apeteceu, com as consequências que todos nós conhecemos - bolchevismo, fascismo, inflação, crise económica, Hitler, a Segunda Guerra Mundial, a ruína da Europa e a fome praticamente universal.

Admitindo, pois, que sejamos capazes de tirar de Hiroxima uma lição equivalente à que os nossos antepassados tiraram de Magdeburgo, podemos encarar um período, não certamente de paz, mas de guerra limitada que seja apenas parcialmente ruinosa. Durante esse período, pode-se admitir que a energia nuclear seja aplicada a usos industriais. O resultado, e o facto é bastante evidente, será uma série de mudanças económicas e sociais rápidas e mais completas do que tudo o que até agora foi visto. Todas as formas gerais existentes da vida humana serão quebradas, e será necessário improvisar formas novas que se adaptem a esse facto não humano que é a energia atómica. Procusto moderno, o sábio de pesquisas nucleares, prepara a cama em que a humanidade se deverá deitar; e se a humanidade não se adaptar a ela, tanto pior para a humanidade. Será necessário proceder a algumas ampliações e a algumas amputações - o mesmo género de ampliações e amputações que teve lugar desde que a ciência aplicada se pôs realmente a caminhar com a sua própria cadência; mas, desta vez, serão consideravelmente mais rigorosas do que no passado. Estas operações, que estarão longe de ser feitas sem dor, serão dirigidas por governos totalitários eminentemente centralizados. É uma coisa inevitável, pois o futuro imediato tem grandes probabilidades de se parecer com o passado imediato, e no passado imediato as mudanças tecnológicas rápidas, efectuando-se numa economia de produção de massa e entre uma população em que a grande maioria dos indivíduos nada possui, têm tido sempre a tendência para criar confusão económica e social. A fim de reduzir essa confusão, o poder tem sido centralizado e o controlo governamental aumentado. É provável que todos os governos do mundo venham a ser mais ou menos totalitários, mesmo antes da utilização prática da energia atómica; que eles serão totalitários durante e após essa utilização prática, eis o que parece quase certo. Só um movimento popular em grande escala, tendo em vista a descentralização e o auxílio individual, poderá travar a actual tendência para o estatismo. E não existe presentemente nenhum sinal que permita pensar que tal movimento venha a ter lugar.







Não há nenhuma razão, bem entendido, para que os novos totalitarismos se pareçam com os antigos. O governo por meio de cacetes e de pelotões de execução, de fomes artificiais, de detenções e deportações em massa, não é somente desumano (parece que isso não inquieta muitas pessoas, actualmente), é - pode demonstrar-se - ineficaz, e, numa era de técnica avançada, a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo. Um estado totalitário verdadeiramente eficiente será aquele em que o todo-poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de directores terá o controlo de uma população de escravos que será inútil constranger, porque todos terão amor à sua servidão. Conseguir que eles a amem - tal será a tarefa atribuída, nos estados totalitários de hoje, aos ministérios de propaganda, aos redactores-chefes dos jornais e aos mestres-escola. Mas os seus métodos são ainda grosseiros e não-científicos. Os Jesuítas gabavam-se outrora de poder, se lhes fosse confiada a instrução da criança, responder pelas opiniões religiosas do homem; mas aí tratava-se de um caso de desejos tomados por realidades. E o pedagogo moderno é, provavelmente, menos eficaz no condicionamento dos reflexos dos seus alunos do que o foram os reverendos padres que educaram Voltaire. Os maiores triunfos, em matéria de propaganda, foram conseguidos, não com fazer qualquer coisa, mas com a abstenção de a fazer. Grande é a verdade, mas maior ainda, do ponto de vista prático, é o silêncio a respeito da verdade. Abstendo-se simplesmente de mencionar alguns assuntos, baixando aquilo a que o Sr. Churchill chama uma "cortina de ferro" entre as massas e certos factos que os chefes políticos locais consideram indesejáveis, os propagandistas totalitários têm influenciado a opinião de uma maneira bastante mais eficaz do que teriam podido fazê-lo por meio de denúncias eloquentes ou das mais convincentes e lógicas refutações. Mas o silêncio não basta. Para que sejam evitadas a perseguição, a liquidação e outros sintomas de atritos sociais, é necessário que o lado positivo da propaganda seja tão eficaz como o negativo. Os mais importantes Manhattan Projects do futuro serão vastos inquéritos, instituídos pelo governo, sobre aquilo a que os homens políticos e os homens de ciência que nele participarão chamarão "o problema da felicidade"- noutros termos, o problema que consiste em fazer amar aos indivíduos a sua servidão. Sem segurança económica, não tem o amor pela servidão nenhuma possibilidade de se desenvolver; admito, para resumir, que a todo-poderosa comissão executiva e seus directores conseguirão resolver o problema da segurança permanente. Mas a segurança tem tendência a ser muito rapidamente dada por garantida. A sua realização é simplesmente uma revolução superficial, exterior. O amor à servidão não pode ser estabelecido senão como resultado de uma revolução profunda, pessoal, nos espíritos e nos corpos humanos. Para efectuar esta revolução necessitaremos, entre outras, das descobertas e invenções seguintes: Primo, uma técnica muito melhorada da sugestão - por meio do condicionamento na infância e, mais tarde, com a ajuda de drogas, tais como a escopolamina. Secundo, um conhecimento científico e perfeito das diferenças humanas que permita aos dirigentes governamentais destinar a todo o indivíduo determinado o seu lugar conveniente na hierarquia social e económica. (As cunhas redondas nos buracos quadrados têm tendência para ter ideias perigosas acerca do sistema social e para contaminar os outros com o seu descontentamento). Tertio (pois a realidade, por mais utópica que seja, é uma coisa de que todos temos necessidade de nos evadir frequentemente), um sucedâneo do álcool e de outros narcóticos, qualquer coisa que seja simultaneamente menos nociva e mais dispensadora de prazeres que o gin ou a heroína E quarto (será isto um projecto a longo prazo, que exigirá, para chegar a  uma conclusão satisfatória, várias gerações de controlo totalitário), um sistema eugénico perfeito, concebido de maneira a padronizar o produto humano e a facilitar, assim, a tarefa dos dirigentes. No Admirável Mundo Novo esta standardização dos produtos humanos foi levada a extremos fantásticos, se bem que talvez não impossíveis. Técnica e ideologicamente, estamos ainda muito longe dos bebés em proveta e dos grupos Bokanovsky de meio-imbecis. Mas quando for ultrapassado o ano 600 d.F., quem sabe o que poderá acontecer? Daqui até lá, as outras características desse mundo mais feliz e mais estável - os equivalentes do soma, da hipnopédia e do sistema científico das castas - não estão provavelmente afastadas mais de três ou quatro gerações. E a promiscuidade sexual do Admirável Mundo Novo também não parece estar muito afastada. Existem já certas cidades americanas onde o número de divórcios é igual ao número de casamentos. Dentro de alguns anos, sem dúvida, vender-se-ão licenças de cães, válidas para um período de doze meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de um animal de cada vez. À medida que a liberdade económica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação. E o ditador (a não ser que tenha necessidade de carne de canhão e de famílias para colonizar os territórios desabitados ou conquistados) fará bem em encorajar esta liberdade. Juntamente com a liberdade de sonhar em pleno dia sob a influência de drogas, do cinema e da rádio, ela contribuirá para reconciliar os seus súbditos com a servidão que lhes estará destinada.





































Vendo bem, parece que a utopia está mais próxima de nós do que se poderia imaginar apenas há quinze anos. Nessa época projectei-a à distância futura de seiscentos anos. Hoje parece praticamente possível que esse horror se abata sobre nós dentro de um século. Isto, se nos abstivermos, até lá, de nos fazer explodir em bocadinhos. Na verdade, a menos que nos decidamos a descentralizar e a utilizar a ciência aplicada, não com o fim de reduzir os seres humanos a simples instrumentos, mas como meio de produzir uma raça de indivíduos livres, apenas podemos escolher entre duas soluções: ou um certo número de totalitarismos nacionais, militarizados, tendo como base o terror da bomba atómica e como consequência a destruição da civilização (ou, se a guerra for limitada, a perpetuação do militarismo); ou um único totalitarismo internacional, suscitado pelo caos social resultante do rápido progresso técnico em geral e da revolução atómica em particular, e desenvolvendo-se, sob a pressão da eficiência e da estabilidade, no sentido da tirania-providência da Utopia. É pagar e escolher».

Aldous Huxley (in Prefácio de 1949 ao «Admirável Mundo Novo»).




Carta a George Orwell, por ocasião da publicação de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949).


Para George Orwell (E.A. Blair)
Wrightwood, Califórnia
21 de Outubro de 1949


Caro Sr. Orwell,

Foi muito gentil da sua parte ter pedido aos editores que me enviassem um exemplar do seu livro. Recebi-o quando estava a meio de um trabalho que me exigiu muitas leituras e uma extensa consulta de referências; e, dado que a minha fraca vista me obriga a restringir as leituras que faço, tive de aguardar bastante tempo antes de me aventurar em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.

Uma vez que estou de acordo com todas as opiniões dos críticos, escusado será repetir a profunda importância e a qualidade do seu livro. Permita-me antes falar do tema - a derradeira revolução?

O prenúncio de uma filosofia da derradeira revolução - a revolução que ultrapassa a política e a economia e que visa a total subversão da psicologia e da fisiologia do indivíduo - encontra-se já em Marquês de Sade, que se considerava um seguidor, e um consumador, de Robespierre e de Babeuf. A filosofia da minoria dirigente em Mil Novecentos e Oitenta Quatroé um sadismo levado às últimas consequências pela superação, e negação, do sexo. Se, de facto, a política da bota-na-cara pode prosseguir indefinidamente, é algo que me parece duvidoso. É minha convicção que a oligarquia dirigente encontrará formas menos árduas e esgotantes de governar e de satisfazer a sua ânsia de poder, formas estas que se assemelharão às que descrevi em Admirável Mundo Novo. Tive recentemente ocasião de me debruçar sobre a história do magnetismo animal e do hipnotismo, e fiquei bastante impressionado por ver que, durante cento e cinquenta anos, nos recusámos a reconhecer com seriedade as descobertas de Mesmer, Braid e Esdaile, entre outros. Em parte devido ao materialismo prevalecente, e em parte também devido a uma respeitabilidade igualmente prevalecente, os filósofos e os cientistas do século XIX não estavam dispostos a investigar os factos mais invulgares da psicologia, para que os pragmáticos - os políticos, os soldados e os agentes da autoridade - os aplicassem no domínio da governação. Graças à ignorância voluntária dos nossos antecessores, o advento da derradeira revolução foi adiado por cinco ou seis gerações. Outro feliz acaso foi a inépcia de Freud no que toca ao hipnotismo e a sua consequente rejeição por este psicanalista. Este aspecto atrasou o recurso generalizado ao hipnotismo na psiquiatria pelo menos quarenta anos. Mas, actualmente, a psicanálise e a hipnose complementam-se; e esta última tornou-se acessível e indefinidamente abrangente devido ao uso de barbitúricos, que induzem um estado hipnótico e sugestionável até nos indivíduos mais recalcitrantes. Creio que, na próxima geração, os governantes do mundo descobrirão que o condicionamento de crianças e a narco-hipnose são mais eficazes, enquanto instrumentos de governação, do que as associações e as prisões, e que a ânsia de poder pode ser igualmente satisfeita quer sugestionando os indivíduos para que adorem a sua escravidão, quer forçando-os a obedecerem pelo chicote e pela violência. Ou seja, penso que o pesadelo de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro está destinado a converter-se gradualmente no pesadelo de um mundo que tem mais afinidades com aquele que imaginei em Admirável Mundo Novo. A mudança ficará a dever-se à manifesta necessidade de maior eficácia. Até lá, claro, talvez ocorra uma guerra atómica e biológica em grande escala - e nesse caso, teremos pesadelos de outra natureza e dificilmente imagináveis.

Agradeço-lhe novamente o exemplar.

Cordialmente

Aldous Huxley























Os Princípios da Novilíngua


A novilíngua era a língua oficial da Oceânia e fora concebida para satisfazer as necessidades ideológicas do Socing, ou socialismo Inglês. No ano de 1984 não havia ainda ninguém que usasse a novilínguia como exclusivo meio de comunicação, quer oralmente quer por escrito. Os artigos de fundo do Times vinham redigidos em novilíngua, mas constituía isso um tour de force, só podendo ser levado a cabo por especialistas. Esperava-se que a novilíngua tivesse finalmente destronado a velhilíngua (ou inglês-padrão, como é correcto dizer-se) por volta do ano 2050. Entretanto, ia constantemente ganhando terreno, uma vez que todos os membros do Partido tendiam a usar cada vez mais, na linguagem quotidiana, palavras e construções gramaticais da novilíngua. A versão em vigor em 1984, consistia numa versão provisória contendo muitas palavras supérfluas e formações arcaicas destinadas a serem suprimidas mais tarde. A que aqui nos ocupa é a versão final aperfeiçoada, a que a décima primeira edição do Dicionário de Novilíngua dá corpo.

O propósito da novilíngua pretendeu não apenas proporcionar um meio de expressão para a visão do mundo e os hábitos mentais específicos dos adeptos do Socing, mas também tornar impossíveis todas as formas de pensamento. Pretendia-se que, quando a novilíngua fosse definitivamente adoptada e a velhilíngua caísse no esquecimento, todo o pensamento herético - isto é, qualquer pensamento divergente dos princípios do Socing - se tornasse literalmente impensável, pelo menos na medida em que o pensamento depende da palavra. O vocabulário da novilíngua era construído de modo a exprimir com exactidão, e muitas vezes com grande subtileza, qualquer sentido que um membro do Partido pudesse legitimamente querer exprimir, excluindo, ao mesmo tempo, todos os outros sentidos, e também a possibilidade de chegar a eles por meios indirectos. Conseguia-se isto em parte através da invenção de novas palavras, mas principalmente eliminando as palavras indesejáveis e despojando as que restavam dos seus sentidos não ortodoxos, e tanto quanto possível de todos e quaisquer sentidos secundários. Para dar apenas um exemplo: a palavra livre continuava a existir na novilíngua, mas só podia ser usada em frases como «Este cão está livre de pulgas», ou «Este campo está livre de ervas daninhas». Não podia ser usada na velha acepção de «politicamente livre» ou «intelectualmente livre», uma vez que as liberdades política ou intelectual já nem sequer existiam enquanto conceitos, sendo portanto necessariamente inomináveis. Mesmo quando não se tratava de suprimir palavras manifestamente heréticas, encarava-se a redução do vocabulário como um fim em si, e não se permitia a sobrevivência de qualquer palavra dispensável. A novilíngua foi concebida não para aumentar, mas para restringir o campo do pensamento, propósito indirectamente servido pela redução ao mínimo da gama das palavras.

A novilíngua baseava-se na língua inglesa tal como hoje a conhecemos, embora muitas das suas proposições, mesmo sem qualquer palavra criada de novo, fossem praticamente ininteligíveis para um falante inglês dos nossos dias. As palavras da novilíngua dividiam-se em três categorias distintas, conhecidas como vocabulário A, vocabulário B (as também chamadas palavras compostas) e vocabulário C. O mais simples será analisar separadamente cada uma destas classes, embora as particularidades gramaticais da língua possam ser desde logo analisadas na secção dedicada ao vocabulário A, dado as mesmas regras serem válidas para as três categorias.




































Vocabulário A. O vocabulário A era constituído por palavras necessárias às actividades da vida quotidiana - acções como comer, beber, trabalhar, vestir-se, subir e descer escadas, deslocar-se em veículos, jardinar, cozinhar, e assim por diante. Compunha-se quase integralmente de palavras que já possuímos - palavras como bater, correr, cão, árvore, açúcar, casa, campo -, mas em comparação com o inglês actual cingia-se a um número extremamente pequeno, enquanto os seus significados eram muito mais rigidamente definidos. Haviam sido expurgadas de todas as ambiguidades e matizes de sentido. Na medida do possível, cada palavra desta categoria era, na novilíngua, um mero som staccato exprimindo um conteúdo claramente delimitado. Seria absolutamente impossível utilizar o vocabulário A para fins literários ou para debates políticos ou filosóficos. Destinava-se apenas a exprimir ideias simples e utilitárias, envolvendo, regra geral, objectos concretos ou acções físicas.

A gramática da novilíngua tinha duas particularidades dignas de nota. A primeira, uma permutabilidade quase total entre as diferentes partes do discurso. Qualquer palavra da língua (em princípio isto aplicava-se até mesmo a palavras tão abstractas como se ou quando) podia ser usada quer como verbo quer como substantivo, adjectivo ou advérbio. Entre a forma verbal e a forma nominal, sendo a raiz de ambas a mesma, nunca havia qualquer variação, implicando tal regra, por si só, a destruição de muitas formas arcaicas. A palavra pensamento, por exemplo, não existia na novilíngua. Em seu lugar utilizava-se pensar, servindo simultaneamente de substantivo e verbo. Não se seguia aqui nenhum princípio etimológico: em alguns casos era o substantivo original o escolhido para ser conservado; noutros casos, o verbo. Mesmo quando um substantivo e um verbo de sentido afim não estavam etimologicamente ligados entre si, um ou outro de entre eles acabava por ser muitas vezes suprimido. Por exemplo, a palavra cortar não existia, uma vez que o seu sentido estava suficientemente abrangido pelo substantivo-verbo faca. Os adjectivos formavam-se acrescentando ao substantivo-verbo o sufixo -ico, e os advérbios acrescentando -mente. Assim, por exemplo. velocidádico significava «rápido» e velocidademente significava «depressa». Conservavam-se alguns dos nossos actuais adjectivos, tais como bom, forte,grande, preto, macio, mas, na globalidade, eram raríssimos. Pouca falta faziam, visto que se podiam obter quase todos os sentidos adjectivados acrescentando -ico a um substantivo-verbo. Não se conservaram nenhuns dos advérbios actualmente existentes, excepto os já terminados em -mente (1): a terminação era invariável. A palavra bem, por exemplo, substituía-se por bommente.

Além disso, qualquer palavra - também esta regra se aplicava, em princípio, a todas as palavras da língua - podia tornar-se negativa mediante a anteposição do afixo im-, ou reforçada pelo afixo extra-, ou para uma ênfase ainda maior, pelo afixo duploextra-. Assim, por exemplo, imfrio significava «quente», enquanto extrafrio e duploextrafrio, significavam, respectivamente, «muito frio» e «muitíssimo frio». Era também possível, à semelhança do inglês actual, modificar o sentido de quase todas as palavras com prefixos como pré-, pós-, sub-, supra-, etc. Dada, por exemplo, a palavra bom, tornava-se desnecessária a palavra mau, uma vez que o sentido desejado podia ser correctamente expresso - ou melhor ainda - por imbom. Bastava, nos casos em que duas palavras formavam um par natural de opostos, decidir qual delas suprimir. Escuro, por exemplo, podia ser substituída por inclaro, ou claro por inescuro, conforme se preferisse.

A segunda característica distintiva da gramática da novilíngua residia na sua regularidade. Com algumas excepções, que adiante indicaremos, todas as flexões seguiam a mesma regra. Como tal, em todos os verbos o pretérito e o particípio passado eram idênticos e teminavam em -ado. O pretérito de fazer era fazado, o pretérito de dizer, dizado (2), e assim por diante, em toda a língua, abolindo-se por completo formas como ido, deu, trouxe, feito, teve, etc. Todos os plurais se formavam acrescentando -s ou -es, conforme os casos. Os plurais de cão, pão, lençol eram cãos, pãos, lençoles. O comparativo e o superlativo dos adjectivos formavam-se invariavelmente com mais, amais (bom, maisbom, amaisbom), suprimindo-se todas as formas irregulares.












As únicas classes de palavras onde continuavam a tolerar-se as flexões irregulares resumiam-se aos pronomes pessoais e relativos, aos adjectivos demonstrativos e aos verbos auxiliares. Todas estas seguiam as antigas regras de utilização, à excepção de cujo, que fora eliminado, por desnecessário, e do auxiliar haver, abandonado porque podia, em todos os casos, ser substituído por ter. Verificavam-se, porém, certas irregularidades na formação de palavras, devido à necessidade de falar rápida e fluentemente. Palavras difíceis de pronunciar, ou susceptíveis de serem incorrectamente ouvidas, eram ipso facto consideradas palavras más: ocasionalmente, portanto, por razões de eufonia, inseriam-se numa palavra letras suplementares ou conservava-se a formação arcaica. Mas esta necessidade fazia-se sentir principalmente em relação ao vocabulário B. O motivo por que se dava uma tão grande importância à facilidade de articulação será esclarecido mais adiante neste ensaio.

Vocabulário B. O vocabulário B compunha-se de palavras deliberadamente construídas para fins políticos, ou seja: palavras que não só tinham, em todos os casos, um sentido político, como se destinavam a impor uma atitude mental desejável à pessoa que as utilizava. Sem a plena compreensão dos princípios do Socing, seria difícil empregar correctamente estas palavras. Em alguns casos, era possível traduzi-las em velhilíngua, ou mesmo em palavras do vocabulário A, mas isso geralmente exigia uma longa paráfrase e implicava sempre a perda de certas conotações. As palavras B constituíam uma espécie de estenografia verbal, condensando muitas vezes todo um encadeamento de ideias em meia dúzia de sílabas, mostrando-se, pois, ao mesmo tempo mais precisas e mais eficazes do que a linguagem comum.

As palavras B eram sempre palavras compostas (3). Compunham-se de duas ou mais palavras, ou partes de palavras, unidas numa forma fácil de pronunciar. A amálgama daí resultante era sempre um substantivo-verbo, cujas flexões obedeciam às regras gerais. Para dar apenas um exemplo: a palavra bompensar, que significava pouco mais ou menos «ortodoxia», ou, caso se prefira considerá-la como verbo, «pensar de forma ortodoxa». Tinha as seguintes flexões: substantivo-verbo, bompensar; pretérito perfeito e particípio passado, bompensado; particípio presente, bompensando; adjectivo, bompensádico; advérbio, bompensadamente; substantivo verbal, bompensante.

As palavras B não se construíam com base em nenhum plano etimológico. Os fragmentos de que se compunham podiam ser quaisquer partes do discurso, dispostos por qualquer ordem e mutilados de forma a facilitar a sua pronúncia, conquanto não deixassem de indicar a sua derivação. Na palavra crimepensar (crime de pensamento), por exemplo, o pensar vinha em segundo, enquanto em pensarpol (Polícia do Pensamento) vinha em primeiro, perdendo na palavra final, polícia, as últimas sílabas. Dada a grande dificuldade em garantir a eufonia, as formações irregulares surgiam preferencialmente no vocabulário B. Por exemplo, formas adjectivadas de Minivero, Minipax e Minamor davam, respectivamente, Miniverídico, Minipacífico e Minamorável, simplesmente porque Miniveróico, Minipáxico e Miniamôrico se constatava serem ligeiramente difíceis de pronunciar. Em princípio, porém, todas as palavras B eram susceptíveis de flexão, e todas flectiam exactamente da mesma maneira.















Algumas das palavras B designavam sentidos extremamente subtis, praticamente ininteligíveis para quem não dominasse a língua no seu conjunto. Considere-se, por exemplo, numa frase tão típica, de um artigo de fundo do Times, como Velhopensantes inventressentir Socing. A versão mais curta possível desta frase em velhilíngua seria: «Aqueles cujas ideias foram formadas antes da Revolução não podem ter uma plena compreensão emocional dos princípios do Socialismo Inglês». Ainda assim, não estamos perante a tradução adequada. Antes de mais, para se apreender plenamente o sentido da frase em novilíngua acima citada, tornar-se-ia necessário ter ideias claras acerca do que significa Socing. E além disso, só uma pessoa profundamente enraizada no Socing seria capaz de avaliar toda a força da palavra ventressentir, que implicava aceitação cega, entusiástica, hoje difícil de imaginar; ou da palavra velhopensar, que se ligava inextricavelmente às ideias de perversidade e decadência. Mas a função específica de certas palavras da novilíngua, de que velhopensaré exemplo, não consistia tanto em exprimir significações como em destruí-las. O sentido de tais palavras, necessariamente em número reduzido, tinha vindo a alargar-se de modo a englobar baterias inteiras de outras palavras, as quais, logo que o seu significado estivesse suficientemente abrangido por um único termo mais amplo, logo seriam eliminadas e esquecidas. A maior dificuldade com que se defrontavam os compiladores do Dicionário de Novilíngua não era inventar novas palavras, mas sim, depois de as inventar, saber ao certo o que significavam; ou seja, saber ao certo que gama de termos a sua existência cancelava.

Como já vimos, no caso da palavra livre, palavras outrora portadoras de um sentido herético mantinham-se por vezes devido a razões de conveniência, só que expurgadas dos sentidos indesejáveis. Inúmeras outras palavras como honra, justiça, moralidade, internacionalismo, democracia, ciência e religião tinham simplesmente sido suprimidas, ao serem abrangidas por algumas palavras genéricas que, ao abrangê-las, as aboliam. Todas as palavras que se agrupavam em torno dos conceitos de liberdade e igualdade, por exemplo, foram concentradas numa única palavra, crimepensar, enquanto as palavras que giravam em torno dos conceitos de objectividade e racionalismo foram absorvidas pela palavra velhopensar. Precisão maior, seria perigoso. O que se pretendia dos membros do Partido era uma visão do mundo semelhante à dos antigos hebreus, que não iam muito além de saber que todas as nações à excepção da sua adoravam «falsos deuses». Ao hebreu tanto lhe fazia que esses deuses se chamassem Baal, Osíris, Moloch, Astaroth, e assim por diante; provavelmente, quanto menos soubesse acerca deles, melhor para a sua ortodoxia. Conhecia Jeová e os mandamentos de Jeová: por conseguinte, todos os deuses com nomes diferentes ou com outros atributos eram falsos deuses. De forma muito semelhante, um membro do Partido estava ciente do que constituía a conduta correcta e, em termos extremamente vagos e genéricos, sabia que tipos de desvio eram possíveis relativamente a ela. A sua vida sexual, por exemplo, encontrava-se inteiramente regulada por duas palavras em novilíngua: sexocrime (imoralidade sexual) e bom-sexo (castidade). Sexocrime cobria todos e quaisquer delírios sexuais: a fornicação, o adultério, a homossexualidade e as outras perversões; além disto, englobava igualmente a relação sexual normal praticada apenas por prazer. Era desnecessário enumerar separadamente estes crimes, uma vez serem todos condenáveis e, em princípio, puníveis com a morte. No vocabulário C, que se compunha de termos científicos e técnicos, talvez fosse preciso atribuir nomes especializados a certas aberrações sexuais, mas ao cidadão comum de nada serviam. Este sabia somente o que significava bom-sexo - isto é, a relação normal entre marido e mulher, com a procriação por única finalidade, sem prazer físico do lado da mulher: tudo o mais era sexocrime. Em novilíngua raramente se tornava viável seguir um pensamento herético para lá da consciência de que era herético: para além desse ponto as palavras necessárias não existiam.










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Nenhuma palavra do vocabulário B era ideologicamente neutra. Muitas delas eram eufemismos. Palavras como campalegre (campo de trabalhos forçados) ou Minipax (Ministério da Paz, ou seja, Ministério da Guerra) significavam quase o perfeito oposto daquilo que pareciam significar. Certas palavras, em contrapartida, traduziam uma percepção franca e desdenhosa da verdadeira natureza da sociedade oceânica. Um bom exemplo verificava-se em nutriprole, termo que designava os divertimentos medíocres e as notícias espúrias que o Partido destinava às massas. Havia ainda algumas palavras ambivalentes, tendo a conotação de «bom» quando aplicadas ao Partido e de «mau» quando aplicadas aos seus inimigos. Mas além destas, usava-se um grande número de palavras que, à primeira vista, pareciam meras abreviaturas e cuja coloração ideológica derivava não do seu sentido, mas da sua estrutura.

Na medida do possível, tudo quanto tivesse ou pudesse vir a ter qualquer tipo de relevância política integrava-se no vocabulário B. Os nomes de todas as organizações, ou agrupamentos de indivíduos, doutrinas, países, instituições ou edifícios públicos, surgiam invariavelmente reduzidos à forma familiar; ou seja, uma única palavra de fácil pronúncia, com o número mínimo de sílabas, susceptível de preservar a sua derivação original. No Ministério da Verdade, por exemplo, ao Departamento de Arquivos, onde Winston Smith trabalhava, designavam-no por Arquidep, ao Departamento de Ficção por Ficdep, ao Departamento de Programas Televisivos por Teledep, e assim sucessivamente. O objectivo disto não consistia apenas em poupar tempo. Já nas primeiras décadas do século XX as palavras ou expressões abreviadas constituíam um dos aspectos característicos da linguagem política, sendo notória e marcante a tendência para empregar abreviaturas deste tipo nos países ou organizações com características totalitárias. Palavras como Nazi, Gestapo, Comintern, Inprecor, Agitprop são disso bons exemplos. Na origem, tal prática tinha sido adoptada como que por instinto, mas na novilíngua utilizava-se com propósitos bem conscientes. Verificou-se que ao abreviar deste modo um nome se reduzia subtilmente o seu sentido, eliminando a maior parte das ilações que de outro modo se fariam em torno dele. O termo Internacional Comunista, por exemplo, evoca numa imagem compósita a fraternidade humana universal, as bandeiras vermelhas, as barricadas, Karl Marx e a Comuna de Paris. A palavra Comintern, em contrapartida, sugere simplesmente uma organização coesa e um corpo doutrinal bem definido. Refere-se a algo quase tão fácil de identificar, e tão limitado nos seus fins, como uma cadeira ou uma mesa. Comintern surge-nos como uma palavra que pode ser pronunciada quase sem pensar, enquanto Internacional Comunistaé uma expressão sobre a qual somos obrigados a reflectir minimamente. De modo idêntico, as ilações suscitadas por uma palavra como Minivero são menos numerosas e mais controláveis do que as suscitadas por Ministério da Verdade. Esse propósito justificava apenas o hábito de abreviar sempre que possível, como também o cuidado quase excessivo que se punha numa pronúncia fácil, acessível.

Em novilíngua, a eufonia sobrepunha-se a todas as outras considerações, excepto à clareza do sentido. A regularidade gramatical era-lhe sacrificada sempre que necessário. Justificava-se que assim fosse, uma vez que o pretendido, principalmente no âmbito político, eram palavras curtas e abreviadas, de sentido inequívoco, que pudessem ser rapidamente pronunciadas e provocassem a mínima ressonância possível no espírito do falante. As palavras do vocabulário B ganhavam até mais força pelo simples facto de serem praticamente todas muito semelhantes. Quase invariavelmente, tais palavras - bompensar, Minipax, nutriprole, campalegre, Socing, ventressentir, pensarpol, e tantas outras - compunham-se de duas ou três sílabas (4), com o acento tónico repartido igualmente entre a primeira e a última sílabas. O seu emprego dava origem a um tipo de elocução rápida, ao mesmo tempo sacudida e monótona. E era exactamente isto que se pretendia. A intenção, no referente a temas não ideologicamente neutros, residia em tornar a fala tanto quanto possível independente da consciência. No domínio da vida quotidiana afigurava-se sem dúvida necessário, pelo menos às vezes, reflectir antes de falar, mas um membro do Partido chamado a emitir um juízo político ou ético devia ser capaz de disparar as opiniões correctas tão automaticamente como uma metralhadora dispara balas. O treino preparava-o para isso mesmo, a língua fornecia-lhe instrumentos quase infalíveis, e a textura das palavras, com a sua sonoridade áspera e alguma fealdade deliberada coadunando-se com o espírito do Socing, reforçava ainda mais todo o processo.

























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Reforçava-o também o facto de haver muito poucas palavras por onde escolher. Em comparação com o nosso, o vocabulário de novilíngua era diminuto, e constantemente surgiam novas formas de o reduzir. Com efeito, a novilíngua diferia da maior parte das outras línguas, porque o seu vocabulário ia diminuindo em vez de aumentar todos os anos. Cada redução era um ganho, pois quanto menor a área de escolha, menor a tentação de pensar. Como fim último, esperava-se atingir uma linguagem emitida pela laringe, sem passar pelos centros nervosos superiores. Esse objectivo era francamente admitido no termo patofalar, que em novilíngua significava «grasnar como um pato». Tal como diversas outras palavras do vocabulário B, patofalar continha um sentido ambivalente. Desde que as opiniões grasnadas fossem ortodoxas, o termo era perfeitamente laudatório; quando o Times se referia a um dos oradores do Partido caracterizando-o como duploextrabom patofalante estava a fazer-lhe um elogio caloroso e extremamente apreciado.

Vocabulário C. O vocabulário C era complementar aos outros dois e compunha-se inteiramente de termos científicos ou técnicos. Assemelhavam-se aos termos científicos actuais, sendo construídos a partir das mesmas raízes, mas havia o cuidado habitual de os definir com rigidez e de os despojar de sentidos indesejáveis. Seguiam as mesmas regras gramaticais que as palavras dos dois outros vocabulários. Utilizavam-se muito poucas palavras C, quer na linguagem de todos os dias, quer no discurso político. Cada técnico ou trabalhador científico tinha acesso às palavras todas de que necessitava, na lista própria da sua especialidade, mas raramente ia além do conhecimento superficial das palavras que ocorriam nas outras listas. Muito poucas eram as palavras comuns a todas as listas, e nenhum vocabulário exprimia a função da Ciência como hábito mental ou método de pensamento, independentemente dos seus diversos ramos. Não existia, aliás, qualquer palavra para «Ciência», pois todos os sentidos que uma tal palavra pudesse denotar estavam já suficientemente abrangidos pelo termo Socing.

Por este resumo se perceberá que em novilíngua a expressão de opiniões ortodoxas, acima de um nível extremamente rudimentar, era praticamente impossível. Claro que se conseguia proferir heresias de tipo muito grosseiro, blasfémias, por assim dizer. Seria possível, por exemplo, dizer O Grande Irmãoé imbom. Mas a afirmação, que para ouvidos ortodoxos apenas exprimia um evidente absurdo, nunca poderia ser defendida com argumentos fundamentados, pois as palavras necessárias para isso tinham desaparecido. As ideias adversas ao Socing só podiam ser pensadas de forma vaga e inarticulada, e só se conseguia nomeá-las em termos extremamente imprecisos, amalgamando e condensando grupos inteiros de heresias, sem que isso as definisse. Na realidade, só havia a possibilidade de utilizar a novilíngua para fins heterodoxos traduzindo ilegitimamente algumas das palavras para velhilíngua. Por exemplo, todos os homens são iguais era uma frase possível em novilíngua, só que apenas do mesmo modo que Todos os homens são ruivos surge em velhilíngua: não continha qualquer erro gramatical, mas exprimia uma inverdade palpável - ou seja, que todos os homens têm idêntica altura, idêntico peso ou força. O conceito da igualdade política desaparecera, por conseguinte a palavra igual fora expurgada desta acepção secundária. Em 1984, quando a velhilíngua ainda constituía o meio normal de comunicação, existia teoricamente o perigo de que, ao usarem termos de novilíngua, as pessoas se lembrassem do seu sentido original. Na prática, quem conhecesse bem os princípios do duplopensar não tinha dificuldade em evitá-lo, mas dentro de uma ou duas gerações até mesmo a possibilidade de um tal deslize teria desaparecido. Indivíduo que crescesse tendo por único idioma a novilíngua nunca descobriria que igual tivera outrora a acepção secundária de «politicamente igual», ou que livre já significara «intelectualmente livre», tal como indivíduo que nunca tivesse ouvido falar de xadrez poderia alguma vez conhecer as acepções secundárias de rainha ou torre. Muitos dos crimes ou erros existentes, não estaria na sua mão cometê-los, simplesmente por serem inomináveis e por conseguinte inimagináveis. Era de prever que com o passar do tempo as características distintivas da novilíngua se acentuariam - palavras cada vez mais escassas, os respectivos sentidos cada vez mais rígidos, e cada vez menor a possibilidade de as utilizar indevidamente.



















Quando a velhilíngua estivesse definitivamente abolida seria cortado o último elo de ligação ao passado. A História já tinha sido reescrita, mas subsistiam aqui e ali fragmentos da literatura do passado, imperfeitamente censurados, e enquanto alguém conservasse os seus conhecimentos de velhilíngua ia havendo a possibilidade de os ler. No futuro, tais fragmentos, ainda que porventura sobrevivessem, seriam ininteligíveis e intraduzíveis. Tornar-se-ia impossível traduzir para novilíngua qualquer passagem de velhilíngua, a menos que se referisse a qualquer processo técnico ou acção quotidiana elementar, ou fosse já de tendência ortodoxa (bompensante seria a expressão em novilíngua). Na prática, isto significava que nenhum livro escrito antes de 1960, aproximadamente, podia ser traduzido na íntegra. A literatura pré-revolucionária só podia ser objecto de tradução ideológica - isto é, uma mudança não apenas de língua mas também de sentido. Tomemos como exemplo a conhecida passagem da Declaração da Independência:

Tomamos como verdades evidentes que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que, para garantir estes direitos, são instituídos entre os homens Governos cujos poderes derivam do consentimento dos governados. Que, sempre que qualquer forma de Governo se torne contrária a estes fins, tem o Povo o direito de a alterar ou abolir, e de instituir novo Governo...

Seria absolutamente impossível traduzir este trecho em novilíngua respeitando o seu sentido original. A solução mais próxima de uma tradução fiel seria englobar toda a passagem numa única palavra, crimepensar. A tradução desenvolvida só poderia ser uma tradução ideológica, mediante a qual as palavras de Jefferson se converteriam em panegírico do governo absoluto.

Boa parte da literatura do passado já estava, de resto, em vias de ser transformada deste modo. Razões de prestígio tornavam desejável preservar a memória de certas figuras históricas, sintonizando, ao mesmo tempo, as suas obras com a filosofia do Socing. Vários escritores, como Shakespeare, Milton, Swift, Byron, Dickens e alguns outros estavam, por conseguinte, a ser traduzidos; quando a tarefa ficasse concluída, os seus escritos originais, juntamente com tudo o mais que subsistisse da literatura do passado, seriam destruídos. Estas traduções constituíam um trabalho longo e difícil, e não se esperava que estivessem concluídas antes da primeira ou segunda década do século XXI. Havia também um grande volume de literatura meramente utilitária - manuais técnicos indispensáveis e outras obras de natureza semelhante - que iria sofrer o mesmo tratamento. Fora principalmente para dar tempo a esse trabalho preliminar de tradução que a adopção definitiva da novilíngua havia sido fixada para a longínqua data de 2050 (George Orwell, 1984, Antígona, 2012, Apêndice, pp. 301-315).









































Notas: 

(1) No original: «except for the very few already ending in -wise». Em inglês são raros os advérbios formados com o sufixo -wise, enquanto em português os advérbios em -mente são frequentíssimos; daí a pequena alteração que se tornou necessário introduzir na tradução. (N. da T.).

(2) Neste parágrafo e no seguinte, optei por uma tradução não literal, escolhendo palavras e construções gramaticais portuguesas que apresentassem alguma analogia formal (se não de conteúdo) com os exemplos ingleses escolhidos pelo autor (N. da T.).

(3) No vocabulário A encontramos também, é claro, palavras compostas como falascreve, mas estas são meras abreviaturas cómodas, sem qualquer coloração ideológica particular.

(4) Na tradução para português o número de sílabas quase sempre aumenta (N. da T.).





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O Liceu Aristotélico faz uma pausa na época estival

Uma Constituição para Portugal (ii)

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Escrito por Miguel Bruno Duarte






«Não sei se o regime político salazarista, que esteve instalado entre nós durante cinquenta anos (...) terá sido um regime de inspiração hegeliana. Mas hegelianos foram, decerto, muitos aspectos da sua Constituição Política, plebiscitada em 1933, graças - segundo então se dizia - à intervenção na elaboração do respectivo texto do jurista monárquico Fezas Vital.

Esse ano de 1933 ainda era abrangido pelas comemorações do centenário da morte de Hegel em 1831. E se até à data dessas comemorações as obras de Hegel dificilmente se podiam encontrar na própria Alemanha, depois de então as edições e as traduções multiplicaram-se em muitos países da Europa e América. Em Portugal, nos anos sessenta e por iniciativa do movimento da "filosofia portuguesa" - ou da "escola" de Leonardo Coimbra - e realização da Livraria Guimarães, sempre ligada àquele movimento, editaram-se as primeiras traduções do famoso filósofo: a destes "Princípios da Filosofia do Direito" e a da "Estética". Por aí se ficou quanto a Hegel. A "cultural oficial", centrada nas Universidades do Estado, apontou sobre tais edições as suas armas habituais, sempre destinadas a paralisar a actividade intelectual: quer pela insídia quanto à fidelidade das traduções, quer pela exigência, supra e falsa erudita, segundo a qual a compreensão da obra de Hegel só se obtém nos textos originais (ignorando assim que o próprio Hegel afirmara o contrário), quer sobrepondo àquelas duas obras hegelianas outras, mais "modernas", sobre os mesmos assuntos (um professor universitário chegou a procurar-me para me dissuadir de continuar a tradução da "Estética" - que ele era incapaz de compreender - oferecendo-me, em troca, editor e compradores para uma tradução da "História da Arte" de E. Faure).

Com toda esta poderosíssima e incansável hostilidade, as traduções das duas obras de Hegel foram-se editando e reeditando, sendo esta a 4.ª edição dos "Princípios da Filosofia do Direito".

A escola da "filosofia portuguesa" não é uma escola hegeliana. Longe disso. Hegel é, como todos os pensadores alemães (ou mais e melhor do que todos os pensadores alemães) o filósofo da vontade. A "filosofia portuguesa" ignora a vontade e é uma filosofia do pensamento, quer dizer: conserva e actualiza o primado do pensamento que, na tradição escolástica, os alemães substituíram pelo primado da vontade.

Hegel é, para empregarmos um termo de Santana Dionísio, a culminância da filosofia alemã e a perfeita sistematização da filosofia moderna ou da filosofia que deu origem à ciência moderna ou, ainda, da filosofia que constitui a última possibilidade de a ciência moderna adquirir plena consciência de si no momento em que se esvai conduzindo os homens e o mundo aos limites de uma catástrofe universal e trágica.

Os cientistas - até os mais atentos, preocupados e temerosos da situação a que a ciência moderna conduziu, como Poincaré, A. Whitehead ou Max Born - não se dão conta disto que o hegelianismo constitui para todo o cientismo e seus prolongamentos técnicos. Uns, seguem suas vias muito pessoais. Outros preferem conservar-se eufóricos e inconscientes. Outros ainda preconizam o "regresso a Kant" que é manifestamente, o incondicional apologeta do conhecimento científico, quem o defendeu da crítica demolidora de D. Hume e, no mesmo passo, deu início à filosofia alemã, ou ao "idealismo alemão", que, transitando por Fichte, culminou em Hegel.

O kantismo consiste - como em geral se não ignora - na tentativa de demonstrar que só é cognoscível a realidade dos fenómenos que a ciência moderna se dedica a conhecer. A realidade em que o pensamento (ou a razão pura) se situa será incognoscível. Noutros termos: o pensamento pensa o que se conhece e o conhecimento não resulta do pensamento.



Manuel Kant



Os epígonos de Kant viram bem que esta concepção ficava à margem da filosofia e a tornava inviável, pois só há filosofia onde o conhecimento resulta do pensamento que se pensa a si próprio como o único real de que participa tudo o que se pode dizer real. A sistematização de Hegel destinou-se a restabelecer a filosofia mas dentro da concepção kantiana ou a partir dela preservando-a. Para o conseguir, Hegel situou no início de tudo o que é pensar (e insistindo que tudo o que é pensar depende do seu início) a tese de que o não-ser é e o ser não é, tese que coloca na abertura da sua "Ciência da Lógica". Nesta tese se fundava para salvar o kantismo com a sua ciência moderna. Com efeito: o fenómeno cognoscível, objecto da ciência moderna, pode não possuir fundamento ôntico, pode não-ser, mas isso não o impede de ser, visto que não-ser e ser são o mesmo, e a natureza, o mundo e a sociedade - compostos, como são, de aparentes e transitórios fenómenos ou não-seres - nada são, por um lado, enquanto não-seres mas, por outro lado, são porque o não-ser é o mesmo que o ser. Ou porque o não-ser, nada sendo sem o ser e, no entanto, estando aí (na natureza, na sociedade, no mundo), só aí pode estar graças a essa identificação com o ser. Quem estabelece, quem conhece a identificação é algo de muito diferente, até contrário e oposto, ao fenómeno e à aparência, à natureza e à sociedade, às quais é superior e as domina: o espírito.

O espírito manifesta-se, como não-ser, no fenómeno, e é isso que a ciência moderna conhece. O espírito conhece-se como ser na religião, na arte e na filosofia (Hegel chama, ao espírito que se conhece como ser, espírito absoluto). A religião, a arte e a filosofia têm, cada uma, seu domínio singular e próprio. O domínio da filosofia é o pensamento que introduz o ser no não-ser (para os identificar) impondo, ou aplicando, suas leis à natureza (e é isso a ciência moderna), impondo as suas formas à sociedade (e é isso o Direito).

Esta sistematização só aparentemente restabelece a filosofia e o primado do pensamento que o kantismo havia abolido. O leitor já facilmente observará que tudo aí reside na vontade, isto é, na sujeição da natureza e da sociedade a leis e formas que são elaboradas, ou "pensadas", fora delas e soberanamente, mas sem a garantia de verdade que só teriam se fossem pensadas dentro delas, conforme o princípio da "filosofia portuguesa" estabelecido por Leonardo Coimbra e que podemos enunciar assim: "toda a realidade é penetrada de pensamento, que a excede". Ou conforme a "teoria do ser e da verdade", de José Marinho, segundo a qual a condição pré-natural, pré-social, até pré-filosófica e, enfim, absolutamente prévia, é a identificação de tudo o que é (e de tudo o que está sendo - o fenómeno - para deixar de ser ou para ser não-ser, como diz Hegel, ou para ser nada, como diz Marinho), a identificação de tudo o que é, repetimos, com a verdade.

A "filosofia portuguesa" está, pois, nos antípodas do hegelianismo e da modernidade. O que há de mais sério na modernidade é o seu início em Santo Agostinho e o seu termo em Hegel. O que há de mais sério na "filosofia portuguesa"é a sua actualização do aristotelismo. "Aristóteles - reconheceu Delfim Santos - é o pensador sempre presente em todos os pensadores portugueses". A filosofia de Leonardo Coimbraé um dramático e até trágico, um emocionante e arrebatador percurso, desde o platonismo e seu prolongamento na modernidade (a de Kant e da ciência moderna), até ao cristianismo e ao aristotelismo: A obra de Álvaro Ribeiro é uma teorização actualizadora da filosofia aristotélica. Na geração actual e actuante, Banha de Andrade dedicou-se ao estudo e reedição dos textos aristotélicos "conimbricenses" e Pinharanda Gomes lançou mãos e talento à tradução do "Organon", a primeira tradução portuguesa, depois da contra-reforma, de um livro de Aristóteles. E esse livro é o "Organon" ou a lógica. A "Ciência da Lógica", de Hegel, é a articulação das teses opostas, pari passu, às teses da lógica aristotélica. Esta começa, tem início, no chamado princípio de não-contradição: "de nada se pode dizer, ao mesmo tempo, que é e que não é"; a de Hegel começa, tem início, no princípio, que se pode chamar de contradição: "de tudo se deve dizer, ao mesmo tempo, que é e que não é".






A atenção da "filosofia portuguesa" ao hegelianismo, termo da modernidade, tem correspondente na atenção que prestou, num espantoso mas não lido livro de Pascoaes, ao agostinianismo, início da modernidade. Esta tradução dos "Princípios da Filosofia do Direito"é um modesto sinal da honestidade com se atende ao hegelianismo, sinal que está longe de sequer ter esboçado a "cultura oficial" com sua inspiração, ou apenas pretensão, num hegelianismo de baixa versão socialista. É também demonstração da sábia seriedade com que prossegue a actualização da filosofia clássica».

Orlando Vitorino (Prefácio do tradutor à 3.ª edição de Hegel, «Princípios da Filosofia do Direito»).


«A Ilustração, ou Aufklärung, dada por finda em Kant e nos Românticos, deixou problemáticas de fundo em aberto. Legou, aliás, uma riquíssima herança ao debate filosófico e teológico, e também científico, que se revestiu de um idealismo absorvente, com três maiores orientações, ou tendências: o Idealismo subjectivo de Fichte, o Idealismo objectivo de Schelling, e o Idealismo absoluto de Hegel. A primeira metade do século XIX, uma vez que Schelling, com suas mutações, faleceu em 1851, pode dizer-se ocupado por este universo tético de pesquisa na conciliação do real e do ideal. É o que se chama assunção do infinito, no trânsito do Idealismo transcendental de Kant para o Idealismo absoluto de Hegel, um filósofo que, em termos de biografia, viaja da Teologia para a Filosofia, uma vez que a sua primeira iniciação é de facto teológica, e foi-lhe deveras útil para atingir a organicidade sistemática, depois de Aristóteles e de Tomás de Aquino raro ou nunca conseguida, mas de algum modo perfeita na obra de Hegel que, por isso, alguns consideram como o "Aristóteles da modernidade"».

Pinharanda Gomes (Introdução à Vida e Obra de Hegel, in G. W. Friedrich Hegel, «Estética»).


«O espírito absoluto opõe-se a si mesmo, na sua comunidade, como espírito finito: só é espírito absoluto quando é reconhecido como tal na comunidade. Como esse é o ponto de vista da arte, considerada na mais alta e verídica dignidade, logo aparece evidente que a arte se situa no mesmo plano da religião e da filosofia. Isto têm de comum a arte, a religião e a filosofia: exercer-se o espírito finito sobre um objecto que é a verdade absoluta. Na religião, o homem eleva-se acima dos seus interesses particulares, acima das suas opiniões, representações, tendências pessoais, acima do saber individual, para a verdade, quer dizer, para o espírito que é em si e para si. A filosofia tem por objecto a verdade; pensa a verdade e o seu único objecto é Deus. A filosofia é, essencialmente, teologia e serviço divino. Poderá ser designada, se assim se quiser, pelo nome de teologia racional, de serviço divino do pensamento. A arte, a religião e a filosofia só diferem quanto à forma; o objecto delas é o mesmo».

G. W. F. Hegel («Estética», tradução de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino).


«O leitor aprenderá neste livro como Hegel faz da propriedade um dos "Princípios da Filosofia do Direito" e condição indispensável para a harmonia, a prosperidade e a mesma existência da "sociedade civil". Não encontrará, todavia, o conceito de propriedade apresentado como forma da relação entre o homem e as coisas ou entre o homem e o mundo, embora seja essa, já entre os gregos, a forma superior do conceito de propriedade, a que está subjacente a todo o direito romano (que Hegel depreciava), a que, tendo-se evanescido com o industrialismo, conhece, nos últimos tempos, os sinais de um novo ressurgimento.


Orlando Vitorino


Com a economia política, que surgiu com o industrialismo, a propriedade foi reduzida a uma forma económica. Também Hegel a situa ou limita no sistema da economia a que chama, de acordo com o conceito de economia, "o sistema das carências humanas". Mas a economia é um sector do real e, como todo o real, contém uma razão. Mais uma vez, Hegel não deixa de insistir: "no sistema das carências humanas há uma racionalidade imanente que o constitui num todo orgânico de elementos diferenciados" (parág. 200).

Não há racionalidade sem categorias, e as categorias são, aqui, os "elementos diferenciados" que se "constituem num todo orgânico". Entre as categorias económicas, a primeira é a propriedade. Hegel mostra que, "antes da actividade e do trabalho", é "nas coisas exteriores que são também propriedade" que reside "o meio de satisfação das carências" (parág. 189); e vê que a terra é, por excelência, a "coisa exterior" susceptível de propriedade, acrescentando: "o solo agrícola só pode ser, em rigor, propriedade privada" (parág. 203). Presta homenagem à economia política - "uma das ciências que nos tempos modernos surgiram como em terreno próprio" - por procurar "descobrir no domínio das carências a racionalidade que pela natureza das coisas existe e actua", mas não deixa de observar e prevenir: "esse é também o domínio onde o intelecto subjectivo e as opiniões da moral abstracta desafogam sua insatisfação e seu azedume" (parág. 189).

Depois de Hegel, a economia política orientou-se definitivamente para o abandono da "racionalidade imanente ao sistema das carências" deixando-se guiar, precisamente, pelo "intelecto subjectivo e as opiniões da moral abstracta": as categorias foram criticadas e repudiadas e, em consequência, a racionalidade foi substituída pelo intelectualismo abstracto das "planificações económicas" que, ditadas pelos ideais vazios de igualdade dos homens e da distribuição da riqueza, se combinaram na designação - ignorada de Hegel - de socialismo. No decurso de uma experiência ainda não terminada a que tem sido sujeita a capacidade de sofrimento de muitos povos, os homens, ou aqueles que os comandam, parecem ainda longe de aceitar que, como sempre se soube, a igualdade dos homens é um absurdo e as doutrinas dela derivadas são, nos termos de Hegel, "doutrinas vis e trapaçadas do livre arbítrio", que, como a ciência económica anterior e posterior às sucessivas fases da economia política demonstrou (Walras Pareto, von Mises, Schumpeter, etc.), a "planificação económica"é - na ausência das categorias, sobretudo as da propriedade e do mercado - a pura irracionalidade, e que o domínio do irreal não encontra melhor exemplo do que a inviabilidade da igual distribuição da riqueza».

Orlando Vitorino (Prefácio do tradutor à 2.ª edição de Hegel, «Princípios da Filosofia do Direito»).





Socialismo e internacionalismo


Mário Soares


Já cá mora o testemunho insuspeito de quem, à semelhança de Sá-Carneiro, se sentiu atraído pelo sistema socialista nórdico, ou, se quisermos, pela social-democracia dos países escandinavos. Falamos, pois, de Rui Mateus cujo livro Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido, constitui a revelação de como o socialismo, designadamente o soarista, logrou amordaçar a existência política, económica e cultural dos Portugueses. No mais, tudo se processa a par de um provincianismo que caracteriza o próprio autor e os seus compagnons de route, pois o modo como, por entre peripécias em que sobressaem os planos de controlo e subversão do Estado, partidos, fundações e comunicação social, se alude, num misto de inocência e desfaçatez, às férias passadas na Áustria a fazer esqui, ou ao contacto, no Japão, com «a componente da Trilateral» – de que, aliás, Rui Mateus fora membro entre 1987 e 1992, «juntamente com António Vasco de Mello, Francisco Pinto Balsemão, Ilídio Pinho e Jorge Braga de Macedo» –, não pode deixar cair no esquecimento aquela distinção que já Frederico Hayek preconizara nos seguintes termos: «no capitalismo, só os ricos são poderosos; no socialismo só os poderosos são ricos».

Nesse aspecto, o contraste com Oliveira Salazar permanece profundamente revelador se, para o efeito e a título de exemplo, atentarmos no que Franco Nogueira assentou a respeito da perda de Goa:

«(...) Salazar tem no coração e na alma todas as dores de Portugal. Mas o chefe do governo vê e sente com clareza, sobretudo, a aridez da sua vida, a desolação de toda uma existência. Sente-o quando uma mulher ignorada lhe oferece, como dádiva moral pela perda de Goa, um pequeno cofre, rico exemplo de arte luso-indiana, com um emblema e uma chave de cristal e oiro. É objecto de preço, segundo Salazar julga, e não pode aceitá-lo. Para quê? Quem o cuidaria? Quem o estimaria? Na carta em que o devolve, Salazar diz: “Eu não tenho ninguém e depois de mim tudo se dispersará e perderá significado e valor”. Apenas “gostaria de encontrá-la um dia e agradecer-lhe de viva voz tanta dedicação e tão elevado patriotismo”» (14).

Um contraste, portanto, altamente significativo se procurarmos atender ao facto de, uma vez implantado o regime comuno-socialista em Portugal, ter conseguido Mário Soares, apoiado em organizações políticas e financeiras internacionais, organizar «uma "poderosa rede de influências" sobre o aparelho de Estado através da colocação de amigos fiéis em postos-chave». Assim, desde a «conta especial do Mário» no Bank fur Gemeinwirtschaft em Francforte, que, segundo Rui Mateus, «movimentaria somas consideráveis», passando pelos banquetes socialistas como aquele em que, na América Latina, o autor também participara com caviar do Irão servido «em quantidades incompatíveis com a miséria que se sentia por toda a parte daquele país [Peru]», até ao memorável repasto que, aquando da cerimónia do presidente recém-eleito (Mário Soares) na Assembleia da República, trouxera a Portugal Frank Carlucci, George Bush, François Mitterrand, Lionnel Jospin, Felipe González, Betino Craxi e Willy Brandt -, eis, pois, como os Portugueses foram cabalmente traídos sem que disso tivessem a menor e a mais funda consciência.






Deste modo, deveras pertinente é o testemunho dado por Rui Mateus em livro que, desde logo subtraído do mercado livreiro, nos revela o que foi e continua sendo a mais poderosa organização socialista largamente responsável pelo descalabro político, económico e espiritual dos Portugueses. De resto, o testemunho de Rui Mateus vale sobretudo pela forma como nos relata, com base no seu papel enquanto agente de “relações internacionais” ao serviço de «instruções superiores», nomeadamente as de Mário Soares (15), o que verdadeiramente caracteriza o perfil alegadamente democrático do Partido Socialista Português. Logo, não obstante o que se afigura ser um ajuste de contas do autor com o ex-secretário-geral do Partido Socialista, a verdade é que, deduzidas as suas esperanças sobre o que chama de «generosa revolução», ou descartada a sua crença no «socialismo democrático», o relato de Rui Mateus é, ainda assim, a maior e a mais evidente prova que um socialista nos poderia facultar sobre os meios e os instrumentos que o socialismo dispõe para destruir, como efectivamente destruiu, Portugal.

De resto, alguns aspectos inerentes ao socialismo do pós-25-de Abril também se devem, de certa forma, aos erros e contradições em que se deixara envolver o Estado Novo, quanto mais não fosse por ter alimentado, nas palavras de Álvaro Ribeiro, a «esperança de quantos pensavam que o equilíbrio financeiro antecedia o planeamento económico, precursor do socialismo» (16). Porém, não menos alarmante era o que já então sobressaía na forma atentatória de um internacionalismo dirigido contra a presença portuguesa em África, na Ásia e na Oceania. E, como tal, de um internacionalismo que, uma vez destruída a estrutura multirracial e pluri-continental da Nação portuguesa, passaria pelo apoio ideológico e financeiro da Internacional Socialista ao Partido Socialista Português, bem como pelo correspondente aval das sucessivas administrações americanas.

Quanto à ingerência dos EUA, é por demais conhecido o papel desempenhado por Frank Carlucci, que chegou a Portugal em Janeiro de 1975 para substituir, na Embaixada americana em Lisboa, o embaixador Stuart Nash Scott. Não fora, portanto, pequena a sua acção em prol da implantação do socialismo em Portugal, pois, se bem que um antigo embaixador do nosso País em Washington, João Hall Themido, tivesse afirmado, em seu livro de memórias, Dez Anos em Washington, «que Carlucci terminou a sua missão em Portugal em finais de 1978 quando foi designado director adjunto da CIA», a verdade é que, consoante assinala Rui Mateus, «Carlucci seria de longe mais útil a Soares depois da sua nomeação para a CIA do que seria, de qualquer modo, a partir de 1978, à frente da embaixada de Lisboa».



Porém, quanto à ingerência da Internacional Socialista, atentamente seguida pela política externa americana, convém relembrar aquele episódio em que Mário Soares e demais camaradas procuravam contribuir para a propagação do socialismo à escala internacional. Ora, um tal episódio, contado por Rui Mateus, consiste no seguinte: Mário Soares, designado em 1978 para chefe de várias missões da Internacional Socialista na América Latina, fora à República Dominicana para intervir no processo eleitoral a favor do candidato presidencial do Partido Revolucionário Dominicano, António Guzman, que teria sido convencido pelo secretário-geral do partido, José Francisco Peña Gomez, a candidatar-se contra Balaguer que, no mais, era um admirador de Salazar; nisto, Mário Soares, acompanhado de Rui Mateus e pelos delegados da Internacional Socialista, incluindo o seu secretário-geral, seria recebido no aeroporto pelo «Presidente da República com todo o seu governo e corpo diplomático ao fundo de uma carpete encarnada»; ora, Mário Soares, que aterrara como um agente da Internacional Socialista, via-se agora «tratado como primeiro-ministro de Portugal e a visita subitamente transformada numa visita oficial», sendo ainda recebido no palácio presidencial onde o presidente Balaguer «falaria do seu País, do apoio que o seu governo tinha dado na ONU ao governo de Portugal sobre a questão colonial, a troco da exportação de açucar para o nosso País»; de resto, Balaguer nunca perguntaria pelo propósito da visita de Soares e seus correligionários à República Dominicana, mesmo depois de lhe terem dito que estavam ali para apoiar o PRD, o partido que o pretendia derrubar.

Além do mais, uma parte significativa do relato dessa visita surge um pouco à semelhança do que já Aristóteles, relativamente à comédia, traduzira nos termos daquela espécie de vícios que, por defeito, assinalam o ridículo cuja natureza é ser apenas torpeza anódina e inocente:

«O entusiasmo era tanto que Soares "regressou" aos tempos do PREC [Processo Revolucionário em Curso] e, perante o espanto do general do exército que Balaguer tinha colocado às suas ordens, tomou conta da situação, ordenando ao tímido António Guzman que erguesse o punho e gritasse as palavras de ordem. A principal, recordo-me como se fosse hoje, era "Peña, timón de la revolución", ou Peña, timoneiro da revolução. O grande comício, que duraria praticamente todo o dia, iria acabar num anfiteatro apinhado de gente em que foram produzidos os discursos mais revolucionários e mais cómicos que eu ouvira até então. O entusiasmo era indescritível e a desorganização também. No discurso final, Peña Gomez decidiu chamar os delegados internacionais, um por um, entregando-lhes medalhas e certificados do seu Partido agradecendo a nossa solidariedade. Cada um era recebido com tanto entusiasmo e barulho que o teatro parecia em risco de desmoronamento. Seria um acontecimento inesquecível e os membros da delegação não sabiam se acabariam por morrer esmagados pelo entusiasmo popular ou de riso. Ao sermos mencionados pelo orador, os nossos cargos políticos seriam todos inflacionados de tal maneira que era impossível conter as gargalhadas, que durariam todo o resto da viagem. Quando anunciaram Volkmar Gabert, deputado do SPD da Bavária, chamaram-lhe primeiro-ministro da Bavária, despromovendo completamente o conservador Franz Josef Strauss e nem o assessor diplomático de Soares escaparia, quando foi chamado à tribuna em último lugar para receber o seu diploma como “Francisco Knopfli, secretário-geral da juventude socialista portuguesa"! Diplomata de carreira que era, ia morrendo de susto e deu graças a Deus por não ter aparecido na TV portuguesa, quando timidamente retribuiu o estrondoso aplauso com o punho esquerdo no ar!».

Mas a surpresa não se faria esperar, quando, «nessa madrugada, os militares dominicanos tomariam conta do poder, começando por prender dirigentes do PRD em todo o país», e, por isso, a considerar a «delegação soarista» como «persona non grata» na República Dominicana. Moral da história: Mário Soares, que andara mais de 24 horas de punho no ar a dar vivas ao PRD e a gritar «abaixo a ditadura», concluíra, com os seus compagnons de route, que o mais indicado era deixarem a República Dominicana, onde, uma vez chegados ao aeroporto, os esperava o avião do presidente da Venezuela, Carlos Andréz Perez, e o «presidente Balaguer, o Governo, os militares e o corpo diplomático a apresentar cumprimentos de despedida!».






Contudo, o mais espantoso é que António Guzman, no espaço de duas semanas, ganhara as eleições presidenciais, pese embora repudiadas pelos militares dominicanos. E se não fosse a intervenção favorável do presidente Jimmy Carter à revelia da política externa dos EUA no seu tradicional apoio às ditaduras sul-americanas, António Guzman nunca teria chegado a presidente da República Dominicana.

De facto, o socialismo, sob pena de trazer a ruína e a miséria aos diferentes povos e nações do mundo, não se afigura «uma opção política válida» tal como António Quadros admitira num horizonte teoricamente democrático, até porque, em certos e determinados casos, o socialismo só aparentemente surge desprovido de sua expressão totalitária e revolucionária (17). Logo, enveredar pelo socialismo equivale a uma dolorosa ilusão largamente exposta no livro de Rui Mateus que, segundo consta, «não aparece desde 28 de Janeiro de 1996» – «uns dão-no na Suécia, outros no Brasil – vendeu 30 mil livros num só dia. A quem? Nunca se saberá, porque a editora nunca o disse e nunca publicou nova edição. Hoje a Internet já disponibiliza o seu livro gratuitamente» (18).

Por outro lado, Portugal Amordaçadoé o título de um livro que Mário Soares premeditou em São Tomé para atacar o regime de Salazar, e que, entre nós, só seria publicado em 1974 com o advento do comunismo. Entretanto, sabemos hoje o que Mário Soares e seus camaradas socialistas fizeram ao longo dos últimos quarenta anos para instaurar uma ditadura política e económica no extremo ocidental da Península Ibérica. Basta, aliás, olhar para a situação deplorável a que os Portugueses chegaram, e, de permeio, aproveitar para recordar Franco Nogueira que já, em 1978, discorria sobre as enormes dificuldades que Portugal enfrentaria num futuro obscuro:

«Li há pouco, afirmado por um responsável português, que não há perigo em pedir dinheiro emprestado porque não há memória de um país ir para a bancarrota. Fica-se aturdido perante esta irresponsabilidade. Dir-se-á que se procura criar o sebastianismo do empréstimo externo. Acredite-se que os credores apresentarão a sua factura; esta será política, e traduzir-se-á na perda da independência nacional, ou será económica, e o país transformar-se-á numa colónia do estrangeiro. Aliás, uma coisa equivale à outra, e esta situação está já a produzir-se. Ninguém o diz com mais amargura do que eu, mas a verdade é que Portugal não é hoje um país que se possa determinar com autonomia, nem de momento está em posição de escolher livremente as opções ou alternativas que mais convenham aos seus interesses. Acha que estou a exagerar? Veja: há pouco a revista francesa Express publicou um artigo sobre Portugal cujo título era: "Novo governo em Lisboa, o do Fundo Monetário Internacional". E perante o descalabro em que o país continua, não nos devemos surpreender se amanhã o FMI, que decerto já controla as nossas instituições financeiras, exigir ainda a instalação de técnicos seus em Lisboa para fiscalizar e determinar como se gastam os fundos que pedimos emprestados…» (19).


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European Central Bank (ECB).



Sede do Banco Central Europeu em Frankfurt am Main, Alemanha.






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Ora, o FMI, o Banco Mundial, o Banco Central Europeu e toda essa sucessão de instituições internacionais especializadas no controlo e na transferência de poderes nacionais para centros de decisão supranacional, representam hoje em dia um facto incontornável. Estamos assim perante uma realidade em que se combinam organizações burocráticas e meta-capitalistas que, por um lado, alargam e estendem os seus tentáculos políticos, jurídicos e tributários a um nível local, regional e global, e, por outro, criam e financiam movimentos terroristas espalhados por zonas e pontos estratégicos do planeta. Tal é, por consequência, o que permite explicar, em Portugal, a sistemática aplicação de uma política fiscal que, progressivamente taxada sobre os rendimentos das empresas e dos particulares, parte de estratagemas contabilísticos que ora reforçam o poder da oligarquia política, ora tornam os portugueses inteiramente dependentes do crédito estrangeiro devido à baixa produtividade totalmente absorvida por taxas, tributos e contribuições ilimitadas.

Por conseguinte, o que se tem passado à volta do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata integra-se perfeitamente no esquema acima delineado. E assim é porque ao longo dos últimos quarenta anos estes dois partidos endividaram, saquearam e venderam Portugal. Mais: esses mesmos partidos têm ainda ao seu dispor um rol de analistas, universitários e jornalistas que, aparando a perpetuação do crime, se repetem, desdizem e contradizem num cenário de loucura generalizada.

De resto, o socialismo é aqui o denominador comum, de modo que, ao vermos partidos de extrema-esquerda condenarem o que denominam por "política de direita”, é coisa absurda e patética. Antes de mais, é preciso não esquecer que toda a “classe política” é, entre nós, um nado-morto oriundo da revolução comunista de 1974. Agora sim, é que temos o “Portugal Amordaçado” mercê de quem, acompanhado por Almeida Santos e outros agentes do socialismo destruidor, desempenhara papel de relevo no chamado processo da “descolonização” que tão útil fora para o poderio político-financeiro global.










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No fundo, como bem vira Franco Nogueira, todo este processo fora programado, coordenado e aproveitado por forças internacionais que passaram completamente despercebidas ao povo português. Hoje, esse povo está claramente sofrendo e pagando as consequências de uma tragédia abominável, quanto mais não seja por ver o seu futuro hipotecado nas mãos de quem faz do Estado e das instituições uma permanente revolução contra a fisionomia espiritual da Pátria portuguesa.

No lance, está igualmente a Universidade, mais poderosa ainda que os partidos políticos e a Maçonaria. É, pois, dela que saem os intelectuais versados nas mais variadas correntes revolucionárias, pese embora nem sempre conscientes do processo pelo qual foram ideologicamente formatados. E é da universidade que também sai a "classe jornalística" prontamente comprometida com os dogmas, os sofismas e os paralogismos do socialismo triunfante, e à qual se vem juntar o professorado do ensino elementar e médio, assim como a esmagadora maioria dos economistas, políticos e tribunos de orientação antinacional.

Depois, convém ainda relembrar que a nossa moeda perdurou até princípios de 2002, data em que o escudo português, na sequência da taxa de conversão estabelecida em 31 de Dezembro de 1998, fora preterido pelo euro. Ora, uma vez que Portugal perdia assim um instrumento de liberdade, é natural que o câmbio até então operante entre as diferentes moedas recuasse perante o novo sistema monetário europeu. Todavia, Orlando Vitorino chegara a descrever e a sistematizar todo um processo que, anterior à moeda única europeia, permite entrever o papel essencial das várias entidades nacionais para o livre funcionamento do sistema da economia. E é precisamente neste ponto, ignorado, senão mesmo desprezado pela maioria dos teorizadores da ciência económica, que o dinheiro ganha um outro significado se especialmente considerado na qualidade de mercadoria entre as demais.

Daí a questão fundamental do padrão-ouro tão ostensivamente descurada pelos economistas catedráticos de renome, como Miguel Beleza, Braga de Macedo e Pina Moura. O primeiro deles chegou mesmo a minorar, num debate televisivo, a importância e a virtude do padrão-ouro no sistema monetário internacional, escudando-se em Keynes que via no ouro o «remanescente de uma era de barbárie». E note-se ainda que Miguel Beleza fora um dos principais responsáveis pelo processo de adesão de Portugal à União Económica e Monetária.














Outro facto é a total ou parcial incapacidade de jornalistas, politólogos e economistas para seriamente verem, de uma vez por todas, que Portugal se encontra totalmente dependente de organizações internacionais, e, por isso mesmo, sem nenhuma margem de manobra para actuar, livre e soberanamente, no plano político, financeiro e económico. Aliás, Pina Moura, que também teve a sua quota-parte de responsabilidade no já longo processo de desagregação nacional, disse mesmo na televisão que a nossa soberania só é susceptível de ser entendida na forma de uma «soberania partilhada». Enfim, esta geração foi, juntamente com a anterior, uma das piores gerações que Portugal já teve ao longo da sua História.

No século XX, várias foram as ilustres personalidades da alta cultura portuguesa que se revelaram perfeitamente conscientes dos malefícios atribuíveis ao universalismo abstracto. É o caso de Álvaro Ribeiro que, no Diário da Manhã de 13 de Janeiro de 1964, declarara, em o ideal civilizador dos Portugueses é imensamente superior (incomparavelmente superior) àquele que tem sido proclamado na ONU, ter feito o possível para formar um escol de nacionalistas autênticos dotados de pensamento filosófico. Por outras palavras, não havia, na sequência do ataque à província de Angola (15 de Março de 1961), assim como da invasão de Goa a 18 de Dezembro do mesmo ano, uma especial atenção ao que já de si transcendia os problemas de acção política e militar nas fronteiras invadidas.

«Era na burocracia – dizia Álvaro Ribeiro – que Oliveira Salazar enquadrava a democracia orgânica mas representativa, mediante a qual alcançavam posições relevantes os homens gradualmente diplomados pelos serviços de Estado. A mentalidade dominante nas instituições públicas era a de certeza e rotina, em detrimento da imaginação inventiva e da pesquisa da verdade. As escolas recebiam o apoio financeiro do Estado Novo; os arquivos, as bibliotecas, os museus, as fábricas indispensáveis de cultura superior, gozavam de legislação decente; mas a vida do pensamento espontâneo, inspirado e livre, reflectido nas artes da palavra ou nas artes gráficas, era desdenhada pelo empirismo positivista que não sabia intuir nos movimentos as forças que os pressupõem, nem ver nas obras as consequências que se desenvolveriam em actos» (20).

É significativo notar que, com o fim da II Guerra Mundial e a consequente afirmação das potências vencedoras que davam por findo o nacionalismo político e filosófico, viria a maré alta do falso universalismo baseado numa cultura unificada para suposta defesa e salvaguarda da paz mundial. E, nisto, quem, de facto, a impunha era a Organização das Nações Unidas, mormente por intermédio da Unesco que tão logo se apresentara como instituição filosófica (21). Quer dizer: doravante, a filosofia deixaria de ser entendida como pensamento especulativo para virar «uma secção da Educação» ao serviço de uma ideologia propagadora da “democracia” e do “progresso”, uma vez que os problemas sociais, os únicos nominalmente concretos, passariam a constituir a preocupação dominante.






Há aqui, portanto, um propósito de ordem sociológica que visa fazer da filosofia um instrumento dependente do poder político, como, aliás, parece resultar do teor da seguinte passagem:

«É certo que os filósofos dificilmente suportam ver o seu pensamento subordinado às vicissitudes da política. Nós não exigiremos da sua parte que intervenham nas questões políticas, mas somente que se pronunciem sobre questões morais e de filosofia social».

Ora, perante isto, já Álvaro Ribeiro sabia que:

«A proliferação de estudos sociais e de estudos sociológicos em todo o hemisfério designado por ocidental, com a multiplicação de gabinetes, centros, institutos, faculdades e outras escolas, acusa uma tendência doutrinária que me parece perigosa na medida em que tende a minimizar ou a minorar os estudos de psicologia. A sociologia sem psicologia conduz à inversão, e portanto à falsificação, dos métodos explicativos e racionais. Ora a UNESCO está impregnada deste sociologismo tão internacionalista como abstracto, contra o qual não podem deixar de opor-se todos os intelectuais religiosos e todos os intelectuais espiritualistas que meditem sobre o destino transcendente da humanidade» (22).

Deste modo, de nada vale objectar que a Unesco declare a filosofia como estando num plano superior ao das outras disciplinas, ou que os filósofos, jamais substituindo os especialistas de outros domínios, devam, ainda assim, dar uma «unidade intelectual» aos fins doutrinários daquela instituição. Caso contrário, teremos a vulgarização de uma cultura filosófica internacional segundo as directrizes e a nomenclatura do programa da Unesco, tal como expressamente delineado pela Comissão preparatória de 24 de Junho de 1946. Por conseguinte, este programa, profundamente adverso ao princípio das nacionalidades, representa apenas uma ideologia propensa a impor medidas, declarações e regulamentos globalmente consagrados.








Quartel-General da Unesco em Paris


Daí que, se já Álvaro Ribeiro, no seu tempo, afirmara estarem os problemas pedagógicos e filosóficos confiados a especialistas de informação estrangeira, o que hoje não diria perante o lamentável espectáculo de uma disciplina que, no meio escolar, abdica da filosofia para promover a idolatria do cidadão. Logo, muito dificilmente se poderá escapar a uma cultura globalmente unificada onde tudo conspira para extinguir a realidade nacional na ordem da abstracção supranacional. Basta, aliás, ver como estão planificados os programas mediante os quais, desde o ensino «básico» ao ensino universitário, se cumprem as «normas» e «sugestões» internacionais relativas às «disciplinas de humanidades e de letras», bem como tudo o que possa induzir ao positivismo e à tecnolatria.

Entretanto, se o nacionalismo português culminou igualmente numa fundamentação de ordem histórico-geográfica, é sinal de que podemos e devemos reconhecer «o portuguesismo e a consciência patriótica de Salazar e dos seus colaboradores mais sinceros», como já assim o reconhecera António Quadros na sua obra A Arte de Continuar Português. De resto, no tocante à ONU, a coisa é por demais indubitável, se, para o efeito, prestarmos a devida atenção a esta nota escrita e correctamente lida por Oliveira Salazar:

«Afigura-se-me que as Nações Unidas se encontram num passo crucial da sua vida, não porque tenham avançado no sentido da universalidade – foram criadas para albergar em seu seio todos os estados independentes – mas porque se vão afastando do espírito que presidiu à sua criação, ao mesmo tempo que substituem os processos de trabalho. É visível a tendência para converterem-se em parlamento internacional, a que não faltam mesmo sessões tempestuosas, partidos ideológicos e rácicos, arranjos de corredores. Para que a solução por que alguns anseiam se completasse, seria no entanto necessário sobrepor-lhe um executivo da confiança da Assembleia, o que oferece dificuldades, na medida em que os Estados Unidos se não disponham a custear a política aventurosa de alguns novos Estados ou a Rússia não esteja resolvida a trabalhar com um parlamento que não seja inteiramente seu, e esse não é ainda o caso. Mesmo sem governo e sem capacidade de impor normas obrigatórias para os Estados membros, esse parlamento pode criar – está já criando – através das suas tribunas e da ressonância que emprestam às afirmações produzidas, vagas de agitação, ambientes subversivos, estados de espírito que funcionam como meios de pressão sobre as nações estranhas aos grandes clãs da Assembleia. E tendo sido instituída para a paz, já ali se ouvem em demasia vozes que a não pressagiam» (23).

Ora, perante este cenário internacional patente no paralelismo das políticas de Washington e Moscovo contra Portugal, compreende-se que Álvaro Ribeiro – numa outra linha política que não a de Oliveira Salazar– pusesse a tónica nas razões da independência política do povo português, que eram, a seu ver, razões de ordem filosófica, posto que as únicas susceptíveis de legitimar a sua autonomia cultural. Nesse sentido, aclara:

«Nos termos vulgares da oratória parlamentar, de submissão a preconceitos, não é possível uma argumentação de valor transcendente, pelo que só resta à defesa o recurso de apelar reiteradamente para a energia moral».

Nisto, como que a confirmar o sobredito, vejamos, aquando da votação na ONU de um projecto de resolução apresentado pelo Ghana contra Portugal, estas palavras do delegado português:

«Pura e simplesmente, rejeito esta resolução: é um texto moralmente errado: e o que está moralmente errado não pode estar politicamente certo» (24).

No ensejo, António Quadros, de quem Orlando Vitorino referira o seu «inesgotável talento, aparentemente conciliador mas intimamente revulsivo» (25), também atentara no internacionalismo invasor. A obra em que melhor o exprime intitula-se Franco-Atirador, porque é justamente nela que o autor traça a dialéctica entre uma ideologia unificadora supranacional e a coexistência legítima de comunidades nacionais e patrióticas. Logo, mostrara-se particularmente sensível ao eventual surgimento de uma supranacionalidade federativa ou imperial, viesse ela da ONU ou das sucessivas Internacionais de ordem capitalista ou socialista.

Aliás, António Quadros propusera-se explicitar como uma tal ideologia utópica e totalitária seria ultrapassada pela própria realidade, não obstante a perpetuação de guerras, divisões e toda a espécie de conflitos internos e externos. Porém, a verdade é que, sem prejuízo da lúcida percepção que o autor manifestara sobre a relação de forças entre as potências mundiais, não vira até que ponto a dialéctica entre tais potências resultaria no que já hoje vários e distintos autores designam por Nova Ordem Mundial. Em poucas palavras, António Quadros não se apercebera da aliança oculta entre banqueiros internacionais e socialistas revolucionários com vista a reforçarem interesses e benefícios mútuos.






O caso, rigorosamente falando, radica no sistema monetário internacional, que já hoje reúne todas as condições indispensáveis para controlar as finanças, os mercados, a educação, os recursos naturais e a população mundial. Não há, pois, uma divisão rígida entre capitalismo e socialismo, ou entre o capital e o alegado sistema de distribuição da riqueza. Existe sim – conforme já demonstrado por Antony Sutton no seu livro Wall Street and the Bolshevik Revolution (26) – uma oligarquia financeira internacional que dispõe do socialismo para, mediante o seu potencial destrutivo, neutralizar toda e qualquer resistência aos seus planos de dominação mundial.

Acentuemos ainda que fora António Quadros quem apelara para uma «revolução» criadora na Universidade, ou, se quisermos, para uma renovação da criatividade intelectual no âmago do ensino superior. Pode, enfim, parecer uma ilusão alimentada pelo autor, dado o grau de consciência que sempre manifestara perante a grave situação de um ensino comandado pelas grandes culturas imperiais, quando não pelas máquinas político-ideológicas que introduziram entre nós o cientismo, o marxismo, o estruturalismo, etc. Além disso, o positivismo universitário ou académico seria, para António Quadros, um do seus alvos preferidos, como atesta o seguinte fragmento:

«Até certo ponto, é este o período que ainda vivemos - com repúdio da teologia ou da metafísica, relutantemente ensinadas como história -, e com todo um aparato de ensino positivo, dentro do qual o estudante tem de vencer os terríveis trabalhos de Hércules da aprendizagem mnemónica, da fixação de nomes, datas, factos. O ensino positivista tem sido mesmo definido como de predomínio do facto e do documento. O professor não é o que sabe melhor ou o que se distingue pela inteligência, pelo espírito inventivo, pelas qualidades didácticas, é o que sabe mais factos e conhece mais documentos. A bola de neve do ensino positivista foi crescendo, com a sobrecarga cada vez maior dos programas e com a obrigação para o estudante de aprender de cor, o que é verificado regularmente através de testes-exames ou testes-julgamentos, um sem-fim de factos frequentemente insignificantes, parcelados nas diferentes disciplinas, não unidos por qualquer concepção filosófica esclarecedora da unidade do saber, e que, passado o período crítico, logo são alegremente esquecidos. Perderam-se anos e anos de vida, atravessaram-se anos e anos de adolescência dolorosa, sofreram-se anos e anos de emoções, de humilhações, de angústias, de impedimentos à natural expansão da juventude, e ainda por cima para se chegar ao fim de um curso superior, talvez com um diploma de acesso ao estatuto social de sr. dr. ou sr. eng.º mas com algumas lacunas verdadeiramente dramáticas.






Em primeiro lugar o estudante, anestesiado por este ensino sem alma, sai, regra geral, do seu curso, sem ter uma consciência-vivência do que é e do que significa ser homem, do que é e do que significa a existência, de quais as relações entre o ser e a verdade, de que ideal de vida vai ser o seu, de como pode ser ele próprio, de como deve desenvolver realmente a sua personalidade ou de como contribuirá fecundamente para a sociedade onde vai viver e que desconhece nos seus fundamentos reais.

Consequências: o adormecimento, a integração passiva no meio social, a busca egoísta do dinheiro, do poder ou da glória -, ou, por outro lado, a entrega a mestrados extra-universitários, prontos a preencher o vazio do ensino sem alma e sem espírito, concretamente o regresso quase sempre tardio a uma fé religiosa capaz de dar respostas onde a Universidade se calou ou a uma outra espécie de fé, uma fé ideológica-política, mas que também tem respostas prontas para as interrogações humanas.

Mas em qualquer destes casos - e seja qual for a valorização que se lhe dê -, o certo é que a adesão é mais um alistamento, do que um empenhamento criador. Passou a hora em que o intelecto estava disponível para o exercício da liberdade de pensamento, passou a hora do dinamismo mental. Entrar-se-á no sossego do proselitismo como retardada compensação. O perdido na Universidade sem alma jamais se recuperará, tal como a juventude é uma idade que não volta» (27).

Enfim, é, de facto, na Universidade que o globalismo encontra o seu melhor aliado. E não é, pois, por acaso que vários jornalistas, economistas e intelectuais sejam constantemente solicitados por órgãos de Comunicação Social para assim inculcarem nos mais desprevenidos a crença no globalismo invasor. Seja como for, mal sabia ainda António Quadros qual é, na verdade, o maior intento das forças e das potências do mal que pairam nos bastidores da Nova Ordem Mundial.





Notas:

(14) Franco Nogueira, Salazar, A Resistência (1958-1964), Vol. V, Livraria Civilização Editora, 1984, pp. 380-381.

(15) Cf. Rui Mateus, Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido, Publicações Dom Quixote, 1996, p. 115.

(16) Álvaro Ribeiro, Memórias de Um Letrado, III, Guimarães Editores, 1980, p. 30.

(17) Cf. António Quadros, A Arte de Continuar Português, Edições do Templo, 1978, p. 35.

(18) «A censura democrática proíbe livros, pressiona editores e afasta incómodos», in O Diabo, 8 de Setembro de 2009.

(19) Franco Nogueira, Juízo Final, Livraria Civilização Editora, 2000, pp. 26-27.

(20) Álvaro Ribeiro, Memórias de Um Letrado, III, Guimarães Editores, 1980, p. 31.

(21) Cf. Philosophie et démocratie dans le monde, enquête de L'UNESCO, Éditions UNESCO, 1945, p. 35.

(22) Álvaro Ribeiro, O ideal dos Portugueses é imensamente superior (incomparavelmente superior) àquele que tem sido proclamado na ONU, in Diário da Manhã, 13.1.1964.

(23) Oliveira Salazar, Portugal e a Campanha Anticolonialista, SNI, 1960, pp. 15-16.

(24) In Franco Nogueira, Salazar, A Resistência (1958-1964), Vol. V, 1984, pp. 502-503.

(25) Orlando Vitorino, O processo das Presidenciais 86, p. 62.

(26) Este livro faz parte de uma trilogia na qual se incluem Wall Street and FDR e Wall Street and the Rise of Hitler.







(27) António Quadros, Franco-Atirador, Espiral, 1970, pp. 224-225.


Continua


Uma Constituição para Portugal (iii)

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Escrito por Miguel Bruno Duarte
















«A ideia do Estado platónica contém uma injustiça para com a pessoa ao torná-la incapaz, por uma lei geral, de propriedade privada. É fácil, a uma mentalidade que desconheça a natureza da liberdade, do espírito e do direito e a não apreenda nos seus momentos definidos, representar-se a fraternidade dos homens, estabelecida por piedade, por amizade ou até por coacção, como inseparável da comunidade dos bens e da supressão da propriedade privada. Do ponto de vista religioso ou moral, até Epicuro desviava os seus amigos de estabelecer, como eles, pareciam desejar, uma aliança na comunidade dos bens pois nisso seria, precisamente, a prova de uma desconfiança e quando há desconfiança entre as pessoas não podem elas ser amigas. (Dióg. Laércio, X, VI)».

Hegel («Princípios da Filosofia do Direito»).


«Já, antes de Virgílio, Platão mostrara como a "expulsão da poesia" seria inevitável numa sociedade onde se estabelecesse a comunidade dos bens; deduzindo todas as consequências dele, Platão demonstrava o absurdo do comunismo, num exemplo inigualável de ironia que é A República».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


«It is often objected that our concept of liberty is merely negative. This is true in the sense that peace is also a negative concept or that security or quiet or the absense of any particular impediment or evil is negative. It is to this class of concepts that liberty belongs: it describes the absense of a particular obstacle - coertion by other men. It becomes positive only through what we make of it. It does not assure us of any particular opportunities, but leaves it to us to decide what use we shall make of the circumstances in which we find ourselves.

But while the uses of liberty are many, liberty is one. Liberties appear only when liberty is lacking: they are the special privileges and exemptions that groups and individuals may acquire while the rest are more or less unfree. Historically, the path to liberty has led through the achievement of particular liberties. But that one should be allowed to do specific things is not liberty, though it may be called "a liberty"; and while liberty is compatible with not being allowed to do specific things, it does not exist if one needs permission for most of what one can do. The difference between liberty and liberties is that which exists between a condition in which all is permitted that is not prohibited by general rules and one in which all is prohibited that is not explicity permitted».

Frederico Hayek («The Constitution of Liberty»).


«(...) a filosofia chega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efectuou e completou o processo na sua formação. O que o conceito ensina, mostra-o a História com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real, e depois de ter apreendido o mundo na sua substância, reconstrói-o na forma de um império de ideias. Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para a rejuvenescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite começaram a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva».

Hegel («Princípios da Filosofia do Direito»).







Athena


Athena e Zeus







O liberalismo segundo Orlando Vitorino. Uma Constituição Política para Portugal


É no preâmbulo da actual Lei Fundamental que deparamos com o maior obstáculo ao bem-estar e à prosperidade dos Portugueses, uma vez que tudo se resume a «abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português». Estamos, pois, perante uma imposição ideológica que, na mais pura ignorância de tudo o que diga respeito ao povo português, revela-nos o carácter puramente dogmático e só aparentemente indisputável do socialismo.

Entretanto, temos visto como, na sua linha reformista, o Partido Social-Democrata vem desde há algum tempo contemplando a possibilidade de um novo reordenamento jurídico-político da Constituição de 1976. Ora, uma tal possibilidade limita-se apenas a um conjunto de alterações da Constituição já existente, que é toda ela, do princípio ao fim, um ordenamento ideológico destinado a promover e a consolidar, em nome dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, a mais vasta intervenção do Estado na actividade económica, política e cultural dos portugueses. Aliás, tudo aqui se processa à margem da racionalidade imanente ao sistema das categorias económicas, há muito repudiadas em consequência da concentração económica e industrial da riqueza, que paradoxalmente preconiza o ideal vazio da socialização igualitária dos povos até ao limite das suas capacidades.

Ora, dada a simples possibilidade de ir por diante mais uma revisão da Constituição de 1976, tem, por certo, cabido a largos sectores da esquerda repudiar, de uma forma ostensiva, o que se diz ser uma investida neoliberal, de que os sociais-democratas, a par dos representantes da Igreja, logo procuram desvincular-se. Nisto, ambos ficam ideologicamente reféns de uma esquerda que, instalada nas escolas, universidades e meios de comunicação social, assume o pleno controlo da perversão da linguagem e da acção política, económica e cultural daí decorrente. Assim, de todos os lados ataca-se o liberalismo, sem que, na realidade, os que assim procedem saibam o que seja a doutrina e a arquitectura filosófica correspondente.

No entanto, há quem sempre se disponha a invocar as raízes «liberais» do Partido Social-Democrata, nomeadamente na pessoa do seu fundador, Francisco Sá Carneiro. Ora, nada poderia ser mais contrário à verdade, na medida em que o historial político de Sá Carneiro, à semelhança dos seus colegas e deputados da «Ala Liberal» (28) da Assembleia Nacional, não revela qualquer acção ou pensamento compatível com o liberalismo propriamente dito, mas tão-só uma actividade cujas ligações a sectores progressistas da Igreja pós-conciliar motivara, por via sobretudo jurídica (29), a sua adesão a um socialismo bastante próximo da social-democracia nórdica. Daí que, nas palavras de Rui Mateus, o objectivo de Sá Carneiro passasse, já no pós- 25 de Abril, por «conduzir à fusão do PPD no PS», pelo que, em troca do seu «apoio a uma eventual candidatura» de Mário Soares à Presidência da República, solicitara-lhe «luz verde para que o PSD» pudesse «aderir à Internacional Socialista».


Logo da Internacional Socialista






Por outro lado, é de admitir que já entre os deputados da Assembleia Nacional estivessem criadas as condições indispensáveis para, com base no monopólio capitalista dominado pela alta-roda económica e financeira, surgisse uma economia entregue a estruturas socializantes que tão-logo se imporiam no pós-25 de Abril de 1974. Ora, esta transição fora não só promovida aquando das controvérsias nas sessões legislativas da Assembleia Nacional, como também fomentada em vários artigos publicados no Expresso de Pinto Balsemão, ou ainda nos colóquios da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social) e nas diversas intervenções, como a de Mota Amaral, a favor da «autonomia progressiva e participada do Ultramar». De resto, também conviria atender à campanha progressista que, em 1970, fora movida pelos universitários Sedas Nunes e Miller Guerra «sobre a organização do ensino que precedeu imediatamente o ministério de Veiga Simão», até porque uma vez mais se criticava a Universidade ignorando todos os estudos, críticas e propostas feitas ao longo de dois séculos para a reforma do ensino, ou ainda ignorando que o nome que efectivamente cabe à Universidade é o de "pombalina", por, de facto, ter estabelecido entre nós «a utilidade socioeconómica como finalidade do ensino e a abominação da filosofia como ponto de partida da sua organização» (30).

Depois há ainda, em Portugal, o caso dos representantes da Igreja que persistem em repudiar um liberalismo de inspiração francesa, que também revelou, entre nós, compromissos históricos de ordem anticlerical, e, por isso, muitas vezes identificado com a Maçonaria e com a história do domínio do Estado pelo Exército. Logo, perante a confusão de interpretações que amiúde recaem sobre o liberalismo, há quem tenha revelado a razão de ser dessa confusão com base na poderosa aliança entre socialistas e «liberais», ou, mais particularmente, entre Proudhon e Thiers:

«Esta aliança é mais uma demonstração de como o liberalismo de tipo francês nada tem a ver com o liberalismo de tipo inglês e antes constitui uma preparação do socialismo. Infelizmente, foi ele que se tornou predominante em quase todos os países do ocidente, de tal modo que ainda hoje é representativo, até para as inteligências mais cultas e para instituições tão sábias como a Igreja Católica, de todo o liberalismo. Esta persistência num erro, na qual se misturam razões históricas e razões atávicas ou ressentimentos históricos e ressentimentos atávicos, tornou inútil a discussão para esclarecer o que seja o verdadeiro liberalismo, caso entendamos que o liberalismo constitui o regime político que está para a ciência ou liberdade da economia como o absolutismo e o totalitarismo estão para o intervencionismo mercantilista e para o intervencionismo socialista» (31).

E assim se explica por que razão a "doutrina social da Igreja" manifeste a sua hostilidade para com o liberalismo, ou, se quisermos, para o que erroneamente entende por liberalismo, que é, por definição, a doutrina da liberdade que, sem concessão alguma, fundamentalmente se opõe ao socialismo. Deste modo, segundo a "doutrina social da Igreja", o liberalismo e, com ele, o capitalismo, surgem praticamente condenados na base de uma suposição que consiste basicamente nisto: ambos constituem deficientes formas de organização económica e social que podem levar à cobiça e à insaciável ambição de toda uma classe ou grupo de homens insensíveis à miséria dos seus semelhantes, e, portanto, desumanamente responsáveis pelo mais descaroável egoísmo produtivista. Há, pois, aqui um certo equívoco que, não obstante a condenação, por parte da Igreja, de todo o socialismo e de todo o comunismo como intrinsecamente maus, a fez resvalar, quando menos se esperaria, para a órbita de um socialismo apurado e, de certa forma, aprovado na sequência do Vaticano II.


Além disso, sabemos como Álvaro Ribeiro também manifestara algumas reservas perante os fundamentos intelectuais do liberalismo económico, político e religioso, a saber:

«O liberalismo da razão pura, ou o liberalismo puro, nunca poderia ser operante na vida social. Ele tem sido, porém, apresentado pelos doutrinários na expressão radical da liberdade indefinida ou infinita, na confiança plena dada à iniciativa particular, e na admissão providencialista do jogo das leis naturais. É evidente que tal liberdade concedida à motivação egoísta das actividades humanas tende a criar o estado de guerra, ou o seu análogo, na vida social, visto que as leis naturais são contingentes e estão maculadas pelo mal. Ao egoísmo dos homens sucede o egoísmo das instituições, e o próprio princípio associativo, ao intitular-se de socorro mútuo, nessa designação exclui aqueles que, sofrendo de facto, não beneficiam do auxílio por não estarem em situação legal. O princípio regulamentar de só conceder benefícios aos sócios é a perfeita negação da caridade. A instituição egoísta fortalece o princípio da tirania, acabando por negar e contradizer a liberdade indefinida e infinita» (32).

Posto isto, quem melhor se deteve na compreensão da misantropia de Álvaro Ribeiro foi Orlando Vitorino, especialmente nos termos que se seguem:

«A misantropia de Álvaro Ribeiro funde-se na observação de que a realidade vivida é uma realidade em decadência. O carácter normativo do pensamento consiste em rectificar os erros que alimentam a decadência. Neste sentido se pode dizer que a filosofia de Álvaro Ribeiro é uma filosofia do direito, pois o direito é a rectificação. Álvaro Ribeiro diz que ao real empírico se opõe o ideal lógico.

A confirmação, se não a inspiração filosófica, da misantropia de Álvaro Ribeiro, encontrou-a ele em Sampaio Bruno que, por sua vez, a recebeu para além da análise, da reflexão das mitologias religiosas do paraíso perdido, da idade de ouro, da queda original. A existência do real condiciona a existência do homem e do mundo. A redenção é, todavia, possível mas a esperança do homem tem sido iludida pelas religiões redentoristas. Porque só o pensamento será redentor, poderá travar e inverter o movimento de queda, e o novo Cristo que houver será um Deus filósofo: “um Cristo cujos milagres sejam argumentos”» (33).

Seja como for, o liberalismo não consiste no laissez faire por oposição à direcção centralizadora das actividades políticas, sociais e económicas. Aliás, Frederico Hayek confirma que assim é, principalmente no que respeita ao liberalismo económico:

«Como princípio da organização social, a concorrência evita certos tipos de intervenção coerciva na vida económica mas não impede que outros tipos de intervenção, quando a situação requer a acção governamental, se exerçam amplamente. Se é certo que o liberalismo tem realçado especialmente os aspectos em que a coerção não deve ser exercida, isso deve-se a justificadas razões» (34).






O ponto de partida reside, pois, na distinção entre o planeamento económico centralizado, próprio do colectivismo socialista, e o planeamento geral que o liberalismo estabelece para que as pessoas possam orientar e determinar as suas actividades de acordo com os seus planos individuais. Por conseguinte, não é o egoísmo que está na base do liberalismo, mas, sim, a liberdade individual perante a retórica da «inevitabilidade do planeamento», o qual está hoje na base de um variado número de atribuladas consequências tais como: extinção da liberdade de escolha, destruição da concorrência, redução da variedade dos produtos, abolição da propriedade (não de direito, mas de facto), concentração industrial, censura universal procedente de organizações, agências e poderes internacionais, etc.

Entretanto, o capitalismo, que outrora representara o primado da inteligência nas actividades sociais, decaiu praticamente num modelo de economia mista em que se combinam sectores públicos com sectores privados, modelo esse que é, sem dúvida, o modelo do socialismo a meia-bomba, já entre nós presente sob a forma de quatro factores:

1. Monopólio da representação popular pelos partidos políticos e seu correspondente poder nas autarquias e nas empresas públicas do Estado;

2. Centralização sindicalista;

3. Modelo do Estado-Providência, já hoje confrontado com a insustentabilidade da Segurança Social;

4. Controlo e condicionamento da informação por via da Comunicação Social;

5. Intervenção da cultura universitária em quase todas as formas de manifestação cultural.

De resto, sabemos perfeitamente que o tão propalado «interesse geral» não passa de um artifício retórico proclamado por quem se encarrega do estrito planeamento da economia. E daí que a liberdade desapareça numa sociedade entregue ao dirigismo centralista, em que prepondera uma autoridade absoluta delegada em especialistas comprometidos na imposição de um único padrão de comportamento válido para todos os indivíduos. Porém, o liberalismo, ao invés, procura restringir o número de assuntos em que a concordância necessária tenha de se produzir numa sociedade de homens livres, permitindo assim a livre discussão em detrimento de um poder discricionário que a ninguém poupa ou respeita na esfera dos interesses particulares.






Diga-se, em abono da verdade, que uma democracia que vai progressivamente delegando os seus poderes no planeamento total da sociedade, sujeita-se a um condicionalismo cada vez mais incapacitante no que se reporta à possibilidade de as assembleias democráticas poderem cumprir a função para que foram verdadeiramente criadas. O Parlamento pode, inclusive, chegar a um acordo prévio sobre as tarefas a que pode dar resposta, mas ficará sempre aquém da execução real dos objectivos específicos e de pormenor já inteira e exclusivamente determinados por um ditador económico.

Por conseguinte, se o planeamento centralizado é um facto ditado e consagrado por especialistas incumbidos de o realizar, é óbvio que, caso seja objecto de discussão numa maioria parlamentar com vista a um acordo sempre difícil de obter, triunfará sobre toda e qualquer discussão, notadamente inútil. Aliás, como diz o próprio Hayek, «não devemos esquecer que tem por vezes havido muito mais liberdade cultural e espiritual sob governos autocráticos do que em algumas democracias, e é de, pelo menos, admitir que o governo democrático de uma maioria bem doutrinada e muito homogénea pode ser tão opressivo como a pior ditadura».

Enfim, qualquer que seja o padrão moral, económico e cultural imposto ao indivíduo, negando-lhe a liberdade de escolha na determinação do seu próprio destino, implica, por certo, a consequente negação do liberalismo. Daí nas palavras de Frederico Hayek:

«Este é o facto fundamental e iniludível de que não pode abdicar a filosofia do individualismo. Não significa ele, como muitas vezes se afirma, que o homem é, ou tem de ser, um egoísta, mas mostra irrefutavelmente que os limites intransponíveis do poder da nossa imaginação tornam impossível incluir na nossa escala de valores mais do que uma fracção das carências de todos os homens. E uma vez que as escalas de valores só podem, em rigor, existir no espírito dos indivíduos, só há escalas de valores parciais e inevitavelmente diferentes, até incompatíveis, entre si. Daí deduz o individualismo que são os seus próprios valores, e não os alheios, que cada indivíduo deve ter a permissão de seguir dentro de certos limites nos quais é soberano e não pode estar sujeito a imposições dos outros. O reconhecimento do indivíduo como supremo juiz dos fins que se propõe e a convicção de que são as suas ideias que devem comandar os seus actos, é o que constitui a essência do individualismo» (35).

Depois, vem ao lance informar que o liberalismo rejeita a tese de que os mais pobres e carenciados devam ser entregues à sua sorte, como, aliás, defendera Hegel nos seguintes termos:

«O meio que mais eficaz se revelou contra a pobreza, bem como contra o desaparecimento da honra e do pudor, bases subjectivas da sociedade, e contra a preguiça e a dissipação que originam a plebe, foi, como aconteceu na Escócia, abandonar os pobres ao seu destino e entregá-los à mendicidade pública» (36).








De sua banda, o liberalismo inglês, perfilhado por Winston Churchill, não era de todo estranho a preocupações de índole social. Assim, aos 33 anos, na qualidade de presidente da Câmara do Comércio, Churchill propusera-se atenuar as dificuldades economicamente penosas das «classes inferiores», chamando a si o ónus de aplicar reformas radicais que «actuariam como um meio de controlo social num terreno a que», ele próprio, chamaria enfaticamente «as terras virgens da política britânica» (37). E, de facto, Churchill, enquanto membro do Partido Liberal, chegaria ainda a considerar a luta de classes como um instrumento de regulamentação social, pese embora num sentido não marxista. Aliás, enquanto adversário implacável do socialismo, Churchill visara sobretudo uma democracia em que o liberalismo pudesse desempenhar, sem nada perder da sua essência, um papel fundamental na correcção de abusos e injustiças no corpo social britânico.

Winston Churchill sabia ademais que o liberalismo é, por sua natureza doutrinária, o maior inimigo do socialismo, na medida em que procura defender a liberdade individual preservando a riqueza e o capital, bem como conciliando os interesses individuais com os direitos da sociedade. Churchill, de resto, mantivera-se sempre apegado a um liberalismo excessivamente reformista, uma vez que, quando Ministro das Finanças, procurara «baixar a taxa dos impostos que [pesavam] sobre a classe média produtora e trabalhadora, agravando, em troca, os direitos de sucessão; por outras palavras, [fora] sua intenção favorecer os rendimentos do trabalho, em detrimento dos rendimentos da propriedade e da fortuna» (38).

Ora, esta última medida pode, por certo, suscitar, do ponto de vista clássico do liberalismo, enormes e compreensíveis reservas, sobretudo quando prolongada para além de condições que até aí pareciam eventualmente justificáveis. Seja como for, o liberalismo admite que a intervenção do Estado pode, ainda assim, justificar-se em situações de premente necessidade, tal como, numa linha política de democracia avançada, Churchill, enquanto presidente da Câmara do Comércio, se propusera aplicar da seguinte forma:

«As labour exchanges, criadas em plena depressão – a crise cíclica de 1907-1909 é a mais grave dos últimos 30 anos –, eram uma espécie de agências de colocações ou, se se preferir, centros de emprego destinados a conseguir a contratação de pessoal e a reduzir o desemprego através da informação e da mobilidade dos trabalhadores. Estes centros forneciam listas de oferta e procura de postos de trabalho, ajudando a minimizar a pobreza crescente causada pelos despedimentos do trabalho e pelo trabalho temporário, ao mesmo tempo que se encurtava o espaço de tempo entre dois empregos. No início de 1910, existem já 61 centros de emprego em funcionamento, e no ano seguinte serão 175.





Quanto aos trade boards, foram criados para fazer frente aos vícios do sweating system. Este sistema, que atingia sobretudo a mão-de-obra feminina, vivia de uma série de ofícios exercidos em pequenas oficinas ou no domicílio, locais geralmente insalubres, com horários alargados e salários de miséria. Há anos que este flagelo vinha sendo denunciado em estudos e inquéritos oficiais e particulares, mas sem quaisquer resultados práticos. A novidade – e o expediente engenhoso – da lei proposta por Churchill residia no princípio de um salário mínimo para certas profissões mais expostas à exploração. De início, a lei aplica-se a quatro ramos profissionais, entre os quais os trabalhos de costura, rendas e bordados, que empregavam 200 mil pessoas, na sua esmagadora maioria mulheres das classes mais pobres. Com a nova lei, o Estado arroga-se o direito de intervir em certos sectores produtivos para fixar salários e condições de trabalho» (39).

Diga-se, de passagem, que onde o liberalismo propõe, por ocasião das condições socialmente existentes, dar resposta a carências reais e graves injustiças, o socialismo acentua e alarga ainda mais a miséria, o sofrimento e as desigualdades que pretende combater. Um sinal disso, por mais paradoxal que pareça, reside nos actuais centros de emprego e formação profissional, posto que, numa época de centralização socialista, constituem a regra e não a excepção. Ou seja: os tais centros de emprego e formação profissional estão aí para, de algum modo, atestar e confirmar os efeitos nocivos de uma economia totalmente bloqueada pelo socialismo invasor, que, por seu turno, os classifica como provenientes do neoliberalismo.

Segundo Orlando Vitorino, o liberalismo tem uma virtude face às restantes ideologias: é não ser uma ideologia porque é, antes de mais, uma doutrina ou um sistema cuja «generalidade engloba todos os sistemas possíveis». Por outras palavras, no «liberalismo podem caber, portanto, todos os vários sistemas políticos, todas as variantes de cada um deles e todas as combinações que entre eles se formem» (40). E o mesmo se aplica à ciência económica cujo sistema engloba todos os sistemas económicos possíveis e todas as leis e categorias económicas no seu conjunto.

Acontece, pois, que há um liberalismo político em Orlando Vitorino que chegou a traduzir-se num projecto de Constituição Política para Portugal. Não se trata, como é evidente, de mais uma teoria inserta nos manuais de Ciência Política ou Direito Constitucional, de modo que convém ser lida e compreendida à luz da distinção entre a universalidade do pensamento jurídico e o direito positivo tal como o encontramos no constitucionalismo estatal hodierno. E, nessa medida, trata-se ainda de uma Constituição que remonta à antiquíssima tese de Parménides, para quem tudo é ser, por oposição à tese de Heraclito, para quem tudo é devir (41).






Por consequência, os Princípios e os Preceitos da Constituição proposta por Orlando Vitorino definem-se sobretudo pela sua perpetuidade, e, nesse sentido, revelam-se insusceptíveis de revisão por não participarem do carácter instável do corrente constitucionalismo. Porém, tal não significa que se trate de uma Constituição inflexível ou até mesmo de uma forma constitucional pura, visto não ficar indiferente à esfera dos interesses contingentes, ou às circunstâncias e progressos do tempo a que correspondem instrumentos que dão pelo nome de decretos ou disposições jurídicas. Aliás, também fica a ideia de uma Constituição que, na sua orgânica, implica, quando não mesmo pressupõe a compatibilidade dinâmica entre múltiplos regimes políticos, como a monarquia, a aristocracia e a democracia.

De resto, estamos perante uma Constituição Política que, devido à forte vinculação ética e espiritual, radica a existência e o destino transcendente de Portugal nos desígnios de Deus. Logo, para o seu autor está de algum modo presente o pensamento jurídico de Hegel, por totalmente contrário às «ideias mais vazias» que ameaçam desvirtuar palavras como constituição e liberdade:

«Dever-se-ão abster de participar nas discussões sobre a Constituição todos aqueles que entendem que a divindade se não pode conceber e que o conhecimento da verdade não passa de uma tentativa vã» (42).

Enfim, sucedem-se os Princípios com todas as determinações inerentes a Portugal: Nação, Pátria, República e Estado. Cada uma delas não pode, de per si, definir a realidade que é Portugal, que também não se define «pelo regime ou regulamentação institucional que, em cada época, ordena a política ou a administração - monarquismo, republicanismo, corporativismo, socialismo, etc. -, pois a sua existência excede e transcende esses regimes, perdurando para além deles». No respeitante à Nação, a família, sua matriz, possui personalidade jurídica, prioridade absoluta na educação e na assistência à velhice. O património, não «divisível, transmissível ou dissolúvel por decisão, abandono, separação e divórcio de alguns membros da família», é independente dos membros que a constituem. No caso do Estado, destinado à efectivação do Direito, temos como Princípios a Verdade, a Justiça e a Liberdade, respectivamente ligados à organização do Estado, à propriedade e às «leis que impõem a inviolabilidade do corpo, da vida, do pensamento, da crença, da acção individual e das relações contratuais de cada português». Relativamente às formas de existência da Pátria (a língua, a arte e a história), estas «contêm uma moral e uma ética que não suportam a presença – na República e no Estado – de factores que ameaçam dissolvê-la». E assim, à semelhança de Aristóteles para quem «no governo perfeito, a virtude privada se identifica com a virtude política», resulta que na «ética e na moral fundamenta a Pátria um código de virtudes que veda as funções do Estado aos homens que não tenham a virtude da lealdade, a carreira das armas aos homens que não tenham a virtude da honra e o magistério e a magistratura aos homens que não tenham o amor da verdade». Por fim, a República, ou «coisa pública», composta pelos «bens que são interesse imediato - seja este virtual ou manifesto - de todos os portugueses».

Para além disso, acontece que Orlando Vitorino, a par da Chefia do Estado e dos Tribunais, agrega como orgãos do Estado as Forças Armadas e o Ensino, deixando de fora o Governo e a Assembleia da República. Nisto, o elemento democrático, representado pelas duas últimas instâncias, distingue-se do elemento aristocrático representado pelo Senado, assim como do elemento monárquico representado pelo Chefe do Estado. Contudo, é pelo "governo misto", ou mais rigorosamente, pela poliarquia que Orlando Vitorino se pronuncia explicitamente.




Portanto, quando se diz que o Estado tem como Princípio a Verdade, a par dos Princípios de Justiça e Liberdade, isso não significa que o Estado cria a sua própria verdade consoante se comprometem fazê-lo partidos e governos de origem totalitária; e quando se diz que o Chefe do Estado pode vetar os actos administrativos do Governo acerca dos quais o Senado pode igualmente pronunciar-se, tal não equivale a um peso desmedido e jurisdicionalmente abusivo na medida em que o Chefe do Estado, enquanto representante do povo e da unidade nacional, surge como o elemento monárquico de mediação directa entre as múltiplas partes que constituem o Estado, ao passo que o Senado, na qualidade de elemento aristocrático, representa o "governo dos melhores portugueses"«com mais de 45 anos de idade e de provadas faculdades intelectuais para exprimirem o saber da Nação, da Pátria, da República e do Estado».

Por aqui, pois, se explica que o liberalismo de Orlando Vitorino esteja politicamente impregnado de princípios que nada têm a ver com o roteiro de determinações socialistas consagradas na Constituição de 1976. Exemplos típicos dessas determinações na Constituição vigente, são:

1. A existência de um sistema de segurança social unificado e obrigatório (Direitos e deveres fundamentais, título III, Cap. II, art. 63.º, n.º 2);

2. Um «serviço nacional de saúde» tendencialmente gratuito, com acção dirigida «para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos» (Cap. II, art. 64.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea c));

3. A intervenção do Estado na vida das famílias em nome da sua «independência social e económica», com a criação de «uma rede nacional de creches e de outros equipamentos sociais de apoio à família, bem como uma política de terceira idade» (Cap. II, art. 67.º, n.º 2, alíneas a) e b));

4. A intervenção proteccionista do Estado na educação dos filhos, «com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país» (Cap. II, art. 68.º, n.º 1);

5. A intervenção estatal na formação profissional, na cultura, na empregabilidade, no acesso à habitação, na educação física e no desporto, no aproveitamento dos «tempos livres» e nas «organizações juvenis» (Cap. II, art. 70.º, n.1., alíneas a), b), c), d), e) e n.º 3);

6. A redução da propriedade aos meios de produção, sejam eles do domínio público, privado ou cooperativo (cf. título I, art. 82.º);






7. A eliminação dos latifúndios com direito a expropriação indemnizada em nome de uma política agrária de cunho colectivo e cooperativo (Organização económica, título III, art. 94.º);

8. O sistema fiscal direccionado para «uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza» (cf. título I, art. 81.º, alínea b) e título IV, art. 103.º, n. 1);

9. A tributação sobre o património, as empresas, os «consumos de luxo» e o rendimento pessoal com vista à igualdade e à «justiça social» (cf. título IV, art. 104.º).

Enfim, estes são apenas alguns dos exemplos paradigmáticos do Estado socialista em Portugal, também ele largamente devedor do intervencionismo nórdico de feição keynesiana, ou até mesmo do chamado welfare state britânico, inspirado no plano Beveridge (1941), que estivera na origem da planificação da sociedade inglesa do pós-guerra. E, neste ponto, de algum modo relativo às consequências dessa planificação, diz-nos Frederico Hayek no prefácio à edição de 1976 do seu livro O Caminho para a Servidão:

«Este livro, escrito entre 1940 e 1943, nos meus momentos de ócio, quando a minha inteligência era absorvida sobretudo por problemas de pura teoria económica, veio a ser para mim o ponto de partida para um trabalho, que se prolongou por mais de trinta anos, num novo campo de estudos. Este livro é, portanto, a primeira afirmação numa nova directriz das minhas reflexões e foi ele provocado pela irritação que me causava a interpretação completamente errada que os círculos "progressistas" ingleses faziam do movimento nazi. Essa irritação me levou, primeiro, a dirigir um "memorandum" ao então director da Escola de Economia de Londres, Sir William Beveridge, depois, a escrever um artigo publicado na Contemporary Review em 1938, artigo que ampliei a pedido do Professor Harry Gideouse para publicação nos seus Public Policy Pamphlets...».

E, já agora, não deixa de ser menos interessante o facto de o liberalismo de Churchill ter suscitado, a par da já célebre censura que, em 1925, lhe fora dirigida por Keynes a propósito do regresso ao padrão-ouro (43), este trecho de François Bédarida sobre o antagonismo do então primeiro-ministro britânico ao plano de Beveridge, com quem, aliás, mantivera uma péssima relação:

«Desde logo, é fácil compreender por que razão, em 1944, Churchill será espontaneamente influenciado por Friedrich Hayek, cujo livro O Caminho para a Servidão constitui uma apologia apaixonada a favor do individualismo liberal e do deixar-fazer» (44).


E assim é também o que nos permite invocar Frederico Hayek com vista a clarificar o equívoco do laissez-faire, tantas vezes atribuído ao liberalismo:

«A imprevisibilidade característica das leis formais num sistema liberal, das consequências particulares que elas venham a ter, também nos ajuda a desfazer uma outra confusão quanto à natureza daquele sistema: a que reside na convicção de que a sua atitude característica é a inacção do Estado. Saber se o Estado deve ou não "actuar" ou "intervir" constitui uma alternativa inteiramente falsa, e a expressão laissez faireé uma expressão ambígua e enganosa quanto aos princípios em que se fundamenta a política liberal. É evidente que todo o Estado actua, é evidente que toda a actuação do Estado interfere com qualquer coisa. Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é saber se os indivíduos podem prever a actuação do Estado e servirem-se desse conhecimento como um dado para a elaboração dos seus planos (com as consequências que daí resultam: não poder o Estado controlar o uso que se faz da sua maquinaria e saberem as pessoas com segurança até que ponto estão protegidas contra a interferência alheia), ou se o Estado está em posição de aniquilar os esforços individuais e as actividades privadas. O Estado que fiscaliza os pesos e medidas (ou de qualquer outra maneira combate a fraude e a mentira) está sem dúvida a actuar, ao passo que o Estado que permite o uso da violência – como, por exemplo, os piquetes da greve – é inactuante. No primeiro caso, o Estado obedece aos princípios liberais, no segundo não o faz. O análogo acontece com a maior parte das regras gerais e permanentes que o Estado estabelece quanto à produção, seja a regulamentação da construção civil seja a regulamentação das actividades fabris: poderão elas ser acertadas ou desacertadas em relação a casos particulares, mas não contrariam os princípios liberais uma vez que têm o carácter permanente e não foram estabelecidas para favorecer ou prejudicar estas ou aquelas pessoas. É verdade que, para lá dos imprevisíveis efeitos que a longo prazo terão, essas regras têm, a curto prazo, consequências para os interesses particulares de certas pessoas que podem ser determinadas com exactidão. Mas neste género de leis, os efeitos a curto prazo não constituem geralmente (ou não deverão constituir) um critério orientador. À medida que os efeitos imediatos e previsíveis se tornam mais importantes do que os imprevisíveis efeitos a longo prazo, aproximamo-nos daquela linha limite onde a distinção, em princípio clara, começa a tornar-se, na prática, confusa» (45).

Tal é, efectivamente, o que nos permite, por certo, entrever a influência doutrinária exercida por Frederico Hayek sobre Winston Churchill, que, por seu lado, não se pouparia a discursos de grande popularidade, num dos quais dar-se-ia um episódio que ficou particularmente célebre: o da Gestapo. Isto é:

«Aquando de um discurso, no início de Junho de 1945, Winston defende que socialismo e totalitarismo não são senão a mesma coisa, e depois afirma que nenhum regime socialista pode funcionar sem uma polícia política, de maneira que, se os trabalhistas chegassem ao poder, teriam de recorrer a "uma forma de Gestapo"» (46).

E por falar em socialismo, e de como este se traduz em totalitarismo, diz-nos ainda F. Hayek:

«(...) embora a história nunca se repita, podemos em certa medida aprender, pela observação do passado, a evitar a repetição de um mesmo processo. Não é preciso ser profeta para prever perigos iminentes. Uma combinação fortuita de experiência e curiosidade poderá muitas vezes revelar a um homem certos aspectos dos acontecimentos que a maioria dos homens não consegue descortinar.

(…) torna-se-nos necessário declarar abertamente que o destino, que estamos em riscos de repetir, é o da Alemanha. O perigo não é, na verdade, imediato, e as condições existentes na Inglaterra ainda estão longe das que presenciámos na Alemanha durante os últimos anos. Por isso se torna difícil fazer acreditar que estamos seguindo o mesmo caminho. Contudo, e embora esse caminho seja longo, quanto mais nele se progride, mais difícil será voltar atrás. Se a longo prazo somos nós os construtores do nosso próprio destino, a curto prazo somos os prisioneiros das ideias que criámos. Só reconhecendo o perigo a tempo, podemos ter a esperança de o evitar. Não é com a Alemanha de Hitler, não é com a Alemanha da guerra de hoje, que a Inglaterra apresenta semelhanças. Mas os estudiosos das correntes de pensamento não poderão deixar de reconhecer que a similitude entre as ideias dominantes na Alemanha durante e depois da guerra de 1914 e as actuais ideias dominantes na Inglaterra, é mais do que superficial. Com efeito, existe agora aqui a mesma determinação em manter com finalidades criativas a organização nacional que pusemos em pé com finalidades defensivas. Há o mesmo desdém pelo liberalismo do século XIX, o mesmo adulterado "realismo" ou até cinismo, a mesma aceitação fatalista das "tendências inevitáveis". E nove, pelo menos em cada dez lições que os excitados reformadores querem que tiremos da presente guerra, são exactamente as mesmas que os alemães extraíram da guerra de 1914 e que muito contribuíram para a formação do nazismo. Ao longo deste livro, teremos oportunidade de mostrar que, em grande número de outros aspectos, parece estarmos a seguir, com o intervalo de quinze a vinte e cinco anos, o exemplo da Alemanha. Embora não seja agradável recordá-lo, a verdade é que não passaram muitos anos desde o tempo em que a política socialista alemã era defendida pelos progressistas ingleses como um modelo a ser imitado, tal como, nos anos mais recentes, a Suécia tem sido o país para onde se voltam agora os olhares dos mesmos progressistas. Todos aqueles cuja memória alcança tempos mais recuados, sabem como, durante pelo menos uma geração antes da guerra de 1914, o pensamento e prática alemãs influenciaram profundamente os ideais e a política da Inglaterra. O autor deste livro viveu cerca de metade da sua vida de adulto na Áustria, país de sua origem, em íntimo contacto com a actividade intelectual alemã, e a outra metade nos Estados Unidos e na Inglaterra.































Deste país, fez, nos últimos doze anos, a sua pátria e, dia a dia, se tem convencido de que, pelo menos algumas das forças que destruíram a liberdade na Alemanha, estão também actuantes aqui, e de que a natureza e origem deste perigo são, se possível, menos compreendidas na Inglaterra do que o foram na Alemanha. A tragédia suprema é que na Alemanha foram pessoas de boa vontade, homens admirados e considerados como exemplos, quem preparou o caminho, se é que não criaram eles próprios as forças que representam agora tudo o que eles detestam. A única possibilidade de escaparmos a um destino semelhante depende agora de sabermos enfrentar o perigo e de nos prepararmos para rever, e até renunciar, sempre que elas se revelem como fontes de perigo, às esperanças e ambições que temos alimentado. Há no entanto poucos sinais de que tenhamos a coragem intelectual de admitir que errámos. Poucos estarão dispostos a reconhecer que o aparecimento do fascismo e do nazismo foi, não uma reacção contra as tendências socialistas do período precedente, mas sim o resultado necessário dessas tendências. Trata-se de uma verdade que a maioria das pessoas se recusa a aceitar mesmo depois de terem já sido largamente reconhecidas as semelhanças entre as odiosas características dos regimes existentes na Rússia comunista e na Alemanha nacional-socialista. Em consequência de tal recusa, muitos dos que julgam defender doutrinas infinitamente superiores às aberrações do nazismo e sinceramente odeiam as suas manifestações, estão de facto a lutar por ideais cuja realização conduzirá fatalmente a uma horrível tirania» (47).

Entretanto, Milton Friedman, da Escola de Chicago, fora quem mais particularmente dirigira a sua atenção para o New Deal, por ter, de facto, constituído uma experiência intervencionista que, curiosamente, correria a par da planificação económica adoptada na Alemanha nazi por Hjalmar Horace Greeley Schacht. Aliás, o New Deal fora ainda inspirado na legislação alemã de 1932, aquando do governo de Kurt von Schleicher. De resto, se é um facto que o socialismo acabara por ter o seu desenvolvimento teórico e prático na Alemanha, é não menos verdade que o Report on Social Insurance and Allied Services, também conhecido por Plano Beveridge, ter-se-ia inspirado, no âmbito de um plano estatizante e dirigista da assistência social, no “seguro de doença” alemão, estabelecido por Otto von Bismarck (1883).

Deste modo, compreende-se que Winston Churchill, Margaret Thatcher e Keith Joseph tivessem criticado os conservadores dos anos 50 por adoptarem, contra a sua própria tradição, um bipartidarismo entre o centro-direita e o centro-esquerda que, por certo, prepararia o terreno do trabalhismo da justiça social e do Estado-Providência. Em suma: estava doravante traçado o plano inclinado de um povo até então profunda e habitualmente conservador.











Notas:

(28) Sobre os deputados da «Ala Liberal» e sua «liberdade de movimentos», leia-se o seguinte:

«Tratava-se de uma elite constituída por personalidades relativamente jovens - só três tinham mais de 50 anos, nenhum mais de 60 -, de origem urbana - de Lisboa e do Porto, em especial - e onde o peso da formação jurídica era ainda mais acentuado do que nos restantes parlamentares. A caracterização deste grupo, realizada de forma notável por Tiago Fernandes no seu livro A Ala Liberal e o Marcelismo (Lisboa, 2006), afigura-se essencial para compreender o sentido da acção política dos seus membros. Pode mesmo dizer-se, sem receio de exagero, que, uma vez que desde a sua génese a Ala Liberal se posicionou como uma minoria singular, para perceber o papel que esta elite desempenhou no marcelismo a definição do perfil dos seus membros é muito mais importante do que em relação aos demais deputados à Assembleia Nacional, cujos mecanismos de recrutamento obedeceram, em regra, aos padrões "clássicos" do Estado Novo nos tempos de Salazar. Na verdade, o facto de este grupo ser integrado por "liberais" não apenas nos seus propósitos políticos como também nas suas trajectórias profissionais conferia-lhes uma liberdade de movimentos que não encontramos na generalidade dos seus colegas da Assembleia Nacional. Os deputados liberais que tinham feito carreira política no Estado Novo eram significativamente menos do que os demais parlamentares (32,6% contra 68,5%, segundo os cálculos de Tiago Fernandes). Na Ala Liberal havia 32,5% de funcionários públicos, nos outros deputados 59,4%. Pertenciam ao sector privado 52,6% dos liberais, ao passo que nos outros parlamentares registamos apenas uma média de 28,8%. Um advogado como Sá Carneiro, um gestor como Pinto Leite ou um administrador de empresas jornalísticas como Pinto Balsemão não necessitavam de um lugar em São Bento para sobreviver. E isso só era possível porque, no fim de contas, o regime possuía um grau de "liberalização" suficiente que permitia assegurar, desde logo, uma relativa autonomia entre a esfera da intervenção política e a esfera profissional (recorde-se o exemplo dos advogados que, nos cafés da Baixa Lisboeta ou do Chiado, sempre conspiraram contra Salazar ou atacaram em surdina as suas políticas). E, por outro lado, o regime também tinha um perfil que permitia acolher no seu seio vozes críticas sem que daí resultassem prejuízos manifestos para a vida pessoal ou profissional daqueles que as protagonizassem, desde que não se envolvessem em actividades clandestinas de cariz subversivo ou ultrapassassem certos limites de exposição pública. Ao candidatar-se em 1969, Sá Carneiro chega a aludir com apreço ao manifesto eleitoral apresentado pelo candidato da oposição por Castelo Branco, António Alçada Baptista, e esse facto não o impediu de permanecer nas listas da União Nacional e conquistar um lugar na Assembleia». (Cf. «A Ala Liberal da Assembleia Nacional», in Os Anos de Salazar, Centro Editor PDA, 2008, n.º  27, pp. 15-16).



Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão na Assembleia Nacional



José Pedro Pinto Leite, um dos principais líderes da chamada «Ala Liberal». Faleceu, em 1970, num desastre de helicóptero na Guiné-Bissau, juntamente com os deputados Leonardo Coimbra (Filho), Vicente de Abreu e Pinto Bull.


(29) Como exemplos da referida actividade jurídica, estão a impugnação da revisão constitucional de 1971, a amnistia dos presos políticos, a liberdade de imprensa, a liberdade sindical, etc.

(30) Cf. Orlando Vitorino, «Primeiro, extinguir a Universidade, depois, restaurar o ensino», in Portugal, 15 de Janeiro de 1980.

(31) Orlando Vitorino, Exaltação da Filosofia Derrotada, pp. 39-40.

(32) Álvaro Ribeiro, Escola Formal, Guimarães Editores, 1953, p. 30.

(33) Orlando Vitorino, «A filosofia de Álvaro Ribeiro como Doutrina do Espírito», in Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, Ano II, 1989, n.º duplo 5/6, p. 16.

(34) Frederico Hayek,O Caminho para a Servidão, Teoremas, 1977, p. 75.

(35) Idem, ibidem, pp. 108-109.

(36) Prefácio de Orlando Vitorino à 2.ª edição de Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Guimarães Editores, 1990. p. 28.

(37) Cf. François Bédarida, Churchill, Verbo, 2010, p. 76.

(38) Idem, ibidem, p. 167.

(39) Idem, ibidem, pp. 79-80.

(40) Orlando Vitorino, Exaltação da Filosofia Derrotada, pp. 32-33.

(41) Cf. Orlando Vitorino, «O Progressismo», in Escola Formal, n.º 5, Dez. 1977/Fev. 1978.

(42) Prefácio de Orlando Vitorino à 2.ª edição de Hegel, Princípios de Filosofia do Direito, de Hegel, p. 33.

(43) Cf. John Maynard Keynes, The Economic Consequences of Mr. Churchill.

(44) François Bédarida, ibidem, pp. 340.

(45) F. Hayek, ibidem, pp. 138-139.

(46) F. Bédarida, ibidem, p. 363.

(47) F. Hayek, ibidem, pp. 21-24.

























Continua


Uma Constituição para Portugal (iv)

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Escrito por Orlando Vitorino








Uma Constituição para Portugal


Por Constituição Política de Portugal não poderá deixar de se entender a expressão política daquilo que constitui Portugal. Pelo contrário, os longos articulados que, com a designação de “constituições políticas”, desde 1822 têm sido outorgados aos portugueses, são, todos eles, a expressão, não de Portugal, mas de uma certa doutrina ou ideologia cujos sequazes dominaram ocasionalmente o aparelho de Estado. Assim foram sucessivamente impostas aos Portugueses: primeiro, duas constituições monárquicas do liberalismo francês, as de 1822 e 1838; depois, uma constituição republicana do liberalismo positivista, a de 1911; em terceiro lugar, uma constituição do socialismo corporativista, a de 1933; finalmente, uma constituição do socialismo marxista, a de 1976. Sendo expressões de uma ideologia, todas elas poderiam ser, como efectivamente foram, um enumerado de artigos que são outros tantos instrumentos para o exercício exorbitante de exorbitantes poderes do Estado destinados a sujeitar a totalidade dos Portugueses ao grupo de militantes que adoptaram aquela ideologia. Chamar “Constituição Política de Portugal” a esses códigos dos poderes do Estado é um absurdo, um erro e um crime de que todos os portugueses se fazem vítimas. Não admira, portanto, que a sucessão de tais “constituições” ideológicas seja paralela, durante século e meio, à gradual mas incessante desvirtuação da existência dos Portugueses e de Portugal.

Em contraste com estes absurdos códigos dos poderes do Estado, o texto verdadeiramente constitucional que apresentamos é composto apenas de princípios e preceitos; e se fazemos acompanhar muitos deles de comentários, estes apenas se destinam a demonstrar como tais princípios e preceitos são necessários, isto é, se deduzem necessariamente daquilo que Portugal é, não pertencendo, em rigor, ao texto constitucional. Aquilo que Portugal é transcenderá sempre esta ou aquela ideologia perfilhada por este ou aquele agrupamento de políticos profissionais que neste ou naquele momento conseguiram deitar mão às chaves do Estado.

A vigente Constituição Política do socialismo marxista, outorgada em 1976 por uma Assembleia eleita nas condições mais duvidosas, está desacreditada ou desmascarada perante os Portugueses. Para restabelecer o crédito ou a máscara que perdeu, vai iniciar-se em breve, como ela mesmo prevê, a sua “revisão”.

O texto da Constituição Política de Portugal que apresentamos não se destina a preparar essa “revisão” nem a contribuir para ela. Em primeiro lugar, porque não o pode fazer: a “revisão” prevista apenas vai incidir sobre um certo número de artigos, aqueles que, tenham a forma que tiverem, deixam inalterável o socialismo marxista do texto a rever. Em segundo lugar, porque essa “revisão” será feita por uma outra Assembleia que, mesmo recrutada no respeito da regulamentação do sufrágio, jamais poderá ser representativa dos Portugueses que se limitarão a votar uma de entre três ou quatro listas de nomes previamente eleitos pelas oligarquias partidárias, entre as suas tanto mais ambiciosas, quanto inscientes, clientelas.

O presente texto sabemos que é a Constituição Política de Portugal, a expressão política daquilo que Portugal é. Uma vez ele apresentado, e uma vez que o acesso à sua leitura e compreensão não seja, como vai ser, dificultado e até impedido, todos os Portugueses saberão, connosco, como se constitui Portugal. Teremos, de qualquer modo, cumprido, perante os Portugueses, o nosso dever de Portugueses.



I - OS PRINCÍPIOS 


Primeiro princípio: 

A existência de Portugal tem uma realidade transcendente e o seu destino está contido nos desígnios de Deus.

Comentário: 

Com a existência de Portugal, adquirem os Portugueses uma existência comum, cujas formas recebem do remoto passado e projectam no longínquo futuro. A existência de Portugal transcende, assim, a existência de cada geração e o modo como cada geração vive a sua época. Sendo ela transcendente, é inviolável e em si mesma fundamenta a inviolabilidade dos direitos de cada português que ficam, como Portugal, ligados a um princípio transcendente. A afirmação da transcendência e o implícito culto da divindade contêm, portanto, a condição da existência de Portugal.

A dependência da transcendência era reconhecida nos povos da originária antiguidade, os gregos e os romanos, como o foi na origem da modernidade europeia e ocidental e ainda hoje perdura entre os povos islâmicos e o judeu, em algumas Constituições e na legenda nacional de cada inglês: «Deus e o meu Direito». As próprias ideologias ateístas do socialismo contemporâneo têm de ter em conta, seja embora para a negar, esta afirmação do pensador em quem se orgulham de se inspirar: «Dever-se-ão abster de participar nas discussões sobre a Constituição Política todos aqueles que entendem que a divindade se não pode conceber» (Hegel, «Princípios da Filosofia do Direito», § 272).

Segundo princípio: 

Portugal é uma Nação, uma Pátria, uma República e um Estado.

Comentário: 

A realidade que é Portugal não é susceptível de ser definida por determinações que não lhe sejam necessariamente inerentes, isto é, que não sejam inseparáveis da sua existência, que não a abranjam na continuidade do passado ao futuro, que não convenham à sua integridade permanente, inalterável e indivisível. Não pode, portanto, ser definida pelo regime ou regulamentação institucional que, em cada época, ordena a política ou a administração - monarquismo, republicanismo, corporativismo, socialismo, etc. -, pois a sua existência excede e transcende esses regimes, perdurando para além deles. Não pode, tão pouco, ser definida pelo predomínio que, circunstancialmente, seja atribuído a algum dos poderes que sempre nela coexistem: o poder de todos na democracia, o poder dos melhores na aristocracia, o poder da individualidade representativa na monarquia. Não pode, finalmente, ser definida pela sua identificação com uma ou algumas de entre todas as determinações que lhe pertencem, como acontece nos textos constitucionais que dizem que Portugal é uma Nação ou uma República ou um Estado ou uma Pátria. Portugal é simultaneamente uma Nação, uma República, um Estado e uma Pátria.





Terceiro princípio: 

A Nação é o conjunto das gerações - passadas, presentes e futuras - de Portugueses, e a nacionalidade é a condição natural de português que cada um recebe pelo nascimento ou pelo que seja equivalente ao nascimento.

Quarto princípio: 

A Pátria é a entidade espiritual de Portugal e exprime-se, existe e perdura na língua, na arte e na história.

Comentário: 

A Pátria reside na existência intemporal, ou sobrenatural, de Portugal, como a Nação - a que alguns já chamaram Mátria - reside na existência temporal ou natural. A Pátria forma-se quando a Nação perdura para além dos interesses, motivos e vontades que deram origem ao primeiro agrupamento nacional, tornando-se independente das decisões dos seus naturais e exprimindo-se numa língua própria, que perpetua os modos de imaginar e sentir, e numa história própria, que perpetua os modos de agir e viver.

Quinto princípio: 

A República, ou «coisa pública», reúne o que é de comum interesse, virtual ou manifestamente imediato, de todos os Portugueses.

Comentário: 

A «coisa pública» é o conteúdo da existência quotidiana e imediata, incessante mas em constante decorrência e, por essa sua natureza, sempre ameaçada de perturbação, suspensão e dissolução. Carece, portanto, de permanente governo, o qual tem, nos limites do que é a «coisa pública», os limites intransponíveis da sua intervenção que se alarga desde a preservação da herança dos antepassados, como o território, a paisagem e os monumentos, até à administração das fontes de riqueza comuns, tenham elas sido obtidas ou pelo génio de alguns Portugueses representativos ou pelo esforço de muitos ou, na sucessão interminável da efemeridade, pelas contribuições de todos os Portugueses.

Sexto princípio: 

O Estado é a efectivação do Direito - na Nação, na República e na Pátria - segundo a Verdade, a Liberdade e a Justiça.

Comentário: 

É o Estado que faz passar o Direito dos princípios às leis e das leis à prática quotidiana. São princípios do Direito a Verdade, a Justiça e a Liberdade. Da Verdade se deduzem as leis que presidem à organização do Estado; da Justiça se deduzem as leis que determinam a propriedade, reconhecendo a cada português aquilo que lhe pertence; da Liberdade se deduzem as leis que impõem a inviolabilidade do corpo, da vida, do pensamento, da crença, da acção individual e das relações contratuais de cada português.






II - OS PRECEITOS 



DA NAÇÃO 


Primeiro preceito: 

São Portugueses os que recebem, pelo nascimento de pais Portugueses, a condição nacional. Podem ser reconhecidos como equivalentes ao nascimento de pais portugueses, o nascimento em território português, o nascimento em famílias de origem portuguesa e os cidadãos brasileiros.

Comentário: 

A equivalência entre a nacionalidade portuguesa e a brasileira fundamenta-se, primeiro, na identidade da Pátria, pois ambos os povos têm a mesma língua, portanto, a mesma virtualidade de pensar e conceber e, em grande, senão maior parte, a mesma história e a mesma arte. Fundamenta-se, depois, na mesma origem nacional entre os séculos XVI e XIX.

Distinguem-se os Portugueses e os Brasileiros por não terem a mesma república e o mesmo Estado. A cisão que se dá na unidade dos povos tem sempre por ponto de partida uma cisão na «coisa pública», uma cisão no que é comum e imediato interesse de todos os nacionais, à qual se segue uma duplicação do Estado. Cada um dos novos Estados articula singularmente a sua organização com a Nação e a Pátria, as quais, podendo permanecer substancialmente idênticas, também podem ser gradualmente cindidas pelo desenvolvimento das duas separadas Repúblicas e pela acção dos dois diferentes Estados.

Geralmente, o componente da «coisa pública» que primeiro contribui para a cisão da República é o território que, sendo formado de partes, faz emergir as imagens ou os interesses daquela cisão nas partes mais separadas ou distantes das outras, como aconteceu no Brasil e, agora, está acontecendo nas ilhas dos Açores e da Madeira. A cisão definitiva pode ser, nuns casos, a única ou a mais benéfica solução para os interesses da República, sobretudo quando acompanhada de desígnios que a história exprime, e, noutros casos, ser uma solução resultante de erros e circunstâncias transitórias que não se soube transcender. Sempre é ao Estado, ou aos homens de Estado, que cumpre saber qual o sentido que têm as cisões na República e preservar, até quando elas conduzam à formação de Estados diferentes, a identidade da Nação e a substância da Pátria.

Segundo preceito: 

Todos os Portugueses têm os mesmos direitos e deveres em participar nos negócios da República, na organização do Estado e na perpetuação da Pátria.


Estátua de D. Afonso Henriques



Castelo de Guimarães






Terceiro preceito: 

A família é a matriz da Nação, reside na coexistência de três gerações - a dos pais, a dos filhos e a dos netos - e contém como seus direitos naturais:

- personalidade jurídica;

- prioridade absoluta na educação - ou formação física, ética e intelectual desde a infância à juventude - dos seus membros;

- prioridade absoluta na assistência à velhice dos seus membros;

- administração do património familiar.

Comentário: 

O património distingue-se da propriedade por não ser, como esta, o objecto de disposição absoluta ou de plena in re potestas. O Estatuto da Família deve determinar, partindo da definição de património, como ele é insusceptível de penhora, hipoteca ou qualquer forma em que sirva de garantia e pagamento de dívidas, como não é divisível, transmissível ou dissolúvel por decisão, abandono, separação e divórcio de algum dos membros da família, como se compõe dos bens que são declarados pela família em regime patrimonial sem prejuízo de que cada membro da família tenha bens em regime de propriedade e como se destina a ser a objectivação real e positiva da unidade e perduração familiares.

Só a personalidade jurídica e o património podem dar realidade objectiva e existência positiva à família que, sem elas, apenas constituirá uma unidade natural e uma ligação sentimental que depressa se dissolvem: a unidade natural quebra-se com o casamento dos filhos e a ligação sentimental não resiste ao conflito dos interesses e destinos pessoais que a transformam numa sentimentalidade vazia, propícia ao matriarcado e expressa em cíclicas cerimónias rituais e festivas que apenas têm de positivo a saudade de arquétipos religiosos perdidos no tempo remoto.


DA PÁTRIA 


Primeiro preceito: 

São invioláveis as formas de existência da Pátria: a língua, a arte e a história.

Comentário: 

Como as formas de existência da Pátria têm uma tal natureza que são o que for o saber delas, a sua inviolabilidade é a inviolabilidade do saber que não é possível, portanto, sujeitar a directrizes e finalidades alheias à verdade, pois o saber é sempre saber da verdade. Como o saber referido à Pátria é o que for a sua transmissão através das gerações (garantia da actualização do saber, ou da concretização da universalidade do saber, que é uma das razões de ser das Pátrias), a sua inviolabilidade significa a liberdade do ensino e a prioridade absoluta do direito de ensinar que não é possível sujeitar a qualquer uniformização - pois toda a uniformização é contrária à infinita multiplicidade de expressões em que o saber se afirma, actualiza, transmite e aperfeiçoa - nem a qualquer espécie de limitação, controlo ou filtragem como aqueles que as instituições universitárias exercem em Portugal há cerca de dois séculos.

Segundo preceito: 

Todos os Portugueses têm direito à autoria, entendida como disposição absoluta do que se produz quando o que se produz é tal que não existiria se o autor não lhe tivesse dado origem.

Comentário:

A autoria distingue-se do trabalho por este ser a reprodução de um modelo ou a repetição de um processo, aos quais o trabalhador não deu origem, enquanto a autoria é a origem desse modelo ou desse processo. A este carácter inventivo, junta a autoria a criação de obras marcadas pela singularidade, isto é, insusceptíveis de reprodução e repetição, como as obras de arte e pensamento. A autoria é, portanto, o motor da civilização e o direito que se lhe reconhece é a condição sem a qual não há sociedade civilizada.


Sala das Armas no Paço dos Duques de Bragança (Guimarães). 


Terceiro preceito: 

As formas de existência da Pátria contêm uma moral e uma ética que não suportam a presença - na Nação, na República e no Estado - de factores que ameaçam dissolvê-la.

Comentário: 

As formas de existência da Pátria residem no saber ingénuo e tácito, contido nos costumes e modos de viver e agir habituais, e no saber consciente e científico que é a substância da civilização, a finalidade do ensino e a vida das instituições. O primeiro, saber ingénuo, tem por fundamento a religião. O segundo, saber científico, tem por fundamento o pensamento da verdade e exprime-se na ética, pois é falsa aquisição de saber aquela que não promove o aperfeiçoamento do indivíduo que a adquire.

Na ética e na moral fundamenta a Pátria um código de virtudes que veda as funções do Estado aos homens que não tenham a virtude da lealdade, a carreira das armas aos homens que não tenham a virtude da honra e o magistério e a magistratura aos homens que não tenham o amor da verdade.

Quarto preceito: 

Todos os Portugueses têm direito à informação, à expressão e à comunicação sem condicionalismos económicos, sociais ou jurídicos impostos pelo Estado ou mediante o Estado.

Comentário: 

Caracteriza este preceito, como todos os referentes à Pátria, ser ele insusceptível de definição institucional e antes consistir na recusa ou negação de tudo o que, institucionalmente, limita o que, por natureza, não tem limites. Não é possível marcar limites à inviolabilidade das formas, nem aos domínios que a autoria pode abranger, nem à fonte inesgotável, ou insondável, dos valores morais e éticos, nem à informação, expressão e comunicação.



DA REPÚBLICA 


Primeiro preceito: 

A República - ou «coisa pública» - é composta de:

1. Os bens que são interesse imediato - seja este virtual ou manifesto - de todos os portugueses, como o território, englobando a terra, o mar e o ar, a paisagem, com seus valores estéticos e naturais, e os monumentos;

2. Os bens destinados à segurança e prosperidade da «coisa pública» em geral, como os lugares, edifícios e instrumentos de utilização pública, nacional ou estatal.

3. O tesouro público.

Segundo preceito: 

A administração da República é feita directamente pelo Governo da República e, indirectamente, pela Assembleia da República. Os membros do Governo, com a designação de ministros, são escolhidos pela Assembleia e os deputados que compõem a Assembleia são eleitos por sufrágio universal e secreto.

Comentário: 

A «coisa pública» distingue-se da «coisa privada» por não ser directamente produtiva e por ser, não uma propriedade, mas um património do qual não há pessoa nem instituição que tenha a disposição absoluta.

O facto de a administração da «coisa pública» se exprimir em interesses materiais que todos podem avaliar e entender, o facto de o bem-estar geral se medir pelo bem-estar particular de cada um, o facto de todos poderem conhecer o estado das finanças públicas pelo preço que vêem atribuir aos produtos da sua actividade, não tornam a eleição da Assembleia da República por sufrágio universal incompatível com a existência de uma maioria de eleitores incapazes de qualquer conhecimento teórico do que mais convém à comunidade.



Orlando Vitorino



Terceiro preceito: 

A «coisa privada» não existe sem as categorias económicas - propriedade, fruição, trabalho, produção, mercado e dinheiro - que são o fundamento da prosperidade particular e pública e a condição sem a qual não há real liberdade política.

Comentário: 

A administração da «coisa privada» é feita pelas pessoas que, individual ou societariamente, tenham a propriedade dela. Por definição, o Governo da República - que dispõe de património mas não de propriedade - não pode intervir directamente na administração da «coisa privada», o que estabeleceria inevitáveis privilégios, nem pode, a título de planificação, de segurança ou de proteccionismo, decretar regulamentações que pervertam as categorias económicas.

Quarto preceito: 

As receitas necessárias à administração da República - cuja descrição ou plano o Governo da República sujeitará anualmente à aprovação da Assembleia da República e do Senado - recolhe-as o Governo dos impostos indirectos. Só em situações excepcionais - guerra, catástrofes naturais ou sociais - poderá o Governo recorrer aos impostos directos, os quais terão de ser proporcionais, taxados segundo uma percentagem fixa e universal, com o repúdio de todo o processo de fisco, como o da taxa progressiva, contrário à equidade e à prosperidade republicanas.

Comentário: 

A preferência exclusiva dada neste preceito aos impostos indirectos será, decerto, objecto da crítica daqueles que consideram que, incidindo eles sobre os produtos de consumo, incidem sobre aquilo de que há carência e sobrecarregam, dirão esses críticos, as populações mais pobres, ao passo que os impostos directos, incidindo sobre os rendimentos, incidem sobre o que se supõe ser lucro ou ganho e sobrecarregam os mais ricos. Embora frequente, trata-se de uma crítica superficial e, senão hipócrita, ilusória, pois é certo, inevitável e inegável que qualquer imposto sobre os rendimentos se traduz sempre no custo e preço dos produtos de consumo. Os impostos indirectos têm ainda a virtude republicana de a todo o momento levarem todos os cidadãos a observar o andamento da administração pública e a avaliar e julgar imediatamente a qualidade dos governantes. Será esta, sem dúvida, a razão oculta, mas decisiva, das críticas amontoadas sobre os impostos indirectos.

Quanto ao repúdio do imposto progressivo, exprime ele o abandono das «mitologias» economistas que o predomínio das ideologias totalitárias fez divulgar durante o último século em prejuízo da veracidade científica, da prosperidade do indivíduo e da liberdade dos povos. O que a ciência sempre denunciou na taxa progressiva está hoje, mais do que nunca, verificado na prática: apresentada como instrumento para a justa distribuição da riqueza, apenas contribuiu para diminuir o rendimento tanto dos mais ricos como dos mais pobres; apresentada como instrumento de prosperidade, apenas fez diminuir a produção da riqueza geral; apresentada como meio de obtenção das enormes receitas necessárias às exorbitantes despesas governamentais que ela provoca, o total da tributação progressiva é igual ao total da tributação proporcional (no país de mais matéria colectável, os EUA, a tributação progressiva sobre a renda, estabelecida entre os 20% e os 30%, reúne uma receita cujo total é o mesmo de uma tributação proporcional fixada em 23,5%). O único efeito que os impostos progressivos efectivamente obtêm é o de conduzirem à estatização da economia e à destruição das categorias económicas, em especial a propriedade.

Quinto preceito: 

Os impostos são pagos sem se destinarem, expressamente, a qualquer finalidade específica dentro da generalidade das receitas anuais necessárias à administração da República. A não ser em caso de guerra e catástrofe natural ou social, o Governo não pode, portanto, obrigar os Portugueses ao pagamento de qualquer taxa destinada a fins específicos nem, implicitamente, a inscreverem-se em qualquer organização ou instituição, seja ela de assistência, previdência ou segurança.

Sexto preceito: 

Como a «coisa pública» se reparte por dois sectores – aquele que reúne os bens de que imediatamente pode usufruir toda a população e aquele que reúne os bens de que imediatamente só podem usufruir parcelas da população – o primeiro será administrado pelo Governo da República, o segundo pelos Governos regionais ou municipais.

Sétimo preceito: 

A moeda obedece ao padrão-ouro, que a história e a ciência demonstram ser «o melhor dos sistemas monetários possíveis», e a sua emissão, sem ser um exclusivo do Governo da República, pode ser feita por qualquer entidade pública ou particular.

DO ESTADO 


Primeiro preceito: 

A Nação, a Pátria e a República carecem de um poder real destinado a defender a sua perduração e a assegurar, por um lado, a positividade daquilo que, segundo a definição dos Princípios, a cada uma delas é próprio e, por outro lado, à realização das determinações institucionais ou legais pelas quais elas adquirem aquela positividade. Esse poder é o Estado.

Segundo preceito:

O poder do Estado exerce-se na efectivação do Direito. Para isso, o Estado organiza-se, primeiro, a si próprio e, depois, articula as suas instituições com as da Nação, as da Pátria e as da República no sentido de assegurar a fidelidade aos princípios universais do Direito: a verdade, a liberdade e a justiça.

Comentário: 

Ao contrário dos preceitos constitucionais da Pátria – cuja natureza reside na recusa ou negação de tudo o que, institucionalizando-se, limita o que não pode ter limites – os preceitos constitucionais do Estado, cuja natureza reside na sua organização, são marcados pela total positividade e exprimem-se em termos que imediatamente definem as respectivas instituições.

Terceiro preceito: 

São órgãos do Estado: a Chefia do Estado, os Tribunais, as Forças Armadas e o Ensino.

Quarto preceito: 

Os Tribunais, as Forças Armadas e o Ensino são hierarquizados com autonomia até à Chefia do Estado. Cada um deles é presidido por um Conselho Supremo.

Comentário: 

Pela natureza dos seus objectivos, a organização dos Tribunais é sempre referida à soberania da Justiça, a das Forças Armadas à permanência da ordem e a do ensino à perenidade do saber. Todas elas são, por conseguinte, insubordináveis à mutabilidade própria dos pensamentos individuais, que actualizam a Pátria, da natural sucessão das gerações, que formam a substância da Nação, e das inumeráveis combinações de interesses, que são o conteúdo da República, e todas terão uma independência análoga à que, entre nós, só tem sido atribuída às Forças Armadas.

Quinto preceito: 

O Conselho Supremo da Magistratura, presidindo à organização dos Tribunais, terá as seguintes atribuições:

1. Colaborar na expressão jurídica das leis;

2. Definir a unicidade do corpo judicial e assegurar a formação teórica, prática e ética dos seus membros;

3. Definir as condições necessárias à independência dos Tribunais, à obrigatoriedade e prevalência das suas decisões, à inamovibilidade e irresponsabilidade dos juízes, bem como as funções e atribuições do Ministério Público e as categorias e especificações dos Tribunais;

4. Definir as condições necessárias à efectivação do Direito no domínio da particularidade dos interesses e da singularidade dos indivíduos.

Comentário: 

Implica a alínea 4 deste preceito uma legislação que reconheça as realidades que transcendem o poder do Estado, como seja a vida humana e os valores éticos. A soberania da Justiça não pode exercer-se num Estado onde permaneçam incompatibilidades entre a efectivação do Direito e as realidades que o transcendem. Nisso se fundamenta a abolição da pena de morte e a abolição da escravidão e nisso se fundamentará a confiscação de bens sempre que a posse deles seja inconciliável com a acção exercida pelos que a detêm, pelos que, por exemplo, preconizam a abolição da propriedade e assim se apresentam como exemplo actuante do aviltamento ético, moral e psíquico que resulta de se «servir a dois senhores» e se beneficiar da prática de duas doutrinas entre si opostas.



Torre de Belém


Sexto preceito: 

O Conselho Supremo das Forças Armadas, presidindo à organização das Forças Armadas, define as condições necessárias à sua existência, actualização e operacionalidade.

Sétimo preceito: 

O Conselho Supremo do ensino tem as seguintes atribuições:

1. No plano administrativo, efectivar o estabelecimento, a cargo do Estado, das escolas necessárias à aprendizagem dos Portugueses quando o conjunto das escolas particulares não seja, qualitativa ou quantitativamente, suficiente e assegurar, mediante empréstimos aos estudantes, a possibilidade financeira de todos os graus de ensino;

2. No plano jurídico, confirmar ou recusar a validade do ensino de cada escola e estabelecer as respectivas equivalências para efeitos profissionais;

3. No plano didáctico, definir os graus da escolaridade, desde o primário ao superior, e assegurar o carácter científico do ensino impedindo qualquer sujeição dele a directrizes, interesses ou fins alheios à ciência.

Oitavo preceito: 

Os órgãos do Estado preencherão, mediante delegados, um Ministério no Governo da República destinado a assegurar a obtenção e administração das receitas necessárias ao Estado.

Nono preceito: 

A Chefia do Estado é composta pelo Chefe do Estado e pelo Senado.

Décimo preceito: 

O Chefe do Estado é eleito ou confirmado, de sete em sete anos, pelo Senado.

Décimo primeiro preceito: 

Responsável individual da integridade e perduração de Portugal, o Chefe do Estado disporá das capacidades inerentes a tal responsabilidade as quais exercerá como decisões individuais: promulgar as Leis, comutar penas e confirmar sentenças judiciais, consultar o Senado, assumir a presidência dos Conselhos Supremos, declarar o estado de sítio ou de guerra com a concordância do Senado, assumir o comando das Forças Armadas, empossar o Governo da República e reconhecer os deputados eleitos para a Assembleia da República, vetar qualquer acto administrativo, representar Portugal perante as outras nações.

Décimo segundo preceito: 

O Chefe do Estado é responsável perante a Nação, a Pátria e a República, representadas pelo Senado, que poderá consultar para todas as suas decisões.

Décimo terceiro preceito: 

O Senado é composto de 70 portugueses com mais de 45 anos de idade e de provadas faculdades intelectuais para exprimirem o saber da Nação, da Pátria, da República e do Estado, os quais serão escolhidos, à medida que se dêem vagas por renúncia ou morte, pelo próprio Senado.






Décimo quarto preceito: 

São atribuições do Senado: elaborar as Leis, apreciar a constitucionalidade dos actos da administração da República e dos Conselhos Supremos, ouvir o Chefe do Estado e fazer-se ouvir por ele, além das já indicadas nos anteriores preceitos: eleger ou confirmar o Chefe do Estado e representar, perante ele, a Nação, a Pátria e a República.

Comentário: 

Assim como a Assembleia da República e os governos da República são o elemento democrático na organização do Estado, assim o Chefe do Estado é o elemento monárquico e o Senado o elemento aristocrático.

Nos Estados modernos, há sempre uma mistura indefinida, mas inegável, de democracia, monarquia e aristocracia. Neste momento, por exemplo, regidos por uma Constituição Política de carácter socialista, os portugueses têm a democracia na votação do Presidente da República e dos deputados, têm a monarquia nos poderes atribuídos ao Presidente da República e têm a aristocracia nos grupos que dirigem os partidos políticos e escolhem os deputados e até o Presidente da República que fazem votar pelo povo. Pode facilmente verificar-se que, apresentando-se como exclusivamente democrático, este regime dá muito maior predomínio à monarquia presidencial e à aristocracia partidária do que à democracia: enquanto a monarquia presidencial tem assegurado o exercício dos seus poderes por um período de cinco anos e a aristocracia partidária por um período ilimitado, o povo só exerce a democracia em dois domingos de quatro em quatro anos. Este desequilíbrio resulta do facto de não se querer reconhecer a existência real e institucional da monarquia e da aristocracia e tem ele ainda outras mais nefastas consequências. Com efeito, ignorando-se como monarca, o Presidente da República, além de agir apenas como Chefe da República e não como Chefe do Estado nem responsável perante a Nação e a Pátria, procede na estrita obediência à Constituição escrita não assumindo a representação individual, mais pensada, vivida e tácita do que escrita, daquilo que constitui Portugal. Por sua vez, a aristocracia partidária, ignorando-se e negando-se como aristocracia, faz depender a sua acção da preparação dos próximos resultados eleitorais, e não da razão em acordo com a verdade, e desvirtua-se numa oligarquia partidocrática; e como, nas relações mundiais hoje existentes, os partidos se aglomeram em grupos internacionais definidos por uma doutrina comum que tem de ser apenas republicana, a razão e a verdade de cada Nação, cada Pátria e cada Estado, que são a substância das aristocracias, vêem-se substituídas por estatutos ideológicos sem raízes nem fins em nenhum povo e dos quais os chefes e organizações partidárias são apenas os agentes e executantes locais.



III – AS LEIS 



1. Os Princípios e os Preceitos da Constituição são perpétuos e inalteráveis, insusceptíveis de revisão, pois, de outro modo, não seriam constitucionais, isto é, não seriam a expressão política da realidade, necessariamente perpétua e inalterável, que constitui Portugal. Os Princípios e Preceitos prevêem e determinam instituições e organismos que são a mesma expressão da sua positividade e cuja existência também é, por conseguinte, perpétua e inalterável. A definição dessas instituições e organismos em suas atribuições, regulamentos e composição, é matéria de Leis a elaborar pelo Senado na forma de Estatutos. Os Estatutos são susceptíveis de revisão ao fim de cada período de sete anos e têm por objecto:


A cidadania ou nacionalidade; 
A família;
A autoria; 
A comunicação social; 
As categorias económicas; 
O Governo da República; 
A Assembleia da República; 
Os Governos regionais e municipais; 
A organização das Forças Armadas; 
A organização do Ensino; 
A organização dos Tribunais. 





2. As instituições necessárias à positividade da Constituição, mas não previstas e determinadas em seus Princípios e Preceitos por não possuírem um carácter perpétuo e inalterável, bem como todas as determinações que, sem previsível efemeridade, possam abranger os interesses gerais dos portugueses, são definidos por Leis. As Leis, susceptíveis de revisão de sete em sete anos, são elaboradas pelo Senado por iniciativa própria, por recomendação do Chefe do Estado, por proposta dos Conselhos Supremos dos Tribunais, das Forças Armadas ou do Ensino, por requerimento do Governo e Assembleia da República ou por solicitação dos cidadãos.

3. As deliberações da Assembleia da República e as decisões do Governo da República, bem como as determinações dos Conselhos Supremos, que têm sempre por objecto a aplicação dos Princípios e Preceitos constitucionais à contingência dos interesses e a sua adunação às singularidades, circunstâncias e progressos do tempo, são expressas por decretos ou disposições jurídicas sem duração definida, pois carecem de revisão ou naturalmente cessam logo que se altere aquela contingência ou transitem as singularidades, circunstâncias e progressos que lhes deram origem.


Autopsicografia

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Escrito por Fernando Pessoa




O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Cancioneiro






Esta imagem

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Escrito por Henrique Veiga de Macedo




Tem vida esta imagem piedosa e bela.
Vê e fala, chora e sorri, pensa e sente.
Olha para mim tão carinhosamente,
que eu nunca me canso de olhar para ela.

Conversamos muito - conversa singela.
Eu nada lhe escondo: é mãe e confidente.
Nela se extasia a minha alma de crente;
meus passos a seguem: ela é luz de estrela.

Ao colo, a Senhora aconchega o Menino
- aquele que disse, e diz, nosso destino.
Na mão, o Menino o mundo todo tem.

Fitando a Senhora, um dia adormeci;
e quando acordei, maravilhado, vi
Jesus entregando o mundo a sua Mãe!


São Paulo, 12 de dezembro de 1980 








(in Henrique Veiga de Macedo, Ponto de Encontro, Edição do Autor, 1987).


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