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Quem corre a Belém

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Entrevista a Orlando Vitorino










«(...) Nalguns (...) lugares tenho coincidido com o Agostinho da Silva, com o desgosto de verificar que está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás não tem importância, porque o que importa é a Sabedoria (e isso o povo português tem-na com seus mitos e crenças) e a matemática ou pragmática!

Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a graça do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do momento, com o socialismo, com o terceiromundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc. É muito esquisito mas não me arrependo de lhe ter dedicado o livro [Portugal, Razão e Mistério, II], pois tenho que ser justo: foi ele que me inspirou o seu tema central, além de que há nele um fogo na oratória, que leva muita gente nova para fora dos enquadramentos positivistas ou comunistas, abrindo-lhes portas.

No entanto, não o sigo, longe disso, pois sou acima de tudo discípulo de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, estando pois do lado das suas teses e procurando defendê-las e expandi-las...».

António Quadros para António Telmo (Carta XXI, de 8/7/1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos Complementares).


«(...) Quanto ao Agostinho da Silva, não constitui surpresa para mim o que me diz sobre ele. Desempenha perfeitamente o papel de décimo terceiro discípulo de Leonardo Coimbra. No Brasil privei com ele diariamente durante três anos. O Álvaro Ribeiro andava a dizer nos últimos meses da sua vida que Agostinho da Silva era o maior da sua geração. E acrescentava: "Que pena ter desperdiçado esse valor e não ter realizado a obra de que era capaz". Ele sim, Álvaro Ribeiro merece o secreto nome de terceiro discípulo. Os Dispersos, reunidos por Pinharanda, como a si pressinto, tocam-me divinamente. Ao lê-los antevejo, vejo, sinto o que é a presença de Shekina ou Espírito Santo. Se o Espírito sopra onde quer, não é, no entanto, legítimo justificar tudo, como o Soares e o Saramago e o terceiro mundismo e o mais que houver com a ideia da Nova Idade; se o mesmo sopro impele todas as velas que vogam no oceano é porque, hoje, todas elas levam a Cruz da Ordem de Cristo, mas há as correntes de sentido contrário que revolvem águas turvas e retardam o movimento para a Índia.

No Jornal de Letras, se não estou em erro, Agostinho da Silva deu uma entrevista em que considera os jornalistas superiores de longe (sic) aos filósofos. Ou ele nunca leu Leonardo, Bruno, Marinho, Álvaro ou, se os leu, o seu maçonismo de contágio veda-lhe saber o que é uma verdadeira manifestação do Espírito. "A pedra que se põe de lado" não é a pior pedra mas a melhor. Quem tem sido posto de parte pelos constructores do socialismo é Álvaro Ribeiro. A interpretação que Agostinho faz do Quarto Evangelho, análoga à alemã do Fausto, pondo no princípio, não o verbo ou o pensamento, mas a acção, (...) pertence já ao passado».

António Telmo para António Quadros (Carta XXII, de 28 de Junho de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos Complementares).



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«Reivindicando, acusando, responsabilizando outros, os países do terceiro mundo atribuem-se a si próprios um estatuto de nações privilegiadas no âmbito internacional. No quadro desse estatuto, elaboram um conjunto de noções ideológicas novas, ou apresentadas como tais, de que ficam isentos mas a que os demais deverão subordinar-se; e aproveitam-se dos princípios ocidentais contra o Ocidente, ao mesmo tempo que se consideram dispensados de os respeitar. Mais do que quaisquer outros, os países do terceiro mundo invocam a cada instante a democracia, a liberdade individual, a paz, a não interferência nos negócios internos de outros países; mas nenhuns praticam uma mais sistemática e completa denegação daqueles conceitos. Agem e pronunciam-se e exigem em nome dos "direitos justos" dos governos e das "aspirações legítimas" dos seus povos; mas apenas o seu critério exclusivo constitui a fonte dessa justiça e a bitola dessa legitimidade; e em qualquer caso é vedado ao Ocidente participar na definição de uma e de outra. Mais: a legitimidade passou a ser uma noção inerente ao terceiro mundo e sobrepõe-se e anula uma qualquer legitimidade que, com fundamentos idênticos, acaso seja invocada pelos ocidentais. O terceiro mundo pode basear uma reivindicação nos desejos de uma maioria, e neste ponto está utilizando contra o Ocidente um princípio deste; mas se o Ocidente se opuser àquela reivindicação com fundamento nos desejos de uma maioria mais ampla, a posição ocidental passa a ser ilegítima, e isto porque a legitimidade definida pelo terceiro mundo é privilegiada e ocupa um lugar hierarquicamente superior. De resto, o terceiro mundo arroga-se a mesma posição privilegiada perante e contra o mundo socialista, e o fenómeno só não é tão evidente porque, por demagogia e por oportunismo político, os países socialistas raramente se opõem às reivindicações do terceiro mundo, aliás quase sempre todas dirigidas contra o Ocidente e a ser satisfeitas por este.

Mas tudo isto leva-nos a uma outra conclusão, e que é a seguinte: os países do terceiro mundo propõem-se redefinir as bases da comunidade internacional. Já foi sustentado que as ordens jurídicas internas e toda a ordem jurídica internacional são nulas, e tem de ser havidas por caducas, porque na sua formulação participaram países que são acusados de haver praticado colonialismo. Estamos portanto em face de um ânimo revolucionário com propósitos revisionistas. Revolução e revisionismo que, no plano mundial, abrangem todos os domínios: a economia, a distribuição das matérias-primas, os sistemas legais e de educação, o comércio entre nações, as instituições políticas, e até as fronteiras nacionais. Todavia, neste ponto interpõe-se uma verificação de importância decisiva: o terceiro mundo, por si, não tem meios de realizar aquela revolução e aquele revisionismo. Quer isto dizer que o terceiro mundo não possui os meios da sua política. Esta, na sua execução, depende da vontade e dos recursos de outros países. Em face do problema do desarmamento, ou do da energia nuclear, ou do das experiências atómicas, ou do comércio mundial, o terceiro mundo assume sempre uma posição reclamativa ou condenatória muito nítida: mas essa posição é perfeitamente irrelevante e em nada influenciará o curso dos acontecimentos: estes serão o que as grandes potências militares e económicas quiserem que sejam: e sem apoio destas não é viável a revolução nem o revisionismo de proporções mundiais ou mesmo de âmbito regional.

Enquadrado pelos grandes pólos de força, o terceiro mundo tenta, sem embargo, conduzir entre aqueles um jogo que lhe permita não se enfeudar a qualquer e auferir de ambos todas as possíveis vantagens. Dá o facto origem a uma das características que o terceiro mundo mais preza: o seu neutralismo ou não-alinhamento. Este neutralismo nada tem que ver com a neutralidade clássica à maneira suíça: esta consiste fundamentalmente numa recusa em favorecer ou apoiar qualquer política nacional de outros estados procurando obter em troca o respeito de todos. Mas o neutralismo do terceiro mundo consiste na faculdade, que se arroga, de apoiar sucessiva e alternadamente um ou outro dos grandes blocos de força mundiais consoante o que, em cada momento, for julgado mais favorável aos interesses do terceiro mundo. Se a neutralidade suíça acaso favorecer um partido contra o outro, o partido desfavorecido sentir-se-ia autorizado a protestar e, eventualmente, a desrespeitar o estatuto do neutro; mas o neutralismo do terceiro mundo permite a este agir com inteira liberdade, e perante o favor que concede a um bloco não se julga o bloco contrário autorizado a protestar e sente-se politicamente compelido a dar mais, a oferecer mais ao terceiro mundo a fim de, por seu turno, também obter deste um outro qualquer favor. Deverá notar-se, por outro lado, que no plano prático o neutralismo tende a apoiar o bloco socialista, e que no plano ideológico o terceiro mundo, que surgiu em nome da democracia e é produto dos ideais e valores ocidentais, alinha na realidade com o bloco socialista».

Franco Nogueira («Terceiro Mundo»).




Os países "não-alinhados" na Conferência de Bandung (Indonésia, 1947).



Jawaharlal Nehru na Praça Vermelha em Moscovo (Junho de 1955).



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«Os portugueses já têm todos os elementos para não se deixarem iludir. O nó do problema é a propriedade. O nó do problema, o gatilho da pistola, o que une e o que divide as forças que neste momento e nestes últimos decénios, em Portugal e no mundo, disputam o poder político. Do que se trata, tudo de que se trata, é de decidir entre o reconhecimento da propriedade e a abolição da propriedade.

Socialismo e capitalismo, colectivização, estatização, nacionalização, socialização, autogestão, cooperativismo, iniciativa privada, empresa privada, etc., tudo isso são palavras que, em si mesmas, pouco ou nenhum sentido têm e que, verdadeiramente, só designam uma de duas coisas: ou se quer continuar a reconhecer a propriedade ou se quer a abolição da propriedade.

De um lado e do outro há, todavia, má consciência. Má consciência que se revela no receio de empregar a palavra propriedade. Os que, de um lado, querem que se reconheça a propriedade, receando-se esmagados pelo socialismo triunfalista que não sabem refutar, substituem a palavra certa por eufemismos como "iniciativa privada". Os que, do outro lado, querem abolir a propriedade, vendo-se incapazes de pensar essa abolição em todas as suas consequências, substituem a palavra certa por outros eufemismos: colectivização, estatização, etc. No meio ficam os ainda mais hesitantes e impotentes, misturando, em suas estreitas cabeças, todo o género de combinações inviáveis na esperança de conciliarem a existência "reaccionária" da propriedade com a abolição "progressista" da propriedade: são os que, sempre sem dizerem a palavra própria, falam de socialismo que ainda não é comunismo e se entontecem a fazer Institutos António Sérgio para explicarem a si mesmos o que sejam coisas como colectivização, cooperativismo, autogestão, etc.

Com tantos e tais receios, com tantas e tais combinações vazias, com tantas e tais palavras sem sentido, nunca mais nos entendemos. Deixem-se, pois, de recorrer a palavras que pouco ou nada significam, deixem-se de utilizar eufemismos enganadores e hipócritas, deixem-se de ser gente que não sabe o que diz e quer dizer o que não sabe. Encarem a realidade de frente, encarem-se a vós mesmos de frente e empreguem as palavras próprias. Não tenham medo de dizer que tudo consiste em ser a favor ou contra a propriedade.








(...) A abolição da propriedade é o que sempre definiu o antiquíssimo comunismo. Poderão os comunistas falar de meios de produção, de lutas de classes, de proletariado escravizado, de burgueses e de mais-valia. Poderão até recorrer a metáforas de origem homossexual como a da "exploração do homem pelo homem". Do que exclusivamente se trata é de abolir a propriedade. Abolida a propriedade, o comunismo atinge a única finalidade que lhe é própria, e que é também, simultaneamente, o seu ponto de partida. Ponto de partida para quê, para onde, ninguém sabe. O seu patrono moderno, Karl Marx, encolerizava-se quando lhe perguntavam o que se iria fazer depois de abolida a propriedade. Não sabia. Encolerizava-se e respondia: "Eu não faço receitas de cozinha".

É fácil organizar o combate pela abolição da propriedade. Ao longo da história, muitas vezes o combate se travou e muitas vezes, até, saiu vitorioso: na Esparta de Licurgo, na Morávia dos anabaptistas, no Paraguai dos Jesuítas, na Rússia dos bolchevistas... Mas, abolida a propriedade, os homens continuam a estar no mundo; continua a haver, de um lado, os homens e, de outro lado, as coisas de que é feito o mundo. Os homens não podem viver sem o mundo e a existência no mundo é uma existência de relação com as coisas. A propriedade é, precisamente, esta relação. Abolida a propriedade, que acontece? Deixa de haver mundo e as coisas que compõem o mundo? Impossível. Deixa de haver homens? Impossível. Passam os homens a viver separados do mundo? Não podem. Qual a receita que Marx se recusava a fazer? A única que os diversos cozinheiros conseguiram fazer - e a única que os comunistas, antes e depois de Marx conseguiram fazer - foi a de passarem para o Estado a posse (com a qual confundem a propriedade) das coisas. Ora o próprio Marx já havia prevenido que essa não era solução, e claramente afirmou que transferir a propriedade para o Estado seria um mal pior do que manter a propriedade nos indivíduos. Com efeito, os resultados de estatização sempre estiveram longe de ser risonhos: massacre de milhões de homens, escravidão generalizada e até instituída, etc. E se não se pode dizer que, em rigor, tenham sido uma "estatização da propriedade" todos os diversos regimes comunistas que houve ao longo da história - alguns deles bem mais duradouros do que os marxistas actuais - também de nenhum deles se pode dizer que foi risonho: o dos espartanos foi a vergonha do "milagre grego"; o dos anabaptistas evanesceu-se no caos; o de Munster evanesceu-se na sangueira; o do Paraguai, levou, em duzentos anos, um povo à idiotia...

Ainda temos, todavia, de admitir que o comunismo não seja necessariamente um absurdo? Mas como, então, resolver? Como "receitar"? Como "cozinhar" as relações entre os homens e o mundo, uma vez abolida a propriedade?».

Orlando Vitorino («Manual de Teoria Política Aplicada»).





Quem corre a Belém


«O patriotismo está hoje reduzido aos jogos de futebol que são jogados por onze mercenários», observação amarga de Orlando Vitorino, candidato às próximas eleições presidenciais, que acredita que «a Pátria é uma entidade espiritual» e orienta a sua campanha em obediência ao preceito do grande republicano Sampaio Bruno: «Guerra às ideias, paz aos homens».

Nascido em 1922, casado, pai de dois filhos, funcionário superior da Fundação Gulbenkian, Orlando Vitorinoé licenciado em Filosofia, «mas discípulo de José Marinho e Álvaro Ribeiro»; autor de livros como «Exaltação da Filosofia Derrotada», «Refutação da Filosofia Triunfante», «A Fenomenologia do Mal», «A Idade do Corpo», «Introdução à Filosofia do Direito de Hegel», «Filosofia, Religião e Ciência» e «Tongatabu» (teatro) entre outros; realizador de cinema, autor do filme «Nem Amantes nem Amigos» (Prémio Nacional de Cinema e medalha do Festival de Berlim); participante em diversos congressos internacionais de Economia, de Filosofia e de Teatro; fundador e director de revistas como «Acto», «57», «Teoremas do Teatro» e «Escola Formal», primeiro teorizador português do neoliberalismo.

Perante a «baixa política» que é a única que existe hoje entre nós, e que tem «como modelo a linguagem e a terminologia do comunismo», Orlando Vitorino afirma-se como não político, com outra terminologia e outra linguagem: «Falo da Pátria, falo do espírito, falo mais do direito de ensinar do que do direito de aprender».


Orlando Vitorino apresenta outra linguagem 


Um dos pontos fortes da candidatura de Orlando Vitorino reside, sem dúvida, nas suas propostas para a economia. No livro que está na origem da candidatura, a parte dedicada à economia é a mais desenvolvida e parece ter surpreendido críticos como António Quadros e Pinharanda Gomes que não esperavam, de um escritor tão mergulhado como ele nos domínios da filosofia e da estética, uma sistematização tão completa e original do neoliberalismo. Parece também, o que é mais singular, ter impressionado fortemente «um homem que é um triunfador da economia prática», António Champalimaud, o qual, numa entrevista onde considerou que «todos os actuais candidatos presidenciais são um zero», salvaguardou Orlando Vitorino, «a quem dou vinte valores em economia» e, numa sessão no Clube dos Empresários, declarou que a condição que põe para intervir na administração da economia nacional «é a de para isso ser convidado por um Presidente da República que seja Orlando Vitorino».

«Observem – diz-nos Orlando Vitorino – que os nossos economistas, professores e políticos como o Sr. Cavaco Silva, o Sr. Jacinto Nunes e outros, são apenas contabilistas, não teorizadores da economia. Não possuem um sistema nem uma teoria, e todos eles recorrem, muitas vezes sem consciência disso, ao sistema keynesiano, que é um sistema socialista. Todos os contabilistas de serviço à política foram “formados” nas escolas universitárias que, entre nós, há muito adoptaram o keynesianismo. Eu descrevo e demonstro tudo isso no livro “Exaltação da Filosofia Derrotada”. A primeira vez que, em Portugal, o neoliberalismo se contrapôs ao keynesianismo foi no movimento que me coube a mim iniciar, ainda com apoio de Álvaro Ribeiro, o qual, prolongando na política a «filosofia portuguesa», se centralizou na revista “Escola Formal”, publicada em 1977 e 1978. Hoje, sete ou oito anos passados, pululam neoliberais por todas as áreas da “classe política”, desde os partidos e semanários lisboetas até à Universidade Católica e à CIP. Mas Trata-se, manifestamente, de um neoliberalismo superficial, aprendido à pressa em livros de divulgação, ditado pelo mais vulgar oportunismo e concebido dentro de quadros mentais socialistas».


Aludiu Orlando Vitorino a vários casos de neoliberais oportunistas. Os da CIP, por exemplo, «onde se reúnem industriais que procuram contabilizar entre os seus lucros os subsídios do Estado socialista». «Mas o caso mais patente – acrescenta – é o da recente campanha eleitoral do CDS. O seu oportunismo rebentava por todas as costuras e não convencia ninguém. Os quadros mentais socialistas que lhe eram subjacentes revelavam-se em expressões como o elogio do regime marxista moçambicano»


Direito de propriedade 


Mais adiante, O. Vitorino esclarece: 

«O princípio de todo o liberalismo é o direito de propriedade, tal como o princípio de todo o socialismo é a abolição da propriedade. Ora, ninguém vê esses liberais por oportunismo definir e defender o direito de propriedade. Sabem porquê? Porque os teorizadores estrangeiros do neoliberalismo ainda não foram além da categoria do mercado, estabelecida por Adam Smith, e da categoria do dinheiro, estabelecida por Von Mises. Só a Filosofia Portuguesa teorizou a categoria da propriedade. Desculpem-me repetir que tudo isso está exposto no meu livro a que já me referi».

E acrescenta: 

«O liberalismo não é apenas uma teoria da economia. É o sistema da liberdade. É um sistema integral que abrange a ordenação política, a ética, a cultura e o ensino. Se se estabelecesse um regime económico liberal e se se conservasse a marxização do ensino, bastariam quatro ou cinco anos para que aquele regime desaparecesse e se restabelecesse a economia socialista».

Por um momento, julgámos que os assuntos a tratar seriam o ensino, a cultura, a ética, domínios nos quais a candidatura de Orlando Vitorino apresenta propostas revolucionárias ou radicais, como a extinção da Universidade (proposta que se acompanha de um projecto de organização geral do ensino) ou o repúdio de todo o proteccionismo estatal à cultura. Cita a observação decepcionada de um chefe socialista francês: «O artista que nos vem pedir um subsídio, traz nas mãos um requerimento e nos bolsos uma granada». Cita a subtil recomendação de Degas: «É preciso desencorajar as artes». Mas já, de novo, parece aborrecer-se em falar da extinção da Universidade. Justifica-se:

Extinção da Universidade


«Temos apresentado e repetido – em folhetos, em artigos, em conferências e em livros – todos os argumentos que concluem pela necessidade de extinguir a Universidade. No entanto, desde o magnífico reitor da Universidade de Coimbra até ao caloiro da Faculdade de Direito, ou os seus aflitos pais, todos nos pedem a explicação dessa proposta. Estou cansado de a repetir, em todos os casos, acabar por obter a concordância de quem a pede. A explicação é simples: a Universidade, estatizada há dois séculos e marxizada há uns quarenta anos, condiciona e determina toda a organização do ensino (que, como se sabe, é caótica) e é insusceptível de reforma. É preciso extingui-la para criarmos, em vez dela, escolas privadas de ensino superior».

Como lhe observássemos que já existem entre nós escolas privadas de ensino superior – a Universidade Livre e a Universidade Católica –, Orlando Vitorino esclarece: 

«Essas universidades só administrativamente são privadas. O seu ensino, a sua didáctica, os seus métodos, os seus cursos, até os seus professores, são os mesmos da Universidade do estado que lhes serve de modelo, modelo imposto como condição para que os respectivos cursos sejam reconhecidos pelo Ministério da Educação, todo ele infiltrado de comunistas nos lugares-chave».





«Legislativas acentuam estagnação» 


Para voltarmos à política, à simples política, ao que a política é para toda a gente, falamos das últimas eleições legislativas. Que pensa Orlando Vitorino dos seus resultados, que surpreenderam tanta gente? 

«A situação, melhor, a estagnação, mantém-se inalterável. A estagnação é o socialismo».

Então nenhum sentido terão as propostas liberalizantes do partido mais votado? Nenhum sentido terá o aparecimento triunfal de um novo partido? Orlando Vitorino desenvolve a sua afirmação: 

«As liberalizações anunciadas são apenas um recurso débil para remediar a falência do socialismo. Limitam-se a um ou outro sector da economia. Trata-se de um fenómeno que se dá em todos os países que o domínio do socialismo levou à ruína ou, segundo o eufemismo corrente, à crise. Mas o sistema mantém-se inalterável. Até, em certo sentido, mais asfixiante, pois concentra a socialização na cultura, no controlo da informação, na marxização do ensino e, sobretudo, no repúdio da transcendência ou, se quiser, do pensamento. O novo partido de que falam só veio dar mais força a este sistema. Porque os outros partidos ainda se submetem a um mínimo de pensamento doutrinário, apresentado embora na forma de ideologia. O novo partido nem isso apresenta já. Basta-lhe afirmar-se «competente e honesto» sem dar desses atributos quaisquer provas. Tudo se passa como se o sistema – que é socialista – estivesse definitivamente instalado e fosse indiscutível. No tempo de Salazar dizia-se: «Não discutimos Deus, a Pátria e a Família”. Hoje, diz-se: “Não discutimos o socialismo”. Ora, só se não discute o que é morto».

Agora sim. Agora, o nosso entrevistado fala do que lhe é mais próprio, do que se não cansa de repetir. O seu saber é um saber que exige a todo o momento a «originalidade» do pensamento. Muito do que nos diz é intraduzível em linguagem jornalística (como conseguirá ele fazer-se entender pela maioria dos eleitores?). Mas registamos trechos como este: 

«Toda a existência do homem, seja a individual, seja a familiar, seja a social, está penetrada de pensamento. É esta a primeira tese da filosofia portuguesa, demonstrada por Leonardo Coimbra: “Toda a realidade está penetrada de pensamento”. O que significa a presença da transcendência. Numa polémica que, há uns anos, os católicos progressistas tiveram com o marxista Althusser, deu-lhes este uma lição ao afirmar-lhes, depois de eles terem concordado com a generalidade das suas teses sociológicas, que toda essa concordância seria vã se eles continuassem a admitir, mínima embora, alguma presença da transcendência, isto é, se continuassem a acreditar em Deus.

A grandeza do homem não está em negar aquilo de que, a todo o momento, depende. Não está em afirmar-se orgulhosamente só. Está em participar nisso de que assim depende. Dêem-lhe o nome de Divindade. Foi ela que criou o ser de tudo o que é, e ao homem cumpre criar a existência de todo o ser que é».


«Patriotismo reduzido ao futebol» 


E deste trecho que registámos, transita para outro. Começa por uma observação de amarga ironia: «O patriotismo está hoje reduzido aos jogos de futebol que são jogados por onze mercenários». E acrescenta: 

«A Pátria é uma entidade espiritual. O salazarismo, durante 50 anos, confundiu a Pátria com a Nação que é uma realidade de natureza, o conjunto dos que nascem portugueses. O actual socialismo não fala já da Pátria (a palavra Pátria aparece uma única vez na Constituição política para designar o território) e supõe-a reduzida à República, que é o conjunto dos bens públicos acrescidos dos bens privados. O nome de Portugal – que Agostinho da Silva disse ser “um dos nomes de Deus” – foi substituído pela designação de este País.




Há a alta e a baixa política. Entre nós, hoje, só há a baixa política. É uma baixa política que tem por modelo a linguagem e a terminologia do comunismo (classes sociais, luta de classes, classes trabalhadoras, mistificação e desmistificação, etc.) e o comunismo é, como todos sabem, a única doutrina acessível a todos os estúpidos. Claro que, nesse sentido, não sou um político e a minha linguagem, como a minha terminologia, é outra. Falo da Pátria, falo do espírito, falo mais do direito de ensinar do que do direito de aprender, falo da liberdade sem a qual não há liberdades, etc. Claro que o eleitorado ou o leitorado dos semanários, da RTP, dos discursos políticos, começa por estranhar esta outra linguagem. Não sou, pois, naquele sentido, um político. Como Leonardo Coimbra o não era quando foi Ministro da Instrução e deu início à primeira tentativa de extinguir a Universidade, quando afirmou que “se para ser republicano será preciso não acreditar em Deus, eu não sou republicano”. Nem político era Álvaro Ribeiro quando doutrinou o movimento da Renovação Democrática e escreveu a sua teoria do ensino».


«Socialismo é um matriarcado» 


A certo momento, ele próprio se deixa levar para um assunto mais próximo. Quando diz: 

«O espírito não é acessível a todos. E aos que é acessível, é-o de modos diferentes. É aí que radica a distinção genérica entre o homem e a mulher. Álvaro Ribeiro tinha todas as razões para, na sua teoria do ensino, defender a separação dos sexos. Não se trata de razões morais ou semelhantes, como acontecia na escola salazarista. Trata-se do seguinte: a inteligência é diferente no homem e na mulher. Não é superior nem inferior. É diferente. A mulher entende de certa maneira, o homem de outra. Entende e aprende. O ensino tem, pois, de ser diferente. A dificuldade reside em…».

Suspensão longa, como se Orlando Vitorino receasse o que ia dizer. E ou não o disse ou venceu o receio e afirmou: 

«Muitas vezes me tenho interrogado: porque é que a Igreja Católica veda à mulher o sacerdócio? E porque veda, ao sacerdote, o casamento? E porque é que os movimentos progressistas (ou ateístas) querem a mulher sacerdotisa e o sacerdote casado? Tudo isto são interrogações que nos levam muito longe. E o que eu ia dizer é que a dificuldade, o obstáculo reside, também, aqui, no socialismo. O socialismo é um matriarcado. Envolve, absorve e destrói as singularidades pessoais na uniformidade colectiva, como um grande seio maternal, e rodeia essa absorção de cuidados em que o Estado se imagina como uma grande mãe, providencialista, bonificadora, a todos obrigando, como as mães aos filhos, a viver em segurança: segurança contra os riscos, e proíbe toda a iniciativa individual; segurança contra a velhice, e substitui a família natural pelos lares de terceira idade; segurança contra a falta de habitação, e encerra toda a gente em bairros sociais a tantos metros por cabeça; segurança contra a invalidez e a doença, e cria as instituições da chamada “segurança social”. Mas as coisas são o que são, e toda essa segurança maternalista redunda em pobreza e servidão para todos. Sobre isso, redunda na mais desesperante banalidade. Banalidade, servidão e pobreza são imagens dos países socializados. Mas o socialismo tem, também como as mulheres, a crueldade que foi simbolizada nas amazonas, nas Euménides, nas Medeias, nas fúrias infernais, e assiste indiferente ao cruel espectáculo da banalidade, da pobreza e da servidão a que sujeitou a sociedade dos homens».

Não vamos ainda entrar, mais terra a terra, nas propostas presidenciais da candidatura de Orlando Vitorino, uma das quais é, precisamente, a abolição da segurança social obrigatória e a sua substituição por um sistema privado de segurança facultativa. A conversa vai para além disso, quando o nosso entrevistado associa o matriarcado socialista ao pecado original. 

«Não só o pecado original, mas todo o pecado. O socialismo – que é ateu ou, como prefere dizer Mário Soares, agnóstico – forma do homem o conceito de um ser em que não há pecado. O que há é o mal, esse mesmo reduzido à malevolência e a malevolência explicada pelo conflito entre os ricos e pobres ou pela existência da propriedade. O mais grave, porém, é que uma grande corrente de católicos também perfilhou essa concepção do homem e, desde o “catolicismo progressista” à “teologia da libertação”, o pecado deu-se por abolido. Este erro tem consequências imediatas: a imagem do homem torna-se a imagem da inocência infantil, o que coincide com o carácter maternal do socialismo, e o infantilismo torna-se preponderante na existência social, nas culturas oficiais, na escolaridade e nas mentalidades. Para mais fortalecer o erro, a Igreja Católica recusou a entificação do mal, ou seja, negou a existência do Inferno e do Diabo. Neste círculo se formou o referido “catolicismo progressista” que constitui uma tentativa de apologética para o nosso tempo. Como se sabe, a apologética é a defesa da teologia, ou das verdades cristãs, contra os ataques que por crítica, heresia ou infidelidade, em cada época lhes são movidos. Na nossa época, o grande inimigo da teologia é o comunismo, que tem por substância a sociologia, falsa ciência que, como mostrava já em 1934 Leonardo Coimbra, conduz ao ateísmo.



A cultura portuguesa tem alguns dos seus princípios na apologética. Um dos seus primeiros livros de pensamento é o "Colírio”, de Álvaro Pais, famosa apologética contras as heresias medievais. E o livro «A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre», de Leonardo Coimbra, é a mais importante apologética contra o comunismo. Infelizmente, o magistério da Igreja Católica ainda não atendeu, como e quanto devia, a este livro admirável e único. É precisamente aí que Leonardo demonstra como a sociologia conduz ao ateísmo. Isso explica que grande parte dos “católicos progressistas” tenham acabado no comunismo ateísta. Há, entre nós, casos conhecidos e divulgados, até de padres: o do padre Alberto, da Capela do Rato, por exemplo.

Compreendem, de certo, que eu os traga por estes caminhos tão inabituais no jornalismo de hoje e na baixa política de hoje. Mas é por eles que se compreendem muitos fenómenos, até esses das candidaturas presidenciais e dos partidos políticos, que são emergências, de que quase sempre não têm consciência os protagonistas, de outras forças entre as quais se travam conflitos de pensamento. Admito, por exemplo, que a maior parte dos filiados nos partidos socialistas não têm a consciência de que o socialismo é um ateísmo».


Principal característica do nosso tempo 


Há uma peça de teatro de Orlando Vitorino cuja edição traz, na contracapa, excertos de crítica à sua representação. Uma dessas críticas observa que «as imagens e as ideias, as verdades e os sofismas se debatem em luxuriante caudal» sem darem, «em cena, um minuto para pensar». Parece-nos encontrarmo-nos, nesta entrevista, em situação semelhante à do crítico-espectador daquela peça de teatro. Orlando Vitorino faz suceder assunto a assunto, ideia a ideia, reunindo conceitos que não são apenas inabituais mas que são o oposto de todas as «ideias feitas» e «conceitos preconceituosos» que alimentam a opinião corrente e a opinião pública.

«Uma das principais, se não a principal característica do nosso tempo, é a abolição da culpa pessoal. Os actos dos indivíduos são atribuídos a razões e motivos não pessoais: as condições da sociedade, o conflito entre ricos e pobres, a educação, a família, o ensino, traumatismos, recalques e complexos psíquicos. Esta abolição da culpa pessoal projecta-se no Direito e na política. O socialismo é uma das consequências: abolida a culpa pessoal, os indivíduos deixam de ser responsáveis pelos seus actos e acabam por ser absorvidos no grande corpo social de que o Estado é a representação. É o Estado que se torna, então, o responsável, o único responsável, e, nessa qualidade, torna-se seu dever intervir em todas as formas de existência, públicas e privadas.

Esta situação tem a origem mais profunda na abolição do pecado. Onde não há culpa, não há pecado. O diabo e o inferno não são reais. O pecado deixa de ser inerente à natureza do homem e do mundo. Ou seja: a humanidade e o mundo, não começam no pecado original. Como o pecado original teve por castigo e consequência o trabalho – “ganharás o pão com o suor do teu rosto” –, desaparecido o pecado original, o trabalho deixa de ser uma maldição bíblica e é, antes, exaltado, até divinizado.

Dentro de si, cada homem continua, decerto, a sentir que o trabalho é o que há de negativo na existência, o que lhe rouba o tempo que gostaria de dedicar aos seus interesses mais próprios, à nobre, produtiva e feliz ociosidade. Cada homem continua a ter por finalidade permanente libertar-se do trabalho, da obrigação do trabalho, e para isso recorre a todos os meios ao seu alcance, desde os mais vulgares e baixos, os que podem trazer a riqueza argentária: atraiçoar parentes, atropelar amigos, comprar lotaria, jogar no totobola e, frustradas todas as tentativas, invejar e odiar o rico. Mas na sua existência exterior, social, política, todos aplaudem a divinização do trabalho, que passou a constituir a substância e a finalidade da política, antiga arte de governar os povos. Os cidadãos deixam de ser cidadãos para serem trabalhadores. Todas as revoluções se fazem com esse fim. Com esse fim, todos os governos governam e todas as sociedades se organizam. E se admitirmos – como cada um de nós na nossa tácita intimidade reconhece – que o trabalho não deixou de ser o que há de negativo na existência e constitui realmente, ou nela é simbolizado, a condenação bíblica de um pecado do género humano, então a política está tendo por conteúdo e finalidade a exaltação do que há de maldito no mundo e na condição do homem, contradição trágica. E se assim é, então a humanidade jamais se poderá libertar do trabalho. A civilização interrompe a sua marcha, pois ela resulta da ciência e da técnica que são a substituição do trabalho pela máquina, da arte e do pensamento que resultam da ociosidade criadora, “único fragmento da nossa semelhança com Deus que nos resta do paraíso.

Orlando Vitorino


Claro que nada disto significa que não se atenda ao mundo do trabalho, aos dramas, sofrimentos e direitos dos trabalhadores. Pelo contrário. O que seguramente afirmo é que não se satisfazem esses direitos nem se resolvem esses dramas nem se põe termo a esses sofrimentos, exaltando, divinizando, sobrepondo a todos os valores a causa que lhes dá origem, o trabalho, enquanto se qualificarem todos os homens só como trabalhadores e só para eles se organizar a sociedade e a política. A finalidade da política é criar as condições para que os homens possam ser o que de melhor se destinam a ser. E os homens nasceram para ser felizes, ociosos e vários. O socialismo não permite que os homens sejam vários, porque os massifica na uniformidade colectiva: não permite que sejam ociosos, porque só os reconhece como trabalhadores. Não permite que sejam felizes, porque não pode haver felicidade na condição permanente de trabalhador e na banalidade vazia da uniformidade colectiva».

Que pensa então, dos outros candidatos? Fazemos a pergunta, ele olha-nos como se lhe falássemos de um mundo estranho e irreal. E diz-nos: 

«Os outros candidatos… uns senhores que dão pelo nome de Soares, Pintasilgo, Freitas e outros, não é isso? Ora deixe ver…».

Retrato de Freitas do Amaral 


«As minhas propostas de candidato foram muito claramente enunciadas. Precedi-as de um livro, publicado há um ano, “Exaltação da Filosofia Derrotada”, que lhes serve de fundamento, justificação e conceptualização. Ninguém pode, portanto, acusar-me de não haver reflectido, demorada e honestamente, o acto da minha candidatura.

Por isso fiquei naturalmente surpreendido, e até indignado, que o sr. Freitas do Amaral, ao publicar, só agora, o livro que pretende expor e justificar, por sua vez, as propostas que apresenta como candidato, tenha desafiado os outros candidatos a escreverem também um livro, como se só ele o tivesse feito e o pudesse fazer, fingindo ignorar o meu livro numa manifestação de soberba em que me dizem ser useiro e vezeiro. Fingindo ignorar, digo eu, porque o meu livro foi objecto na Imprensa – não de anúncios pagos como o dele –, mas de artigos assinados pelas mais responsáveis personalidades e, até, já tratado numa cadeira da Faculdade de Direito em que o sr. Freitas do Amaral foi feito professor por Marcello Caetano.

Ora, como o desafio que lançou, implica para ter um mínimo de seriedade, o convite a uma discussão pública, fiz publicar em vários jornais e na rádio, a minha disposição para aceitar o desafio. Observo, porém, que o sr. Freitas do Amaral só fez aquele desafio para propaganda de si próprio e da importância que a si mesmo se atribui, pois, ao ler o livro de que tanto se orgulha, tive de concluir que o respectivo autor não possui nem conhecimento suficiente da cultura portuguesa nem grandes capacidades de reflexão intelectual.

Pergunta-me, pois, o que penso de semelhante candidato. A melhor resposta é mostrar-lhes o que ele escreve no seu livro “Uma Solução para Portugal”. Vejamos pois.

A “Solução” é composta de quatro propostas. A primeira, a do sistema político, é a de se adoptar a organização que De Gaulle deu ao processo eleitoral francês e às competências do presidente da República Francesa: o primeiro, destinado a distribuir os diversos partidos por dois grupos (aquilo a que os que não sabem português chamam, como o sr. Freitas, “bipolarização”); as segundas, constituindo o que é costume chamar semi-presidencialismo. Não se trata, pois, da reforma do sistema político, mas do modo de expressão da origem da soberania e do exercício de um dos órgãos de soberania. E não é uma “solução” original, mas apenas a adopção de mais um modelo estrangeiro. É certo que o sr. Freitas do Amaral esforça-se por justificar essa adopção, esse estrangeirismo, com os resultados da mais recente experiência portuguesa de outros modelos estrangeiros, afirmando que essa experiência demonstra a falência do processo eleitoral existente e a do semi-presidencialismo também existente. Torna-se, então, impossível compreender como é que o sr. Freitas do Amaral, em nome da mesma experiência, condena o processo eleitoral e defende o semi-presidencialismo. Assim se conclui que o meu privilegiado concorrente à P.R. não tem grandes capacidades de reflexão intelectual.




Na segunda reforma proposta, a do sistema administrativo, o sr. Freitas do Amaral limita-se, por um lado, a fazer o rol das desgraças que todos os dias vêm nos jornais – corrupção, incompetências, etc. – e, por outro lado, a elaborar o rol dos “grandes objectivos” que propõe, os quais não define, não determina, não concretiza e apenas enuncia nos termos gerais e vagos de qualquer orador de comício que fala do que não sabe. Fala de “um conjunto coerente de medidas” sem dizer quais sejam; fala de “reforçar a autoridade do Estado” e de “combater energicamente a corrupção”, sem dizer como e por que meios. O sr. Mário Soares há anos que fala de tudo isto nos mesmos termos, e também a eng.ª Pintasilgo e até o sr. Fernando Neves, a quem a classe política do sr. Freitas chama o “queijo da serra”, e o resultado foi coisa nenhuma como ele próprio, no livro, observa em relação só ao sr. Mário e à tal “Alta Autoridade para a Corrupção”, seus rivais.

A terceira reforma proposta é a do sistema económico. O sistema económico actual, o que trouxe o País à beira da ruína, é o sistema socialista, cujas estruturas foram estabelecidas pelo comunista Vasco Gonçalves, o mesmo que, aplicando as tácticas recomendadas por Lenine, escolheu o sr. Freitas do Amaral para organizador do partido da direita. O sistema contrário ao da economia socialista é o da economia liberal. O sr. Freitas do Amaral propõe a substituição do sistema socialista pelo liberal? Não propõe. Limita-se a dizer que “mudar o sistema económico é pôr a economia a funcionar simples e racionalmente” (sic). Alguém percebe? Ninguém pode perceber. É a pura vacuidade académica ou dantesca. Mais adiante, substitui esse “funcionamento simples e racional” pela expressão “estabelecimento de uma autêntica economia social de mercado”. Alguém percebe? Alguém sabe o que é isso de “uma economia social de mercado”? Ninguém sabe. Nem o sr. Freitas do Amaral.

E segue-se, outra vez, o rol dos “grandes objectivos”. Fala de “liberalizar a economia”, como o sr. Cavaco Silva, mas sempre sem dizer o que isso seja: fala “em modernizar a economia”, como a eng.ª Pintasilgo, mas não diz o que isso seja. Fala na “redução de alguns impostos” mas não diz quais nem que redução. Fala na “reprivatização de algumas e (sempre algumas, alguns), em “reduzir o peso da dívida externa”, em “fortalecer as empresas em geral” e outro palavreado demagógico no qual o sr. Mário Soares é muito mais sincero e a eng.ª Pintasilgo muito mais “convencida”, empregando expressões como: “Gerir com verdade” (que é isso?), “assegurar emprego e habitação aos portugueses” (como?), “melhorar o poder de compra” (a quem?), “promover a justiça social” (que é isso de justiça social, sr. professor de direito?). Por fim, diz que todo este indefinido e indefinível “é uma síntese necessariamente breve do que me parece essencial”.

À quarta reforma, a do sistema da educação, dedica um capítulo que é uma inflação do que já expusera, “em síntese mais breve”, no primeiro discurso que fez depois de anunciar a sua candidatura. Aí afirmou: o ensino encontra-se num caos, por culpa de 30% dos professores secundários; a solução será aumentar os vencimentos dos professores universitários. É um espanto, sr. Freitas do Amaral.

Poupem-me a que lhes fale mais deste candidato. Tirem-no da minha frente. Passem-me outro, depressa!».


«Mário Soares é outra loiça» 






Fundação do Partido Socialista na cidade alemã de Bad Münstereifel (19 de Abril de 1973).






Soares regressa a São Tomé em Dezembro de 1986 onde, durante oito meses, esteve exilado em 1968.


«O que impressiona, em todos estes políticos no poder, é apresentarem uma imagem que nada tem a ver connosco, portugueses. Todos eles nos são – nos rostos, na linguagem, até no modo de falar, de vestir, de estar – todos eles nos são… como dizer?... completamente alheios, pouco portugueses. Há uma excepção. É Mário Soares. Com todas as suas limitações, com o pouco saber de que dá provas sucessivas, com as suspeitas que possam levantar-lhe (caso do empresário alemão Flick ao declarar “ter preferido resistir ao socialismo comprando homens como Soares e Gonzalez, o que dera resultado”), com os queixumes dos socialistas que o viram “meter o socialismo na gaveta” (o que não é verdade) e afirmar-se “um tanto liberal” para “governar à Tatcher”, com os seus onze anos de filiação no PC, com o estado a que reduziu “este País”, com as suas velhas ligações a assaltantes de bancos, com a sua confissão de agnosticismo (que suspeitamos ele não saber bem o que seja), com os seus amuos de menino gordo quando o tirassem do poleiro, com tudo isso, apesar de tudo isso, todos reconhecemos nele um homem que pode ser do nosso convívio, que cabe bem nos ambientes que frequentamos. Não nos surpreenderá encontrá-lo no “café”, sentado à nossa mesa, bebendo e cavaqueando connosco. Não nos passa pela cabeça que não tenha o nome na lista telefónica e que não atenda se lhe telefonarmos. Temos a sensação de acabarmos de nos cruzar com ele na rua, de ficarmos lado a lado na plateia de um teatro, de trocarmos uma piada, de nos rirmos juntos. E de haver em nós lembranças comuns dos velhos tempos da pacatez salazarista, noites gloriosas de fado com a Amália, espera no corredor dos camarins das actrizes (ele até casou com uma), as revoltas contra a Censura que acabavam por se desfazer em risotas (como há tempos lembrou em público o insuspeito Ernesto de Sousa), um certo golão de Eusébio… E as prisões na PIDE que dizem ele ter suportado sem falsos gestos heróicos, sem ranger de dentes, estendendo-se no catre e dormindo a sono solto… E os seus exílios em São Tomé e Paris, exílios dourados e passados em lugares paradisíacos, todos nós invejávamos até… Ora, a nenhuma destas sensações, a nenhuma destas lembranças, é possível associar figuras como a do sr. Freitas do Amaral, pomposo a fingir de modesto, circunspecto para fingir de sábio, distante para fingir de bem comportado, sempre vestido para ir fazer exame com o fato da primeira comunhão. Nem a do sr. Cavaco Silva, tecnocrata seco, aplicado e trabalhador, provinciano e fechado na sua vida na esperança de se assemelhar a Salazar. Nem a da eng.ª Pintasilgo, com a sua beatice de freira laica, o seu compungimento com o sofrimento dos pobrezinhos, o seu gozo de se rebolar num Rolls-Royce e frequentar palácios de Belém, o seu blá-blá marxista, o seu “petit-sourire” de holandesa rósea e gorda, as suas boquinhas beijoqueiras e contentes de que julga ser julgada mais inteligente do que as outras. Não, Mário Soares é outra loiça. Será possível que a política o tenha dessorado, mas a imagem é a de um dos nossos, gordalhudo, malandrete, bonacheirão, simpático, porreiro. Como se ainda ontem andasse connosco em farras pelintras. Agora, é ministro e deixou de aparecer. Achamos piada. Governou-se. Ainda bem. Nós continuamos sem cheta, ele governou-se. Ainda bem. Há-de haver sempre quem se governe. Antes ele do que outros. E suspeitamos que ele, lá no fundo, tem saudades de nós, prefere esta nossa vida pacata, morna, saborosa, sobressaltada pelo pequename, e acabará por voltar».

(in A Capital, ano XVIII (2.ª série), n.º 5662, Lisboa, 4 Nov. 1985, pp. 1 e 10-11. Texto de António Carlos Carvalho).








Mito e símbolo em António Quadros

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Escrito por António Telmo




Rio de Janeiro


«(...) Como talvez já saiba, fui ao Brasil em Novembro [de 1986], onde durante 3 semanas fiz um curso sobre Pensamento Português na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, de que lhe envio o programa por eles distribuído, quase completamente cumprido.

Foi um curso para um grupo de alunos de Mestrado e Doutoramento em Pensamento Luso-Brasileiro, cerca de 30, todos extremamente interessados, tão interessados que fundaram um Centro de Estudos de Pensamento Luso-Brasileiro, que eu próprio inaugurei com uma conferência.

(...) Ali fui encontrar gente a fazer teses sobre Bruno, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra, Antero, Pascoaes, Eudoro de Sousa... e sobre si, caro António.

Ainda tentei trazer uma cópia da tese, feita à base da História Secreta de Portugal, pois a rapariga que a fez, muito inteligente e interessada, esteve em todo o meu curso. No entanto, ela não a deu a tempo, prometendo mandá-la pelo correio, mais tarde. Como agora estão lá em férias, todos se dispersaram, mas você tê-lá em Fevereiro ou Março, o mais tardar...».

António Quadros para António Telmo (Carta XIII, de 18.1.87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«(...) O António Quadros é dos que restam, o único que não "repele" a minha Teima ocultista, que não a teme, que a inclui numa das direcções da sua vida espiritual.

(...) Não vejo ninguém, a não ser o António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro e de comigo o seguir neste ponto crucial. Ocultismo sem catolicismo, como talvez o entendesse F. Pessoa, não está dentro dos planos da "Ordem Templária", a que ele dizia pertencer. O prestígio que se fez à sua volta e o silêncio tumular que sempre se faz à volta de Álvaro Ribeiro explicam-se, talvez, assim. Afigura-se-me impossível separar dois relativos: a ortodoxia e a heterodoxia.

Todavia, as notícias que me dá de que "as coisas andam" no Brasil e em Portugal deixam-me muito contente.












(...) O meu livro História Secreta de Portugal, veja bem com teses à volta, não presta. Amo os outros dois [Gramática Secreta da Língua Portuguesa e Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões], os filhos desprezados da sorte. São duas mónadas de luz iluminando o meu espírito. Mas as pessoas preferem o ocultismo enterrado na pedra. O capítulo sobre Pascoaes onde pus alguma coisa da minha orientação quotidiana e iniciática de viver o mundo passa esquecido. Só influenciamos os outros pelo que não presta: a sombra da morte atrai muito mais do que a luz da vida. Escreveu Álvaro Ribeiro, numa carta ao Rafael, que só quem estivesse sacramentado deveria tentar decifrar os Painéis. Posso garantir-lhe que os Grandes Iniciados dos Jerónimos fizeram passar pela minha carne a sombra da morte. Mas isso é outra história...».

António Telmo para António Quadros (Carta XIV, de 22-1-87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«(...) Não procure mais a razão para o relativo apagamento da "Gramática Secreta..." e do "Desembarque...", perante a "História Secreta". Nesta, ainda você se coloca num plano de comunicação com uma cultura média do português universitário, atraído pelo oculto (e patriota). Mas naqueles livros, você sobe por aí acima, e quantos de nós o podemos acompanhar?

Sem degraus, é preciso subir à corda, à força de músculo (intelectual), penetrando em zonas que são estrangeiras à tal cultura média.

Dir-se-ia (e falo também por mim), que você se retira cada vez mais para o tal espaço ígneo e lhe parece uma concessão, um compromisso inaceitável descer um milímetro que seja, até ao nível de gente de mais pobres elementos.

Será a razão por que já não gosta da "História Secreta"? Porque os seus livros têm de ser para nós, como que provas iniciáticas cada vez mais exigentes, para nós e também para si próprio, já para além do estádio ou grau da "História Secreta". Mas pense no que é o nosso sistema de ensino e a nossa cultura dominante. Nós, que passámos pelo magistério do Álvaro Ribeiro e do Marinho, aprendemos alguma coisa, que é inacessível à maioria.

Não lhe estou a dizer para mudar. É preciso que alguém fale para os poucos. Estou apenas a dizer-lhe que entenda a grande fragilidade intelectual de quase toda a gente, além dos tabus e bloqueios de toda a ordem (incluindo, e estou de acordo consigo, os católico-eclesiástico-hierárquicos).



António Quadros e António Telmo


Note esta conversa que tive ao telefone com o António Marques Bessa (do grupo "Futuro Presente", "Século", J. Valle de Figueiredo, J. Nogueira Pinto). Elogiou-me por "Portugal, Razão e Mistério", falou de si com entusiasmo, a propósito da "História Secreta..." (não sabia sequer que você é irmão do Orlando), mas depois disse-me que não entendia nada do Álvaro Ribeiro, que não gostava dele, nem da filosofia portuguesa, a não ser as nossas formas históricas, literárias, etc. É assim mesmo...

(...) Também lhe queria dizer duas palavras sobre o problema catolicismo - ocultismo (...). A verdade é que não vejo contradição entre os dois termos: catolicismo e ocultismo. É claro que as heterodoxias marcam grandes divergências em relação às ortodoxias. Mas estas também, não são estáveis, têm um percurso sinuoso. Além de tudo o mais, se eu leio os ocultistas, não significa que vá concordar com tudo. Mas... a verdade é que há muito a aprender.

Sou, digamo-lo, um católico liberal. Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida do espírito superior à dos interesses quotidianos. (...) O que importa quanto a mim é uma linha geral para o alto, não importando muitos os acidentes de percurso. Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrenos. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias e heresias para outros, ou são-no.

A Sua revelação está nos profetas, nos evangelistas, nos místicos, na Igreja, e está também na filosofia, e no esoterismo dos que quiseram ou querem ir mais longe do que o quadro mental oferecido eclesiasticamente e escolasticamente. A Sua revelação está também na linguagem, na ciência, na natureza, dentro de cada um de nós.

Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de "Portugal...", onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas... sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincido pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo - pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não-oriental -, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.

Ainda dois pontos:

Não acredite em si próprio quando me diz que a "História Secreta..." não presta. Talvez haja graus, do simbolismo expresso em pedra até ao expresso em poesia e palavra, mas todos convergem, todos são uma mesma linguagem poliédrica, com diferentes faces. Sobretudo, e este é um problema que eu também enfrento no curso do meu livro, o que o documento escrito tantas vezes cala, esconde, ou o que foi destruído em obras queimadas ou censuradas, ou ainda, o quefoi ditono Capítulo de uma Ordem ou na pequena tertúlia de uma câmara ou de um café mesmo, escapa, passa no simbolismo da pedra, que não houve coragem para destruir pela sua monumentalidade, ou de que se perdeu a cifra, mas resta, à vista. Caso dos Painéis, como verá no meu livro: foram escondidos intencionalmente durante séculos, ao aparecerem dizem-nos agora muito que não ficou escrito, nem na literatura...


Painéis de Nuno Gonçalves


Ver aqui




(...) P. S. Não creio que seja eu o último que não repele a sua "teima ocultista". Ainda há pouco falei de si com o Jorge Preto. E o Rafael? E o próprio Orlando? E a Dalila?...».

António Quadros para António Telmo (Carta XV, de 29.1.87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«(...) Sobre a História Secreta. Quando a publiquei, o Álvaro Ribeiro escreveu-me uma carta, amável e elogiosa, mas nas entrelinhas decifrei a sua discordância quanto à orientação geral do livro. Tenho em meu poder também um esboço de História de Portugal que só a si mostrarei quando vier a Estremoz. Está traçado com a sua mão. Comparando-o com o meu livro, apanha-se a funda razão da discordância. Eu sei que isto pode perturbá-lo agora que o António está a preparar os volumes seguintes de "Portugal Razão e Mistério", mas sei também que acredita na sua estrela, e que nem o António nem eu somos o Álvaro Ribeiro. Comunico-lhe, no entanto, porque calculo que deve ter nisso grande interesse.

De resto, a correspondência que possuo do nosso Amigo, a quem o António e eu tudo devemos, revela aspectos não ainda saudados da sua filosofia, que é, na parte e no todo, a ter em conta uma correspondência, uma obra de Kabbalah. A propósito fiquei contentíssimo ao ler na sua carta o que já julgara saber, isto é, o seu repúdio do ocultismo oriental e a sua ligação com o ocultismo de sinal cristão. De resto, tudo quanto me diz sobre a sua posição religiosa que admite a evolução dos dogmas pela sua concepção de Deus como puro Espírito está, julgo eu, na linha exacta da Tradição portuguesa. "Para mim, Deus é o Espírito Santo", costumava dizer o Álvaro Ribeiro nos últimos dias. A sua perspectiva da Trindade Cristã é a d'"Arte de Filosofar". A cristianização do "orientalismo"é tratada, contra a filosofia alemã, no prefácio a um livro de Nietzsche e integrada na significação dos Descobrimentos».

António Telmo para António Quadros (Carta XVI, de 2 de Fevereiro de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«Diz Pinharanda Gomes, a páginas 401 do seu livro [A Filosofia Hebraico-Portuguesa], que "a escola formal é a iniciação esotérica e que este é o princípio da maçonaria".

O conceito de escola formalé de Álvaro Ribeiro, que o expõe no livro a que deu, precisamente, este título. Mas funda-se ele no conceito aristotélico de forma como o que dá origem, não princípio, à existência das coisas, dos seres e do mundo e só se distingue da categoria primacial, a substância, porque esta não dá origem, mas é o que faz substância, é o que faz perdurar. O conceito da escola formal, tal como Álvaro Ribeiro o pensou, destina-se a assegurar que o ensino seja uma imitação da criação, ou do espírito, tal como a arte é uma imitação da natureza. Estamos sempre seguindo e actualizando o aristotelismo.
Ao acrescentar ao conceito de escola formal o de escola material, Álvaro Ribeiro concedeu ao nosso calão pedagógico que chama matérias aos assuntos tratados nas disciplinas escolares. A palavra matéria tem uma longa história de múltiplos sentidos mas que, todos eles, sobretudo o do materialismo característico da filosofia e da ciência modernas, acabam por cair perante o de Aristóteles. Comprovam os eruditos que foi Aristóteles quem primeiro deu conceito à palavra matéria (ou àquela que os latinos traduzem, com milagrosa correcção, por matéria). Ora, nesse conceito a matéria é, em si mesma, o nada. Não o nada no sentido que lhe deram os filósofos cristãos, como José Marinho, M. Heidegger ou Hegel, inspirados na imagem bíblica segundo a qual o mundo foi criado do nada, mas no sentido do nenhum, onde coisa alguma é, e do nenhures, onde coisa alguma existe.

Torna-se, portanto, surpreendente que Pinharanda Gomes transponha para a maçonaria o conceito de escola formal, e o conceito de escola, ou escolas materiais, dando o primeiro como o de iniciação esotérica e o segundo como o dos vários ritos maçónicos para, dentro deste quadro mental, desenvolver eruditamente as relações entre pensamento hebraico e a prática da maçonaria.

Não sei se o Pinharanda tem informações, que eu não possuo, de a maçonaria utilizar a designação de escola formal. Mas sei fundamentadamente que o aristotelismo é incompatível com a doutrina oculta de uma associação secreta. Acontece com Aristóteles o que ainda não acontecera com Platão: a filosofia, ou o saber autêntico, radicado no homem e no mundo, distinto do saber revelado, separa-se das religiões do oculto porque deixa de carecer do oculto para garantir a sua autenticidade, porque a autenticidade passa a ter a garantia no pensamento. É esta separação que dá origem à lógica.

O cristianismo herdou de Aristóteles a separação das religiões do oculto e é delas, sempre prontas a reaparecer onde e quando o pensamento se debilita e evanesce, que se alimentam os seus adversários. A maçonaria constitui um entre múltiplos exemplos históricos.

Pinharanda Gomes não estranhará que, a seguir à recensão de um livro tão rico e admirável como é o seu, eu me demore a discutir apenas uma questão. Trata-se, porém, de uma questão crucial nas circunstâncias culturais e políticas em que nos encontramos. E acresce o facto de eu ter sido o responsável por uma revista, publicada entre 1976 e 1978, e na qual colaborou, que teve o título, precisamente, de Escola Formal. Também aí não faltou quem visse o dedo da maçonaria a apontar o liberalismo, ou o neoliberalismo, que a revista preconizava e doutrinava.
A confusão da maçonaria com o liberalismo é uma imagem que nos ficou da monarquia constitucional e da 1.ª República, que ainda não se desfez. Reaparece com frequência na linguagem dos políticos, o que não tem qualquer significado intelectual, mas figura em todas as pastorais emanadas do episcopado português nos últimos seis ou sete anos, o que nos deixa perplexos. Entre nós, como nalguns outros países, o chamado regime liberal que resultou da Revolução Francesa foi, efectivamente, o regime dos mações. Acontece, porém, (e o actual neoliberalismo já o demonstrou à saciedade), que tal regime pouco ou nada teve a ver com o liberalismo, mas constituía a sua dissolução, com a consequente preparação do advento do socialismo. O rosto visível que, no nosso país, a maçonaria hoje oferece, impulsionando, apoiando e comandando o regime socialista constitucionalizado pela revolução de 25 de Abril, só serve de confirmação ao que estou esclarecendo. O neoliberalismo preconizado pela revista Escola Formal é o antípoda do socialismo.

Uma última observação: a escola formal é o que há de mais contrário, não só ao esoterismo maçónico como a todo o ocultismo. A filosofia tem, decerto, uma iniciação, mas não no sentido esotérico e ocultista que se tornou habitual atribuir a toda a iniciação. O ocultismo é um culto romântico, muito expandido nos nossos dias, e tanto mais sedutor quanto menos sábias são as inteligências e orgulhosas as subjectividades.

A filosofia é, por definição, o que se oferece, no seu todo, a todas as inteligências e só pode existir por residir totalmente na natureza de cada ser humano. "Um homem que não é um filósofo - disse o mestre da 'filosofia portuguesa' que é José Marinho - é tudo menos um homem". Que a maior parte dos homens não tenha a consciência disso, nem a reflexão nem o saber, que a maior parte dos homens o ignore e se satisfaça nos actos da vida prática e da vontade dominadora, ou sublime essa ignorância nas imagens e ritos do culto religioso, não pode significar que a filosofia dependa de um saber secreto e oculto. O que só se tornou acessível a alguns, raros, não significa que tal acessibilidade seja negada ou condicionada por alguma secreta iniciação ocultista. É possível que os homens, movidos pelo espírito do mal, que é a vontade de persistir na ignorância, e atormentando-se, torturando-se e mentindo uns aos outros, forcem os melhores de entre eles a uma existência segregada e, portanto, a uma acção segregada. É possível que a história de Portugal seja mais verdadeira no que tem de secreto do que no que tem de patente. É possível até que a verdade "não venha nem se vá"... Mas nada é oculto. 

Se tudo fosse oculto, como disse o poeta festejado, ou apenas o de que tudo depende, então não haveria, como também o poeta concluiu, nem procura nem crença, nem filosofia nem religião».

Orlando Vitorino («A Filosofia como Imagem da Pátria»).







Orlando Vitorino e António Quadros (1988).



Mito e símbolo em António Quadros


Estamos aqui reunidos celebrando o pensamento de António Quadros para o tornar presente na nossa lembrança e na nossa saudade. Nesta época de televisão em que todas as noites nos expomos sem vergonha ou defesa, ao bombardeamento da imagem, é bom, de vez em quando, não morrer de todo relendo um conto tradicional, não para regressar à infância, mas para nele vermos como a imagem pode ser um símbolo para os homens, quando a luz não é manipulada pelos computadores, mas se revela nas formas da verdade.

"Era uma vez uma princesa que, ao descer, logo vieram sete fadas. Cada uma delas dotou-a com uma virtude, mas a sétima marcou o seu destino de infortúnio".

Eis que entramos no reino dos mitos e dos símbolos.

Só as almas superiores concentram sobre si, ao nascerem para a vida, os sete poderes fatais, significados pelos planetas.

António Quadros era um espírito superior. No horóscopo que dele fez Vasco da Gama Rodrigues, o signo de Câncer na casa Segunda está povoado de estrelas juntas olhando o recém-nascido. A Lua no seu domicílio domina o céu.

António Quadros não gostou do horóscopo, viu com incómodo que ele o caracterizava como um espírito lunar. E não se libertou desse desgosto mesmo quando outros astrólogos lhe lembraram que a Lua é o espelho do Sol e lhe mostraram que a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior.

Morreu exactamente na hora em que teve início a Primavera de 1993, ali onde a roda do tempo recebe o impulso que o liberta do nocturno Inverno. Refere René Guénon que os iniciados escolhem esse dia para morrer porque assim propiciam que a viagem no outro mundo se inaugure em condições altamente favoráveis. António Quadros não era um iniciado, mas Deus, queremos todos pensar, terá escolhido por ele. Assim seja!

Mais imperioso é o facto de Agostinho da Silva ter pedido para o levarem do hospital para casa onde queria passar o Domingo de Páscoa, dia em que de facto partiu.

A obra de António Quadros é uma obra de reflexão. Não é um filósofo operativo, um filósofo que não confunde a categoria de paixão com a categoria de acção. Reflectiu, com muitas vezes perfeita limpidez, as doutrinas solares dos seus mestres, cuja luz encheu daquela suavidade que a torna suportável e até aceitável pelas almas inferiores que a noite dominada pela televisão envolve. Por vezes há manchas nessa reflexão, como a do excessivo valor que atribuiu à doutrina do inconsciente de Carl Jung.

Esta doutrina aparece a explicar e a defender o mito do Encoberto contra a grosseria de António Sérgio. É sobre o livro de António QuadrosPoesia e Filosofia do Mito Sebastianista que diremos qualquer coisa nos poucos minutos que a cada um de nós são concedidos. Espero que essa coisa qualquer seja a coisa que se quer.







Neste livro, como em Portugal. Razão e Mistério, o mito aparece a interpretar a história, mas é sempre a história que decide no sentido do mito através da política. O mito do Encoberto é a forma que em Portugal assumiu o messianismo, mas, se no judaísmo a espera do Messias degenerou no marxismo e na utopia da sociedade sem classes, aqui, em Portugal, país onde manda Cristo, é a unidade católica, que harmoniza mas não destrói as diferenças dos indivíduos, das classes e dos povos, aquilo que aparece prometido no regresso do Rei e que, sem dúvida, estará confiado à Idade do Espírito Santo. Em consequência. António Quadros não se limitou a criticar e a refutar o optimismo progressista de Marx e seus sequazes, mas repudiou também o pessimismo dos esoteristas, apesar da simpatia que eles lhe mereciam, cuja doutrina resume deste modo: "O albedo do Quinto Império virá assim depois das fases alquímicas de putrefactio e nigredo; a luz do Espírito Santo, após a putrefacção e a morte virtual de todo um povo. A terra portuguesa, queimada, gasta, desperdiçada, a wasteland, povoada de hollow men, de homens vazios, é um Calvário, onde um povo-Messias, um povo-D. Sebastião, um povo-Cristo, é crucificado para ressuscitar em glória e salvar a humanidade. Este é, para Abellio, o mais subtil sentido do sebastianismo do Quinto Império".

Se eu tivesse vindo aqui com a intenção de expor a mitosofia de António Quadros (era assim que ele gostava de exprimir-se), já há muito que estaria empregado numa universidade. Toda a interpretação que não vai além de si própria é uma redução, porque é nisso que consiste a objectividade científica, conservando-se dentro dos seus limites. Prefiro ler Leonardo Coimbra e ouvir as suas palavras à saída da fonte, mesmo que o não compreenda, do que lê-lo simplificado numa apreensão mais ou menos correcta. Se o autor disse o que disse naquelas palavras, outras palavras desdizem necessariamente o que ele disse. Antes a fantasia subjectiva dos que atiram ao lado de Leonardo Coimbra e, ao irem procurar o que disseram, descobrem um mundo maravilhoso. Por muito respeito que nos mereçam os estudos de um filósofo que só são científicos quando deixamos a alma em casa, é bom, de vez em quando, que sigamos o movimento da nossa imaginação.

Todos sabemos que o espiritismo é uma aberração, mas comportarmo-nos perante os mortos, com quem convivemos e que amámos em vida, como se tivessem passado a inexistentes e fossem hoje um nada, além de estúpido é imoral. Por isso Álvaro Ribeiro, quando José Marinho partiu, falava dele, nos meses sucessivos em que permaneceu entre nós, como se não tivesse morrido e em tais termos e com tal verdade que alguns julgaram que pelo seu cérebro perpassasse a asa da alucinação.

Façamos o mesmo com António Quadros!

Eu discuti com ele enquanto preparava esta evocação do seu pensamento. O que lhe disse foi mais ou menos o seguinte.




"O meu amigo, levado pelo seu inteligente e corajoso patriotismo, compromete excessivamente o mito do Encoberto com a história política de Portugal. O sebastianismo, como movimento social, é apenas um aspecto menor desse mito. Com o Bandarra o sebastianismo foi anterior a si próprio porque as Trovas foram publicadas antes de Alcácer-Quibir. Você dirá que as profecias do sapateiro de Trancoso nasceram de condições históricas socialmente análogas às que permitiram mais tarde, depois do descalabro da batalha, criar pelo inconsciente colectivo a ideia de um rei eternamente vivo. Se observarmos, porém, que ao mito do Encoberto corresponde uma sabedoria do Encoberto, de que a filosofia portuguesa foi até si a explicitação actual, terá de situar essa sabedoria muito antes do Bandarra com o nascimento da Ordem do Templo como Portugal. No reinado de D. Dinis, as condições sociais eram completamente diferentes. Havia um país pleno de força e de confiança em si próprio e, no entanto, todas as Cantigas de Amigo têm por tema a demanda do Encoberto.


Ai flores, ai flores do verde pino
se sabedes novas do meu amigo
Ai Deus y u é?


O Encoberto aparece aqui significado por três vogais: i u e. Y u é, que quer dizer, como sabe, e onde está? O verde pino deve ser interpretado, em sintonia com a ilha verde em que habita o rei, como a comunidade gnóstica e as flores como os seres iluminados supremos. A pinha, símbolo sempre presente na arquitectura manuelina, sendo o fruto dessas flores concentra em si ocultas as sementes na forma vegetal duma chama.

Quando o Padre António Vieira desocultou o Encoberto apresentando-o como D. João IV, quando interpretou o Fuão das Trovas do Bandarra, como João Duque de Bragança, o sebastianismo, no sentido que lhe dou de uma sabedoria esotérica, acabou e a Pátria entrou em decadência até esta miséria do nosso tempo em que o deus que cultuamos é o deus Mamon. A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma".

António Quadros ouviu-me com aquele jeito tão seu de quem não se sabe se está a ouvir mas que é o modo de quem segue a sua estrela interior e disse-me brandamente: "Está bem. Mas tudo isso não invalida o que eu exponho no meu livro. Os Antónios Sérgios continuam aí" (in Sabatina de Estudos da Obra de António Quadros / Contributo bibliográfico, Lisboa, Fundação Lusíada, 1995, pp. 65-68).





António Vieira

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Escrito por Fernando Pessoa







O céu 'strela o azul e tem grandeza
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo, 
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

Mensagem





Cântico Negro

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Escrito por José Régio






«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces, 
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
Eu nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

Poemas de Deus e do Diabo






Inquisição e Cristãos-Novos (i)

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Escrito por António José Saraiva




Sinagoga de Tomar, onde se encontra o Museu Luso-Hebraico Abraão Zacuto.


«Zacuto prometeu a D. Manuel descobrir a Índia, que Deus tinha guardada para a monarquia portuguesa.O Hibbur Hagadol, escrito em Salamanca (1473-1478) e que permitiria a José Vizinho o cálculo da tábua bissextil, para o ano de 1483-1484, continha o segredo. Origem do Regimento de Munique, e sendo o primeiro trabalho de astronomia publicado no nosso país, quando a empresa dos Descobrimentos já ia alongada, as tábuas do regimento da declinação, baseadas no Almanaque Perpétuo, davam, desde 1475, a posição diária do sol para cada signo do zodíaco e a respectiva declinação.

Joaquim Bansaúde concitou as atenções para a primazia da obra, que situa a cosmologia revolucionária hispânica do século XV, à frente da astrologia europeia medieval. Jaime Cortesão, que dá o seu acordo às teses de Bensaúde, quanto ao saber cabalístico dos Descobrimentos, admite, contudo, que Bensáude teria extravalorado o factor judaico, mas não contesta a tese principal do historiador judeu: a prioridade da navegação astronómica dos portugueses, sem ajuda que proviesse de outra parte, já que todo o saber era de matriz peninsular. Apesar da relevante importância do Almanaque, que determinou muito do saber posterior, ela foi sucessivamente ocultada, mesmo por investigadores modernos, como Duarte Leite. O encobrimento de Zacuto resulta, em parte, da política de sigilo em matéria científica, da proibição de se falar na ciência hebraica, em vigor desde o século XVI e, ainda, ao facto agora e logo patente, de ainda não sabermos na verdade quais as causas secretas dos Descobrimentos.

A estabilização de um depósito cabálico-científico na astronomia peninsular preparou os espíritos para uma recusa formal da propaganda da astrologia, mas isso não evitou que o mesmo Zacuto fosse utilizado para afirmações apocalípticas, senão em Portugal, pelo menos na Itália. Em contrapartida, os nossos judeus foram unânimes na demonstração filosófica da nulidade da astrologia judiciária e na apologia da astronomia científica. A posição judaica é compartilhada por autores como Gil Vicente e Garcia de Resende, e por quantos, em vista dos prognósticos para Fevereiro de 1524, negaram o determinismo planetário e afirmaram as teses do livre arbítrio e da providência divina. É o caso de Frei António de Beja, no Contra os Juízos dos Astrólogos (1523), cuja doutrina, ainda que bebida na cultura italiana, concorda com Abravanel e Zacuto, na distinção das duas astrologias, a da «falsa imaginação dos homens» e a da investigação planetária e estelar, em que a primeira merece anátema, por não ter sido, nem revelada, nem dada por certa, nem permitida por costume canónico.

Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Cristovão Colombo beneficiaram da sabedoria astronómica de Zacuto, e a este benefício se atribui uma quota-parte da questão em torno do enigma de Cristovão Colombo, sobre o qual se têm publicado alguns estudos, na maior parte corroborantes das fundas relações, mais do que científicas, com a genealogia judaica.


Vasco da Gama


A influência de Zacuto consta ainda do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes, cujos netos se viram na Inquisição de Lisboa, sem se ter concluído se o avô seria meio cristão-novo ou cristão-novo por inteiro; e da obra dos nossos empiristas em geral, v. g. D. João de Castro, que, atento à história sagrada, no Roteiro de Goa (1541) visou identificar o local da passagem dos israelitas na fuga ao rei egípcio. Enfim, o canto V de Os Lusíadas releva de um evidente conhecimento das teorias de Zacuto.

Discípulo de Aboab e de Isaac Campaton, Zacuto é um rabanita que assimila a experiência cabalística. A Doçura da Alma, em três partes, na 1.ª parte, sobre a Cabala, o Paraíso e o Inferno.; na 2.ª parte, sobre o tempo e os costumes e, na 3.ª, sobre o mistério da ressurreição. Atenta na doutrina dos Cabalistas sobre a alma (analogia, anatomia e cosmogonia) nas ideias do presente, do futuro e da eternidade. Livro de piedade, colector dos artigos dignos de crença na esfera da filosofia, é como que uma conclusão teológica para a obra-prima de Zacuto, o Livro das Genealogias.

Este, divide-se em cinco secções ou maamarim, onde foca três assuntos maiores: a tradição judaica, desde Abraão a Simão, o Justo, último representante da Grande Sinagoga; a biografia dos principais sábios das sete gerações anteriores à destruição do Templo e das quatro gerações de tanaítas até à conclusão da Mishna; e a história dos amoraítas, saboréus e gaões, etc. Obra de certo modo autobiográfica, refere as perseguições que teve de sofrer e as violências praticadas contra israelitas, mas o que ressalta deste conjunto histórico é a teoria providencialista da história: toda a história humana se ordena à glória da Lei revelada a Israel. Por exemplo, a queda de Ceuta na mão dos portugueses, em 1415, é um prémio concedido por Deus a D. João I que, assim, foi distinguido por ter recebido os marranos e judeus que fugiram de Castela, muito embora Portugal se reservasse a ira divina ao expulsar, em 1498, os judeus. Esta causa providencialista raro ou nunca foi tida em conta pelo positivismo histórico, que não atendeu a que os judeus viviam oprimidos em Ceuta pelos Árabes, e que decerto facilitaram o acesso lusitano à cidade, colaborando na estratégia da conquista. Sendo assim, o factor judaico não pode ser omisso nos primeiros acontecimentos da gesta que iniciou o mundo moderno: a conquista de Ceuta, quando a Europa se digladiava numa guerra medievalesca e barbárica dos chamados Cem Anos.

Esta obra de Zacuto exerceu influência na história sagrada posterior, e dela se reivindicam Gedaliah, na Cadeia da Terminação, David Ganz, no Descendência de David e José Escalígero, no DeEmendatione Temporum.

Atento à cosmologia, Zacuto concorda com a regra da Cabala. Num inédito revelado por Joaquim de Carvalho, constituído por cinco partes, Zacuto, após um proémio, discorre acerca do valor da astrologia para a medicina, com uma introdução aos juízos, signos, planetas e dignidades das casas estelares.




Adita um regimento dos físicos e um apêndice acerca dos eclipses. Para o autor, a ciência astronómica destina-se a adquirir e a conhecer as mutações do mundo elementar, de que parte decorrem as influências e quais as relações da saúde e da enfermidade. Concepção medianeira, a ciência tem por fim conhecer as nove esferas ou regiões universais, já que a décima, o empíreo, de que fala Ezequiel, "não convém ao astrólogo falar dele, que é da teologia". Com as dignidades da casa, da exaltação, da triplicidade, do termo e da face, os planetas não determinam o futuro, nem limitam a liberdade do homem, nem são orgãos da divina providência; são criaturas, situadas no mesmo mundo de que o homem é o vidente, tendo influência orgânica nas capacidades atractiva, digestiva, expulsiva e retentiva (alma vegetativa) e servem de guias ao trânsito sobre a face da terra (ciência da orientação).

Sem conhecimento da teoria heliocêntrica, Zacuto considera os eclipses como fenómenos do poder divino (mas que não são proféticos), dos quais importa extrair a lição para dar glórias ao Criador. Numa concepção global do universo, a natureza ordena-se aos mistérios enunciados pela teologia. Estudar a relação dos astros é uma forma de religião, e a astronomia científica tem um valor teológico quanto aos fins, quando conhecida em ordem à fé. A ciência da natureza proclama a glória de Deus».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Hebraico-Portuguesa»).


«Em 1492, teria vindo para Portugal Abraão Zacuto, matemático, físico e astrónomo. Em Salamanca, onde ensinou na Universidade, escreveu a versão hebraica do Almanaque Perpétuo que viria a ser impresso em Leiria, na versão latina, segundo a tradução de mestre José Vizinho ou da Covilhã. Em 1493, rabi Abraão recebia do soberano o pagamento de uma tença de dez espadins de ouro, pelo seu trabalho como astrónomo do rei, tendo firmado a sua assinatura no recibo.

Zacuto, segundo Gaspar Correia, nas Lendas da Índia, costumava conversar com D. Manuel, duque de Beja, sobre astronomia. Coube-lhe o supervisionamento das naus que levaram Vasco da Gama à Índia. Pertenceu-lhe o regimento das tábuas de declinação solar assim como o aperfeiçoamento do astrolábio. Segundo Gaspar Correia, Zacuto ensinara os pilotos portugueses a trabalhar por "umas cartas grandes com riscos de cores diferentes, que mostravam os nomes dos ventos ao redor da estrela do Norte, a que se pôs o nome de agulha de marear..."






Rabi Abraão abandonaria Portugal com o édito de expulsão, em 1497. Segundo os autores judeus, não chegara a ser baptizado. Para Gaspar Correia, Zacuto recebera o baptismo tendo saído, em 1502, para a Turquia, onde regressou ao judaísmo: "... e porque esta coisa passou neste ano de 1502 o pus aqui por sua memória"».

Maria José Ferro Tavares (« Os Judeus na Época dos Descobrimentos»).


«Não nos propomos estudar aqui ex professo o misticismo espanhol, e por isso nos não demoraremos a demonstrá-lo nem a julgá-lo nas suas definições. Não poderíamos, contudo, deixar de expor os traços principais da sua fisionomia porque sem isso a história continuaria a ser para nós um enigma. É no misticismo que se encontra a origem primordial dessa extraordinária força, dessa omnímoda e universal acção que a Espanha exerceu no Mundo durante o século XVI... Se nos limitássemos a definir o caso como um milagre, iríamos substituir a ciência que observa e descreve, pela eloquência que se extasia - uma vez que a ninguém é lícito já acreditar em milagres para usarmos desta expressão popular. Se, de uma outra forma, deixássemos na sombra o carácter verdadeiramente excepcional da história da Espanha no século XVI, demonstraríamos, ou acanhamento de vistas, ou ignorância do assunto.

Essa história é um milagre, sim, de energia humana. O misticismo é o foco onde essa luz se concentra; é a fonte de onde brotam a acção, a força, a extraordinária fé na invencível vontade humana. Por séculos se foi formando a chama que agora rutila - como o fogo quando obscuramente lavra, até que num instante rebenta em lampejos e deslumbramentos. A lenha com que o incêndio místico se alimentou na Idade Média espanhola, foi a guerra contra os sarracenos, foi a literatura cavalheiresca e sagrada. Por isso o misticismo começa por nos aparecer como uma transformação da cavalaria - cavalleria à lo divino - em Santa Teresa, na biografia de Santo Inácio, e em S. João da Cruz. El caballero celeste, cristiano, de la estrella brilhante, etc., são títulos de obras que, sem mais comentários, demonstram este facto, de resto geralmente sabido.

Fresco retratando Inácio de Loyola recebendo a Bula Regimini militantis Ecclesiae do Papa Paulo III, de Johann Christoph Handke




"Os milagres de Santo Inácio" (1617-1618), de Peter Paul Rubens.


Santa Teresa e seu irmão, duas crianças (ela tinha dez anos) sentem-se heróis: fervem-lhe na cabeça os casos dos romances místicos e cavalheirosos, as aventuras das Mil e uma noites; querem praticar grandes actos, consumar façanhas. Um dia fogem de casa, partem para a aventura: iam morrer mártires dos mouros! Tiveram também o seu Alcácer Quibir a uma légua de casa, quando a família os agarrou e os recolheu... Defender o oprimido, vingar o infeliz é o desvairamento heróico de toda a gente. E Jesus é o divino oprimido, vítima dos judeus que o crucificaram! O ódio aos judeus enroscava-se por tal modo na árvore do misticismo, como a hera no tronco de uma oliveira antiquíssima».

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).


«A tentativa de conexão explícita, metódica, entre as várias expressões do meio social numa compreensão da história do Santo Ofício partiu de um historiador da cultura [António José Saraiva], ao levantar a hipótese de que a Inquisição tenha sido um instrumento da luta das classes dirigentes contra a burguesia [Cf. A Inquisição Portuguesa, Lisboa, 1956; Inquisição e Cristãos-Novos, Porto, 1969. Cf. também "A Política da Discriminação Social e a Repressão da Heterodoxia", 3.º vol. da História da Cultura em Portugal, Lisboa, 1958]; anos depois, deu-lhe uma disposição mais incisiva no sentido de lhe atribuir também uma função ideológica».

Jorge Borges de Macedo (Introdução a Alexandre Herculano, «História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal», Tomo I, Livraria Bertrand, 1975).


«O presente livro põe alguns problemas de método histórico...

Aquando do seu aparecimento um erudito francês especialista de questões relacionadas com o Judaísmo impugnou as teses aí defendidas fundando-se no teor dos documentos.

Os documentos alegados por esse erudito são sem dúvida autênticos, mas isso não basta. Os documentos da Inquisição provam que os processos se realizaram formalmente segundo as regras que a Inquisição estabelecia. Mas quem era a Inquisição? Que pretendia ela? Para que servia? Como era o processo inquisitorial? Que garantias dava de objectividade? Etc. Essas são perguntas a que os documentos numerosíssimos dos processos inquisitoriais não respondem, nem podem responder porque estão dentro do sistema que os inquisidores instituíram por motivos que importa esclarecer.

É óbvio que não podemos aceitar como inquestionáveis as declarações dos inquisidores acerca das suas próprias motivações. Essas declarações devem ser consideradas como justificações subjectivas, como peças de um outro processo que não é o processo inquisitorial, mas o processo historial, que não obedece às regras estabelecidas pela Inquisição.

Se numa declaração um réu declarava que tinha praticado durante anos jejuns judaicos isso não prova que ele os tenha praticado, mas só que ele declarou que os tinha praticado. E pode tê-lo declarado por várias razões, como a de dar a impressão de que fazia uma confissão completa, o que lhe podia evitar a condenação à morte como "negativo". Nesse caso temos o exemplo de um documento autêntico que não é verdadeiro.



António José Saraiva


Quanto às razões por que a Inquisição existia elas são evidentemente exteriores à própria Inquisição. Era natural que os seus porta-vozes dissessem que no reino havia muitos judeus ou muitos falsos cristãos judaizantes. Só assim justificariam a sua própria existência. Mas seriam essas declarações verdadeiras?

É extraordinário constatar que só Alexandre Herculano pôs em questão os dizeres dos inquisidores e viu a Inquisição de fora. Todos os outros, desde o honrado Lúcio de Azevedo até ao erudito Révah, tomaram à letra as declarações dos inquisidores sobre eles mesmos e os processos movidos às suas vítimas. Do ponto de vista de alguns historiadores a Inquisição era uma instituição boa porque defendia a homogeneidade do povo e a pureza da raça contra a infiltração de uma "raça espúria" (sic); do ponto de vista de outros, a Inquisição era uma instituição cruel porque perseguia uma minoria racial que não se deixava assimilar. As opiniões divergiam mas os factos com que se abonavam eram de um e outro lado documentados pela Inquisição e considerados verdadeiros.

Os documentos emitidos pelos inquisidores julgavam-se autênticos - e isso não o contestamos; e também verdadeiros - e isso negávamos no nosso livro Inquisição e Cristãos Novos. O que torna difícil sair deste beco é que no que respeita a documentos quase só dispomos dos que a própria Inquisição emitiu para se justificar e para incriminar os seus perseguidos. Quanto aos textos que revelam a realidade da Inquisição, como as Notícias Recônditas, não podem ser considerados formalmente "autênticos" porque são ardentemente polémicos e porque nem sequer se conhece o seu autor. Como sair deste labirinto?

A nosso ver neste caso o problema não está nos documentos em si mesmos, mas na perspectiva em que são colocados; e essa perspectiva exige que o historiador conheça as diversas peças ou componentes de uma sociedade, de maneira a poder resolver com elas um jogo de puzzle, ajustando-as entre si.

(...) O método que seguimos neste estudo é sincrónico; isto é, procuramos ajustar diferentes peças da sociedade dos séculos XVI e XVII para responder à pergunta: que significa o aparecimento da Inquisição portuguesa, qual era o problema que procuraram resolver os seus fundadores?

A resposta a esta pergunta vai-nos permitir uma hipótese sobre a função da Inquisição em Portugal no século XVI e a partir desta hipótese imaginar um sentido para o seu funcionamento, para as regras do processo inquisitorial. Desta forma tentamos sair do domínio da subjectividade dos inquisidores para o da objectividade do observador, e estabelecer um critério para a leitura dos documentos inquisitoriais que não seja o da própria Inquisição.

Nem sempre os leitores desta obra compreenderam o seu método e a sua intenção. Alguns, como o Sr. Pio Caro Baroja, num longo livro narrativo, baseado também na "autenticidade" dos documentos inquisitoriais (autenticidade que não implica como ainda agora dissemos a sua veracidade), nos atribui um ponto de vista economicista unilateral (marxizante) que não era o nosso. As razões económicas são apenas uma das várias peças do puzzle que tratamos de ajustar».

António José Saraiva («Inquisição e Cristãos-Novos»).



«Abílio Diniz da Silva - Qual foi a sua reacção perante o livro Inquisição e Cristãos-Novos, e a que causas atribui o êxito de livraria por ele obtido?

I. S. Révah - A minha reacção perante o livro foi e continua a ser uma reacção de indignação. Trata-se de um libelo demagógico contra a Inquisição. Entre todos os que conhecem as minhas origens e os meus domínios preferidos de investigação, poucos estarão inclinados a atribuir-me uma qualquer simpatia pelo Santo Ofício; no entanto, devo indicar que nas minhas investigações historiográficas procurei sempre aplicar, de maneira mais estrita que o próprio autor, a máxima de Alexandre Herculano: "As instituições mais absurdas, os maiores criminosos têm direito de exigir a imparcialidade da história". O respeito desta máxima é para mim relativamente fácil, porque, no fundo, a única questão que me interessa verdadeiramente é esta: "De que maneira e até que ponto os arquivos da Inquisição podem ser utilizados na reconstituição da história das suas vítimas?".

A radical incompetência na matéria de A. J. Saraiva aparecerá claramente quando dissermos que ele não compulsou um único processo dos arquivos inquisitoriais ibéricos, cuja fabulosa abundância é capaz de fazer desanimar o mais corajoso dos investigadores. O nosso autor preocupa-se mais com o dogmatismo ideológico - o qual aliás varia com o tempo - do que com investigação e interpretação dos documentos históricos. Ora acontece que quando A. J. Saraiva abordou, em 1955-1956, o tema da Inquisição e dos Cristãos-Novos, ele estava então persuadido que tudo, na história da humanidade, se explica pela luta de classes.

- Pensa que uma teoria influenciada pela concepção materialista da história encontra dificuldades ao tentar explicar o fenómeno dos Cristãos-Novos e das várias reacções que ele provocou em Portugal?

- As dificuldades que encontra a aplicação simplista desse esquema ao problema da existência de uma etnia neocristã e de uma religião cripto-judia que agrupou durante séculos pessoas pertencentes a classes muito diferentes da sociedade portuguesa posterior a 1497, constituem realmente um obstáculo de grande peso. Mas este obstáculo não impressionou o A. J. Saraiva de 1955-1956: para o vencer, bastava supor que a etnia neocristã e a religião cripto-judia eram mitos abomináveis inventados pelos inquisidores portugueses (instrumentos da classe dirigente senhorial) e que a denominação de "Cristãos-Novos" era uma designação demagógica inventada pela classe dirigente e pelos seus agentes inquisitoriais para afastar do poder (até aos tardios decretos de Pombal) a burguesia mercantil e os seus aliados. Estas hipóteses tinham ainda uma grande vantagem, para um ensaísta apressado, que não sente atracção especial pela poeira dos arquivos: a incompetência pessoal podia ser erigida em método historiográfico na medida em que estas hipóteses davam claramente a entender que a imensa documentação inquisitorial era, pela sua inautenticidade original e radical, desprovida de menor valor para o historiador.

- Acha que A. J. Saraiva mudou de esquema ideológico ao abordar, no seu livro de 1969, o problema dos Cristãos-Novos e da Inquisição?

- Inquisição e Cristãos Novos, de 1969, não faz senão transformar, graças a um estilo horrivelmente polémico e pretensioso, as hipóteses totalmente falsas de 1955-1956 em teses absurdas e demagógicas. Ora aquelas hipóteses foram objecto de críticas que, em 1969, A. J. Saraiva tenta escamotear ao transformá-las em objecções anónimas. Os leitores de Inquisição e Cristãos-Novos ignoram assim que:

1.º - a brochura de José Alcambar, O Estatismo e a Inquisição (Régua, 1956) citada em nota da p. 152 (sem que o seu conteúdo real seja revelado) tem um subtítulo significativo: Notas críticas ao livro "A Inquisição Portuguesa" de António José Saraiva;





2.º - eu próprio critiquei aquelas hipóteses aliás sem nenhuma acrimónia, numa conferência Qu'est-ce que les Marranes? publicada em Les Cahiers de l'Alliance Israélite Universelle, n.º 120, 1958, e num artigo Les Marranes, publicado na Revue des Études Juives, tomo CXVIII, 1959-60)».

Entrevista com o Prof. I. S. Révah conduzida por Abílio Diniz da Silva (in «Diário de Lisboa», 6-5-1971).





COMO NASCERAM OS CRISTÃOS-NOVOS PORTUGUESES


Diferentemente do que se deu em Espanha, não houve em Portugal grandes perseguições em cadeia, antes da expulsão geral ordenada pelo Rei D. Manuel em 1496. Os Judeus não fizeram ondas. Por isso não houve também conversões em massa, e a comunidade hebraica conservou-se praticamente intacta até àquela data. O problema dos Cristãos-Novos só apareceu depois.

A gente da nação hebraica vivia nas suas comunas privativas, as aljamas ou judiarias, nome português de ghetto, onde tinham as suas sinagogas. A lei não só reconhecia como também garantia aos Judeus o exercício do seu culto. Assim as Ordenações Afonsinas proíbem que um Judeu seja convertido pela força, e determinam que ao Sábado, dia santo da religião mosaica, o judeu não seja obrigado a comparecer em tribunal. As judiarias eram governadas pelos seus magistrados próprios, aos quais residia o Arrabi-mor, que estava directamente subordinado ao Rei, como uma espécie de ministro para os negócios hebraicos. Regulavam-se pelo seu direito nacional. Para dar exemplos: o seu direito de família, que admitia o divórcio, era diferente do dos Cristãos; no comércio do dinheiro não tinham que respeitar a lei cristã que nessa época proibia o juro. Pelos seus privilégios e regalias, de acordo com o sistema feudal, as aljamas pagavam ao Rei ou aos donatários determinados impostos.

Era certamente numerosa a população hebraica portuguesa, embora se ignore o seu montante. D. Manuel indemnizou, após a expulsão, os donatários de impostos pagos pelas aljamas. Segundo a lista respectiva, havia mais de 40 povoações importantes onde eles tinham bairros privativos. Essas povoações espalhavam-se de norte a sul e de leste a oeste do País. Havia aljamas nos portos principais, como Lisboa, Porto, Setúbal; havia-as nas cidades fronteiriças como Elvas ou a Guarda; nas cidades comerciais mais consideráveis como Santarém e Braga; nos centros agrícolas do interior, como Beja e Celorico da Beira; nas povoações do norte, como Guimarães, do sul, como Faro. As aljamas de Lisboa, Santarém, Évora, Porto, Guarda, Faro, Setúbal, Portalegre, contam-se entre as mais importantes pela população ou pela riqueza (1).

O poder económico da «gente da nação» é certamente muito considerável em Portugal. Quando em 1478 o Rei lançou uma contribuição para a defesa do Reino, os Judeus entraram com uma quinta parte do dinheiro que foi recolhido. Este «serviço» tinha por base a propriedade imóvel dos contribuintes, pelo que essa quinta parte está longe de representar a riqueza efectiva da comunidade hebraica portuguesa (2).

E não está só na riqueza desta comunidade, mas também nas funções que os seus membros desempenhavam. Os Judeus tinham praticamente o monopólio das operações financeiras, tais como o comércio do dinheiro, a cobrança das rendas do Estado e das grandes casas senhoriais, a administração das alfândegas. Além de que para essas operações dispunham de grande quantidade de capital móvel, só entre eles era possível recrutar o pessoal competente. Já desde a primeira dinastia eram hebreus os tesoureiros-mores do Rei, bem como os seus banqueiros e arrematantes da cobrança de rendas. Nesta função de técnicos financeiros eram indispensáveis à Coroa.


Museu Judaico de Belmonte. Ver aqui



Localização de Belmonte






No pólo oposto a esta alta burguesia (se assim se pode falar) encontramos uma multidão de artesãos. Alguns historiadores animados de preconceitos racistas e anti-semitas pretendem que os Judeus se limitavam a actividades usurárias e parasitárias (3). A realidade é muito outra. Os Judeus ibéricos não são apenas intermediários mas também produtores. Um edicto do Rei de Castela D. João II enumera alguns dos ofícios característicos dos Judeus espanhóis: tecelões, ourives, marceneiros, barbeiros, sapateiros, alfaiates, caldereiros, correeiros, seleiros, cordoeiros, oleiros, cesteiros, etc. (4). Em Portugal são muito frequentes as alusões aos ferreiros, alfaiates e sapateiros e outros «mesterais» judeus. É judeu, por exemplo, o alfaiate da Infanta D.Beatriz, filha de D. Afonso V. Em 1369, dos três ferreiros que trabalhavam na Arruda dois são Judeus (5). Em 1492, mediante uma redução no imposto de passagem, D. João II tentará atrair os ferreiros, latoeiros, malheiros (provavelmente fabricantes de malha metálica) e armeiros que a expulsão geral obrigava a sair de Espanha, o que mostra, por um lado, que os Judeus ibéricos eram peritos nas técnicas do ferro e, por outro lado, que havia falta, em Portugal, desses «oficiais mecânicos».

Entre estes ocupam lugar à parte os ourives, que são ao mesmo tempo detentores de metais preciosos, o que lhes permite realizar operações financeiras de tipo bancário. Deviam ser muito numerosos os ourives judeus, porque ainda em 1572, numa época de feroz repressão do judaísmo, o Regimento dos Oficiais Mecânicos de Lisboa determina que sejam cristãos-novos metade dos eleitores dos juízes da corporação (6).

Entre os mesteirais, que eram, ao mesmo tempo, vendedores da sua produção, e os financeiros, há toda uma gama de comerciante, a retalho ou por grosso. Os procuradores às Cortes requereram mais de uma vez ao Rei que retirasse aos Judeus o monopólio do comércio por grosso dos cereais que, alegavam, dava lugar a açambarcamentos.

Há, enfim, uma quarta função desempenhada pelos Judeus na vida portuguesa: aquela que em linguagem moderna designaríamos por função intelectual. Eles foram na Península Ibérica os herdeiros da ciência árabe. Cultivando a Astronomia e a Astrologia, tiveram um papel principal nas bases científicas da navegação atlântica portuguesa: Abraão Zacuto, judeu espanhol refugiado em Portugal, elaborou o Almanach Perpetuum por onde se guiaram os navegadores na orientação pelo astrolábio; um dos discípulos de Zacuto, Mestre José Vizinho, hebreu como ele, celebrizou-se por ter determinado a latitude da Guiné. Nesta época a Astrologia era hostilizada pela igreja por razões meramente teológicas (não as havia então científicas para tal condenação). Nem por isso a corte deixava de ter o seu astrólogo Judeu que fixava o horário das solenidades importantes. Ficou-nos o nome de Mestre Guedelha, «físico» (isto é médico) e astrólogo do Rei D. Duarte. Outra actividade em que os Judeus predominavam era a Medicina. Judeus eram os médicos da corte, e provavelmente a maior parte dos médicos do País. A tradição médica hebraica manter-se-á em Portugal muito para além da conversão forçada. Havia desta forma um sector intelectual hebraico caracterizado pelo cultivo das ciências exactas e das ciências da natureza, em face do sector intelectual cristão, constituído pelo Clero, mais identificado com as ciências teológicas e literárias. Não é certamente por acaso que no século XVI os dois maiores nomes da ciência portuguesa são os dois descendentes de Judeus: o Dr. Pedro Nunes, inventor do nónio, e Garcia de Horta, autor dos Diálogos dos Simples e Drogas, obra que correu a Europa em várias traduções (7). Ambos são defensores do chamado «espírito experimental». Nem por isso deixamos de encontrar Judeus em actividades mais tipicamente literárias: no Cancioneiro da Vaticana– colecção de poesia palaciana do séc. XIV – encontramos composições de Vidal «Judeu de Elvas»; Zurara cita como «grande trovador» Judá Negro, servidor da Rainha D. Filipa de Lencastre.







Facto muito significativo não só da importância cultural dos Hebreus em Portugal, mas também da qualidade do seu artesanato: o primeiro livro de que há notícia segura ter sido impresso em Portugal é o Pentateuco, em caracteres hebraicos numa tipografia hebraica de Faro em 1487. Até 1497, data em que Rodrigo Álvares imprime no Porto os Evangelhos e Epístolas, são judeus os únicos tipógrafos de origem portuguesa, pois até essa data, como se sabe, os livros impressos em Portugal são fabricados por alemães. O exercício da tipografia é, nesta época, um índice muito significativo do progresso artesanal de um país.

Estes elementos bastam para nos dar uma noção da importância vital dos Judeus como orgão da sociedade portuguesa medieval, assim como da diversidade de funções que exerciam.

Seria porém exagero afirmar que eles constituíam nesta época a totalidade da burguesia, ou «classe média», portuguesa. Em face deles, em parte concorrente com eles, há um artesanato cristão e uma burguesia mercantil cristã. Sujeita a leis discriminatórias e livre de praticar o seu culto religioso, a população hebraica não se misturava com a cristã e mantinha a sua pureza religiosa e étnica. Entre o artesanato cristão e o artesanato hebraico, entre a burguesia do Talmude e a burguesia do Evangelho, passa uma fronteira. Há vários indícios de rivalidade entre estes dois grupos. Segundo Fernão Lopes, após a morte de D. Fernando, em 1383, os «homens bons» da cidade de Lisboa, isto é, os representantes da aristocracia burguesa, apresentam à Rainha viúva algumas reivindicações que tinham em vista a participação do Terceiro Estado no governo do Reino. Entre outras coisas, exigiam que fossem retirados aos Judeus os «ofícios públicos» que lhes dera D. Fernando, e que eles não fossem mais recebedores de direitos e rendas do Rei, nem funcionários da Corte. A Rainha responde que sempre em vida do marido se opusera à nomeação de «oficiais» judeus e que depois da morte dele demitira o tesoureiro e o almoxarife da Alfândega de Lisboa. Promete dar estes e outros ofícios a Cristãos, mesmo que estes por eles paguem menos que os Judeus (8).

Os mesmos protestos se manifestam um século depois, nas cortes de 1481-1482. Aqui volta a ouvir-se a voz dos «homens bons», representantes dos «povos», exigindo a demissão dos Judeus que cobravam e espoliavam o povo cristão. Mas desta vez o Rei, D. João II, responde que os arrendatários cristãos eram ainda mais gananciosos que os hebraicos. Ouve-se também a queixa do artesanato, pedindo que os alfaiates, sapateiros e outros artífices judeus não possam trabalhar fora das judiarias, porque, diziam os queixosos, em casa dos lavradores cristãos abusavam das suas mulheres e filhas (9).

Perante esta pressão do chamado braço popular – a burguesia e artesanato cristãos, o «povo miúdo» -, a posição da Coroa e dos grupos dirigentes – a alta nobreza e uma parte pelo menos do alto clero - consistiu em defender os Judeus de forma constante e eficaz, dando aos inimigos deles satisfações puramente verbais. Extremamente significativo é o que passa no início da revolução de 1383. Lisboa estava insurreccionada, e o poder de facto era exercido pelo Mestre de Avis (futuro Rei D. João I), apoiado pela massa popular. Um bando de «gente miúda» investe contra a judiaria para a saquear a pretexto de obter dinheiro para a revolução. Aconselhado por dois fidalgos da alta nobreza, o Mestre de Avis (que na véspera tinha deixado assassinar o bispo de Lisboa às mãos da multidão) vai pessoalmente junto dos assaltantes e, pondo em jogo toda a sua popularidade, consegue arrastá-los atrás de si para longe da judiaria (10). Há vários outros exemplos de protecção eficaz dada pelos Reis aos seus súbditos judeus. Em 1449, o corregedor de Lisboa manda açoitar publicamente certos cristãos que tinham insultado judeus da rua. Daqui resultou um motim e um assalto à Judiaria. O Rei, que estava fora da cidade, acorreu com uma tropa armada para estabelecer a ordem, e mandou enforcar numerosos responsáveis destas violências (11).





Tabelas afonsinas, El Libro del Saber de Astronomia

Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio.


Todavia a protecção do Rei, bem como a de alguns nobres, em nada altera o essencial da situação dos Judeus na sociedade cristã. Favorecidos ou não pelos magnates que recorriam aos seus serviços e utilidades, os Judeus constituíam uma classe de párias à margem da sociedade comum. Nas Partidas de D. Afonso X, o Sábio, lê-se que a Igreja e os Príncipes permitiam que os Judeus vivessem entre os Cristãos em cativeiro perpétuo para que se conservasse a lembrança de que eles descendiam da linhagem dos que crucificaram Nosso Senhor Jesus Cristo. É esta uma justificação teológica de uma situação social. Os Judeus não faziam parte do «povo»; não tinham, portanto, nem os direitos nem tão-pouco as obrigações do povo. O poderem praticar a usura, por exemplo, não era um privilégio mas uma exoneração das regras a que está sujeito um membro da comunidade, da mesma forma que o era para as prostitutas poderem convidar um homem na rua, contrariamente ao estatuto normal da mulher. Exerciam uma função social que se considerava inevitável mas degradante no mundo feudal. O favor que pudessem receber dos poderosos não era, portanto, sinal de valia social, mas a expressão do apreço caprichoso e interessado que se pode ter por um animal doméstico, um escravo, uma mulher comprada, um bobo da corte, um jogral, apreço cuja manifestação pode ser justamente uma exibição de poder. O rei protegia contra o cristão o seu judeu. Mas os mesmos príncipes, que protegiam os judeus detentores do dinheiro, encarregavam-nos de funções odiosas, como a de cobrança de impostos e direitos, colocando-os numa posição que tem analogias com a do carrasco.

Naturalmente que haveria que matizar este esquema, atendendo sobretudo a que os Judeus tinham o seu poder próprio, que era o do dinheiro, poder que não tinha lugar reconhecido na ideologia feudal, mas que lhes dava uma certa posição de força. Mas tais nuances não alteram o fundo da questão, sobretudo no aspecto ideológico, que é o que agora consideramos.

Em 1492 os Judeus espanhóis foram expulsos pelos Reis Católicos, nas condições a que já aludimos. Uma parte destas centenas de milhares de emigrantes forçados saiu pelos portos marítimos, outra parte, pela fronteira portuguesa. A atitude do Rei de Portugal nesta emergência mostra uma vez mais a disposição favorável da Coroa relativamente à população judaica: o Rei não fechou a fronteira aos fugitivos. Segundo Damião de Góis (o cronista oficial da Corte, na crónica que publicou 70 anos depois e para a qual utilizou os documentos do arquivo real), exigiu deles um imposto de 8 cruzados por cabeça e deu-lhes um prazo para embarcarem, findo o qual seriam reduzidos à escravidão. Outros autores falam de 1 e 2 cruzados, importância acessível à maior parte das famílias. De qualquer forma, além das famílias que pagaram o imposto, outras transpuseram clandestinamente a extensa fronteira hispano-portuguesa. Para os ferreiros, armeiros, malheiros e latoeiros, como já vimos, este imposto foi reduzido a metade, o que só pode interpretar-se como um convite indirecto a estabelecerem-se no Reino: trata-se de uma categoria de oficiais mecânicos indispensáveis à indústria de armamento de guerra.

Embora não seja possível cifrá-lo, o número de Judeus espanhóis entrados em Portugal é certamente muito elevado. Abraão Zacuto, o matemático do Almanach Perpetuum, ele próprio refugiado em Portugal, fala de 120 000 pessoas; e Damião de Góis, pertencente à geração seguinte à dos protagonistas destes acontecimentos, refere-se a 20 000 famílias. As duas estimativas não se afastam muito. Seja qual for o número exacto, trata-se de uma penetração massiva (12).

Uma parte destes refugiados embarcou para o Norte de África, outra parte ficou. Os que ficaram foram reduzidos à escravidão, vendidos ou doados pelo Rei, passado o prazo concedido para a partida.



Brasão Real dos Reis Católicos



Tomás de Torquemada e os Reis Católicos


Esta situação de escravatura durou poucos meses: em 1495, ao subir ao trono, o novo Rei D. Manuel restituiu-os à liberdade. Mas logo a seguir, para casar com a filha dos Reis Católicos, casamento que lhe dava a posição de herdeiro do trono de Castela e Aragão, comprometeu-se a expulsar os Judeus que viviam no seu Reino. Data de 5 de Dezembro de 1496 a lei que ordena a saída de Mouros e Judeus, que são «filhos de maldição», até ao mês de Outubro, inclusive, do ano seguinte. Poderiam, segundo a lei, levar consigo as fazendas e fazer-se pagar as dívidas de que eram credores. Seriam indemnizadas as pessoas que recebiam direitos e rendas das judiarias (13).

As medidas que acompanharam esta lei e a forma como foi aplicada mostraram à evidência que o Rei de Portugal estava firmemente decidido a evitar que os Judeus abandonassem o País. Notemos que o Rei de Portugal deu um prazo superior a 10 meses para a partida, quando os Reis Católicos, num território muito mais extenso e para uma população maior, apenas concederam 4 meses. Esse tempo, foi aproveitado pelo Rei. Primeiramente, mandou baptizar à força todas as crianças judias menores de 14 anos. Essas crianças foram retiradas às famílias de origem e entregues a famílias cristãs. Perdeu-se o rasto delas. Na terceira década do séc. XVIII, D. Luís da Cunha pretende que foram criadas nos arredores de Lisboa sendo os antepassados dos chamados «saloios». Pela mesma época, António Nunes Ribeiro Sanches, bem informado da história da Inquisição, afirma que foram criadas em Alfama (bairro de Lisboa) e nas Ilhas. Tanto Cunha como Sanches notam que dos descendentes destas crianças criadas em famílias cristãs não saíram judaizantes (14).

Outra medida tomada por D. Manuel, enquanto corria o prazo para a saída dos Judeus, foi isentar de qualquer inquirição religiosa os novos cristãos, durante um prazo de 20 anos (provisão de 30 de Maio de 1497). Isto significava que não seriam admitidas durante esse tempo acusações por Judaísmo. Trata-se evidentemente de uma garantia contra uma eventual inquisição e contra violências semelhantes àquelas de que estavam sendo objecto os Cristãos-Novos espanhóis, garantia que tinha em vista tranquilizar aqueles que o medo, mais que a fé, podia incitar à expatriação (15).

Entretanto, tudo foi feito para dificultar o embarque dos Judeus que insistiam em partir, apesar de o Rei se ter comprometido a fornecer-lhes meios de passagem. Um único porto lhes foi facultado, o de Lisboa. Ali se juntaram, segundo Damião de Góis (16), cerca de vinte mil judeus vindos de vários pontos de Portugal. Mas um bando de frades acompanhados de sicários investiu os locais onde eles estavam concentrados, e, violentando-os lançou sobre eles a água do baptismo. A partir desse momento eles eram considerados cristãos, portanto súbditos da Igreja, e se insistissem na sua religião anterior eram passíveis das penas que recaíam sobre os apóstatas. Alguns Judeus conseguiram embarcar apesar de tudo; mas a quase totalidade deles ficou em Portugal, de boa ou má vontade.

Em relação a estes, D. Manuel praticou uma política coerente de integração pacífica. Toda a sua legislação tende claramente a suprimir a discriminação entre os Cristãos-Velhos e os antigos Judeus, fixando no País o maior número possível destes.

Em 1499 (21 e 22 de Abril) proibia-se a emigração dos novos cristãos, especialmente quando levassem as famílias. É uma medida discriminatória cuja intenção se compreende se soubermos que ao mesmo tempo o Rei de Portugal se recusava atender os pedidos dos Reis Católicos para que lhes fossem entregues os Judeus espanhóis que se refugiavam em Portugal. Dir-se-ia que para D. Manuel quantos mais Judeus melhor. Toda a discriminação foi abolida pela lei de 1 de Março de 1507, na qual, além de se permitir a saída dos Cristãos-Novos para o estrangeiro, se declara: «E nos praz que em tudo sejam havidos, favorecidos e tratados como próprios Cristãos-Velhos sem deles serem distintos e apartados em cousa alguma». Já, de resto, por diploma de 15 de Março de 1502 fora abolida uma lei anterior à conversão forçada, segundo a qual os Judeus ou Mouros que se convertessem recebiam imediatamente os bens paternos que lhes cabiam em herança.

Torquemada atira com um crucifixo contra um judeu, em Expulsão dos Judeus de Espanha, de Emilio Sala.

Assim acabaram em Portugal os Judeus e nasceram os Cristãos-Novos. Como se viu, de forma bem diferente do que ocorreu em Espanha. Neste último país, onde havia uma classe numerosa de convertidos à data da expulsão, milhares de Judeus puderam optar pelo exílio; em Portugal os Judeus não tiveram alternativa. Em Espanha há convertidos de diversas épocas e em diversas situações; em Portugal há uma conversão forçada em bloco de toda a população hebraica. Em Espanha existiam à data da expulsão leis discriminatórias contra os conversos, que estavam sujeitos às perseguições e opressões inquisitoriais; em Portugal não existiam à data da expulsão, e continuaram não existindo durante perto de quarenta anos, nem Inquisição nem limpeza de sangue.

Quase diria, se não fosse a violência exercida contra a consciência religiosa dos novos convertidos, que eles foram enormemente beneficiados com as leis manuelinas. Não só conservaram todos os seus bens, não só ficaram isentos de pesados impostos, como se lhes abriram, por força da lei, todas as posições até então reservadas aos Cristãos. A política inexcedivelmente maquiavélica de D. Manuel, combinando a violência e a sedução no propósito não só de conservar os Judeus portugueses, mas ainda de atrair os castelhanos, é provavelmente inspirada por razões de Estado. Tudo leva a crer que para a economia do Reino, onde praticamente não havia Judeus convertidos, a expulsão poderia redundar num desastre sem recurso.

Em que medida foi alcançado o propósito da legislação manuelina, isto é, a integração da minoria? A este respeito dispomos de poucos elementos relativos à época que medeia entre a expulsão e o estabelecimento da Inquisição. Como diz o Sr. Poliakof, entre os Judeus e a Espanha não está ainda completamente enterrado o machado de guerra; mas relativamente a Portugal o que sucedeu nestes anos «não parece ter deixado traços particulares nas tabuletas da prodigiosa memória histórica dos Judeus» (17). Alguns indícios, no entanto, fazem crer que a política de integração dava os seus frutos.

Quinze anos depois da conversão forçada, em Abril de 1512, D. Manuel acrescentava mais dezasseis anos no período de vinte, concedido em 1497, durante o qual os conversos não eram sujeitos a inquirições religiosas. Sinal de que não havia, pelo menos de forma pública e escandalosa, problema religioso quanto aos antigos hebreus. Mas, violando aparentemente esta promessa, o Rei de Portugal escreveu ao seu embaixador em Roma em 26 de Agosto de 1515, encarregando-o de pedir ao Papa uma inquisição segundo o modelo da castelhana. É curioso notar, todavia, que essa carta se refere quase exclusivamente aos refugiados que «se passarem e cada dia agora se passam, por medo da dita Inquisição [de Castela], a estes nossos reinos», acerca dos quais é informado que não vivem como devem nem dão bom exemplo. «Pelo que, e porque satisfaçamos ante Deus com a obrigação que nisto lhe temos, não somente acerca destes que assim são vindos de Castela a estes novos reinos e senhorios, mas ainda acerca dos Cristãos-Novos naturais deles, que neles se converteram em tempos passados à nossa Fé, nos parece que devemos mandar entender com fiel e justa inquisição para castigar os faltosos» (18). Parece que os Cristãos-Novos naturais do Reino são aqui aludidos por mera cláusula de estilo, e que o problema estava nos que vinham de fora. De toda a maneira esta diligência não foi levada avante e não podemos excluir a hipótese de que ela é meramente um gesto para dar satisfação às pressões do Rei de Espanha, a que já aludimos, no sentido de impedir a entrada em Portugal dos conversos espanhóis que eram nesta época vítimas de uma repressão ferocíssima. Conjectura tanto mais fundada quanto é pouco provável que D. Manuel estivesse na disposição de romper os seus compromissos anteriores para com os seus súbditos hebraicos, compromissos que o próprio D. João III respeitou.

Antecipando-nos ao que teremos para dizer adiante, notemos que em 1542 um Cristão-Novo, Mestre Jorge Lião, falando em nome de «este povo» ao procurador em Roma dos Cristãos-Novos portugueses, calcula o número deles em «60 000 almas» (19). E em 1560 Lourenço Pires de Távora, embaixador de Portugal em Roma, em carta ao Cardeal D. Henrique, punha-o de sobreaviso contra os excessos dos inquisidores, dando a entender que o Judaísmo não merecia um rigor excessivo, porque «não se pode estender a mais que aos da nação (isto é, à gente de origem hebraica), que já é pouca» (20).




Os dois testemunhos são concordes. O número dado por Mestre Jorge Lião é muito inferior àquele que se estima para a população judaica portuguesa mesmo antes da entrada massiva dos emigrados de Castela. Távora considerava que essa população decrescia. E, com efeito, na lista de gente da nação fintada em 1604 para pagar o preço do perdão geral então concedido, figuram já apenas seis mil famílias, que não podiam corresponder a muito mais de trinta mil pessoas, sendo que muitas famílias foram abusivamente postas nessa lista, segundo a opinião de que se faz eco o Cristão-Novo Ribeiro Sanches (21). Supomos que nestes cálculos e avaliações se contam apenas os Cristãos-Novos inteiros.

Ora este decréscimo explica-se por três causas. A primeira é terem sido arrancadas às famílias judaicas em 1496 as crianças menores de 14 anos que parece terem-se confundido na população cristã. A segunda é a expatriação de Cristãos-Novos que nunca deixou de se verificar, sobretudo a partir de 1536. A terceira e mais importante são os casamentos entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos, que eram muito numerosos, como atestam documentos e testemunhos a que adiante faremos referência. Por si só os casamentos entre famílias cristãs-velhas e cristãs-novas são indício de que estava em curso a assimilação dos antigos Judeus pela população portuguesa, conforme o pretendia a legislação manuelina.

Alguns autores parecem considerar como óbvio que os antigos Hebreus não se assimilaram, e que na sua maioria, senão na totalidade, continuaram praticando o seu antigo culto. A meu ver semelhante asserção precisa de ser comprovada, e não pode sê-lo apenas com alguns processos isolados. Esses só provam que algumas famílias continuavam fiéis à tradição ancestral, e isso sim é óbvio. Mas nada provam quanto ao conjunto da população hebraica que é o que está em discussão. A ideia de que os Hebreus portugueses resistiram à assimilação não passa de uma presunção.

Mas a presunção oposta, a saber que a antiga população hebraica portuguesa entrou, com as leis manuelinas, no caminho da integração, tem a seu favor, além dos indícios referidos, boas razões sociológicas. A religião hebraica era em Portugal um culto público e oficial, com sinagogas, livros sagrados e regras de vida colectiva. Reduzido à clandestinidade, um culto deste género só pode degradar-se e esvanecer-se. Como tendência, só subsistem íntegras na clandestinidade rigorosa as religiões que dentro dela nascem. Os antigos Hebreus tiveram de submeter-se quotidianamente ao culto público cristão, aos ritos e à disciplina da Igreja. Evidentemente que as primeiras vítimas de conversão forçada o não fizeram de coração sincero. Mas um ritual que se pratica ao longo dos anos e das gerações não pode manter-se indefinidamente como uma atitude hipócrita ou forçada. O praticante é condicionado pela prática; o grau desse condicionamento é função do tempo e da pressão exercida pelo meio integrador. Notemos, a propósito, que, pela pressão do poder e não pela adesão espontânea das almas. Cujus regio ejus religio [De tal país, de tal religião].

As condições particulares de Portugal eram, como vimos, muito favoráveis à assimilação. O marranismo espanhol resultou de que durante mais de um século os novos convertidos se sentiam ao mesmo tempo atraídos pela Igreja e pela Sinagoga, que existiam lado a lado. Essa situação nunca se deu em Portugal: aqui nunca houve lugar para arrependimentos, duplicidades, indecisões ou crises de consciência; as pontes de regresso estavam cortadas. Por outro lado, as vantagens resultantes da integração – que do ponto de vista material mantinha todos os benefícios da situação anterior acrescidos de outros, bem consideráveis – não podiam deixar de fazer sentir os seus efeitos calmantes e compensatórios, uma vez passados o traumatismo e a desorientação dos primeiros momentos... (in Inquisição e Cristãos-Novos, Editorial Estampa, 1985, pp. 27-38).






Notas:

(1) Documento publicado por Braamcamp Freire, Archivo Histórico Português, tomo 2, p. 201 e seguintes. Resumido por Lúcio d'Azevedo em História dos Cristão-Novos Portugueses, Lisboa, 1921, p. 44.

(2) Braamcamp Freire, ibid. tomo IV, Azevedo, ibid. p. 35.

(3) Esta crença vulgar foi propagada não somente pelos profissionais do anti-semitismo mas também por eruditos tão responsáveis como Lúcio d'Azevedo e J. C. Baroja.

(4) Texto citado por Newman, The Jews in Spain, 1944, vol. 1, p. 187.

(5) Oliveira Marques, Estratificação económico-social de uma vila portuguesa da Idade Média, Lisboa, 1963. Gil Vicente refere-se aos judeus ferreiros, Farsa de Inês Pereira, versos 684-685.

(6) Livro do Regimento dos Oficiais Mecânicos de Lisboa, edição de Virgílio Correia, p. 1.

(7) Sobre Garcia de Orta, ver I. S. Révah, «A Família de Garcia de Orta», em Revista da Universidade de Coimbra, Vol. 19 (1960). Sobre Pedro Nunes, v. os extractos do processo inquisitorial publicados por António Baião, em Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, Vol. I, 2.ª edição.

(8) Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando.

(9) Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 8.ª edição, p. 120.

(10) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, I parte.

(11) Rui de Pina, Crónica de D. Afonso V, cap. CXXX.

(12) Azevedo, ob. cit., pp. 20-21.

(13) Ver o texto da lei nas Ordenações Manuelinas, livro II, t. 41.

(14) D. Luís da Cunha, Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, ed. 1930, p. 90. António Ribeiro Sanches, Origem da denominação de Christão-novo e Christão-velho, ed. de Raul Rego, p. 17.

(15) Esta lei encontra-se também nas Ordenações citadas. Nas reclamações dos Cristãos-Novos ao Papa, publicadas no Corpo Diplomático Português, há várias alusões ao compromisso tomado pelo rei D. Manuel de não introduzir a Inquisição em Portugal. V. gr. carta de 12-2-1561, vol. IX desta colecção.

(16) Crónica de D. Manuel.

(17) Léon Poliakof, De Mahomet aux marranes, Paris, 1961, p. 203.

(18) Corpo Diplom. citado, vol. I, na data indicada.

(19) Ibid. vol V, Dezembro de 1542. (Pp. 158-167).

(20) Ibid. vol. III, 18-1-1560. (P. 310).

(21) Ribeiro Sanches, ob. cit., p. 45.






Continua


Inquisição e Cristãos-Novos (ii)

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Escrito por António José Saraiva




Alexandre Herculano


«Os estudos de Herculano sobre o crédito e a lei eleitoral, assim como os artigos publicados em O Português sobre descentralização, revelam, além da sua desconfiança em face das abstracções sem alcance para resolver os problemas do país, o sentido das suas próprias propostas. As anteriores doutrinas políticas por generalidades (ordenadas à volta da Constituição de 1822 e da Carta Constitucional de 1826), acabando por confluir em muitos pontos na Regeneração de 1851, obrigavam a novas propostas doutrinais e à definição de soluções de governo que lhes correspondessem. Agora os problemas nacionais eram outros ou eram postos de forma diversa. Do mesmo modo que a Carta Constitucional representava o modo prático de exercer as liberdades políticas e as leis de Mouzinho da Silveira constituíam o esquema administrativo, impunham-se, agora, novas tarefas ao liberalismo consolidado no Poder. Para as executar, Herculano só considerava "liberais" os que defendiam a criação de orgãos do exercício regional do poder público, assim como a aplicação local da poupança. No plano espiritual, garantida a liberdade das opiniões, a religião devia ter os seus institutos, adequados, sobretudo, à intimidade soberana das convicções. O exercício das liberdades, em todos os domínios, tinha de ser garantido, em concreto, de uma forma tão incorruptível como os valores que defendia. O programa liberal seria a expressão do modo de realizar estas aspirações. Quais os obstáculos que poderá encontrar? É para esclarecer este ponto que se insere, nos planos de Herculano, o estudo do Tribunal do Santo Ofício.

Expunha com mais ênfase do que antes a ideia de que o liberalismo só funciona como tal se todos os seus orgãos mantiverem processos liberais antimultitudinários e anticentralistas. A amarga experiência, aquando do primeiro Governo de Saldanha e dos acontecimentos subsequentes, tornaram-no seguro de que assim era, embora se não tivesse apercebido logo das dificuldades dessa condição, de aparência tão simples. A exigência acabará por dominá-lo por completo, transformando-o numa espécie de Catão vigilante do liberalismo e está na raiz de múltiplas polémicas em que intervém. As consequências da defesa desse objectivo na sociedade portuguesa, cujo desenvolvimento tantos apresentavam como dependente, sobretudo, do crédito externo, deve ter contribuído, em não pequena escala, para a evolução psicológica e moral que o levou a Vale de Lobos. Pontos que interessam à determinação do contexto em que se desenvolveu a exigência da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal.

As ideias de Herculano sobre crédito, impostos, descentralização e Parlamento bem eleito (cuja exposição não importa aqui) envolvem uma hierarquia própria e naturais correlações com uma atitude partidária. Desde 1851 que o alvo das suas preocupações se dirige aos perigos da centralização. No seu entender, esta, transferindo-se do absolutismo para o parlamentarismo de direcção central, tornara-se o principal obstáculo para a classe média, cujo fortalecimento só podia ser local. Resulta daí que combater o centralismo em todas as formas passou a ser o seu principal objectivo.

Semelhante ao centralismo absolutista, no seu foro correspondente, a Igreja de concepção papal é adversária das liberdades religiosas e da crença individual, sobrepondo a organização e as exigências da instituição à intimidade religiosa. O seu poder tornara-se ainda maior do que o absolutismo político, pela coacção psíquica que exercia. O Santo Ofício constituía, no entender de Herculano, o exemplo de como essa coacção religiosa, em dada altura, se uniu ao absolutismo real e de como tal resultou a dominação do país.




E se o centralismo parlamentar (e as forças que o apoiam) se unirem de novo ao perene centralismo papal?

Centralismo parlamentarista e Igreja papal exprimem pólos de uma mesma ameaça às liberdades fundamentais, sempre em perigo de desaparecerem pelo amolecimento das resistências morais trazido pela centralização. Na década de 50, para Herculano, concretizava-se a renovação do perigo dessa unidade entre o centralismo parlamentar e o clerical, assim como o século XVI tinha visto o entendimento entre o centralismo absolutista e o papal. Importava esclarecer, ou seja, defender, a classe média, impedindo que ela fosse sugestionada pelas eficiências ordeiras do centralismo, apoiado em forças religiosas e militares ou pelas ideias socialistas, expressão estas de um centralismo social. O ponto de vista de que a classe média se torna invencível quando dispuser de uma forma de governo que apele para formas maleáveis e livres de organização local é a base do ideário fundamental de Herculano, constantemente defendido a partir de 1851.

Coloca-se dentro deste contexto o Prólogo da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal e a própria obra.

(...) A posição de Herculano assenta na convicção quanto à superioridade do liberalismo como organização política; da propriedade, como defesa do interesse económico, e da liberdade de consciência, como forma do ser moral. As vias que tomou têm o maior interesse para o conhecimento da mentalidade política portuguesa, no seu desvio para as ideologias sem função dinâmica, e para se compreender o papel desempenhado pelo anticlericalismo, que tanto impressionou e dividiu o português comum.

Muitos foram os aspectos em que a actividade de Herculano na vida política teve influência reduzida, exprimindo-se mesmo fora das forças reais do país; cite-se, por exemplo, a sua atitude a respeito do exército, que não encontrou qualquer eco e que nem ele próprio conseguiu formular com rigor. No entanto, essa atitude negativa, relativamente à organização militar (por chocar com a descentralização), é a única forma de entender a amplitude que tentou dar ao conflito entre o poder central e a Câmara de Belém, ocorrido nos princípios de 1854, quando era presidente desta última. Outros casos houve em que a posição do historiador veio entroncar numa forte tradição política que chegou até nós, com amplos reflexos nas aspirações políticas de diversas correntes nacionais, mas, de facto, sem chegar a influir na orientação da governança. Citemos a descentralização, tantas vezes afirmada, acabando por se sujeitar a fortes limitações práticas. O próprio republicanismo só a aceitou nos objectivos teóricos; embora tivesse sido uma importante fonte de sugestões no pensamento político português, nunca teve (nem podia ter) uma aplicação sistemática, saturada, como está, de utopismo.

Houve, porém, um aspecto do pensamento de Herculano que, esse sim, exerceu influência profunda e perdurável: a sua atitude anticlerical e antipapal. Ponto significativo (mas não único) para esta influência foi a Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Nesta obra culmina a sua antiga preocupação de conciliar a vocação íntima e livre do cristianismo com o liberalismo. Considerava-os da mesma natureza intrínseca por pressuporem uma mesma definição da personalidade do homem, como livre e agente. Para Herculano, a Igreja só é indispensável, como forma de organização, assembleia e continuidade, para assentimento e coesão dos fiéis. Considerava ainda que dentro dela se desenvolvem forças que procuram dar mais importância à orgânica institucional e seus interesses do que ao espírito religioso, superiormente expresso no livre arbítrio. Para ele, as forças institucionais eram perniciosas ao cristianismo e constituíam o maior obstáculo à sua conciliação com o liberalismo: de modo tal que, em seu entender, numa Igreja centralista e papal, a sua conciliação com o liberalismo é impossível. Mas quando ligado à crença religiosa íntima, expressão superior da liberdade humana e seu garante, não há qualquer incompatibilidade intrínseca entre cristianismo e liberalismo. Para Herculano, a Igreja centralizada, que dizia provida de organismos com recursos externos de pressão sobre a intimidade religiosa, explorando-a, é a adversária do liberalismo. É esta a Igreja da sua História da Inquisição: representa o modo como o papado aproveita, em seu benefício, o fanatismo religioso - a quem alimenta pelo que lhe traz de bens materiais e influência. Por isso, seguindo sempre os pressupostos de Herculano, se o fanatismo religioso for substituído por uma fé íntima, servida, no necessário, por um clero desinteressado e humano, o cristianismo tornar-se-á o defensor inultrapassável contra a ausência de espírito religioso, o socialismo e todas as doutrinas democráticas da pressão do número.

Palácio dos Papas em Avinhão

Em contrapartida, um cristianismo fanático, receoso da concorrência das outras religiões, é um defensor do absolutismo ou de qualquer sistema visando a centralização. Foi desse modo que o papa e o rei - este sim "fanático" - se uniram para alcançar, cada um, as suas vantagens particulares. Os delegados papais teriam aproveitado o interesse real numa Inquisição ao serviço de um cristianismo sem liberdade, receoso das outras religiões. O rei aproveitou-a para reforçar o Poder, pela criação de um tribunal que vigiasse e amedrontasse os súbditos. Daí, duas conclusões: o cristianismo fanático perde as virtudes do verdadeiro cristianismo e torna-o pasto da "reacção", quando devia ser liberal; importa transformar o cristianismo no mais seguro suporte do liberalismo, o que só se conseguirá opondo-o ao centralismo papal. Quando o fanatismo, o centralismo papal e o centralismo político do Estado se encontram, ou se entendem, a consequência é a criação de orgãos restritivos da autonomia da crença, lado a lado com a restrição da liberdade, em todos os campos. A prova histórica tira-se da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Foi para demonstrar todos estes pontos de vista que Alexandre Herculano a publicou: serviria, no seu entender, para revelar os inconvenientes do cristianismo centralista, assim como para apontar o uso que, nestas condições, dele fazia o centralismo político.

A primeira vez que aproveita a história da Inquisição para apoio deste raciocínio surge, em Agosto de 1851, num artigo publicado n'O País. Dirigindo-se ao jornal absolutista A Nação, e a propósito das tradições que este reivindicava para os seus conceitos políticos, Herculano, com mais ênfase que verdade, no meio das suas considerações panfletárias, declara que "o primeiro resultado prático das vossas adoradas doutrinas é a Inquisição. [...] A Inquisição foi um cálculo frio e feroz do absolutismo de D. João III (este é vosso: guardai-o), que estava pobre pela sua falta de juízo pelas vaidades paternas. Quis queimar judeus para os roubar e pediu lume a Roma, que lho recusou largo tempo, porque não ignorava para que ele o queria". E acrescentava, lembrando acusações recentes: "Quando quiserdes a prova disso, falai: já se sabe, entrelinhadas, suprimidas, respançadas, viciadas segundo o velho costume de que nos acusais com as provas na mão, como bons e verdadeiros jesuítas". Anos mais tarde, executa a promessa com Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal - Tentativa Histórica.

A obra constitui, portanto, uma hipótese acerca do estabelecimento da Inquisição em Portugal, partindo de uma determinada interpretação da Igreja e do papado, assim como da história de Portugal: salienta o papel que D. João III desempenhou na instituição deste tribunal e dá como interesseira a resistência do papado a essas pretensões.

Delineado dentro destes conceitos prévios e gerais, o primeiro volume considerava que, nos doze primeiros séculos do cristianismo, seria intolerável um sistema de vigilância da fé "que não fosse do pastor da diocese". A situação teria começado a modificar-se com o Concílio de Latrão (1179) e a Constituição de 1184, acto do poder papal que alguns consideram "como a origem e gérmen da Inquisição". Herculano vai, porém, pôr o seu início em 1229, muito embora ela fosse diferente da que imperou no século XVI, pois "respeitava a autoridade episcopal" Outro conceito prévio implícito no livro é a distinção feita pelo autor entre "intolerância legítima", no mundo das ideias ("seria absurdo exigir do catolicismo que tolerasse o erro, que admitisse a possibilidade teórica de qualquer ponto de doutrina contrária à sua"), e "intolerância ilegítima", no domínio dos factos, quando se opunha à prática dos cultos diferentes. Noutro aspecto, tinha a ideia de que a causa da multiplicação das heresias e seu fortalecimento era a "corrupção e os abusos dos ministros da Igreja": o "excesso de indignação, transpondo os limites do justo", levava a "gerar o erro"; interpretação que actualmente (até já na época) não podemos deixar de tomar como elementaríssima, ao procurarmos compreender um fenómeno tão complexo e absorvente como é uma atitude herética. Neste caso, o termo "erro" não tem um sentido histórico, e a corrupção ou imoralidade se existem e em dado momento se agravam é porque dependem, não da doutrina ou dos sacerdotes, mas de condições que ultrapassam todos. O que uma heresia contesta é a explicação proposta por uma dada opinião religiosa que passa a ser tomada como insatisfatória, qualquer que seja a "virtude" dos seus sacerdotes. Há ainda a considerar que uma coisa é um conjunto elaborado de conceitos, envolvendo uma interpretação do sobrenatural, forjada em determinado meio, outra a sua difusão, assente na receptividade pública, cuja complexidade, em qualquer caso, é diversa da que levou à conceptualização teológica. A ideia de que uma heresia tem o motor na corrupção do "outro" clero revela-se inaceitável, face aos dados da história social e religiosa de que dispomos. Na hipótese mais favorável, a corrupção do clero - a provar-se que existiu - exige a prova de que provocou, nas gentes da época, a mesma indignação que suscitará no nosso tempo; terá, assim, de provar-se a aplicabilidade histórica do conceito de corrupção e que, para a combater, se torna necessário substituir os padrões religiosos. Pode ser que assim tivesse sucedido na sociedade do tempo de Herculano, mas o que interessava era provar que também se tinha verificado no século XIII. Por isso, Herculano, convicto da permanência intemporal destes juízos morais, usa-os sem qualquer suspeita de que - pelo contrário - constituem os problemas decisivos duma verdadeira história das religiões e da cultura.


Pendão Heráldico dos Reis Católicos


(...) Segue-se o relato acerca do tribunal em França e Aragão, quando a sua influência em Portugal, no século XVI, era nula e uma "ridicularia fradesca", no século XV. No entanto, neste século aparece, em força, no reino de Aragão, cujo rei, Fernando V, teve "a triste glória de ser o fundador da moderna Inquisição espanhola". Toma, assim, forma a mesma concepção pessoalista que há-de presidir à análise dos acontecimentos em Portugal e que, de certo modo, também orienta parte da sua interpretação sobre a origem de Portugal. Começa a análise do Santo Ofício no nosso país, quando salienta uma característica da Inquisição espanhola: enquanto esta, até uma dada altura, se dirigia, em especial, contra os hereges que tinham pertencido ao grémio cristão e nunca para os que sempre estiveram fora dele (mouros ou judeus), a partir da conversão forçada destes últimos, levantava-se todo o problema social da vigilância dos novos cristãos e que começou os seus passos em Aragão.

Feita a introdução histórica, que ocupa sensivelmente a terça parte do primeiro volume Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Herculano descreve a situação dos judeus em Portugal, no século XV, sobretudo depois de os Reis Católicos os terem expulso de Espanha. E na primeira ordem destes elementos prévios, concluía pela afirmação da qualidade judaica: "Superiores em indústria e actividade e dominados pela sede do lucro, apesar do desprezo ou da malevolência de que eram alvo, eles tinham desde os primeiros séculos da monarquia adquirido a preponderância que é o resultado inevitável da inteligência, do trabalho e da economia", acrescentando-se ainda a circunstância de que "talvez em parte nenhuma da Europa, durante a Idade Média, o poder político, manifestado quer nas leis, quer nos actos administrativos, favoreceu tanto a raça hebreia como em Portugal". Nestas condições, tinha-se tornado "como uma nação de certo modo à parte", havendo um indiscutível rancor ou "má vontade do povo contra eles", que crescia "de ano para ano", e essa malevolência, "que resfolgava tremenda", aumentava "pelo acréscimo repentino da população hebraica". Opinião apoiada nas actas dos "diversos parlamentos convocados durante a segunda metade do século XV", onde se clamava contra a desenvoltura dos judeus. E Herculano chegava à conclusão de que "sem que admitamos a conveniência ou a necessidade de converter em questão religiosa uma questão puramente social; condenando com todas as veras da alma uma instituição antievangélica, desonra do cristianismo, e que manchou as vestes puras do sacerdócio com largas e indeléveis nódoas de sangue; rejeitando, enfim, o pensamento atroz que presidiu ao estabelecimento da Inquisição, justamente porque nos parece que assim se teria evitado esta grande infâmia do século XVI, tão contrária à tolerância da Idade Média portuguesa, entendemos, todavia, que, chegadas as cousas aos termos em que se achavam no reinado de D. João III, cumpria reprimir severamente os judeus, impedir o abuso do dinheiro e, sobretudo, adoptar outro sistema de percepção de impostos; defender, em suma, os fracos contra os fortes, o trabalho contra o capital". Importaria saber, afinal, como procedia a época, quando se verificava esta situação.

Apesar destas peremptórias afirmações e de outras próximas, dispostas ao longo do livro, não há elementos para garantir que correspondam a factos proporcionais. Nunca se comparou a força económica dos judeus, antes da sua expulsão (nem dos cristãos-novos), com a de outros grupos sociais, quaisquer que fossem e fosse em que período fosse. Extrapolações de Herculano (úteis para a sua tese actualista, referida no Prólogo) que se tornariam menos interessantes ou até prejudiciais, se tivessem sido utilizadas na reconstituição dos acontecimentos de que o livro é objecto. Assentam elas na despromoção da importância económica das cidades como Lisboa, Évora, Porto, Braga, Viseu, etc. (Complexos agrários, artesanais e mercantis com valor regional, nacional e, por vezes, internacional), cujos cidadãos constituíam grupos sui generis, podendo, sem dificuldade, compreender gente de nobreza. Neste contexto, a capacidade numérica ou económica, tanto de judeus, como, depois, de cristãos-novos, era minoritária, quer na cidade de Lisboa, quer em qualquer outro centro português. Os grupos sociais não se uniformizavam ou definiam, como tais, no século XVI como no século XIX. A declaração de Herculano (assim como dos que depois a têm repetido, corroborado, desenvolvido ou glosado) não dá relevo, ainda e também, ao facto de grande número de judeus (e depois cristãos-novos) serem artífices, longe desse "à vontade" referido quanto a capitais disponíveis: eram trabalho.

Caberia no livro de Herculano a análise do conjunto social do país e dos interesses internacionais? Na lógica das considerações feitas pelo autor, certamente que sim, mas o que de forma alguma se concebe é que essa informação social se baseie exclusivamente nos "artigos" das Cortes de 1525 e de 1535, fontes interessadas na hipertrofia dos dados apresentados, uma vez que visavam propiciar decisões reais. Do mesmo modo, a informação não poderia assentar em generalidades ou afirmações abstractas fora dos circuitos económicos convenientes; assim como não tem sentido fazer comparações, nesse domínio, esquecendo outros grupos, nomeadamente os estrangeiros. Com efeito, em caso algum podemos supor que, em Portugal, a única, ou mesmo a principal, base dos confrontos sociais e económicos dinâmicos estivesse na luta bipolar entre portugueses, sejam cristãos-novos ou cristãos-velhos, nobres, fidalgos ou não. Podemos até perguntar se esse confronto tem algum significado, esquecendo o papel desempenhado por italianos, alemães, flamengos, espanhóis, etc. Com quem se aliavam? Com os cristãos-velhos? Com os cristãos-novos? Em que circuitos económicos eram concorrentes? Que vantagens davam os cristãos-novos a quem se aliasse com eles? E com os cristãos-velhos, também capitalistas, nobres mercadores ou entidades como mosteiros, confrarias, irmandades, etc.? Problemas que vão muito além de uma dinâmica social escorada em miunças de inveja, pobreza, fanatismo ou na preocupação colectiva com o assassínio acintoso de doentes disponíveis, motivos muito referidos por Herculano para salientar o comum rancor português ao cristão-novo. Assim como luta de interesses não significa sempre luta de classes».

Jorge Borges de Macedo (Introdução a Alexandre Herculano, «História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal», Tomo I, Livraria Bertrand, 1975).



«A constituição promulgada por Lúcio III em 1184 é considerada por alguns escritores como a origem e gérmen da Inquisição. Aquele acto do poder papal, expedido de acordo com os príncipes seculares, ordena aos bispos que, por si, pelos arcediagos, ou por comissários de sua nomeação, visitem uma ou duas vezes por ano as respectivas dioceses, a fim de descobrir os delitos de heresia, ou por fama pública ou por denúncias particulares. Nessa constituição aparecem já as designações de suspeitos, convencidos, penitentes e relapsos, com que se indicavam diversos graus de culpabilidade religiosa, com diversas sanções penais. Todavia, conserva-se aí a distinção dos dois poderes, limitando-se a Igreja aos castigos espirituais e deixando ao poder secular a aplicação de outras penas. Não parece ter-se aí por objecto senão combater a frouxidão dos prelados e compeli-los a desempenharem o seu dever. As comissões extraordinárias a que nela se alude não são na essência cousa diversa dos antigos sínodos, exercendo pura e exclusivamente uma delegação dos bispos. O que naquela constituição há mais notável é o fixarem-se, até certo ponto, as fórmulas do processo eclesiástico em relação aos dissidentes; mas essas fórmulas não ofendiam a razão, porque não desarmavam os acusados das necessárias garantias. Mal se pode, portanto, ver no acto de Lúcio III a origem de um tribunal cuja índole era exactamente contrária ao espírito das provisões que aí lemos, e que apenas tem comum com elas a ideia de um sistema especial de processo para esta ordem de réus.

Foi, verdadeiramente, no século XIII que começou a aparecer a Inquisição, como entidade, até certo ponto, independente; como instituição alheia ao episcopado. Altivo, persuadido, já antes de subir ao sólio, dos imensos deveres e, por consequência, dos imensos direitos do pontificado, resolvido a reconquistar para a Igreja a preponderância que lhe dera Gregório VII e a restaurar a severidade da disciplina, meio indispensável para obter aquele fim, Inocêncio III não se mostrou, nem devia mostrar menos activo na matéria das dissidências religiosas do que nas questões disciplinares. Não se contentou com excitar o zelo dos bispos. No Sul da França e, ainda, nas províncias setentrionais da Espanha, apesar das providências tomadas anteriormente, a heresia lavrava cada vez mais possante, favorecida por diversas causas. Em 1204 Inocêncio enviou a Tolosa três monges de Cister, com plenos poderes para procederem imediatamente contra os hereges. Levavam comissão do pontífice para, nas províncias de Aix, Arles e Narbona e nas dioceses vizinhas, até aonde vissem que cumpria, destruírem, dispersarem e arrancarem as sementes da má doutrina. Estas faculdades extraordinárias deram, a princípio, resultados contrários ao intento. Os prelados, ofendidos por semelhante intervenção em actos de jurisdição própria, não só deixavam de favorecer os delegados pontifícios, mas também lhes suscitavam sérios obstáculos, e, por muito tempo, os esforços deles foram, em parte, inutilizados pela má vontade dos bispos e, ainda, dos magistrados seculares. Apesar da autoridade ilimitada de que se achavam revestidos, os três monges teriam voltado para Roma desanimados, como mais de uma vez o pretenderam fazer, se não lhes houvesse ocorrido inesperado auxílio. Foi este o de dois espanhóis, o bispo de Osma e um cónego da sua sé, Domingos de Gusmão, que o papa lhes enviou por colegas em 1206. Ambos eles mostraram maior perseverança e energia do que os três anteriores legados. Mas o homem próprio, pelo seu zelo e actividade, para desempenhar dignamente aquela espinhosa missão era Domingos. Sobre ele, quase unicamente, ficou pesando o encargo de combater a heresia, desde que o bispo de Osma, passados dois anos, se recolheu à sua diocese. Foi então que o inquieto cónego espanhol buscou associar à empresa vários sacerdotes, que, por fim, estabeleceram uma espécie de congregação em Tolosa, com a qual, sendo os seus estatutos aprovados em 1216 por Honório II, se constituiu a Ordem dos Frades Pregadores ou Dominicanos.

O nome de inquisidores da fé tinha sido dado a esses diversos legados do papa; mas nem tal designação importava o mesmo que depois veio a significar, nem eles constituíam um verdadeiro tribunal, com fórmulas especiais de processo. O seu ministério consistia em descobrir hereges, e, nessa parte, o trabalho não era grande, em combatê-los pela palavra, em excitar o zelo dos príncipes e magistrados e em inflamar o povo contra eles. Na verdade, estes incitamentos produziam cenas atrozes, quais se deviam esperar em época de tanta barbaria, excitando-se a crença até o grau do fanatismo; mas a acção dos inquisidores vinha, assim, a ser unicamente moral, e indirectos os resultados materiais dela. Todavia, a independência de que gozavam e as faculdades que lhes haviam sido atribuídas, com quebra da autoridade episcopal, eram um grande passo para a criação desse poder novo que ia surgir no meio da hierarquia eclesiástica.

Apesar, porém, dos esforços empregados pelos inquisidores da fé, o incêndio continuava a lavrar no Meio-Dia da França, e os albigenses (nome com que se designavam, sem suficiente distinção, todas as seitas que naquelas províncias se afastavam mais ou menos da doutrina católica) nem davam ouvidos às prédicas dos dominicanos e de outros controversistas, nem cediam à violência, onde e quando achavam em si recursos e força para a repelirem. A história da guerra dos albigenses não é senão um tecido de atrocidades praticadas pelos católicos contra os hereges e por estes contra aqueles. No meio das mútuas vinganças, Pedro de Castelnau, um dos próprios legados do papa a quem o bispo de Osma e Domingos de Gusmão tinham vindo ajudar, foi assassinado (1208) pelos dissidentes. O espírito de intolerância e os ódios religiosos produziam os frutos ordinários destas péssimas paixões. Todavia, no meio de tantos horrores apareciam inteligências sumas que sabiam manter as antigas tradições cristãs, conservando puras de sangue as vestes sacerdotais. Tal foi S. Guilherme, arcebispo de Bruges, que recusou constantemente associar-se ao sistema da compulsão violenta contra os hereges. Deixando aos legados de Roma e aos prelados das outras dioceses confiarem a defensa do catolicismo ao ferro dos combatentes e aos suplícios dos algozes, limitava-se a exortar os endurecidos no erro, a convencê-los com razões e a implorar a graça divina para que os alumiasse. Quando muito, recorria, às vezes, à ameaça da imposição de multas, mas nem essa mesma franquíssima ameaça se realizava. À morte do santo prelado (1209) seguiu-se em breve a sua canonização. Tanto é certo que, ainda no meio do delírio das paixões e da perversão das ideias, nunca se obscurece de todo o respeito à sã razão e à verdadeira virtude.

Os cátaros expulsos de Carcassonne


Cidade de Carcassonne


Castelo de Montségur


Monumento à memória dos 200 cátaros queimados aquando do cerco de Montségur (16 de Março de 1244).


Castelo de Quéribus

(...) O ano de 1229 é a verdadeira data do estabelecimento da Inquisição. Os albigenses tinham sido esmagados, e a luta fora assaz longa e violenta para deverem contar com o extermínio. O legado do Papa Gregório IX, Romano de S. Ângelo, ajuntou nesse ano um concílio provincial em Tolosa. Promulgaram-se aí quarenta e cinco resoluções conciliares, dezoito das quais eram especialmente relativas aos hereges ou suspeitos de heresia. Estatuiu-se que os arcebispos e bispos nomeassem em cada paróquia um clérigo, com dois, três ou mais assessores seculares, todos ajuramentados para inquirirem da existência de quaisquer heresiarcas ou de alguém que os seguisse ou protegesse e para os delatarem aos respectivos bispos ou magistrados seculares, tomando as necessárias cautelas para que não pudessem fugir. Estas comissões eram permanentes. Os barões ou senhores ficavam, além disso, obrigados a procurá-los nos distritos ou territórios de sua dependência, nos povoados e nas selvas, nas habitações humanas e nos esconderijos ou cavernas. Quem consentisse em terra própria um desses desgraçados seria condenado a perdê-la e a ser punido corporalmente, A casa onde se encontrasse um herege devia ser arrasada. As demais disposições, em analogia com estas, completavam um sistema de perseguição digno dos pagãos, quando tentavam afogar no berço o cristianismo nascente. Ao mesmo tempo, Luís IX promulgava um decreto, não só acorde na substância com as provisões do concílio tolosano, mas em que, também, se ordenava o suplício imediato dos hereges condenados, e se cominavam as penas de confisco e infâmia contra os seus fautores e protectores. Assim, o espírito da legislação de Frederico II, que dominava já na Alemanha e numa parte da Itália, estendia-se agora a França e tornava muito mais tremendas as providências tomadas na assembleia de Tolosa.

Fosse, porém, qual fosse o carácter de cruel intolerância que predominava naquele conjunto de leis civis e canónicas, havia, ainda, uma diferença profunda entre essas inquisições, digamos assim, rudimentares e a instituição colossal a que, posteriormente, se deu o mesmo nome, no século XVI e seguintes. A autoridade episcopal era respeitada. Tudo quanto se referia à qualificação e condenação dos hereges dependia dos prelados diocesanos, guardando-se nesta parte a antiga disciplina. Depois, embora nas assembleias eclesiásticas se impusessem penas temporais aos dissidentes, esta invasão nos domínios da autoridade secular tinha, até certo ponto, desculpa, porque os príncipes decretavam ao mesmo tempo iguais ou mais severos castigos, legitimando-se, assim, mutuamente os actos dos dois poderes. Além disso, posto que, em relação ao extermínio dos hereges, as duas autoridades se invadissem mutuamente na prática, a Igreja não se esquecia de reconhecer oficialmente que a sua opção própria se restringia aos domínios da espiritualidade. Sobre isso são expressos e terminantes alguns cânones do Quarto Concílio Geral de Latrão (1216) e outros monumentos eclesiásticos daquela época. Não tardou, porém, que esses princípios começassem a ser pospostos, ganhando com isso vigor a nova instituição, já permanente, mas débil».

Alexandre Herculano («História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal», Tomo I).


«A questão dos judeus na Península é a mais evidente prova do carácter católico da sua civilização, embora o observador reconheça ao lado das causas religiosas as causas sociais da expulsão. Todos os documentos e histórias, qualquer que seja o propósito com que fossem redigidos, nos dá a impressão de que os monarcas só deixavam de ser intérpretes da vontade popular quando, por um espírito de tolerância ou de boa administração, favoreciam os judeus. É isso o que em Portugal a política do rei D. Manuel, provocando gerais tumultos pelo Reino, nos demonstra. Esse ódio do povo pelos judeus era na Idade Média geral a toda a Europa: o povo não podia deixar de ver neles os crucificadores do Cristo, e a esta circunstância juntava-se a de sentir a tirania dos que o oprimiam surdamente como onzeneiros. A tudo isto acrescia ainda a natural inveja das riquezas, e a revolta que provocava nos ânimos o espectáculo desses preceitos acarinhados pela fortuna, protegidos pelos reis, frequentemente vistos nas cortes dos monarcas, bem olhados até pelo próprio Papa. Na rudeza da sua instintiva lógica, o povo não podia compreender, e menos aplaudir, estas contradições, porque as dores das extorsões, a casa arruinada, a loja posta em almoeda, as economias do trabalho devoradas num ano de fome pelo judeu agiota, vinham apoiar com factos e sofrimentos as conclusões do pensamento.




Esta situação em parte nenhuma era mais grave do que na Península, onde à sombra da ocupação árabe, os judeus se tinham acolhido em maior número.

E posto que todos sejam gabados, dizia Barros, possuem a grossura da terra, onde vivem mais folgadamente que os naturais; porque não lavram, nem plantam, nem edificam, nem pelejam, nem aceitam ofício sem engano. E com esta ociosidade corporal, neles se acha mando, honra, favor e dinheiro; sem perigo das vidas, sem quebra de suas honras, sem trabalhos de membros, somente com seu andar miúdo e apressado, que ganha os frutos de todos os trabalhos alheios.

Estas palavras resumem a situação dos judeus, e são o eco das fundadas queixas do povo. Era um problema de ordem económico-social, ou fiscal apenas (problema de hoje também, apesar do extermínio dos judeus) que o Governo não sabia resolver. Daí nascem os variados aspectos dessa história que não sai do terreno de uma perseguição religiosa, senão para cair no de uma protecção anti-social. O lado religioso da questão primava já sobre o lado económico; e, dada a expansão do espírito católico, os monarcas haviam de religiosamente resolvê-la para interpretar com verdade o querer do povo, ainda que não seguissem, e muitas vezes não seguiam, os ditames do próprio espírito.

Esta questão dos judeus levantava-se agora pela segunda vez na Espanha. Da primeira, a monarquia visigótica, destruída pela invasão árabe, não pudera consumar o facto da exterminação. Assim, através de oito séculos de guerras, reatava-se a cadeia da história; voltando-se à tradição dos godos, agora que, depois da conquista de Granada, os últimos restos do baluarte muçulmano estavam caídos por terra. Como outrora, o grande Inquisidor; e o decurso desta história mostrará quanto é iníquo lançar aos ombros do Papado a responsabilidade de tais actos. Roma era então demasiado devassa para ter entusiasmos crentes, e demasiado avara para ser intolerante. Entusiasmo e intolerância só queimavam os peitos dos espanhóis; e a acção do Papado nessa história consiste em mitigar a fúria dos apóstolos, ou em virtude do dinheiro que recebe dos judeus, ou em virtude da defesa da própria autoridade usurpada, ou em virtude de uma humanidade natural em filhos dessa Itália doirada da Renascença.

A ânsia dos reis católicos por concluir a obra da unidade religiosa da Espanha é tal, que já em 1478 Torquemada, prior dos domínicos de Segóvia, fora nomeado inquisidor geral, anos antes da data da bula de Sisto IV. Afinal o monarca impera sobre toda a Espanha, afinal vai reduzir à fé todos os seus súbditos, e, presidindo às assembleias gerais da Inquisição, vai ser como os antigos reis godos à frente dos Concílios. Em Sevilha tem lugar essa primeira reunião, onde, como nas antigas assembleias do clero, os nobres tomam assento. Decide-se aí consumar o facto da unificação da fé. Em 94, saem em massa de Espanha oitocentos mil judeus que preferem exilar-se, chorando, a renegar:


Ah! minha amada España
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Pierdimos la madre Sion!
Pierdimos tambiem España?
El nido de consolacion.


Como os antigos Concílios do tempo dos godos, a Inquisição é também uma arma que serve nas mãos do monarca para acabar de submeter essa nobreza semi-feudal criada pela reconquista, porque perante a fé não há privilegiados e ninguém está ao abrigo das iras do terrível tribunal. A sua intervenção é tão absoluta e a sua dedicação tão excessiva que, tornando-se mais católica do que o Papa, lhe usurpa a autoridade, reage contra a ordens pontifícias, chegando a dar à Igreja peninsular o carácter de nacional, com o rei à frente, como pontífice, e ao lado o inquisidor como primeiro prelado.



Os judeus estavam expulsos, mas a depuração não era ainda total: restavam os mouros, espalhados pelo centro da Espanha, ou foragidos nas serranias da Bética austral para onde as correrias e perseguições do cardeal Jimenez os tinham arrojado. Cativos da reconquista, os mouros viviam na Espanha à mercê das oscilações da tolerância, das acções e reacções da política e da religião. Os historiadores fazem variar o número deles entre trezentos e novecentos mil. Habitando isolados da população cristã nas suas aljamas ou mourarias - como os judeus nos ghettos - constituíam uma família à parte. Laboriosos e humildes, porém, não excitavam no povo ódios nem invejas; pelo contrário, os seus ofícios punham-nos em contacto com o comum da gente, e de um modo que não ofendia nem molestava os brios, nem os interesses dos cristãos. Eram hortelões no campo, lojistas nas cidades; exerciam os mesteres humildes; eram caldeireiros, ferreiros, sapateiros, saboeiros, arrieiros. Como toda a colónia, isolada pelas leis do resto de uma população com a qual lhe não é dado confundir-se, o sentimento de solidariedade vinculava os estreitos laços da origem e destino comuns. Nenhum mendigava, porque, se caía em miséria, socorriam-no. Calados, sofredores, mas vingativos por necessidade, a ofensa que um recebia era tomada como colectiva. Quando um deles cometia um crime, em vão as justiças buscavam o culpado. Eram um por todos, e todos por um. Daqui provinham, necessariamente, conflitos e rixas como as que em 1467 ensanguentaram Toledo, e Valhadolid em 1470. Individualmente inofensivos, estimados até muitas vezes eram, porém, uma causa de permanentes sustos. A proximidade das populações granadinas, e das de Marrocos, para além do Estreito, fazia recear ainda aos novos godos uma segunda invasão, na qual às colónias de mouros coubesse o papel que oito séculos antes coubera aos judeus. Aos de Castela e Leão não era lícito ir a Granada, e só com fiança podiam ausentar-se para o Aragão, para Valência ou para Portugal. Em 1592, pedem as Cortes de Madrid que os repartam por todas as províncias de Espanha, que se lhes não consinta o afastarem-se mais de cinco léguas à roda da aljama, e que na guerra se lhes dêem os lugares mais perigosos, para assim ir acabando em breve essa anomalia.

Filipe III adoptou, em 1609, um meio mais expedito: expulsou-os em massa. Esta medida, radical como fora a dos judeus, satisfazia a um tempo as exigências sociais e as consciências. Como o escrupuloso que, à força de ver em tudo casos de consciência e origens de pecado, vai gradualmente destruindo uma a uma todas as origens de vida moral até se encontrar sossegado e em paz no seio da vacuidade idiota do seu cérebro: assim a Espanha, cheia de escrúpulos, ia gradualmente expelindo de dentro de si todas as causas de pecado, até se achar num estado de pureza que correspondia à despovoação, à ruína, à espécie de paz que homens e nações gozam na quieta mansão dos túmulos».

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).


«AFONSO: As declarações de Révah sobre o livro de Saraiva abrem de maneira estranha: "A minha reacção /.../ foi uma reacção de indignação". Assim o público fica logo informado de que está perante um homem indignado. Isto parece prejudicar, de entrada, os seus argumentos. Ou será uma táctica polémica?

DAVID: Não é táctica, é mesmo emoção. Révah reagiu passionalmente. Só que não encontrou a palavra própria para a sua "reacção". Não é só ou propriamente de "indignação" que se trata, mas de raiva, de rancor, de ressentimento, e sei lá que mais. Isto prejudica, evidentemente, o seu xadrez polémico, e até o simples bom senso.

AFONSO: Deve haver razões muito fortes para esse estado de espírito...

DAVID: Sem dúvida. Mas não vêm para aqui. O mais urgente é pôr um pouco de ordem no novelo emaranhado dos seus argumentos para tentar uma resposta.

AFONSO: Essa é a principal dificuldade: responder com ordem a uma coisa desordenada. Mas tentemo-lo. Podemos talvez distinguir uma música de fundo com um leitmotiv. Depois será preciso enumerar os temas principais, e finalmente precisar os casos de pormenor.

DAVID: Aceitemos esse método. Qual é a música de fundo?

Actual 'edifício' da Torre do Tombo (Lisboa).

AFONSO: Pode resumir-se nisto: ele, Révah, é que conhece os arquivos inquisitoriais; estudou mil processos; Saraiva não frequenta a Torre do Tombo, portanto fala do que não sabe. É um argumento impressionante, no caso de ser verdadeiro.

DAVID: O facto é verdadeiro, mas não serve como argumento.

AFONSO: Consideremos os dois aspectos da questão: 1.º, o facto de ter lido processos confere alguma autoridade a Révah? 2.º o facto de não ter frequentado a Torre do Tombo impede Saraiva de propor uma teoria da Inquisição?

DAVID: Quanto à primeira pergunta, direi que a utilidade dos mil processos depende da maneira como o investigador souber usá-los. Até hoje Révah não extraiu deles uma única ideia que não tivesse já sido apresentada por outros. Tudo quanto Révah disse encontra-se nas obras de Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses (1922), de Lucien Wolf, Les Marranes du Portugal (1926) e de Cecil Roth, A History of the Marranos (1932), não falando no livro básico de Graetz. Quem leu estes livros fica ao corrente de todas as ideias que Révah pretendeu demonstrar.

AFONSO: Tantos anos de sacrifício na poeira dos arquivos não lhe serviram para nada?

DAVID: Serviram-lhe para confirmar com um quilo de documentos aquilo que outros tinham já enunciado utilizando apenas um grama.

AFONSO: Quer isso dizer que Révah não criticou as ideias já estabelecidas sobre a Inquisição e o Judaísmo em Portugal?

DAVID: Nada. Só confirmou os pontos de vista que eram já os dos Inquisidores, e deles passaram a Lúcio de Azevedo e à historiografia judaica. Se Lúcio de Azevedo ressuscitasse e fizesse uma nova edição do seu livro, apenas teria que aumentar o número de citações, sem desmanchar o texto.

AFONSO: No entanto, nos 30 ou 40 mil processos inquisitoriais da Torre do Tombo não pode deixar de haver um material riquíssimo.

DAVID: Sem dúvida que há e está à espera de quem saiba utilizá-lo. A primeira coisa a fazer é organizar o sumário dos arquivos inquisitoriais que responda a certos quesitos, como: classe social dos presos e condenados; sua genealogia; actividade e relações económicas dos mesmos; sua distribuição geográfica; culpas e respectivas penas; métodos usados na investigação das culpas, e algum outro. A partir daí já seria possível ensaiar hipóteses, estabelecer correlações, traçar curvas diacrónicas, ou escolher conjuntos segundo critérios variados. Até lá os processos pescados à linha só podem servir como exemplos, e isso, evidentemente, na medida da perspicácia do investigador.


Documento pertencente ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, registando a confissão da meia cristão-nova Catarina Fróes ao Tribunal da Inquisição, em 1591.

AFONSO: No entanto sempre se pode dizer que mil processos já constituem uma amostragem.

DAVID: No caso de Révah nem isso. Uma amostragem deve obedecer a certas regras. Com uma mão-cheia de areia eu posso ter uma amostragem da areia de toda a praia; mas se eu escolher só os grãozinhos brancos posso juntar toneladas de areia para demonstrar uma ideia infinitamente mais falsa que a que resultaria de um punhado dela.

AFONSO: Quer isso dizer que Révah tem seleccionado os seus argumentos?

DAVID: Claro que tem. Segundo julgo, o seu tema de investigação, que deve ter sido sugerido pela leitura do opúsculo de L. Wolf, é o estudo de um certo número de famílias marranas dentro e fora de Portugal, de modo a estabelecer para elas uma continuidade genealógica e de prática religiosa. O arquivo da Inquisição é para ele uma espécie de chancelaria ou emissora de documentos relativos a esse tema. Por isso não lhe interessa muito desvalorizar os mesmos documentos. Nem de resto o tema da Inquisição em si mesma e do seu significado histórico está no centro dos seus interesses.

AFONSO: Vejo que haveria muito que dizer a esse respeito. Vamos à segunda pergunta: é legítimo que Saraiva apresente uma teoria da Inquisição sem ter estudado os processos da Torre do Tombo?

DAVID: O problema que se pôs a Saraiva, em certo momento da elaboração da História da Cultura em Portugal, foi o seguinte: porquê e para quê apareceu a Inquisição em Portugal? Procurou a resposta nos dois principais livros sobre esse assunto; a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Herculano, e a História dos Cristãos Novos Portugueses, de Lúcio d'Azevedo. São dois monumentos de erudição e de crítica histórica ainda não substituídos. Mas a resposta que dão à pergunta de Saraiva não satisfaz. Herculano viu na criação da Inquisição o produto da aliança de dois poderes nefastos: a centralização monárquica e o poder clerical, "o despotismo e a intolerância". Isso estava na sua linha de combate na época. Quanto a Lúcio de Azevedo, apesar da sua inteligência e enorme saber, deixou-se dominar, como o seu mestre Werner Sombart, pelo preconceito antisemita, e por isso procurou reabilitar a Inquisição como instrumento de unificação nacional contra o "elemento corrupto e corruptor" (p. 200 da 1.ª ed. do seu livro) que seriam os descendentes de judeus. A simples leitura destes livros deu a Saraiva elementos com que seria possível propor uma explicação mais racional. Para ele o importante era relacionar os documentos publicados relativos à Inquisição com o que se conhece acerca do contexto económico, social e cultural em que ela nasceu e se desenvolveu.

AFONSO: E os documentos publicados são suficientes para fundamentar uma teoria?

DAVID: Os documentos processuais publicados por Herculano, Azevedo, A. Baião. A. J. Teixeira, Ramos Coelho, António Henriques, Téofilo Braga, mais recentemente por J. Caro Baroja, Révah e outros são numerosos. Há, por outro lado, o que podemos chamar os textos institucionais a que Saraiva atribui grande importância, como os Regimentos do Santo Ofício, os Regimentos das Confiscações, os Editais da Inquisição, os Privilégios dos Oficiais do Santo Ofício, os Aforismos dos Inquisidores de Fr. António de Sousa. Alguns destes nunca tinham sido aproveitados convenientemente antes de Saraiva. Basta dizer que o Regimento de 1640, texto básico e indispensável sobre o processo e organização da Inquisição, nem sequer figura na bibliografia extremamente minuciosa e acurada do enorme livro sobre os criptojudeus espanhóis de T. Caro Baroja, três volumes de leitura amena, mas de análise apressada e superficial. Finalmente, há os textos da polémica à volta do Santo Ofício, como as Notícias Recônditas, o opúsculo de Ribeiro Sanches sobre a origem da designação de cristão-novo, as notícias e comentários de Vieira, de D. Luís da Cunha, do Cavaleiro de Oliveira, as queixas dos Cristãos-Novos publicados no Corpo Diplomático Português; e, em sentido contrário, as representações dos inquisidores publicadas por L. de Azevedo e no Corpo Diplomático, etc. Com este material é possível criticar as teses de Herculano e de Lúcio de Azevedo e propor uma nova interpretação dos factos.




AFONSO: Mas essa interpretação não ganharia em ser documentada com uma investigação de arquivo?

DAVID: Sem dúvida, e sob vários aspectos. No livro de Saraiva há temas de estudo para vários especialistas, e não apenas para os do processo inquisitorial. Por exemplo, sob o ponto de vista económico haveria que saber se os dados qualitativos e descritivos alegados por Saraiva são ou não confirmados por elementos quantitativos relativos à moeda, aos preços, à distribuição da terra e do capital monetário, etc. O livro está aberto à crítica.

AFONSO: Révah pretende que ele é dogmático.

DAVID: Porque esqueceu voluntariamente o que está escrito no prólogo: "Pôr a pergunta e propor uma resposta - tal é a nossa intenção. E que o leitor se não deixe impressionar se o tom das páginas que vai ler lhe parecer demasiado afirmativo ou entusiasticamente polémico. É uma questão de estilo" (p. 18).

AFONSO: No entanto, insisto, Révah diz que Saraiva pretende com as suas teses dar a entender que a imensa documentação inquisitorial era, pela sua inautenticidade original e radical, "desprovida do menor valor para o historiador", e que fez isso para "erigir a incompetência profissional em método historiográfico".

DAVID: Essa acusação é muito mais reveladora a respeito de Révah que de Saraiva. Poderíamos responder que ele "erige" em método científico a compilação e resumo de documentos arbitrariamente escolhidos porque não é capaz de fazer mais nada. Mas não rastejemos nessa baixeza. Saraiva nunca disse nem pensou que a documentação inquisitorial era desprovida de valor para o historiador. Pelo contrário, há ali material para uma história prodigiosamente rica da sociedade portuguesa durante dois séculos e meio. O que ele diz é que no que respeita à acusação de heresia os processos inquisitoriais são altamente suspeitos, como o são aliás todos os processos ideológicos. É muito diferente...».

António José Saraiva (DIÁLOGO SOBRE A ENTREVISTA SILVA-RÉVAH, in «Diário de Lisboa», 27-5-1971).


«O sr A. J. Saraiva chamou a si e confiou aos seus entes quiméricos uma tarefa que parece inexequível: convencer os leitores do Diário de Lisboa de que teve razão em não compulsar pessoalmente um único documento inquisitorial português ou espanhol antes de escrever A Inquisição Portuguesa (1956) e Inquisição e Cristãos-Novos (1969). Lá está, na carta ao director do Diário de Lisboa, a extraordinária profissão de fé: "O meu critério é outro. Não faço investigação arquivística porque não é essa a minha especialidade". É preciso ver isto preto no branco para acreditar na possibilidade de tal profissão de fé. Desisto de confrontar esta declaração com a biografia e a bibliografia do sr. A. J. Saraiva.

Este pseudo-historiador fez mais do que ignorar voluntariamente a imensa documentação inquisitorial ibérica (peninsular e extrapeninsular): tentou provar a inautenticidade original e radical desta documentação, e conseguiu iludir o grande público e muitos críticos que tinham a obrigação de examinar mais conscienciosamente o valor das teses do sr. A. J. Saraiva. Com a cínica má-fé que lhe conferiu o seu procriador, o fantástico David tem a audácia de afirmar: "Saraiva nunca disse nem pensou que a documentação inquisitorial era desprovida de valor para a historiador. Pelo contrário, há ali material para uma história prodigiosamente rica da sociedade portuguesa durante dois séculos e meio". Como a aldrabice, passe a palavra, de David não tem limites, já tinha fixado anteriormente o programa de trabalho que terão de seguir os "futuros" investigadores da documentação inquisitorial: o mesmo, evidentemente, que seguem há vários decénios os poucos historiadores sérios que se têm ocupado da Inquisição e dos Cristãos-Novos. "A primeira coisa a fazer é organizar o sumário dos arquivos inquisitoriais..." O sr. A. J. Saraiva ignora, é claro, que está à disposição dos investigadores, há bastantes anos, um sumário de valor desigual, mas, às vezes, muito útil, de todos os processos de um dos três tribunais portugueses. O segundo "quesito" do sonhado "sumário dos arquivos inquisitoriais" refere-se à genealogia dos presos.




Para mostrar a má-fé destas afirmações e programas, basta lembrar o prefácio de "Inquisição e Cristãos-Novos", onde o autor explica que a documentação inquisitorial "foi elaborada com vista a justificar a existência do Tribunal do Santo Ofício"; "estava no seu papel convencer o público de que a heresia judaica ameaçava subverter a sociedade cristã"; "Como veremos, não só a forma como cada processo era conduzido, mas as próprias normas processuais, o sistema de delação, o modo como se efectuavam as averiguações genealógicas, tudo convergia para o mesmo efeito" (p. 17; o itálico é nosso).

Os infelizes leitores do libelo não sabem, evidentemente, que, na imensa maioria dos casos, não se efectuavam averiguações genealógicas: os notários registavam as genealogias dadas pelos réus. Só havia averiguações quando um acusado de judaísmo afirmava que era cristão-velho, ou quando um cristão-velho proclamava a sua fé judaica. O sr. Saraiva dá um único exemplo do que considera como falsificação genealógica inquisitorial: o caso de Fr. Diogo da Assunção, queimado em 1603. O pseudo-historiador tem a certeza de que o autor do panfleto anti-inquisitorial de 1673-1674, Notícias Recônditas, "conheceu pessoalmente" (p. 105, n.º 80) o processo de Fr. Diogo, e critica J. L. de Azevedo por não ter utilizado a informação dada pelas Notícias. O Sr Saraiva tem tanta aversão aos arquivos que não lhe passou pela cabeça que, em vez de consultar as Notícias ou o resumo insuficiente do inquérito genealógico dado por A. J. Teixeira, seria mais profícuo ler o processo do frade, que está na Torre do Tombo. A leitura do processo prova: 1.º - que o autor das Notícias Recônditas, não o "conhecia pessoalmente" e fez numerosas afirmações inexactas ou falsas a seu respeito; 2.º - que o inquérito genealógico sobre Fr. Diogo merece toda a confiança; das sete pessoas interrogadas em Aveiro, duas disseram que o frade "tinha raça"; um fidalgo, interrogado em Coimbra, disse que o avô paterno do monge "era cristão-velho" e "homem honrado", mas que a avó paterna era filha de um judeu baptizado de Lorvão; seis testemunhas, interrogadas em Lorvão, disseram que este bisavô do frade era Judeu baptizado. É verdade que os inquisidores precisavam de poder afirmar que o monge não era inteiramente "limpo", mas é provável que, se tivessem induzido testemunhas a jurar falso (acusação levantada dubitativamente pelo demagogo sr. Saraiva), teriam arranjado uma genealogia mais "suja" e teriam encontrado mais de um bisavô judeu. Com este único exemplo, entre trinta mil possíveis, e um exemplo tendenciosamente utilizado, o sr. Saraiva, autor de "Inquisição e Cristãos-Novos", anula totalmente o valor das genealogias registadas pelo Santo Ofício: "É mais um exemplo [sic] a mostrar o valor real das notícias genealógicas de origem inquisitorial" (p. 132, nota 83). Mas David, filho espiritual do sr. Saraiva, aconselha os "futuros sumariadores dos arquivos inquisitoriais a não se esquecerem de apontar a genealogia dos presos".

Nas 319 páginas de "Inquisição e Cristãos-Novos", não há uma única indicação sobre o valor positivo, sobre a possível autenticidade, pelo menos parcial, da documentação inquisitorial, mas há muitas acusações contra a inautenticidade destes documentos. No entanto, o cínico David declara que "Saraiva nunca disse nem pensou que a documentação inquisitorial era desprovida de valor para o historiador... O que ele diz é que no que respeita à acusação de heresia os processos inquisitoriais são altamente suspeitos, como o são, aliás, todos os processos ideológicos. É muito diferente". O libelo do sr. Saraiva é dedicado "A Marcel Bataillon", autor de um livro sobre Erasme et l'Espagne, no qual foram aplicadamente utilizados uma dúzia de processos inquisitoriais contra pessoas acusadas de heresia, quer dizer, processos "altamente suspeitos, como o são, aliás, todos os processos de heresia". Já confessei publicamente que foi a leitura, feita aos vinte anos, do livro do prof. M. Bataillon, que me convenceu inteiramente da extraordinária importância dos arquivos inquisitoriais ibéricos para a história das culturas peninsulares. Terá adivinhado o prof. M. Bataillon, antes de 1937, o perigo a que se expunha, e os meios de o conjurar, perigo e meios descobertos pela argúcia do sr. Saraiva, em "Paris, Junho de 1968": "... o historiador escrupuloso que toma à letra os documentos emanados da Inquisição se arrisca a transviar-se num sábio labirinto. Só escapará a isso se tiver sempre presente a intencionalidade que presidiu à formação dos arquivos inquisitoriais, e esta só se lhe tornará clara se conseguir encarar a Inquisição não como uma fonte de documentos formalmente autênticos, mas como um factor dentro de uma situação histórica" (I. e C. N., p. 17; os itálicos são nossos).




O ódio manifestado pelo sr. Saraiva aos arquivos engendrou a ideia mais estrambólica que aparece em "Inquisição e Cristãos-Novos": a documentação inquisitorial foi elaborada com vista a justificar a existência do Tribunal do Santo Ofício; esta colaboração foi tão perfeita que conseguiu enganar os eruditos contemporâneos, "o que certamente não estava nas previsões dos inquisidores, mas não deixa de ser para eles um êxito impressionante" (I. e C. N., p. 75). Já que tudo quanto eu mesmo disse até hoje se encontra, segundo o arguto David, nas obras de J. L. de Azevedo, L. Wolf e C. Roth, "não falando no livro básico de Graetz", vale a pena confessar que roubei a António Baião a conclusão desta parte da Tréplica. Ao falar dos cartórios do Santo Ofício, A. Baião escreveu:

"Referindo-se a eles escreve com razão Cunha Rivara: 'Pelo que respeita à Inquisição, mal se poderá formar juízo seguro e imparcial, enquanto se não for a essa Torre do Tombo resolver os processos da Inquisição'. E de facto não pode haver guia mais seguro para o estudioso, pois que os cartórios do Santo Ofício, que felizmente escaparam do terramoto de 1755, eram secretos, e, por isso, o que nos seus documentos se escreveu, era a expressão da verdade e nunca destinado a iludir quem quer que fosse".

A documentação inquisitorial revela mesmo os casos em que os juízes da fé infringiram o direito que vigorava na sua instituição:

1.º - Manuel Fernandes Vilareal foi executado, essencialmente, porque tinha descoberto o segredo dos "cárceres de vigia"; oito juízes do tribunal de Lisboa assinaram uma ordem de "assassínio", que não era "legal" (como afirma o sr. Saraiva), mas completamente "ilegal" (nada, no Regimento, autorizava esta condenação). Mas não pretenderam iludir quem quer que lesse o processo, porque escreveram, tintim por tintim, que condenavam o preso por "ser tão manhoso que atinou com os buracos das vigias dos cárceres... e, portanto, causaria notável prejuízo ao ministério do Santo Ofício, publicando e descobrindo o segredo das vigias, que é de tanta importância, podendo-se temer com toda a certeza que seria o réu (escapando) de grandíssimo dano ao tribunal da Inquisição e seu justo procedimento, o que muito se devia e deve atender, ainda no caso que este réu pudesse chegar a estado de escapar com vida" (assento de 21 de Novembro de 1652).

2.º - António José da Silva, "o Judeu", foi "ilegalmente" preso em 1737, porque não havia culpa formal que justificasse a prisão, mas unicamente uma suspeita muito forte; "foi a prisão decretada por ordem verbal, dada na mesa dos Inquisidores pelo cardeal Nuno da Cunha", inquisidor-mor, mas "deste procedimento especial se fez menção nos autos, para descargo dos Inquisidores da Mesa" (J. L. de Azevedo, Novas Epanáforas, pp. 199 e 200). A escrava Leonor, que também não tinha culpas, foi presa e trazida à cadeia da Penitenciária (não aos cárceres secretos), porque se esperava que denunciaria os membros da família do "Judeu"; não é caso único na história da Inquisição, mas a "ilegalidade" ficou registada nos autos».

I. S. Révah («OS CRISTÃOS-NOVOS PORTUGUESES E A INQUISIÇÃO», Tréplica ao sr. António José Saraiva, in «Diário de Lisboa», 5-8-71).





COMO E PORQUÊ FOI INTRODUZIDA A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL


O desaparecimento do Judeu como personalidade jurídica, étnica ou religiosa não implicava automaticamente o desaparecimento do anti-semitismo. Basta pensar que o Judeu não é a causa do anti-semitismo, mas o seu pretexto, a sua motivação ilusória. Ou melhor: as comunidades hebraicas dentro das sociedades cristãs eram a ocasião e o ponto de aplicação de um conjunto de tendências e sentimentos colectivos que tomaram a forma do anti-semitismo. O hábito generalizado de odiar e humilhar o Judeu faz parte de um sistema social de tensões afectivas que o simples facto da conversão em massa dos Hebreus portugueses não podia por si só abolir.

Para a gente miúda e oprimida, o Judeu era o ponto de fixação de descontentamentos e frustrações de vária origem. Constituía um grupo à parte, fora da solidariedade que unia a grei cristã, inteiramente desprotegido contra o ódio, a humilhação, os impulsos que pedem vítimas e culpados. Era, por outro lado, um grupo de párias, em relação ao qual qualquer cristão, por mais miserável, podia sentir-se privilegiado. O facto de o Judeu ser frequentemente rico em nada alterava esta situação. Pelo contrário, conferia ao membro da comunidade cristã, senhor presumido na sua terra, o sentimento de uma nobreza, de uma legitimidade que não dependia da fortuna, que era de algum modo intrínseca, inalienável e hereditária. Era privilégio nato e gratuito de todo o Cristão poder vilipendiar o Judeu, e este privilégio ganhava tanto mais valor para o usuário quanto mais baixo se encontrava na hierarquia social. O Judeu era de algum modo o pedestal em que assentava a pirâmide feudal dos privilégios.

Representação medieval antisemita

Não obstante a assimilação em curso, a função desempenhada pelos antigos Judeus subsiste, bem como o sistema de tensões em que eles eram indispensáveis. Só que o Cristão-Novo toma o lugar do Judeu. Nos memoriais que escrevem ao Papa e ao Rei de Portugal no decorrer das negociações que levará à criação da Inquisição, os Cristãos-Novos queixam-se repetidamente dos ódios e violências de que são vítimas. Segundo eles, era sobretudo a «gente baixa» que já antes de 1546 rejubilava e se alvoraçava quando os via queimar. Exceptuando os senhores fidalgos, dizem eles também, todo o povo («mundo») os perseguia e especialmente um género de gente ciosa que eram os escudeiros (22). Gil Vicente deixou-nos o retrato inesquecível destes pícaros esfomeados que afectavam maneira de corte e blasonavam de fidalgos.

Não faltou quem se encarregasse de estimular e organizar esta transferência de ódio ao Judeu para o Cristão-Novo. Acima de todos, os pequenos clérigos em que se distinguiam os frades dominicanos. Eles desempenhavam em Portugal como em Espanha um papel decisivo no desencadeamento dos pogroms. Tal como em 1449, são eles que estão à frente da matança iniciada em 19 de Abril de 1506 em Lisboa. No decorrer de uma cerimónia religiosa na Igreja de S. Domingos, um homem que participava de um resplendor que saía de um crucifixo, teve a ideia inoportuna de argumentar que se tratava apenas do reflexo de uma vela. Foi logo taxado de Cristão-Novo, morto e queimado in loco. Dois frades dominicanos brandindo crucifixos excitaram os fiéis aos gritos de «heresia, heresia!». Durante três dias a cidade esteve nas mãos dos amotinados, que pilhavam as casas, atiravam mulheres e crianças da janela à rua e acendiam por toda a parte fogueiras onde ardiam vivos e mortos. Bandos embarcadiços nórdicos de passagem em Lisboa participaram na pilhagem e no massacre.

Houve perto de dois mil mortos na cidade, segundo Damião de Góis, entre eles João Rodrigues Mascarenhas, cobrador de impostos reais, um dos homens mais ricos de Lisboa. O Rei, ausente no Alentejo, reagiu com energia: pena de morte e confiscação dos bens para os malfeitores; castigos para os cúmplices passivos; punição colectiva da cidade com a abolição de alguns dos seus privilégios. Mandou queimar os dois frades provocadores, depois de lhes fazer tirar as ordens. É isto pelo menos o que diz o cronista Damião de Góis, mas parece que afinal os dois frades escaparam na confusão, porque trinta e seis anos depois estavam vivos e participavam activamente em Roma no negócio da Inquisição, ao serviço de D. João III (23).

Todas as ocasiões ou pretextos serviam à demagogia clerical. Em 1531 por ocasião de um terramoto, os frades de Santarém lançaram o pânico no povo pregando-lhe que se tratava de um castigo de Deus por os Portugueses consentirem os Judeus no seu seio. É provável que esta pregação não fosse alheia à campanha para a introdução da Inquisição em Portugal, pois ocorre no mesmo ano em que D. João III encetava as suas diligências secretas nesse sentido. O poeta Gil Vicente, que então se encontrava em Santarém, levantou-se contra os frades, e fazendo-os reunir no claustro do convento de S. Francisco pregou-lhes, ele, outro sermão, explicando que um terramoto é um fenómeno da Natureza e que os hereges devem ser convertidos pela persuasão. As suas razões vêm resumidas numa carta que a este propósito escreveu a D. João III. Este curioso episódio mostra que na época em que se tramava a sua introdução em Portugal, o Santo Ofício tinha partidários e adversários e era possível ainda defender na corte a política tolerante de D. Manuel (24).


Retrato de D. João III




Mapa do Império Português no reinado de D. João III


A conversão forçada só podia ter exacerbado o anti-semitismo tradicional dos pequenos clérigos na Península Ibérica, espécie de plebe eclesiástica que, ao contrário do alto clero, vivia do seu trabalho sacerdotal, missas, confissões, procissões, pregações, etc. O combate ao pecado e à heresia era uma das suas razões de viver, uma forma de ganha-pão. A pregação contra os Cristãos-Novos, esses antigos Judeus que agora caíam sob a alçada da Igreja, era para eles uma empreitada considerável, uma ocasião magnífica para fazerem valer o seu ofício, na medida, evidentemente, em que se pudesse dizer que os Cristãos-Novos continuavam a judaizar. Mas, além disto, a integração da antiga comunidade hebraica constituía para eles uma ameaça surda. Os pequenos clérigos orientavam e doutrinavam a massa dos crentes, com que estavam em contacto directo; faziam e dirigiam a opinião como intermediários entre a aristocracia e o povo, que não conhecia praticamente outros letrados. Ora a conversão de 1497 introduzia no seio da Cristandade um grupo numeroso de letrados não-clericais, médicos, farmacêuticos, escribas de vária sorte, negociantes alfabetizados, de quem se podia temer que fizessem concorrência aos clérigos naquela função. Somando-se aos quadros médios intelectuais não-clericais já existentes, constituíam um conjunto que ameaçava o monopólio clerical da opinião. A conversão rompia a barreira que os tornava inofensivos.

Este sector intelectual leigo estava, pela sua própria origem, facilmente exposto à acusação de heterodoxia. Além de que a tradição cultural hebraica, independentemente da prática religiosa, continuava viva para os sobreviventes das Judiarias e seus imediatos descendentes, a própria mudança forçada de religião os preparava para uma atitude tendente ao cepticismo ou à inquietação religiosa. Esboçava-se deste modo uma rivalidade entre o sector intelectual burguês, tendencialmente laico, rivalidade que perdurará até à época contemporânea. É curioso que o Cristão-Novo que deu pretexto ao pogrom de 1506 em Lisboa escandalizou o povo dizendo que uma imagem de pau não podia fazer milagres; e o episódio do tremor de terra de Santarém, castigo de Deus, segundo os frades, fenómeno da Natureza, segundo Gil Vicente, mostra como duas concepções do mundo se podiam então afrontar a propósito de Cristãos-Novos.

Assim, os pequenos clérigos tinham, além dos sentimentos colectivos em que todos participavam, os seus móbiles próprios e imediatos quando acusavam, identificavam e apontavam ao povo os Cristãos-Novos como Judeus disfarçados, fazendo os possíveis para que eles não se despersonalizassem na massa do povo cristão.

No que respeita aos grupos dirigentes, isto é, à nobreza e ao alto clero, a perspectiva é diferente, mas complementar da que ficou apontada para as classes populares. O anti-semitismo tinha provavelmente menos força emocional nas pessoas pertencentes a este grupo. Sabemos que os nobres privavam com os Judeus ricos, e depois da conversão (...), muitos casaram com mulheres de origem hebraica portadoras de ricos dotes. Os próprios Cristãos-Novos pretendem, como vimos, que só os nobres os não perseguem. O fidalgo, que tinha abaixo de si várias classes de vilãos, não precisava do judeu-pária para se sentir privilegiado. Mas é óbvio que a Nobreza, como grupo, estava vitalmente interessada no equilíbrio social existente e no sistema de tensões indispensáveis à hierarquia em que ela ocupava a posição mais privilegiada. Ora a hierarquia estava ameaçada e a integração dos antigos Judeus era um perigo para a sociedade tradicional sobretudo na conjuntura económica em que ocorria.

A empresa ultramarina teve dois efeitos contraditórios. Por um lado, fortalecia o poder da Coroa, e por consequência o do corpo da nobreza, de que aquela era, nesta época, a expressão. Por outro lado, abria, a longo prazo, horizontes ilimitados de expansão à burguesia mercantil portuguesa.

Quanto ao primeiro efeito, é verdade que a Coroa Portuguesa assumiu a direcção de uma enorme empresa mercantil, intitulando-se o Rei «senhor do comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia». O paço real instalou-se junto do cais, num edifício cuja parte baixa era ocupada pelos armazéns e escritórios da «Casa da Índia», que recebia, controlava e reexpedia as mercadorias do Oriente e as com que estas se pagavam. Na Europa o Rei de Portugal era alcunhado de «rei da pimenta». O grosso deste negócio constituía monopólio da Coroa, e os seus lucros eram distribuídos entre os funcionários civis e militares nomeados pelo Rei, quer sob a forma de ordenados e prémios, quer sob a forma de direitos, quer ainda sob a de oportunidade de rapina guerreira. Os beneficiários principais eram recrutados na nobreza tradicional, que desta forma enriqueceu, não por meio de uma actividade comercial, mas no exercício de cargos militares e administrativos ou no gozo de sinecuras. Poderia talvez, sem grande erro, comparar-se a Coroa Portuguesa a uma grande organização monopolista, cujos benefícios são atribuídos entre funcionários e accionistas, sob a forma de ordenados e dividendos, sendo que esses funcionários e accionistas não exercem pessoalmente uma actividade industrial ou comercial. Assim se explica que a nobreza portuguesa, embora beneficiando dos proventos do comércio da Coroa, não se tenha forjado uma mentalidade burguesa.



Paço da Ribeira


Desta forma, se o Estado português no século XVI oferece exteriormente uma aparência «moderna», na medida em que é uma grande empresa económica, por outro lado, ele assegura, no interior do País, a persistência de uma sociedade arcaica, na medida em que garante o domínio de uma classe tradicionalmente dominante, cujo espírito está nos antípodas do burguês. Um aspecto deste arcaísmo (que também é visível em Espanha) aparece justamente no enorme acréscimo dos bens da Igreja, que, na prática, eram património colectivo e sorteado dos filhos segundos da nobreza.

Mas contra este fortalecimento do poder real em benefício da nobreza, o processo absoluto da burguesia era inevitável numa sociedade onde se multiplicavam as possibilidades de negócio em escala mundial. Nem tudo era monopólio real. Para dar exemplos, ficavam à margem dele, mais ou menos, o comércio do açúcar, as operações bancárias e de câmbios, sem falar em toda a sorte de contrabando. Sem falar de que os monopólios podiam ser explorados sob a forma de arrendamentos entregues a homens de negócio: foi o caso dos escravos, e inclusivamente, por vezes, o da pimenta. Para usar uma expressão talvez incorrecta, à falta de outra, estas actividades marginais constituem um sector privado em face do sector público representado pelo monopólio régio, sendo que, grosso modo, o sector público tende a identificar-se com a nobreza tradicional, de mentalidade arcaizante, e o sector privado com a burguesia empreendedora.

O monopólio real dá sinais de dificuldades crescentes a partir da terceira década do século XVI. Em 1534 o Estado português é obrigado a faltar aos seus compromissos para com os credores estrangeiros. Em 1542 começa a evacuação das praças de África por falta de recursos financeiros. Nesse mesmo ano, o redactor das instruções ao núncio Lippomano escreve que «Portugal está reduzido a termos que tem pouquíssimas forças» e que o Rei «é pobríssimo com grandíssimas dívidas dentro e fora do reino, oneradas com pesadíssimos juros». Em 1560 suspende-se o pagamento dos juros da Casa da Índia. A guerra em África que terminará pelo desastre de Alcácer-Quibir (1578) aparece inicialmente como uma esperança de refazer as finanças públicas e as fortunas privadas da nobreza. Mas o fim desastroso da campanha colocou os nobres à mercê das dívidas de Filipe II. Todavia, paralelamente a esta ruína do Estado e do seu monopólio, assistimos a uma prosperidade crescente da burguesia mercantil portuguesa, isto é, do referido «sector privado», tanto no Oriente e no Brasil como no porto e praça de Lisboa, que se torna no final do século um grande centro europeu de operações comerciais e financeiras.

Dentro de tal conjuntura quais eram as incidências da assimilação dos antigos Judeus?

Como vimos, existia antes da conversão forçada uma burguesia mercantil judaica separada da burguesia correspondente cristã. Mas esta burguesia discriminada era ao mesmo tempo uma população de párias, e por isso em situação de inferioridade perante todos os outros grupos do País. A abolição da discriminação significava para ela o acesso a uma posição jurídica incomparavelmente mais forte e a libertação de servidões que até aí a tolhiam. Por outro lado, como adiante veremos, deu lugar à fusão populacional das duas burguesias, o que se tornou por sua vez um factor poderoso da expansão da burguesia mercantil portuguesa no seu conjunto. Ao longo do séc. XVII vemos afirmar-se cada vez mais o poder económico e finalmente político dos «homens de negócio» ou «gente da nação» ( = Cristãos-Novos), expressões que se tornaram sinónimas, inclusivamente em documentos oficiais, como também veremos a seu tempo.

De facto, a assimilação dos antigos Judeus insere-se num processo de transformação estrutural da sociedade portuguesa a expensas do grupo que beneficiava da estrutura tradicional. A abolição da casta dos párias ameaçava a sociedade hierárquica no seu conjunto, quer sob o aspecto material, quer sob o dos valores ideológicos. Economicamente, libertava uma grande parte da burguesia mercantil portuguesa de uma pesada hipoteca. Ideologicamente, destruía um dos pilares da hierarquia dos privilégios. Os dois aspectos constituem, no caso que estamos considerando, as duas faces da mesma moeda.




Há ainda a considerar, nesta situação, os problemas e os motivos particulares da Coroa.

Segundo as instruções ao núncio Luís Lippomano em 1542, o Rei de Portugal deixava-se governar por frades e monges, os quais «neste reino são poderosíssimos», e, insinuava o documento, perigosos. Mas seria erro pensar que esta influência dos clérigos na Corte resultava unicamente das propensões devotas do Rei. Não só sob o ponto de vista espiritual, como sob o ponto de vista material, os negócios eclesiásticos tinham nesta época em Portugal uma importância que é difícil exagerar.

A Igreja possuía a maior parte da terra e dos rendimentos feudais distribuídos entre os filhos segundos da nobreza, os quais, à falta de outro modo de vida, se empregavam em cargos eclesiásticos, enquanto as mulheres celibatárias se colocavam nos conventos. Os membros da família real não escapavam a esta situação e os lugares mais rendosos da Igreja portuguesa, como os arcebispados de Lisboa, Évora e Braga, a abadia de Alcobaça, o priorado de Santa Cruz, não falando já dos mestrados das ordens militares, foram durante anos apanágio dos irmãos ou sobrinhos do Rei D. João III. Dava-se a curiosa situação de a família real se encontrar no topo da hierarquia eclesiástica, e foi por uma acumulação de probabilidades que a Coroa de Portugal veio, em 1578, a assentar na cabeça de um cardeal, irmão do Rei, que fora arcebispo de Braga e de Évora, prior de Santa Cruz, abade de Alcobaça, e Inquisidor-Geral. Relativamente aos altos cargos eclesiásticos, o problema consistia em que as rendas não chegavam para os candidatos, apesar de durante este reinado terem sido criadas novas dioceses, resultantes do desmembramento das antigas, bem como numerosos outros postos e dignidades eclesiásticas, com dotações régias e particulares. Mas o baixo clero também se multiplicava, e vertiginosamente, dando lugar a problemas de subsistência. Em 1620, segundo Nicolau Rodrigues de Oliveira no Livro das Grandezas de Lisboa, havia nesta cidade, que contava 165 000 habitantes, 3189 frades e freiras, ao lado de 121 médicos, boticários, cirurgiãos, mestres de ler e tabeliães. Já um século antes Gil Vicente resumia a situação fazendo dizer a uma das suas personagens «somos mais frades que terra». Esta multidão de gente dependia, em teoria, do Papa, que, de resto, tinha os seus pretendentes às rendas da Igreja Portuguesa; mas é óbvio que o Rei de Portugal não podia deixar por mãos alheias gente e negócios de tanta importância. Todo o reinado de D. João III é sob o ponto de vista diplomático uma luta pertinaz com o Vaticano em que o que está em causa é a distribuição das rendas da Igreja e a supremacia nos negócios eclesiásticos do Reino.

A situação de D. João III é análoga à de outros príncipes da Cristandade da mesma época, que entraram em conflito aberto com o Papa, ou que favoreceram a dissidência religiosa para poderem dispor livremente de bens eclesiásticos. Neste conflito o Rei de Portugal apoiava-se nos clérigos e frades, que lhe povoavam a corte e constituíam provavelmente a maioria do seu estado-maior. Representante ao mesmo tempo do poder secular como chefe da nação, frente às pretensões da Cúria romana, e do poder eclesiástico, na medida em que era o defensor e protector do clero nacional, D. João III oferece neste particular uma fisionomia ambígua em que o poder religioso, expressão de uma ordem teocrática, ora parece servir, ora parece dominar o poder secular.

Em tal situação, a Inquisição castelhana oferecia do ponto de vista da Coroa um modelo de solução naturalmente indicado. Os inquisidores eram designados pelo Rei e tinham poderes de delegados pontifícios. Constituíam por isso uma muralha contra a intromissões da Santa Sé e um poder superior aos dos bispos. Em princípio, a Inquisição castelhana fortalecia o «braço espiritual» do Rei. Por outro lado representava a criação de novos empregos para candidatos à profissão eclesiástica e de uma nova fonte de recursos a acrescentar aos tradicionais rendimentos feudais. Essa fonte eram os bens dos Cristãos-Novos, que, por via das confiscações ou outras, iam alimentar o pessoal inquisitorial. Trata-se na realidade de uma curiosa forma de imposto não periódico sobre uma massa enorme e crescente de bens que estavam então fora do circuito da apropriação feudal. Por outro lado ainda, restabelecendo a discriminação, a Inquisição e as leis de limpeza de sangue permitiam riscar uma parte dos candidatos aos bens da Igreja, justamente os oriundos de uma gente nova e até então excluída desses bens.

Pintura de 1683 de Francisco Rizi retratando um auto-de-fé na Plaza Mayor, em Madrid, 1680.

É dentro deste conjunto que nos parece que deve explicar-se a iniciativa de D. João III para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, trinta e cinco anos depois da conversão forçada. A Inquisição representa, ao que supomos, o lugar geométrico de várias linhas de força, a chave para a solução, segundo o ponto de vista do grupo que então funcionava como sujeito histórico, de toda uma constelação de situações e de tendências. Tudo se reduzia a que a Inquisição permitia restabelecer sob a nova forma a discriminação que D. Manuel abolira. Dessa maneira, seria restaurada a casta não-privilegiada, base dos privilégios; seria mantido aquilo que atrás ficou designado como sistema social de tensões afectivas, necessário ao equilíbrio tradicional da sociedade, e tanto mais quanto esse equilíbrio estava ameaçado; seria restabelecida a hipoteca, não já sobre uma parte da burguesia mercantil portuguesa mas (...) sobre o conjunto dela. Além disto, seria contido o ascenso da intelectualidade laica, em proveito da clerical, e a Coroa veria, aparentemente, resolvidos alguns dos seus problemas particulares mais urgentes.

O ponto essencial deste conjunto de situações e tendências é que a sociedade tradicional iniciava uma luta duradoura contra o processo que ia destruí-la; e já na nova burguesia mercantil unificada pela assimilação forçada dos antigos judeus se desenhavam os contornos da futura classe dirigente. A mercadoria, num movimento uniformizante que tende à linha horizontal, extravasa dos limites que lhe são impostos pela pirâmide hierárquica.

Naturalmente, não houve uma equipa tecnocrática que estudasse e determinasse as soluções mais convenientes para os problemas que então se punham aos detentores do Poder. Mas não é só nos nossos dias que a vontade dos dirigentes intervém no processo social. Ainda em 1524 D. João III confirmara as leis de D. Manuel contra a discriminação; e nenhuma urgência inelutável parecia obrigá-lo a estabelecer o Tribunal do Santo Ofício, trinta e cinco anos passados sobre o baptismo forçado. A Inquisição espanhola fora instituída no mais aceso da luta entre os Judeus praticantes, que conservavam as sinagogas, e os Cristãos. A Inquisição portuguesa é pedida sem que acontecimentos imediatos e suficientemente volumosos o façam prever, e quando já o momento crítico da assimilação estava longe no tempo. Não era o passado que pressionava o Rei, mas a presciência do futuro. É difícil não ver no acto de D. João III uma determinação arbitrária, uma decisão, uma escolha política, muito mais do que uma fatalidade.

A história das longas negociações entre o Rei e o Papa para o estabelecimento da Inquisição é significativa. Nos termos das instruções ao enviado Brás Neto, no começo de 1531, o Inquisidor-mor seria escolhido pelo Rei, assim como os outros inquisidores, podendo estes últimos ser não apenas clérigos mas também juristas leigos, que passariam para o efeito a ter o mesmo poder e jurisdição que os eclesiásticos. Outro ponto bem claro nestas instruções é a primazia dos inquisidores sobre os prelados das dioceses e ordens religiosas: teriam poderes para processar e condenar eclesiásticos sem consultar os respectivos prelados, ficando os bispos impedidos de intervir em qualquer causa que os inquisidores chamassem a si. Na qualidade de delegados do Papa, os inquisidores poderiam impor excomunhões reservadas à Santa Sé e levantar as que eram impostas pelos prelados da diocese. Quanto ao processo e às penas, eram os da Inquisição de Castela, e no decorrer da discussão com o Papa revelar-se-á que o Rei de Portugal não dispensa, quanto ao processo, as testemunhas secretas e, quanto às penas, o confisco (25).

Dificilmente poderia o Pontífice romano aceitar estas pretensões e é compreensível que durante 27 anos resistisse à teimosia incansável de D. João III. Essa longa intriga, que ilustra admiravelmente os costumes diplomáticos do século XVI, é um folhetim de agentes secretos, de conspirações subterrâneas, de subornos, de facadas, de surpresas; mas os episódios romanescos não escondem o essencial que são as posições relativas de Portugal e da Santa Sé. A fama da ferocidade bárbara da Inquisição castelhana não favorecia as pretensões de D. João III numa corte de príncipes da Igreja dados à literatura e às belas-artes, muitos deles penetrados de espírito humanista, alguns profundamente cristãos, outros tolerantes até ao cepticismo. Em Roma o fanatismo ibérico era sinal de incivilização. Mas, para lá desta incompatibilidade espiritual, o que opõe o Papa e o Rei de Portugal é um litígio sobre os poderes de cada qual.


Papa Clemente VII




Brasão pontifical de Clemente VII



Não obstante a opinião corrente em Roma de que o propósito de D. João III era apoderar-se dos bens dos Cristãos-Novos, o Papa Clemente VII concedeu, quase um ano depois da primeira diligência daquele, uma Inquisição para Portugal, mas em condições que o Rei não podia aceitar. Em vez de dar ao Rei poderes para nomear inquisidores, o Papa nomeou directamente um Comissário da Sé apostólica e Inquisidor no reino de Portugal e seus domínios. Esse Comissário da Santa Sé poderia nomear outros inquisidores, mas a sua autoridade não estava acima da dos bispos, que poderiam também por seu lado investigar as heresias. O Comissário e Inquisidor-mor nomeado era confessor de D. João III, Fr. Diogo da Silva (Bula de 17-12-1531).

Os termos desta bula nunca foram aplicados em Portugal. O Inquisidor nomeado não aceitou o cargo, verosimilmente por pressão do Rei. Apesar disto, no meio da grande excitação popular, começaram a funcionar tribunais inquisitoriais em algumas dioceses, anarquicamente. A bula de 17 de Dezembro servirá apenas como sinal ao desencadeamento de violências. Aqui, o Papa voltou atrás, suspendeu, primeiro, a Inquisição, e em seguida, alegando que o Rei de Portugal o enganara, escondendo-lhe a conversão forçada dos Judeus no reinado de D. Manuel, ordenou o perdão geral das culpas de Judaísmo, a libertação dos presos, a restituição dos bens confiscados e a libertação dos condenados (Bula de 7 de Abril de 1535).

O relatório em que se baseiam estas decisões de Clemente VII é de grande interesse. Lembrava-se aí da verdadeira doutrina sobre a conversão dos Infiéis, que deve fazer-se pela persuasão e pela doçura, com a mansidão de que Cristo deu o exemplo e respeitando o livre-arbítrio humano. Exprobrava-se a conversão violenta dos Judeus no reinado de D. Manuel. Insistia-se em que os novos convertidos deviam ser amparados e instruídos caridosamente, e lembrava-se que os Apóstolos e os seus imediatos sucessores sacrificavam até a disciplina cristã a hábitos arreigados dos novos convertidos, quando esses hábitos não ofendiam a pureza do Cristianismo. Notemos que há neste ponto uma alusão clara aos usos judaicos que, depois da conversão, persistiam sem prejuízo da prática dos ritos cristãos, usos a que os Cristãos-Novos, como veremos, contestavam qualquer significado religioso intencional. Quanto à Inquisição, o relatório reproduzia uma informação sobre o funcionamento dos tribunais inquisitoriais. «Se é delatado, às vezes por testemunhas falsas, qualquer desses mal-aventurados por cuja redenção Cristo morreu, os inquisidores arrastam-no a calabouço onde lhe não é lícito ver céu nem terra, nem sequer falar com os seus para que o socorram. Acusam-no testemunhas ocultas, e não lhe revelam nem o lugar nem o tempo em que praticou isso de que o acusam. O que pode é adivinhar, e se atina com o nome, tem a vantagem de não servir contra ele o depoimento daquilo de que é culpado... Escolhem-lhe depois um advogado que frequentemente, em vez de o defender, ajuda a levá-lo ao patíbulo. Se confessa ser cristão verdadeiro e nega com constância os cargos que dele dão, condenam-no às chamas e os seus bens são confiscados. Se confessa tais ou tais actos, mas dizendo que os praticou sem má tenção, tratam-no do mesmo modo sob o pretexto de que nega as intenções. (...) O que chega a provar irrecusavelmente a sua inocência é, em todo o caso, multado em certa soma, para que não diga que o tiveram retido sem motivo. Já se não fala em que os presos são constrangidos com todo o género de tormentos a confessar quaisquer delitos que lhes atribuam. Morrem muitos nos cárceres, e ainda os que saem soltos ficam desonrados, eles e os seus, com o ferrete da perpétua infâmia. Em suma, os abusos dos inquisidores são tais que facilmente poderá entender quem quer que tenha a menor ideia da índole do Cristianismo que eles são ministros de Satanás e não de Cristo». Certificado destes factos, vendo que os inquisidores tratavam os conversos, não como pastores, mas como ladrões e mercenários (sic), o Santo Padre não só suspendera a Inquisição, mas também, para reparar a falta que cometera com as vítimas e seguindo o exemplo de Cristo, de quem é próprio compadecer-se e perdoar, quisera dar-lhes uma reparação por meio do perdão. Fazendo-o, de resto, notava o documento, o Pontífice não fazia mais que prolongar os privilégios e isenções concedidos por D. Manuel.

Este documento, que contém já a súmula das acusações que posteriormente hão-de ser lançadas sobre a Inquisição portuguesa, mostra que a motivação religiosa alegada por D. João III não era tomada a sério por alguns contemporâneos. A posição oficial da Santa Sé era que o verdadeiro e bem entendido Cristianismo a obrigava a defender e proteger os Cristãos-Novos, vítimas desamparadas de um poder bárbaro e tirânico.


Papa Clemente VII coroa Carlos V. Obra de Baccio Bandinelli e Giovanni Battista Caccini


Carlos V


A morte do Papa Clemente impediu a aplicação da bula de perdão. O seu sucessor, Paulo III, após várias oscilações, mandou pô-la em vigor (Bula de 17 de Março de 1935), suspendendo os processos em curso e libertando numerosos presos. Só depois de muito insistir e negociar, metendo de permeio a intercessão de Carlos V, seu cunhado, alcançou D. João III o restabelecimento da Inquisição. Desta vez, pela Bula de 23 de Maio de 1536, o Papa nomeava três inquisidores e autorizava o Rei a nomear um outro. Além disso, determinava que durante três anos os nomes das testemunhas de acusação não fossem secretos, e que durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados. Os bispos teriam os mesmos poderes que os inquisidores no conhecimento das heresias. Por intermédio do seu núncio em Lisboa, o Papa reservava-se o direito de fiscalizar o cumprimento da bula, de conhecer os processos quando o entendesse e de decidir em última instância.

É a partir desta bula que pode considerar-se definitivamente estabelecida a Inquisição em Portugal, embora houvesse posteriormente alterações ao estatuto inquisitorial. A bula foi publicada solenemente em Évora, então residência real. Mas já antes (16 de Agosto) estava publicado o monitório convidando os fiéis a denunciarem os actos que vinham expostos numa longa lista.

Esta não era ainda a Inquisição que o Rei queria, e da qual não desistia. Antes de mais tratou de subtrair a Inquisição à vigilância do Papa, e para isso multiplicou os incidentes até obrigar a sair o núncio Capodiferro, que tinha poderes para suspender o tribunal, caso não fossem respeitadas as cláusulas de protecção aos Cristãos-Novos. Além disto, nomeou inquisidor o Infante D. Henrique, seu irmão, então arcebispo de Braga, moço de 27 anos, que não tinha idade legal para essas funções; enfim, aproveitava ou provocava todos os pretextos para fazer crer na maldade dos conversos. Assim, apareceu um papel nas portas da catedral e outras igrejas de Lisboa, anunciando a chegada próxima do Messias; fez-se à volta disso grande escândalo, e um homem morreu queimado – culpado ou não. Um alfaiate de Setúbal anunciou-se como Messias, e apesar de se tratar de um acto sem repercussão nem consequências, o Rei fez com ele um grande fogo para convencer Roma dos perigos do Judaísmo em Portugal. A importância dada a tais «provas» faz supor que faltavam outras menos fúteis.

Os Cristãos-Novos tinham em Roma os seus agentes, declarados ou secretos, dispondo de grandes somas para contaminar as diligências do Rei de Portugal. A sua posição consistiu em negar que houvesse razões que justificassem o estabelecimento da Inquisição, e, no caso de esta ser estabelecida, em pedir que se regesse pelas normas dos tribunais comuns.

Mestre Jorge Lião, escrevendo em nome de «este povo» ao procurador dos Cristãos-Novos em Roma, em Dezembro de 1542 (26), diz que quando veio o perdão geral de 1535 «não sabiam os modos da Inquisição porque ainda não era posta, nem sabiam quantas cousas se hoje hão por crimes e por delitos de heresia. Que, antes que viesse a Inquisição, cuidavam que não erravam em as fazer, ainda que as não faziam para judaizar, senão por costume. E portanto dizem que, se hoje tivessem um perdão geral como o passado, que se causaria não haver aí Inquisição porque estariam advertidos de todas estas cousas que agora lhes põem em monitórios e pregações para os culpar». Com efeito, os actos puníveis pela Inquisição foram pela primeira vez enunciados no monitório de 16 de Agosto de 1536, muito embora antes disso já funcionassem alguns tribunais, como vimos.

Mestre Lião dá-nos um exemplo dessas culpas de que as vítimas não tinham consciência: «Se lá forem as sentenças que cá se deram, acharão em uma delas de um homem de Cascais em que houveram por delito lavar mortos e vestir camisa lavada e mortalha de pano novo, e ataúde novo. Parece forte cousa haver estas cousas por delitos, pois os Cristãos-Velhos o fazem geralmente, e o Direito o não defende». Quanto aos novos Messias, Jorge Lião reduz provavelmente os factos às suas verdadeiras proporções. Falava-se nos papéis enviados a Roma pelo Rei de Portugal de quarenta novos circuncidados que se teriam descoberto. Na realidade, «não é achado nenhum até agora de verdade, senão aquele Francisco Mendes que confessou circuncidar um filho que dias há que é finado (porque Nosso Senhor não havia de querer que pessoa em quem se fazia tamanho delito vivesse). E este Francisco Mendes foi um dos quatro que creram no sapateiro Messias. E não se devem condenar (ou ao menos não tolher o medo de proceder de justiça) a sessenta mil almas por haver quatro sandeus que mereceram mais ser como tais castigados que como homens de siso heréticos, porque não podia caber tal opinião senão em homens desassisados». Quanto à crença que professava pessoalmente mestre Jorge Lião, parece-me significativo, dado que se trata de uma carta de um cristão-novo a outro cristão-novo, enviada certamente com todo o resguardo e segurança, o passo seguinte: «Vemos, senhor, o que dizeis dos Antónios e dos Vazes, e assim do que prometem fazer contra este povo [...] Nós temos nossa esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo, em quem vós também dizeis que a tendes, para não temer seus ameaços».


Mas no caso, a que se resignavam, de a Inquisição ficar instituída, os Cristãos-Novos pediam as garantias do processo comum, tais como: que os nomes das testemunhas de acusação não sejam secretos; que não se aceitem testemunhos de pessoas presas por Judaísmo («porque culpam os nossos por medo»), nem de escravos e pessoas vis; que os presos possam comunicar; que se ponham prazos para a conclusão do processo; que os réus possam escolher os seus próprios advogados, etc. Isto propõem quatro cristãos-novos consultados confidencialmente por D. João III sobre a maneira de evitar a saída dos Cristãos-Novos do reino, que continuava apesar da proibição legal. Os mesmos consultados pedem também a abolição das confiscações e de toda a discriminação: «que não se faça lei nem permita estatuto nem costume por que esta gente esteja separada dos Cristãos-Velhos». Se assim se fizer, asseguram os quatro conselheiros, evitar-se-á a fuga dos Cristãos-Novos; e os que estão em Castela e Galiza assim como em Flandres, França e Itália, regressarão em grande parte (27).

Tudo se reduz, afinal, a aplicar as regras correntes no processo comum. Era esse também um dos propósitos dos esforços do Papa, sendo o outro o de conservar na sua dependência o Tribunal do Santo Ofício em Portugal. As constantes intervenções do núncio nos negócios inquisitoriais provocaram o furor da Corte portuguesa, que conseguiu após várias provocações obrigá-lo a sair de Portugal. Para compensar os Cristãos-Novos da perda deste protector, o Santo Padre emitiu a bula de 12 de Outubro de 1539, que como regra geral proibia as testemunhas secretas e dava outras garantias aos acusados, das quais a mais importante, tanto para os Cristãos-Novos como para a Santa Sé, era o direito de apelação para o Papa. Determinava também que os ordenados e emolumentos dos inquisidores não fossem pagos pelos bens dos presos.

Como todas as que favoreciam os Cristãos-Novos, esta bula nunca pôde ser publicada em Portugal; e a única mudança, após a partida do núncio, foi ficarem os inquisidores com as mãos livres. Em 20 de Setembro de 1540 realizava-se o primeiro auto-de-fé em Lisboa, e outras fogueiras ardiam entretanto em Coimbra, no Porto, em Lamego, Tomar e Évora. Perante esta impossibilidade de intervir, o Papa recorreu à solução radical, suspendendo a Inquisição, pelo breve de 22 de Setembro de 1544; mas tomou a precaução de fazer publicar de surpresa em Lisboa o dito breve, trazido secretamente por um novo núncio. Aí o Rei de Portugal jogou a sua carta máxima. Requereu ao Papa que revogasse a suspensão e restabelecesse a Inquisição sem quaisquer limitações, e concluía ameaçando: «Se Vossa Santidade não prover nisso, como é obrigado e dele se espera, não poderei deixar de remediá-lo confiando em que não somente do que suceder Vossa Santidade me haverá por sem culpa, mas também os príncipes e os fiéis cristãos que o souberem conhecerão que disso não sou causa nem ocasião». É uma ameaça inusitada, mas clara, de desobediência formal ao Papa e de cisão na Igreja. D. João III seguia, a uma distância de nove anos, o conselho que lhe fora dado por carta pelos seus dois enviados à Santa Sé em 1535: que negasse obediência ao Papa imitando o exemplo do rei de Inglaterra Henrique VIII. Entre a obediência ao Papa, como fiel católico, e a rebeldia declarada que lhe permitisse instituir um tribunal que era no fundo um instrumento régio, o Rei de Portugal estava disposto a seguir a segunda via.

Mas a autoridade do Papa neste negócio da Inquisição ficara fortemente prejudicada desde que em 1542 ele próprio estabeleceu a Inquisição em Roma. O partido intransigente expulsava da corte pontifícia o espírito humanístico que inspirou o documento em que se fundamentava a bula de perdão de Clemente VII. A Companhia de Jesus ganhava influência no Vaticano e no concílio, e Inácio de Loyola interveio pessoalmente a favor das pretensões do Rei de Portugal. A pressão de Carlos V mantinha-se e Paulo III não podia permitir-se ignorá-la no difícil jogo diplomático à volta do concílio que justamente por esta época começou a reunir-se. Recuando em batalha de retirada, o Papa acabou por aceitar o essencial das pretensões do Rei na bula de 16 de Julho de 1547, que nomeia Inquisidor-Geral o Cardeal D. Henrique, que manda aplicar o processo inquisitorial em lugar do processo comum e que retira a autoridade até então confiada aos núncios em Lisboa para intervirem em negócios da alçada dos inquisidores. Ao mesmo tempo, porém, o Papa promulgava uma bula de perdão com numerosas restrições, aliás, mais um breve suspendendo o confisco por dez anos, e um outro suspendendo por um ano a entrega de condenados ao braço secular (ou seja a aplicação da pena de morte). Num outro breve ainda, o Papa fazia certas recomendações tendentes a moderar os previsíveis excessos do tribunal e a permitir a saída para o estrangeiro dos Cristãos-Novos.




Brasão de Armas Reais e Cardinalícias de D. Henrique de Portugal


Não cessou com isso o movimento pendular da Santa Sé relativamente a este negócio. Pouco antes de morrer, Paulo III promulgou ainda um breve (8 de Janeiro de 1549) que abolia o segredo das testemunhas. Nunca foi provavelmente aplicado em Portugal, mas obrigou o Rei a novas diligências em Roma. Só em 1560 foi aquele breve anulado sendo embaixador Lourenço Pires de Távora.

E é interessante notar que este diplomata, prevalecendo-se da autoridade que lhe vinha de ter sido o ministro por cuja diligência se acabou de efectuar este negócio, fez acompanhar este documento de uma carta sua ao Cardeal D. Henrique então Regente e Inquisidor-Geral, pondo-o de sobreaviso contra os perigos das testemunhas secretas:

«Creio que toda a moderação que a Justiça sofrer nas culpas dos Cristãos-Novos aprazerá a Deus e ao mundo. Pouca indústria e trabalho é necessário para os queimar a todos quem não tiver muita vigilância e os esperar e defender de falsidade. E esta parte toca a Vossa Alteza, porque sendo eles tão odiados e havendo tantas pessoas no mundo mal inclinadas, não se dando os nomes das testemunhas e não podendo os culpados dar facilmente contraditas ao que não sabem e a inimizades e respeitos ocultos, pode correr muito risco a verdadeira justiça. Pela qual cumpre a Vossa Alteza estar sempre com grande advertência» (28). Noutra carta sobre o mesmo negócio o mesmo embaixador acrescenta: «que se devia proceder nos defeitos dos Cristãos-Novos com justiça e misericórdia juntamente [...] havendo respeito a sua natureza e a como sua errada porfia não se pode estender a mais que aos da nação, que é já pouca, e o tempo e esquecimento da doutrina, com o medo do castigo, os irão fazendo bons». Não é aqui que está o perigo, nota o embaixador, mas na seita luterana: com essa sim, é preciso «proceder com todo o rigor e sem nenhuma piedade» (29). Estas palavras do embaixador português em Roma mostram que no século XVI havia gente bem informada que não considerava infalível a justiça dos inquisidores. Mas para que os conselhos de Távora tivessem cabimento, era preciso que a função dos inquisidores e da Inquisição fosse exterminar o Judaísmo que, como nota o mesmo Távora, estava em vias de extinção (ob. cit., pp. 39-55).


Notas:

(22) Corpo Diplom. vol. IX, carta de 12-2-1561. (P. 150).

(23) Damião de Góis, Crónica de D. Manuel, e Mestre Jorge Lião na carta abaixo indicada.

(24) Carta de Gil Vicente publicada na Copilaçam de todas as obras de Gil Vicente (1562) e em todas as edições das obras completas.

(25) Este documento, de 1531, encontra-se no Corpo Diplom. II, p. 319 e seguintes; sobre a introdução da Inquisição seguimos a narrativa minuciosa de Herculano na obra citada.

(26) A carta de Mestre Jorge Lião está no Corpo Diplom. V. Dezembro de 1542, pp. 158-167.

(27) Corpo Diplomático, V, ano de 1546, pp. 105 e segs.

(28) Carta de 12-5-1560, ibid., vol. VIII, pp. 476-477.

(29) Carta de 18-1-1560, ibid., vol. VIII, p. 310.

Continua


Inquisição e Cristãos-Novos (iii)

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Escrito por António José Saraiva





«(...) uma agitação vinda de longe, e transmitida através das diversas comunidades israelitas da Europa, uma ânsia de libertação, que lhes fazia antever para breve a realização das promessas divinas, cuja esperança é a fé de ser da nacionalidade, repercutiu-se em Portugal, e preparou o cenário para a aparição de uma das mais singulares figuras de sonhador, que a raça hebraica, aliás nelas tão fecunda, tem produzido. E foi um português, nascido no catolicismo, a criatura destinada a fornecer às crónicas judaicas a estranha lenda, que conserva ainda agora seus crentes. O ambiente meio pagão da Renascença, nos países em que foi mais intenso o culto da antiguidade, preparava os espíritos para a indiferença religiosa, quando não para a tolerância em tudo o que não afectava os interesses materiais da Igreja, que ela sobretudo tinha a peito. Roma era com certeza a terra menos intolerantemente religiosa da Cristandade. Com a paixão da arte, o desejo de saber invadia os espíritos de escol, e os doutos da época, saturados já das línguas clássicas, voltavam também para o hebraico sua atenção. Isso lhes revelou um tesouro de poesia e de especulações filosóficas, acumulado por séculos, o qual, patente só aos iniciados, e oculto pelo obstáculo da língua, a imprensa agora divulgava, e o trabalho diligente ia facultando aos estudiosos. A Cabala, principalmente, pseudo-ciência, que procurava interpretar os inúmeros criptogramas, existentes, diziam os adeptos, na Bíblia e por tal meio descortinar os mistérios do porvir, a Cabala tinha particular sedução, nesta época de imoderado gosto pelas ciências herméticas, e em Itália, Alemanha e França eram em quantidade os seus cultores. Daí resultou o maior apreço das classes ilustradas pela raça perseguida, e para esta, a consciência mais viva do seu valor, com o redobrar dos anelos que lhes são caros, e que o ínfimo dos seus membros jamais de todo abandonou.

A Portugal, embora afastado dos centros intelectuais da Renascença, onde o movimento se produzia, chegou como que uma vibração distante, que sacudiu o povo de Israel, ignorante do que a motivara. Em Lisboa aparece então um aventureiro singular, impostor e visionário, vindo de Roma, da Núbia e do remoto Oriente, não se sabe bem de onde, pequeno de corpo, escuro de face, minguado de carnes pelos jejuns, David Reubeni de nome, que se dizia enviado do monarca de uma nação judia da Arábia descendente da tribo de Ruben, para solicitar do Papa, e dos soberanos católicos, artilharia e mais armamentos para trezentos mil guerreiros, afim de expulsar os turcos da Palestina. Segundo a lenda, Clemente VII recebeu-o com pompa, e recomendou-o a D. João III, pensando, com o auxílio de Portugal, organizar uma cruzada. Se, como do silêncio dos cronistas se colige, David Reubeni não foi buscar o Rei, precedido de um estandarte em que iam bordados os dez mandamentos, nem foi em Almerim, onde estava a corte, recebido em solene audiência, o que referem os escritores hebreus, é certo que a presença dele produziu grande alvoroço entre os cristãos novos de Espanha e de Portugal, por efeito das prédicas, em que anunciava a restauração próxima do reino de Judá e a vinda do Messias. Para muitos mesmo, era ele o próprio prometido.


Com essas prédicas, ninguém tanto se exaltou como um mancebo, chamado Diogo Pires, escrivão da Casa da Suplicação, que, receoso de não alcançar as boas graças do profeta, tão inteiramente como desejava, por lhe faltar o sinal físico do judaísmo, a si próprio se circuncidou. Posto de cama pela grave operação feita por sua mão inexperiente, representava-se-lhe em sonhos ver o céu, e ouvir de vozes divinas a confirmação das crenças e esperanças, em que vivia agora unicamente embebido. Quando convalesceu, por inspiração que também teve, fugiu de Portugal e dirigiu-se à Turquia, adoptando então o nome de Salomão Malco, pelo qual ficou conhecido no judaísmo. Desde esse instante, desaparece o halo do maravilhoso de David Reubeni, e passa ao iluminado português. Em pouco tempo, a fama de um novo profeta se espalha no império, e traz a escutarem-lhe o verbo inflamado turbas de correligionários, sequiosos de terem da boca dele a data certa da chegada do Messias, que anunciava. Em 1531, Diogo Pires encontra-se em Roma onde, como o seu precursor David Reubeni, logra também as graças de Clemente VII. Com a sua eloquência e o saber da arte da Cabala, adquirido no Oriente, seduz o Pontífice, e o cristão de ontem - tanto lhe atribuem os seus entusiastas - procura converter à lei mosaica o próprio chefe do catolicismo. Ao mesmo tempo, faz predições. Anuncia uma grande inundação em Roma, que se realiza, e o tremor de terra de 1531, em Portugal. Pelo menos, assim refere a lenda que lhe diz respeito. Como era de esperar, não lhe faltaram, entre os da sua fé, invejosos e detractores. Os hebreus ortodoxos detestavam-no como ímpio, e, movendo poderosos amigos, fizeram intervir contra ele o Santo Ofício. O profeta foi preso e condenado ao fogo. Salvou-se, ao que contam, por um ardil do Papa (que se não ofendera com a tentativa de conversão, e lhe fez substituir, na hora do suplício, outro condenado) ou talvez, como pretenderam alguns crentes, por um prodígio divino. Como quer que seja, Salomão Malco, fugindo de Roma, dirigiu-se para Bolonha, Mântua e Ratisbona, onde estava a corte do Imperador, e tentou também converter Carlos V. David Reubeni acompanhava-o. Aí terminou a carreira do impostor e a do visionário. Acusados de heresia, e levados na comitiva do soberano para Mântua, o português foi condenado à pena de fogueira, que se cumpriu, tendo ele rejeitado a vida que lhe ofereciam a troco de regressar à fé católica. O companheiro passou dali para os cárceres da inquisição em Espanha.


Diogo Pires sucumbiu inacessível às dores e absorto no sonho magnífico da redenção da sua raça, em que tentara, por meio da conversão, envolver os dois super-homens da cristandade o Papa e o Imperador. Há quem pretenda que também Francisco I de França. Realidade? Invenção de espíritos ardentes? Não se saberá nunca porventura; mas a vida de Salomão Malco, verdadeira ou meramente lendária, ficará para sempre na história, como síntese das aspirações, do ousado esforço, da ânsia de viver de uma nacionalidade, que, pulverizada e dispersa, consegue ainda manter-se pela tenacidade da sua crença».


J. Lúcio de Azevedo («História dos Cristãos Novos Portugueses»).





«Na generalidade, os hebraístas portugueses, quando não foram opositores públicos à Cabala, como ocorre no De Vera Sapientia (1572), de D. Jerónimo Osório, tornearam as questões de fundo, de modo a adequar a simbólica cabálica à teologia cristã, como sucede no De Ophira (1561), de Gaspar Barreiros (falecido em 1574), sobrinho de João de Barros e notável cabalista salmanticense.

Os factores cabalísticos motivaram as ciências médicas, obedientes a uma tradição que vinha da Clavícula Salomonis, um livro pré-medieval, miscelânea de elementos gregos, árabes, judios e cristãos, que não é de um judaísmo puro. A Cabala sefardita distinguiu a praxe cabalístico-profética (baalei hasefiroth) da práxis cabálico-mágica (shimusha raba), e teúrgica, que, no fundo, se opõe à doutrina especulativa, prenhe de ideia pura, do Zohar. O facto não tira às consequências de, no norte da Europa, as comunas hebraicas terem preferido a Cabala teúrgica e mágica, menos especulativa e mais cousista, de onde a panóplia de talismãs do judaísmo asquenazi. João Bravo o Charissimus, ou Chamisso, que viveu nos finais do século XVI e começos do XVII, defendeu, no De Intentionibus Chirurgis, o tratamento das doenças por ensalmos, preconizando a eficácia das palavras na cura das doenças, o que supõe uma renovação da medicina terapêutica e da espiritualidade carismática dos primevos judio-cristãos. O sortilégio da palavra é questão antiga, e os judeus controversistas acusavam Jesus de ter violado a palavra inefável do Templo, palavra essa que lhe permitia fazer milagres. Os carismas terapêuticos (renovados pelo movimento cristão dos Pentecostais e dos Carismáticos) têm longa fundação na sabedoria do olvido e da memória, mas tal facto não obstou a que, Diogo Pereira, no livro que redigiu contra a magia das palavras, impugnasse a tese de Chamisso. Uma tese média foi preconizada por Manuel de Vale de Moura (falecido em 1650), um eborense ilustre, autor do De Incantationibus et Ensalmis (1620), que combateu a tese da superioridade do hebraico na arte de curar. Para o teólogo, deputado à Inquisição eborense, todas as línguas tinham a mesma virtude, já que a eficácia não depende das palavras em si mesmas (o que seria literalismo mágico), mas dos humores (graça) de quem as pronuncia. Moura justificava que os milagres de Jesus dependiam, não tanto da palavra, mas da graça de Cristo. Admirador de Moura, foi D. Francisco Manuel de Melo (falecido em 1666) que, não obstante, pouco sabe da Cabala hispânica, tudo tendo aprendido em Mirandola e Reuchelin. O Tratado da Ciência da Cabala (ed. póstuma, 1724) posto a circular pelos favores de António Nunes Correia, publicado para desengano da curiosidade dos simpatizantes da Cabala, é um livrinho noticioso, e sem pretensões.

(...) A década dos sinais messiânicos diz que o Messias iluminará o mundo; de Jerusalém, sairão águas vivas; as árvores darão fruto mês a mês; as cidades desoladas serão reconstruídas; Jerusalém será edificada sobre um monte de safiras; haverá paz perpétua e universal, mesmo entre os animais, como no paraíso; não haverá, nem mais choro, nem mais pranto; não haverá mais morte; enfim, o termo dos suspiros e dos gemidos virão. A profecia visa mais a prognose do mundo novo do que a nostalgia do mundo velho.

Menassé mostra-se oposto a Isaac Abravanel, que conjecturara o ano de 1503, a Salomão Malco, a Manuel Bocarro Francês (cujo prognóstico era para 1653) e aos sabetaístas, que preconizavam 1666. Os adivinhadores de datas merecem a crítica de Menassé, por desejarem exceder a capacidade humana, mas admite que, embora o homem não possa marcar a data, o tempo está próximo. O exame crónico e lógico do sonho de Daniel evidencia a derrogação das quatro monarquias materiais ou metálicas. A cabeça de ouro significa a monarquia babilónica, o peito de prata a monarquia de Ciro, o ventre de bronze o império helénico-macedónico, as pernas de ferro a monarquia turca e o império romano (Islão e Igreja, unidos para uma destruição recíproca). A quinta monarquia é Israel, a pedra sobre a qual o povo será edificado, o Messias. Israel "será senhor do mundo, com temporal, terrestre, e eterno domínio", sob o céu.

A proximidade dos sinais requer a vigília. Se o povo dorme, para que servem os sinais? Seria o mesmo que deitar vinho novo em odres velhos. Menassé aproveita as oportunidades para exorcizar os tempos e as circunstâncias. Fez o que lhe foi possível para abrir as portas da Suécia aos judeus, embora sem resultado positivo; e foi mediante a sua actuação, que a Holanda se tornou o cento irradiador de judeus para outras partes do mundo. Há um paralelismo com a vida portuguesa: os portugueses irradiam de Lisboa em busca de terras; os judeus de matriz hispânica irradiam de Amesterdão em busca da vida, nessas mesmas terras. A concorrência messiânica entre Israel e Portugal pode ler-se, em termos de simples história, na concorrência mercantil e territorial de Portugal e Holanda».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Hebraico-Portuguesa»).
«Os mouros foram forçados a transpor o Estreito e a refugiarem-se em Marrocos. Anteriormente os judeus tinham-se em parte refugiado em Portugal, onde a administração não estava ainda arrebatada pelo ardor religioso que um pouco mais tarde a inspirou também. Não era que no povo português a fé tivesse menos calor: era que D. João III, na sua sabedoria, não concordava com o pensamento nacional. Com efeito, já nas Cortes de Évora, em 1481, as riquezas e a ostentação dos Judeus tinham sido arguidas. Mais de vinte mil famílias de israelitas espanhóis tinham buscado refúgio em Portugal, e D. João III dera-lho por oito meses, mediante imposto de oito cruzados por cabeça e pena de escravidão quando não saíssem no prazo marcado. Esta dura condição não chegou a ser cumprida; mas nos fins do reinado do Príncipe Perfeito o ardor era já tanto, que se propôs o plano de colonizar S. Tomé com os filhos dos judeus. Com a elevação de D. Manuel ao trono volta uma política de tolerância; mas o casamento do rei com a filha do rei católico determina uma mudança na política portuguesa; e, como presente de bodas, D. Manuel publica, em 1496, a ordem de expulsão de todos os judeus e mouros forros, quer naturais quer imigrados, que recusassem o baptismo. A morte e o confisco puniriam os que insistissem em não adoptar nenhuma das duas alternativas, exílio ou conversão.

Parece que na máxima parte os judeus optaram pelo segundo expediente - muito mais fácil decerto, desde que intimamente estavam decididos a burlarem-se das águas lustrais, como prova o pedido que fizeram e a concessão que se lhes deu de por vinte anos não serem devassados nas suas crenças. Esta solução perigosa, e num sentido absurda, irritou o fanatismo do povo sem trazer aos judeus a paz que desejavam. Os fiéis logo perceberam a burla; e, se primeiro os ofendiam a liberdade, a riqueza e a influência dos judeus, a tudo isso vinha agora juntar-se o espanto do sacrilégio. Sacrílegos eram esses baptismos; e permanente sacrilégio o uso dos sacramentos que, como supostos cristãos, os judeus faziam, pensando com isso melhorar a sua sorte.

Daqui principia essa terrível comédia de ignomínias e sangue, que a decisão de D. Manuel pôs em cena. As matanças de Lisboa ecoavam em todo o Reino, e a custo eram violentamente reprimidas as repetições. O ódio antigo ateava-se agora com alimento novo, e o espectáculo do sacrilégio impune enchia de legítimas indignações a alma crente do povo. Essa indignação rebenta em bárbaros morticínios que são o lado trágico da comédia em que a abjecção dos judeus representa a ignomínia. O povo, tumultuária e caprichosamente, exercia uma devassa permanente sobre as crenças dos novos cristãos; e amiúde pela mesma forma, avocava a si o direito de executor da justiça eclesiástica. Era uma Inquisição informe, que precedia o estabelecimento do tribunal da fé.

É isto o que D. João III, príncipe em cuja alma todo o fanatismo da Nação encarnara, logo compreende porque o sente; e, na viva paixão do rei por esse tribunal que conseguiu fundar contra a resistência de Roma, deve o historiador ver este o motivo íntimo. Dada a situação criada por D. Manuel, impossível como era uma solução tolerante qual seria em nossos dias, força é reconhecer que a organização de um tribunal da fé era preferível à existência anárquica desse mesmo tribunal, confiados os cargos de juízes a uma plebe fanatizada por outra plebe de frades energúmenos. Se a paixão do rei é a paixão do seu povo, devemos reconhecer que, ainda sob o ponto de vista da boa economia administrativa, ainda sob o ponto de vista da justiça e da ordem, a fundação da Inquisição era desejável.

Se tais motivos influíam nos Conselhos do monarca, o espírito particular dele ardia nesse entusiasmo de purificação, geral a toda a Espanha. Torquemada tinha em dezoito anos processado mais de cem mil pessoas; e de seis a sete mil tinham sido queimadas em efígie; e nove mil realmente queimadas em carne e osso, nos altares de Cristo - como em Cartago, no ventre de Baal ardendo em chamas, se deitava diariamente o repasto do deus.


Tomás de Torquemada

No espírito de D. João III, a quem a paixão levou um historiador nosso a chamar "fanático, ruim de condição e inepto", cintilava a mesma chama, então fulgurante em toda a Nação. Condenar o príncipe sem a condenar a ela, é falsear a história, aplicando-lhe um critério que lhe não convém. Esse historiador, tão nobre pelo carácter quanto ilustre pelo saber e benemérito pelo trabalho, deixou-nos escrita a narrativa das negociações que prepararam o estabelecimento da Inquisição em Portugal. Na sua vontade de deprimir o príncipe para ele culpado de um crime que, a sê-lo, cabe à Nação inteira; na sua vontade de condenar, num homem, aquilo que com toda a razão o eu moderno e forte espírito condenava, não poupa as vaias e os insultos, e quase exulta quando nos mostra D. João III mandando assassinar um homem que embaraçava a realização dos desígnios da coroa. Quem não sabe a que loucuras e crimes conduz a Razão de Estado? Qual será o príncipe desse século XVI - e de todos os séculos afinal! - que não tenha nas dobras do manto mais de uma nódoa de sangue, e nas recônditas voltas da consciência mais de um remorso pungente?

Apesar de tudo, dessa história sai porém uma impressão: D. João III seria inepto e fanático, mas era sincero na sua crença; Roma seria corrompida e vil, mas a corrupção e a vileza serviam neste momento a humanidade; os judeus, porém efectivamente martirizados, não merecem o lírico aplauso de uma filantropia rasteira, porque o amor dos homens é sobretudo o amor da dignidade humana; e esses mártires não a conheciam, na abjecção com que tudo confiavam ao dinheiro corruptor, e na indignidade com que se submetiam a praticar os actos de uma religião aborrecida.

Tudo isto a história das negociações evidentemente demonstra. Entre Roma e os judeus há um mercado aberto; e os últimos conseguem dos Papas, a peso de ouro, a resistência às pretensões do rei. A humanidade e os direitos pontifícios são as frases com que, nas bulas protectoras dos judeus, se traduzem as quantias recebidas. A correspondência entre o embaixador e o rei português é eloquente:

Toda a importação que se fez ao Clemente [VII] pera dar esse breve á ora da morte foy porque lhe dysse o seu confessor induzido dos cristãos novos que poys tinha avydo o dynheyro deles que era concyencya non lhe deyxar o perdão limpo e livre. E isto he verdade e assy o dysse Santiquatro ao papa Paulo [III] perante noos.


Noutro lugar Santiquatro, vendo que os judeus em Roma obtêm o que desejam com dinheiro, propõe a divisão:

O que diz Santiquatro he que o nom levem estes Judeus tão sabroso, e que lhes penitencia de vinte ou trinta mil cruxados, ou os que V. A. ouver por bem, que partaes com papa para suas necessidades.

Os embaixadores, como políticos sem preconceito, vivendo nessa Itália devassa, insistem com o rei:

Tudo o que V. A. quizer negocear bem com este papa [Paulo III] ade ser pondolhe seu enteresse diante; tudo se fará como lhe non tocarem no enteresse. E V. A. deste pão do seu compadre deixe ao afylhado levar uma parte.

Pois bem: D. João III teima - não cede, nem partilha. É um crente, não é um político. Admirá-lo-íamos, se imitasse o Papa? Ou pretenderíamos que fosse, no século XVI, como é o tipo dos grandes homens que hoje, à luz das ideias do século XIX, concebemos? Para nós, a sua grandeza está precisamente nessa exaltação religiosa que hoje temos de condenar de um modo abstracto, mas que não podemos nem devemos condenar na história aplicando o critério de princípios então desconhecidos.

A paixão religiosa de D. João III é tal que "se este cargo (o de inquisidor-mor) fora de príncipe secular com mui grande gosto me empregara nele". Isto escreve para Roma ao seu embaixador. Finalmente, em 1536, obtém para o seu reino o desejado tribunal, e repete-se aqui o furor de purificação da fé havia muito praticado no vizinho reino».

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).


«Desde meados do século XV que se acentuava a importância do comércio português com o Norte da Europa e a consequente necessidade de melhorar ou garantir a inserção autónoma de Portugal em circuitos monetários europeus mais amplos e variados. Na realidade, a perseguição ao judeu em Lisboa, a conversão forçada facilitou ou dificultou a satisfação dessa necessidade?

D. João II armado cavaleiro por D. Afonso V, na cidade de Arzila (pintado por Domingos Sequeira).

A ligação do judeu com os circuitos económicos internacionais, na Flandres e sobretudo na Itália, é indiscutível, embora estivesse longe de ser exclusiva. Que papel esse facto desempenhou nas atitudes de D. João II, D. Manuel e depois de D. João III? Mas seja qual for a resposta, é um problema de história social (e não um esclarecimento) sabermos passar dessa questão e do seu papel, em Lisboa ou noutros povos marítimos, para a influência ou pressão social que o cristão-novo (ou o judeu) representava na Beira ou em Trás-os-Montes: que funções exerciam nos circuitos locais? Não é possível unificar o cristão-novo do século XVI num grupo economicamente delimitado; há cristãos-novos com as mais variadas fortunas, ocupações, apoios e interesses. E numa época em que a dificuldade de comunicações põe obstáculos consideráveis à definição homogénea de classe, a heráldica, a raça, o modo de realizar a fé, o estatuto profissional, os costumes têm funções unificadoras efectivas, que, desaparecida a urgência, se tornam incompreensíveis. Não pode dizer-se, sem prova, que os motivos concretos de perseguição aos cristãos-novos em Lisboa tenham sido os mesmos que em Lamego ou Bragança ou que a alegada operosidade, gosto pelo trabalho e pelo estudo existissem em todos eles, tivessem o mesmo efeito público em toda a parte e fossem sempre superiores. A acusação de "cristão-novo" unifica o ódio, não os motivos que o fixaram. Quer isto dizer que o antagonismo aos cristãos-novos se decompõe em diversas razões, conforme os lugares, as épocas e os interessados; os motivos de fé e raça são modos aceites para generalizar realidades sociais e económicas muito diversas: os cristãos-novos nem sempre são ricos, trabalhadores e superiores e os seus adversários nem sempre fanáticos pobres ou ricos invejosos. Unificar uma realidade social complexa é um processo usual em todas as sociedades; o cristão-novo é uma dessas generalizações, facilitada por alguns pontos comuns mais flagrantes: a referência à raça e à religião. Passar daí para a sua definição como uma categoria artificial ou compulsiva, para qualidades de excepção ou para uma unificação "contra vontade"é um passo que nenhum historiador, hoje, se atreverá a dar sem provas bem determinadas. A história tem de servir mais para analisar as categorias sociais que cada época concebeu do que para as tomar como indiscutíveis e planeadas. Como quer que seja, impossível esquecer-se que fidalgos e mercadores não constituíam categorias contrárias e a ambos podia interessar, tal como a alemães e flamengos, a eliminação ou o enfraquecimento do circuito monetário judaico-italiano, tão poderoso e quase monopolista até ao século XV e em via de transformação e ajustamento no século seguinte, para enfrentar novos concorrentes.

Depois do caminho marítimo para a Índia, a importância das comunidades, ou mesmo personalidades, judaicas do Índico ao Mediterrâneo dava-lhes uma projecção nova, como meios de "furar" o monopólio das especiarias ou garantir o trajecto das pedras preciosas. Os portugueses, ao percorrerem o Índico, encontraram sempre, nos grandes e pequenos centros, judeus. Não raro lhes aproveitavam os conhecimentos e relações. Desde o judeu de Beja que trouxe a D. João II as informações de Pero da Covilhã, aos que apareceram em Adem, Ormuz, Goa, Calecut, Diu, Cananor, etc., ajudando ou combatendo os portugueses, todos se apresentam como constituindo uma bem estabelecida via de contacto e de informação para a Europa. Os seus recursos, nesse domínio, não podiam desprezar-se. A tentativa da imposição do monopólio da pimenta pelos portugueses precisava de ter presente as possibilidades dessas vias judaicas que se acrescentavam a outras. Facto semelhante se verificava quanto às praças de África. Os cronistas mencionam o papel relevante desempenhado por judeus em muitas operações realizadas pelos portugueses em Marrocos: quando, a partir de 1530, começou a declinar o interesse da realeza por aquela área, declinou também o cuidado que esses mesmos judeus mereciam à coroa, pelos serviços que ali podiam prestar: a perseguição aos cristãos-novos em Portugal é contemporânea da política de abandono das praças de África. E uma vez reduzido o interesse pela colaboração judaica em Marrocos, tomavam vulto os prejuízos que, no Oriente, se atribuíam ao judeu, em contacto directo com o Império Turco e o Mediterrâneo. Os cristãos-novos portugueses não eram grupos só significativos no contexto metropolitano: para a definição dos seus serviços, interesses e capacidade de pressão, é preciso considerar o papel que desempenhavam na Europa, África, Índico e Mediterrâneo, tanto eles próprios, como os seus amigos, colaboradores e adversários. A política contra os cristãos-novos é uma opção extremamente complexa. A ideia do rei D. João III, fanático e bronco, apoiado nas massas portuguesas, ignorantes e invejosas, contra os cristãos-novos, lúcidos e endinheirados, Deus ex machina da Inquisição, é inaceitável.

Estabelecendo condições prévias gerais - assaz discutíveis -, preparava Alexandre Herculano a história da instituição propriamente dita do Santo Ofício em Portugal. Para tal, o autor estabeleceu ainda um conceito de rei absoluto, criador das decisões de governo, mais do que suporte delas, como o entendiam os teóricos do Poder do século XVI, ao fazerem a distinção entre a "forma ordinária" e a "voluntária", para depois, chegarem ao debate sobre se o rei absoluto constituía garantia bastante. Por esse tempo, já na Inglaterra se considerava que a pessoa-rei não bastava; nas monarquias absolutas do continente entendia-se que os privilégios em exercício, as hierarquias defendidas pelos próprios interessados, a função nacional, constituíam cautela suficiente para a segurança e limite quanto à garantia-rei: este, sem tais apoios (e limites), perdia força - portanto, autoridade. Mas o rei, como criador exclusivo das decisões que encabeça, é mesmo para o século XVI, um caso excepcional e, como doutrina, tem poucos partidários. E mesmo estes últimos acentuam a importância da "formação" do rei. No século XIX, face aos textos, a interpretação autocrática continuava indefensável no que se refere a Portugal, embora muitas vezes fosse assim caricaturada, por motivos da história recente.


D. Manuel I





Noutro ângulo, tomava Alexandre Herculano as épocas características dos governos como suficientemente definidas a partir dos reinados. Perspectiva que, para lamento da historiografia portuguesa, se prolongou até hoje, com direito de cidade, mesmo nos mais inesperados intérpretes. E no entanto, com a subida de D. João III ao Poder, os quadros da administração central de D. Manuel foram conservados na sua quase totalidade. O facto foi louvado pelos cronistas do rei "piedoso", por constituir uma solução habitualmente desejável, embora pouco comum. Herculano, porém, tomou o reinado de D. João III como uma realidade em si mesma, apontando a continuidade governativa - paradoxalmente - como resultado da "incompetência" que levava o rei a aceitar o que havia. Apesar de considerar que este último dispunha de um executivo particularmente operoso, sensível em todos os negócios da coroa, o historiador, para manter a sua ideia relativa ao papel pessoal do rei no caso da Inquisição - pedida por D. Manuel I -, abre uma excepção à provada continuidade governativa (que noutros campos aceita) e dá o tribunal como resultado da insistência obstinada de D. João III. E no entanto, este, no início do reinado, tinha confirmado as garantias atribuídas por seu pai aos cristãos-novos. Contudo, para Alexandre Herculano, "os factos relativos ao estabelecimento da Inquisição que vamos narrar provar-nos-ão mais de uma vez a espontaneidade do rei nesta matéria e que, por grande que haja sido a preponderância dos seus ministros nos negócios públicos, no que tocava às questões religiosas essa preponderância era subordinada à sua vontade". Muitas razões podiam apresentar-se contra esta interpretação, qualquer que fosse o conceito de D. João III acerca dos judeus e que não diferia muito do que tinha D. Manuel.

O abandono da unidade de medida política chamada "reinado"é indispensável. Na realidade, no primeiro trinténio do século XVI podemos determinar uma política e uma orientação regular na corte portuguesa, do reinado de D. Manuel para o de D. João III, no sentido de uma relativa tolerância para como os cristãos-novos. A esse respeito, começa a acentuar-se uma modificação por volta de 1527. Há razões para considerar o facto também relacionado com as necessidades da política externa portuguesa, que, depois de muitas hesitações e em face dos constantes ataques franceses à navegação portuguesa, acabava por se aproximar de Carlos V, cuja regra visava, dentro da fórmula "paz com os cristãos, guerra ao infiel", promover uma espécie de solidariedade europeia e católica, sob a sua direcção. Por muito difícil que fosse um acordo efectivo entre D. João III e Carlos V, o seu alcance não escapava à governação joanina, segura como estava de que os acontecimentos do Próximo Oriente mediterrânico se reflectiriam tanto no mar Mediterrâneo como reforçariam ou enfraqueceriam a linha de auxílio turco Adem-Diu-Calecut, que tanto prejudicava o tráfico português da pimenta. Não deve também esquecer-se que, por esta altura, existia nos reis peninsulares, tal como existia na França e na Inglaterra, uma certa orientação de tipo galicano. É de 1527 o saque de Roma pelas tropas de Carlos V, coroado imperador em 1530, sem esquecermos o encontro, em 1534, do papa com Francisco I, rei de França. D. João III casara em 1525 com a irmã do imperador e este, no ano seguinte, com a irmã do rei português. Acontecimentos de toda a ordem chamavam a atenção para o papel do Mediterrâneo e da posição espanhola no equilíbrio dos portugueses no Oriente, enquanto a acção francesa, a esse respeito, se colocava num plano muito diferente. Aproveitando esta ponderação de forças que lhe era favorável, o rei de Espanha pretendia que se criasse em Portugal uma Inquisição dependente da espanhola. Qual o peso destes esforços de Carlos V nas urgências de D. João III?

A perspectiva galicana, por sua vez, evidencia-se na correspondência do rei com o bispo do Funchal (tão precipitadamente julgado por Herculano) e acentua-se aquando do conflito entre D. João III e D. Miguel da Silva, bispo de Viseu, feito cardeal depois de fugir para Roma, por incompatibilidade com a corte portuguesa. O esforço da realeza para criar um orgão de pressão próprio e o mais independente possível do papa - o Tribunal do Santo Ofício - tem implícito um ponto de vista galicano, mesmo que mantivesse uma dependência jurídica difícil de concretizar. Foi o que sucedeu. Como é sabido, referiu-se, na roda de D. João III, a possibilidade de uma decisão semelhante à que Henrique VIII tomara, quando constituiu a Igreja anglicana. Neste ambiente quase anticlerical do século XVI, frequente no país (não se analisa a validade mas a vitalidade), sem prejuízo de uma crença católica profunda, junto a interesses diplomáticos prementes, é proposta a instituição do Santo Ofício. A vigilância da fé deixaria de depender dos bispos, tantas vezes tolerantes, caridosos e humanos, discordantes prováveis do princípio do baptismo forçado ou da cedência à Inquisição das suas responsabilidades na defesa da ortodoxia.

A preocupação pelo tribunal corresponde a um movimento político e de opinião, e não à vontade, por si própria, muito limitadamente criadora, do rei que a executava. As forças em que assentava derivam dos princípios da Igreja nacional, tentando criar um organismo mais dependente e local para manter a ortodoxia, dotada, naquele período, de valor político. O rei, quando requeria a Inquisição, encabeçava no momento oportuno essa corrente, poderosa, com expressão literária, doutrinária e social, que lhe reforçava a audiência. A hipótese de D. João III, criador temperamental do Santo Ofício, não resiste à crítica histórica; liga-se tanto à interpretação insuficiente que Alexandre Herculano tinha do absolutismo, como ao espírito faccionário com que determina as forças concretas que, na sociedade portuguesa da primeira metade do século XVI, apoiavam a instituição do tribunal. Poucos dados podemos invocar para referir a colaboração activa de grande parte do clero nesta operação. Pelo contrário: nas notícias que dos concelhos reais chegaram até nós podemos encontrar, vindas do clero, opiniões discordantes, tanto acerca do baptismo forçado, como da intolerância para com os judeus ou a Inquisição.


Alexandre Herculano

Túmulo de Alexandre Herculano no Mosteiro dos Jerónimos. Construído no fim do século XIX, em estilo neo-manuelino, foi alterado e "amputado" no século XX, restando actualmente apenas a arca tumular.


E a resistência do papa ao estabelecimento do tribunal? E o sucesso dos cristãos-novos para o constante adiamento, no apoio que encontravam em Roma? E a final imposição do Santo Ofício?

À determinação das condições gerais do reino de Portugal estabelecidas com base nos capítulos das Cortes de 1525 e 1535, à notificação dos judeus e cristãos-novos pelas suas capacidades profissionais (não é, naquela época, a única maneira de lhes dar diferenciação social), à referência a D. João III, como responsável pela introdução do Santo Ofício, segue-se, na obra, a narrativa da longa série de manobras, avanços, recuos e desvios diversos, entre a coroa portuguesa e a Cúria romana, logo depois de esta ter revogado a licença para o estabelecimento daquele tribunal. Tanto na exposição dos passos portugueses como nos do papado, os elementos preferidos por Herculano conservam o tópico individualista e tão restrito que é flagrante a insuficiência desta hipótese para explicar esse complexo rateio. Não obstante, esses preconceitos têm limitada interferência no relato das decisões e articulações diplomáticas.

Num livro dentro da estrita técnica da referência às relações bilaterais entre Portugal e o papado, para a compreensão histórica de um tribunal cuja legitimidade dependia acima de tudo da licença a obter junto da Santa Sé, excluir os problemas mais instantes da conjuntura internacional, tanto mediterrânica, como do Norte da Europa, pode, em certa medida, justificar-se, caso o inventário das fases não obrigue à procura das motivações. Mas quando é proposta uma interpretação ou se apresenta uma hipótese própria, já o estudo da conjuntura, nas suas diversas modalidades, se torna indispensável, uma vez que é preciso provar a coerência entre a explicação bilateral e o todo onde se insere.

A política da Santa Sé neste período desenvolvia-se numa grande diversidade de confrontos. Não podemos deixar de mencionar, em todos eles, a sua indispensável preocupação com o prestígio que se sustenta pela defesa de posições justas e difíceis, a que, por outro lado, era obrigada pela própria doutrina. Na verdade, seria muito difícil lutar contra a reforma religiosa, ou contra o "galicanismo", se não houvesse da parte da Igreja uma exposição e prova coerente, sacrificada e árdua, dos seus pontos de vista, religiosos e políticos, tanto na Alemanha como em todos os lugares onde, em termos de cisão, era desafiada a interpretação católica do cristianismo. A defesa da Igreja fazia-se no sentido de mostrar a ligação necessária entre as teses católicas e uma concepção social e política mais eficaz, na defesa dos privilégios comuns e liberdades em que assentava a vida das populações e dos grupos representativos. A Igreja não partilhava do conceito corrente e galicano do direito de impor uma crença; facto que precisava de ser visto na prática e constantemente aplicado, quer em Portugal, quer em Espanha, na França ou na Inglaterra, em toda a parte, sem que se excluíssem as necessidades da defesa do catolicismo. Acresce que o papa pretendia promover um concílio geral que esclarecesse (e portanto renovasse) os termos em que a doutrina católica era expressa. Carecia para isso da colaboração das realezas católicas, assim como de manter a audiência política e social, tanto como a religiosa. O prestígio era uma das condições para o sucesso de todos estes projectos, necessidades ou deliberações. Aquilo que a coroa portuguesa pretendia (e que noutra conjuntura, no século XV, tinha sido concedido à coroa de Aragão) só podia ser concedido se não colidisse com estes novos factores; é o que se vê nas razões alegadas por Clemente VII para suspender o tribunal autorizado pouco antes. E Paulo III manteve a mesma prevenção. Era preciso que, a ser autorizado o Santo Ofício em Portugal, fosse patente que resultara da insistência política do poder local, e depois de ressalvadas pelo papa todas as garantias de que a transgressão das regras de humanidade e de justiça, se as houvesse, só podiam ser da responsabilidade do tribunal português, sem afectar a Santa Sé, que se opunha a elas. Esta encontrava-se em necessidade, em Portugal como em toda a parte, de negociar e de se conservar em equilíbrio. As suas decisões, ao serem executadas, não podiam tomar formas agressivas ou doutrinárias extremas, se atendermos que a situação e os poderes do estado absoluto e as correntes de opinião na época tornavam fácil contestar politicamente a Santa Sé, apesar do catolicismo militante e da devoção do rei e colaboradores. O papa não podia tomar uma atitude intransigente quanto ao seu ponto de vista, na altura em que Portugal tinha, no Oriente, uma tão grande responsabilidade, cujo nexo com as condições e possibilidades do Mediterrâneo Oriental não ofereciam dúvidas: a chegada à Índia pelo Atlântico tornou ainda mais clara a ligação entre o mar Mediterrâneo, o mar Vermelho e o oceano Índico.

A suposição de que, no século XVI, foi aniquilado, com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, o tráfego das especiarias por via mediterrânica, está longe de ser verdadeira. Vulgarmente exposto no século XIX e até no século XX, esse erro impediu que se compreendessem muitas questões do Mediterrâneo e do Índico. Os interesses da Santa Sé, no equilíbrio de forças do Mediterrâneo e a sua orientação no sentido de enfrentar os Turcos, exigia-lhe cuidado, face às exigências, tanto da monarquia portuguesa como do império de Carlos V, aquando das manobras de Francisco I e das preocupações de Veneza. Diplomacia de confluência, de adiamentos, reticências e esperas, cuja definição se não pode alcançar, por certo, com fórmulas simples, menos ainda pessoais. Vai muito além do conceito da corrupção dos agentes. Na realidade, a suposição de que a política do Vaticano a respeito da Inquisição portuguesa estava dependente das peitas a cardeais ou ao próprio papa (como chegou a dizer-se) pelos cristãos-novos portugueses ou pelos enviados do rei de Portugal, ao desafio, carece de capacidade para determinar o sentido constante das negociações realizadas entre personalidades, portuguesas e romanas, durante tantos anos. O que pode verificar-se é uma atitude regular por parte da Santa Sé e de Portugal: tratava-se de uma política bem determinada de parte a parte, sem dependência de prensas ou conivências de variável cotação. Se as houve (e sem dúvida que houve), é escasso o significado que podem ter tido no conjunto das negociações. Podemos definir uma linha diplomática sem considerar factores dessa ordem. A declaração de Roma como a "Grande Babilónia" para explicar a política externa da Santa Sé pode ser feita por almas que se tomam por justas, mas está muito aquém dos problemas essenciais: não é proporcional nem às soluções nem aos interesses em debate.




E na verdade, podemos perguntar por que motivo essa hipótese dava resultado em Roma e não em Lisboa, por que motivo os cristãos-novos iriam corromper tão longe, quando o poderiam fazer aqui, onde os cardeais não eram tantos, nem as recompensas teriam de ser tão repartidas. A corte de D. João III não seria incorruptível, e caso a questão do Santo Ofício só dependesse dessas sinuosidades seriam elas, decerto, em Portugal, muito mais acessíveis. É para responder a esta objecção implícita que intervém a opinião de Alexandre Herculano sobre o papel determinante de D. João III no estabelecimento da Inquisição: em Portugal seria preciso corromper o rei fanático, o que era impossível. Estas hipóteses e soluções elementares não servem para coisa alguma.

A instituição do Santo Ofício, pedida por Portugal, envolve forças políticas e sociais, arranjos diplomáticos e confrontos, muito para além da intervenção do rei e da hipocrisia romana ou suborno dos agentes. Pertence ao drama da repressão das minorias que os estados absolutos empreenderam sistematicamente nos séculos XVI e XVII, repressão realizada quando a corrente de opinião pública que a aprovava tinha força política, pelo que o espírito evangélico e a justa razão não foram capazes de intervir, em Estado, exceptuando algumas áreas que, por diferentes motivos, não seguiam o procedimento geral. E mesmo nessas áreas, seria preciso saber até que ponto a aceitação das minorias era acompanhada do respeito por elas ou se, para se poderem defender, estas se não isolavam, no conjunto da população, transformando-se em maioria dentro de si própria, embora minoria no todo social onde se encontravam. Desde os católicos ingleses aos huguenotes franceses e aos cristãos-novos portugueses, mouriscos espanhóis ou cristãos do Império Turco, a situação era a mesma. O drama da Inquisição portuguesa no século XVI, com todo o seu cortejo de violências, barbaridades e opressões, não é diferente do que se passava por toda a Europa a respeito das minorias vigiadas. Não se explica por razões menores do absolutismo real sobre uma vontade portuguesa entorpecida. Durante esse período de predomínio da razão de estado sobre as consciências (ou antes, enquanto houve condições para a razão de estado, assim entendida, se impor), a discordância e crítica também se levantou em Portugal. Uma literatura política relativa aos deveres do rei representava a defesa da restrição do poder absoluto pelas regras morais e constituiu uma das formas (não a única) que revestiu a defesa da tolerância, e do princípio da responsabilidade do cristão. E não podemos dizer que representou pouco na cultura portuguesa».

Jorge Borges de Macedo (Introdução a Alexandre Herculano, «História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal», tomo I, Livraria Bertrand, 1975).


«PORQUANTO, se uma primeira falta é grave por si própria, muito mais grave se torna pelas suas consequências, na medida em que abre caminho a pecados outros. Na velha imagem, é aquela fenda, que pode ser insignificante, e não o era no caso presente de Portugal, mas que vai a pouco e pouco, por seus alargamentos, acabar na ruína das muralhas. Pecando, com o Infante D. Henrique, Portugal, a par de todo o grandioso que vai realizando pelo mundo, deixa que nele penetre o que, mais tarde, também apesar de sua grandeza haveria de fazer condenar a Europa e de levá-la àquilo que tem hoje, uma civilização sem saída. Morto D. Duarte, o trágico Hamlet deste bipartir-se entre um catolicismo que se queria conservar integral e esta primeira aldrabada de um rebate protestante, morto depois D. Afonso V, cuja mística obstinação o põe de certo modo fora das correntes do seu século, chega a vez de D. João II. E quando um homem, político, acha que há tempos para voar de falcão e tempo para voar de coruja, sem ter sequer uma palavra de lembrança para a pomba mística de Portugal, para aquele símbolo do Espírito Santo, consolador dos homens, que entrara com a Rainha Isabel e voara sobre as linhas portuguesas de Aljubarrota, esse homem pode ter uma grandeza tal que os tempos se não cansem de o louvar; pode ter cumprido uma missão que era necessário desempenhar-se no mundo; pode ter sido o representante admirável de uma importante massa dos cidadãos do tempo; mas há sobre ele uma fatal condenação: adorou não a Deus, mas a bezerros de ouro; traiu a nação no que ela tinha de essencial; e acabará por ter de correr à noite os devãos do Paço, açoitado pelas assombrações.

Com D. João II entrou Maquiavel, apesar de todo o protesto dos portugueses que entendiam o que era Portugal e entendiam o que era catolicismo e que viam um e outro perfeitamente incompatíveis com as doutrinas italianas, com as doutrinas daquele Renascimento italiano que foi, infelizmente, no que mais pesou em história do mundo, o renascimento de Roma, de Roma cesarista, de Roma centralista, de Roma regedora de povos, não sua irmã, e no que mais pesou em história das almas individuais, a transformação da virtude cristã, que é amor de Deus e respeito do Decálogo e mais ainda no que ele tem de espírito do que na sua letra, naquela virtù que consiste em afirmar o valor do homem individual sobre todas as coisas e em pisar todo o direito para que se satisfaça a sua vontade. De nada, porém, valeu a luta de todos os anti-maquiavelistas portugueses, ao lado dos quais formaram, para sua honra, os anti-maquiavelistas espanhóis. Foram vencidos pela vontade duríssima do Rei e pelo império das circunstâncias; as quais circunstâncias passaram de ser nacionais a ser na realidade circunstâncias de carácter europeu; de carácter protestante, muito mais próximo do que em geral se julga do carácter pagão.

É exactamente com D. João II que se alarga aquela tal fenda que era inglesa e anti-católica. E, pela já brecha, vão entrar e tomar conta da inteira história de Portugal dois acontecimentos que por completo destroem tudo quanto se pudera levantar de extraordinário na Idade Média: de modo que se poderia dizer que Portugal, depois do século XV, só vai ser grande naquilo em que continua a ser medieval; no resto se empequenece. O primeiro desses acontecimentos é o que diz respeito ao tratamento dos judeus logo agravado por D. Manuel e pelos reis seguintes. Sabemos perfeitamente como o grande pecado dos judeus é, por assim dizer, um pecado contra a inteligência, um pecado contra a lógica; capazes de seguir seu pensamento até o fim quando se trata de matemática, de física ou de vida prática, o judeu revela-se singularmente incapaz de ser inteiramente lógico no que diz respeito a pensamento religioso ou às raízes metafísicas da tal vida prática: é como se, em virtude de alguma antiga falta de fé, lhe tivesse sido vedada essa verdadeira Terra da Promissão. E sabemos que foi perseguido pelos judeus o único judeu que neste domínio soube ser lógico; sabemos como a Sinagoga esteve contra Spinosa.


Bento de Espinosa




Mas sabemos por outro lado como os portugueses tinham conseguido o milagre de dar alguma lógica aos judeus, como igualmente deram lógica aos mouros, esses de resto muito mais defensáveis. Os portugueses tinham aceitado que, contra tudo o que deveria ter sucedido desde que Cristo viera completar a lei, ou antes revelar-lhe o íntimo sentido de Fé, contra tudo o que deveria ter sucedido depois da doutrina de pré-figuração e depois da introdução na liturgia de tudo quanto havia que conservar no Velho Testamento, os judeus continuassem praticando a sua religião mosaica, como que numa forma particular de linguagem que eles porventura entenderiam melhor, já que os judeus por seu turno não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente a esse culto do Espírito Santo, o qual, como já foi dito, descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado. Eram, e em muito melhor, todas as condições que tinham permitido aquele milagre de civilização, dos raros do mundo, que fora o califado de Córdova. E nele entrava o mouro também, como se a revelação dele fosse uma revelação de um Espírito pairando sobre o universo e lentamente e seguramente o modelando em Reino de Deus.

Pois bem: interesses europeus ou de talhe europeu repeliram judeus. O que teve duas consequências de aspecto bem diferente; a dos judeus que refugiando-se no Brasil foram tentar continuar aí uma comunidade fraternal de tipo português escapando à acção do Rei e de seus instrumentos de repressão; aquela comunidade e aquele estilo de vida a um tempo racional e místico, embriagado de Deus e atento às formas e às leis da matéria, resolvido a ser um pensamento e a ser um procedimento, mais amigo das sínteses do que das exclusões, altíssimo até os céus e humílimo sobre a terra, que vai ser exactamente o estilo de vida pensado pela filosofia de Spinosa, à qual só faltou para ser perfeita que fosse uma teologia e não uma filosofia e que, sendo uma teologia, fosse católica. Mas a outra consequência do gesto real português foi muito grave para o conjunto da civilização europeia: soltou sobre a Europa um judeu completamente virado agora, por ressentimento e desespero, para o tal pendor da vida prática que já o tinha levado a, desprezando o Salmo, emprestar a bom juro, e a cristãos, o dinheiro que, no fundo, de cristãos era. E é este judeu agudamente arguto, diligente e resistente, sabendo aguentar todas as humilhações e sabendo também não as poupar no momento oportuno, o grande agente daquela civilização de tipo germânico que nos nossos dias veio a dar, por um lado, os Estados Unidos, por outro lado a Rússia, até opor os dois blocos no que, com todas as consequências que, boas ou ruins, daí possam advir para a humanidade e com todas as diferenças que devamos pôr entre as duas orientações, não é mais do que novo cisma das tribos.

Por se não ter sabido guardar católico, por se ter querido impor a Portugal uma unidade que vai sempre contra o que é sua essência, por se ter sido realista em lugar de se ter sido idealista, o que é sempre o erro mais grave, deu-se à Europa um bem ruim presente; mas dela se recebeu um outro pior ainda: o do direito romano e, com o direito romano, o da mentalidade romana. Efectivamente, a luta vinha de longe; no final de contas, o demónio solto no mundo nunca se conformara com o terem os forais vencido Justiniano; sempre houvera fogo de inferno latente sob as cinzas; e avisadamente andaram burgueses e populares de Portugal quando acharam que lhes era uma luta fundamental a de se fazerem conceder forais cada vez mais amplos e de maiores garantias. No que outros povos, embora com menos decisão e menor originalidade, lhe eram de certo modo companheiros. Mas a batalha começava a decidir-se para o lado dos reis. Porventura o ponto máximo fora o da luta entre os juristas do Rei de França, à volta de Nogaret, e os canonistas de Bonifácio VIII, com as doutrinas fixadas na série de documentos papais que vai da Clericis laicosà Unam sanctam. O resto seguir-se-ia naturalmente. E faria que Portugal, depois de ter assentado base de império sobre sacrifício de irmão; depois de, secundando, outra base de império ter lançado sobre outro sacrifício de irmão, desta vez o judeu; o terceiro alicerce fundaria sobre terceiro sacrifício: o do direito concelhio ao direito cesarista, imperialista, anti-católico de Roma.

Que se havia de esperar? Era impossível ainda cumprir todos os projectos formulados na grande Idade Média? Não teria o jovem deus de se curvar às misérias de um destino puramente humano? Não haveria, para os menos bons, o único recurso de sobreviver dentro das condições gerais do tempo, embora conhecendo tudo o melhor que se perdia, e é porventura essa a origem das amargas reflexões de um Fernão Mendes Pinto quando compara os ideais dos portugueses com o que na realidade praticavam? E não haveria para os outros, os que se não rendiam, o único recurso de emigrar, não para uma Europa corrompida, não para um Oriente tão corrompido praticamente quanto a Europa, não para uma África demasiado próxima e já em decadência cultural, mas, quando a ocasião se apresentou, para uma viagem à América, sobre a qual poderia um Thomas More ordenar intelectualmente o que instintivamente faziam os marinheiros, os aventureiros portugueses e, entre eles, os sisudos, calmos e precavidos cidadãos do Porto, ansiosos de poder renovar em outros mundos as liberdades de sua terra? Esses se salvavam, porque ficavam fiéis às duas palavras de ordem, aos dois signos iniciais dos destinos de Portugal: a acção e a saudade. Mas, para os que se deixavam ficar, só havia o ver aproximarem-se cada vez mais as soluções da melancolia, da loucura ou do suicídio.

Serra da Arrábida





Convento de Nossa Senhora da Arrábida







Retiram-se para quintas distantes, onde chegue um mínimo de notícias do mundo, isto é, da Corte, os que não podem suportar que o reino que fora a esperança de Cristo se estivesse despovoando não ao apelo da cruz, não ao chamamento da missão, mas ao "cheiro da canela" e ao tinir dos míseros pardaus que já iam correndo por Cabeceiras de Basto. Retiram-se para Arrábidas, onde vão ser ermitães e ter pelo menos o consolo daquele mar e daquele céu e daqueles longes de paisagem que nunca faltam a quem é triste em Portugal, os que, por não terem podido empregar a sua mocidade ao serviço de Deus, a matam sob a disciplina e o hábito feito de velas velhas e, queimando seus versos, só têm o recurso de chorar "por haver tão mal cantado". E retiram-se para entre árvores que ninguém corte e de que ninguém venha sequer colher o fruto os que percebem quanto em desacordo com o mundo à volta estavam eles quando, em lugar de pensarem nos ganhos materiais, se dedicavam a defender Diu cercado ou, mergulhando sob as ondas, lhes sondavam fundos e determinavam correntes ou, pacientemente e gostosamente e artisticamente, desenhavam e coloriam conhecenças de costa.

Ou então, ainda mais melancolicamente, com o Hospital de Todos os Santos os vendo já como de boa presa, os que nem se retiravam nem emigravam e ficavam, perto demais da Corte, longe demais de seus amores, percebendo como dia a dia se iam dissociando como a sua personalidade se desfazia, espectadores de si próprios, se viam embarcando no largo rio de perturbadas águas e, ao mesmo tempo, ficavam nas margens olhando o barco que se afastava; sob o impulso de estranhos fados; e ao impulso de estranhos remadores, os que não tinham nem saudade bastante para sua acção nem acção bastante para sua saudade. E, para o triste de Avalor, passageiro mais estranho ainda que remos e remeiros, o que havia de mais terrível não era não saber se voltaria: era o saber, obscuramente, que nem voltava nem chegava».

Agostinho da Silva («Reflexão à Margem da Cultura Portuguesa»).


«Mouros, gentios e judeus, os submetera Portugal ao flagelo abominando duma superstição implacável e, na fúria de suas diabólicas perseguições, excedera a meta da tradicional crueldade.

Porém ao judeu o constituímos, especificadamente, na vítima preferida; e assim é que, em particular contra nós, piedosamente, à atormentada gente judaica se dá ao dever de a confortar em o transe terrível R. Samuel Usque, natural de Lisboa, no seu livro, escrito em português, Nahon Israel, isto é, Consolação de Israel, e continua: Consolação às Tribulações de Israel composto por Samuel Usque. Impresso em Ferrara em casa de Abrahão Aben Usque, da criação 5313 (de C. 1553), 27 de Setembro.

Este livro é raríssimo; há uma edição de Amsterdão, de caracteres redondos.

A de Ferrara é impressa em caracteres góticos; o prólogo exibe esta epígrafe: Da ordem, e razão do livro Prólogo. Aos Senhores do desterro de Portugal."Nele (assim nos informa António Ribeiro dos Santos) expõe o autor a sua ideia na composição desta obra, que foi consolar os judeus, seus contemporâneos, na mágoa, em que estavam, de haverem sido desterrados de Portugal, trazendo-lhes à memória outras muito maiores calamidades, que haviam experimentado os seus antepassados; e para isto se propôs recontar, um por um, todos os trabalhos e desventuras com que os judeus haviam sido maltratados em todas as idades".

Até às lágrimas nos comove a firmeza no parentesco moral com a pátria que os repudia, quando atentamos no motivo pelo qual Samuel Usque escreveu a sua obra em português. É porque, diz ele, sendo o seu principal intento falar com portugueses e, representando a memória deste seu desterro, buscar-lhes, por muitos meios e longo rodeio, algum alívio aos trabalhos que passavam, desconveniente era fugir da língua que mamara e buscar outra emprestada, para falar a seus naturais.

(...) Sem embargo, é de justiça consignar que o rancor inexorável contra o judeu não se restringia só ao ânimo português e cumpre ter presente que esse ódio temulento não escolhia a terra lusitana para sua residência exclusiva. Fora pertença de todo o Velho Mundo e, por uma lastimosa recorrência atávica, reaparece hoje em dia, na França, na Alemanha, proclamado como uma teoria social por todos aqueles que se não pejam de se chamarem anti-semitas.

Anti-semitas!

A penúria de lealdade começa logo pela designação. Denominam-se anti-semitas, em vez de se chamarem, espessa e grossamente, antijudeus. Como se algum empenho os assanhasse contra os árabes! E, todavia, a juízo do sábio Maury, para topar com o verdadeiro semita, cumpriria ir buscá-lo entre os árabes do deserto. Seria propriamente a eles que coubesse o quadro célebre que do seu condicionalismo de espírito traçou o eminente historiador de seus idiomas, o ilustre Ernesto Renan.

Ernesto Renan no Colégio de França











Mas estes anti-semitas de agora o que são é inimigos da raça judaica, para a qual endereçam um ódio arcaico, cobiçoso de fanáticas perseguições. Isto sob o lance da iniciação do século XX, na culta Alemanha, na espirituosa França, à laia das investidas desse rancor hispano-português das datas esplendorosas da Inquisição aqui!

Constitui uma das modernas vergonhas a literatura copiosa antijudaica que tem infectado as livrarias do mundo que pomposamente se intitula civilizado; ela não traz, porém, ao mercado dos ódios novidade e nem só uma das acusações compendiadas nas bonitas brochuras hodiernas prima pela invenção; tudo se encontra já nos dislates que compõem as toscas encadernações da biblioteca anti-rabínica.

Os números constam do "Memorial dos Escritores Portuguezes que escrevêrão de Controversia Anti-Judaica", segundo a lista organizada por António Ribeiro dos Santos, para as Memórias de Literatura da Lusitana Academia Real das Ciências de Lisboa.

E os nossos mais facundos e fecundos, disertos e dissertos anti-semitas do século XVII nada adiantaram, eles mesmos, sobre as invectivas da Antiguidade clássica, à qual se volveram antipáticos certos peculiares traços da fisionomia moral do judaísmo. O eruditíssimo Teodoro Reinach entendeu poder resumi-los em dois grandes capítulos de acusação contra a gente hebreia: o seu particularismo religioso, o seu particularismo social. Ele reuniu, com destino à colecção das publicações da Sociedade dos Estudos Judaicos, larga ajunta de textos de autores gregos e romanos relativos ao judaísmo, os quais traduziu e anotou.

Aí vem já tudo: a covardia dos judeus, a lepra dos judeus, a sarna dos judeus, a teimosia dos judeus, o servilismo dos judeus, a temeridade dos judeus: - os vícios mais opostos, os defeitos mais contraditórios. Marco Aurélio acha-os embrutecidos; são considerados os mais ineptos de todos os bárbaros. Tácito exprobra-lhes a devassidão - projectissima ad libidinem gens; Marcial e Amiano Marcelino, o cheirete; do texto deste último nasceria a famosa acusação do faetor iudaicus, a crença, muito espalhada na Idade Média (pondera Reinach), de que os judeus têm um mau cheiro especial.

Mas não tão-só na Idade Média. Em 1668, em Lisboa, Vicente da Costa (Breve Discurso Contra a Herética Perfídia do Judaísmo) nada deixa, sobre o ponto, a desejar.

(...) Na época cristã, a causa do morticínio ritual provém do deicídio de Jesus Cristo; em virtude deste crime inconcebível (qual o do assassinato de Deus pelos homens) os descendentes dos criminosos foram castigados por certo modo espantoso, e assim os "Iudeus padecem fluxos de sangue nas partes secretas", informa-nos Vicente da Costa. Ora, no fito de acabar com isso, que fizeram eles? "Para alimpar esta praga diz Frey Rodrigo de Hiepes no seu tratado do Minino da Guardia, que introduzirão os Iudeus matar crianças innocentes por lhe dizerem que com aquelle sangue se avião de remediar, & aly authoriza esta verdade, & cita alguns Authores na terceira parte da historia, no capitulo quarto".

(...) Na Alemanha (como na França), em nossos dias, reproduziu-se contra os judeus a acusação do assassinato periódico do menino cristão; há numerosos livros com este objecto. Porém, na Alemanha (como na França) ainda se não deu com o motivo e o proveito dessa abominação.

Seria prestar serviço ao anti-semitismo do século XX o indicarem-lhe a luminosa explicação aprovada no século XVII pela Inquisição Portuguesa.

A qual não carecia aliás de pretender punir esse crime para ir queimando, intermitente mas sistematicamente, nos judeus cristianizados. Regularidade perfeita!

Por isso, mestre José Ha-Cohen, em seu Emek Ha-Bakka, designou pelo expressivo cognome de "o forno de ferro" a esta terra lusitana: "... o forno de ferro, Portugal, que Deus amaldiçoe!".


Sampaio Bruno


Categoricamente lhe marca o motivo específico. Indigita-no-lo quando em sua crónica prossegue. "Após a morte (escreve) desse feroz e violento Manuel, ao qual sucedeu João, os conversos multiplicaram-se em número e propagaram-se consideravelmente em Portugal, olvidaram Deus seu Criador e ajoelharam perante o ídolo de ferro fundido. Mas, ao cabo de algum tempo, por ordem do rei, estabeleceu-se sobre eles inquisidores que os acusaram da não-observância dos éditos régios, acabrunharam-nos de tormentos e, no arrebatamento de seu ódio, deles encarceraram e queimaram grande número no ano 5291, isto é, 1531. Muitos outros surdiram apanhados em os laços que lhes armaram seus perseguidores no momento de se escaparem, ou ainda reconduzidos os levaram dos navios onde se tinham escondido para fugir, e foram igualmente arrojados à fogueira; um grande número, finalmente, em sua pressa de se escaparem por mar, caíram ao fundo das águas como chumbo e ninguém lhes veio em socorro. Multidão deles fugiu por sete caminhos, em todas as direcções (Deuter., 28, 25), todos os dias, como diante da perseguição da espada, e sofreram males numerosos e terríveis durante suas peregrinações depois que saíram do forno de ferro, Portugal, que Deus amaldiçoe!"».

Sampaio Bruno («O Encoberto»).


«Sampaio Bruno, cujo judaico-maçonismo é gato escondido com rabo de fora, não deixou de assinalar a aliança dos Cavaleiros do Amor Anti-Roma, que se mantiveram e transitaram desde o trobar clus medieval às academias do século XVII, e às Lojas, do século XVIII em diante. A ideia religiosa do judaísmo, como José de Maistre evidenciou, e como Bruno viu - dá aso a que se admita que o projecto judaico de conquista do mundo se sirva da Maçonaria, ao menos como elemento dissolutor do Cristianismo.

Noutra esteira, que não a dos legitimistas, Bruno apontou as analogias da vida maçónica e da moral hebraica, sublinhando os artigos da crença maçónica, mas os factos não são as regras, e por saber fica se a aliança existe; e, se existe, qual a natureza do projecto: actual ou intencional.

Da actualidade do projecto se convenceram muitos. Sem uma Justiça nacional, os grupos em confronto procuram aplicar ou distribuir Justiça. Retomando uma tradição antiga, a Ordem de S. Miguel da Ala ressurgiu, sob o signo da Cruz, contra a actuação maçónica.

O Cardeal Saraiva procurou demonstrar a inexistência histórica da Ordem, mas fica por saber qual o seu intento: se provar o infundado dos restauradores, se, pela negação de S. Miguel da Ala, insinuar a inexistência das ordens secretas, para defender aquela a que pertencia, como Irmão Condorcet, a Maçonaria. Não obstante, manifestando o ideário alista, e combatendo a influência maçónica, distinguiu-se o jornal A Nação (1848), tido e havido como porta voz de S. Miguel da Ala.

Parece que a Maçonaria é apenas um "mito", que justifica o combate da "reacção" contra os partidários da separação do Trono e do Altar, ou contra o jacobinismo e o judaísmo. Ora, o maçonismo faz a sua guerra a vários níveis; e, se falha na esfera iniciática, obtém vitórias na esfera do militantismo político, nas escolas e nos sectores públicos. Os intelectuais do liberalismo podiam não estar inscritos na ordem, mas aderiam aos seus ideais e colaboravam com denodo, dirigindo as actuações para o enfraquecimento da Igreja.

Jesuíta foi, desde muito cedo, não tanto um substantivo, mas um adjectivo qualificativo, tal como Judeu. O termo jesuíta, como ápodo pejorativo, começou a ser usado cerca de 1540, com intento malévolo, aplicado a todo o católico que punha reservas às modificações protestantes. O processo inquisitorial contra a Inquisição visou mais longe - o alvo era a Igreja Católica, Roma. As ideologias nórdicas e reformistas teriam escolhido deficiente alvo, se este fosse apenas o Santo Ofício. O fogo polémico visou todas as instituições que contrariam o projecto protestante, instituições essas que, no mínimo, e na Península Ibérica, eram a Inquisição, a Companhia de Jesus e o Aristotelismo. A corrente nórdico-reformista venceu em termos de política. Em 1759, quando se assistia aos últimos actos inquisitoriais, a Companhia de Jesus era suprimida, a Inquisição secularizada, a Universidade reformada, e Aristóteles banido.
A delimitação política dos lugares empurrou a Companhia para o espaço tradicionalista, pelo que, restaurada em 1814, por Pio VII, o seu aparecimento sob o domínio miguelista seria inevitável. Inevitável foi também o efeito constante da Lei de 1910, que restaurou a Lei de 1759. Vencido o tradicional-nacionalismo, substituídos pela nação republicana neopombalina, os Jesuítas iam de novo para o exílio. Os argumentos antes manipulados contra os judeus passaram a ser utilizados contra os Jesuítas; e as propostas de solução do problema judaico passaram a ser propostas de solução do problema jesuítico. Aquele tipo de literatura em que os antijesuítas José Caldas e Alexandre Braga foram exímios, no trânsito para a República Positivista, abunda em autores e títulos; e uns defenderam a expulsão, enquanto outros defenderam a presença, com submissão aos interesses do Estado, leia-se, do regime político. O decalque da questão judaica não podia ser melhor, nem mais falha de imaginação.

A oposição das sociedades secretas anticatólicas à Companhia de Jesus começou em 1614, com a revelação de uma presumível vida oculta adentro da Ordem, conforme o testemunho da Monita Secreta, publicada em Cracóvia, atribuída ao jesuíta polaco Jerónimo Zahorowsky, que constituiu fonte para outras divagações, como essa que Fernando Pessoa aceitou, da existência do Oriente Feota, ou maçonaria Jesuítica, cujo Mestre seria o Papa. São ainda as sociedades secretas que movem a abertura de fossos entre judeus e Jesuítas, no sentido de evitar eventuais acordos de princípio entre a Igreja e a Sinagoga. É esse o objectivo da novela O Judeu Errante, de Eugénio Sue, cujas artimanhas foram refutadas por Víctor Joly em 1813, numa análise dos mitos definidos e manipulados pelo pombalismo e pelo liberalismo maçónico, segundo os quais os Jesuítas seriam os inimigos da Nação republicana, imoladores de inocentes, e, mais tarde, fabricantes de óleo humano. Na mente de Magalhães Lima, o maior inimigo da Maçonaria era a Companhia de Jesus, e todas as acusações que antes se dirigiam aos Judeus eram boas, se aplicadas aos Jesuítas. Autores como Brito Aranha (falecido em 1914) e Mariano José Cabral, apoiaram a transferência da mítica antijudaica para a mítica antijesuítica: que o propósito jesuíta é o domínio do mundo, e, por isso, nalguns casos, não é estranhável que haja quem pense existir uma aliança entre Maçonaria e Jesuítas. O combate aos Jesuítas, que, em 1899, se expressou na série novelo-folhetinesca de Guedes de Quinhones, (descendente daqueloutro, que acusava os judeus de mau cheiro?), visava a Igreja, sendo concordante com a tendência hebraica, que vê o Império Judaico na sucessão da destruição de Roma.

Em 1895, a quando do Congresso Católico, os socialistas, ligados à Maçonaria ateia francesa, levaram a efeito o Congresso Socialista Anticatólico, em que se preconizou a aplicação à Igreja das medidas que o poder praticara em relação aos judeus: suspensão do ensino religioso, supressão do orçamento de culto, "ampla liberdade" religiosa e política, e apologia do registo civil. O registo civil era, para a época, o que o baptismo fora para os judeus: quem se baptizava, bem; quem não se baptizava, tinha de sair. Quem se regista bem; quem não se regista, mal. Este espírito socialista era o mesmo que levara a efeito a Conferência de Tomar, em que algumas das comunicações reivindicavam o parentesco com os Templários, sem atenção aos valores da genealogia espiritual e da teologia simbólica.

Reconhecendo apenas a soberania do povo maçónico, a Maçonaria dividiu-se em dois Grandes Orientes, de algum modo identificativos da Maçonaria do Norte e da Maçonaria do Sul, desde então se acentuando a divisão nacional, em duas metades, que não se toleram uma à outra, embora coexistam. Metade do país é republicana, outra metade é monárquica; metade é cristão-velho, metade é cristão-novo. Levando o efeito estilístico mais longe, Mário Sáa poderia identificar os cristãos-novos com os republicanos e mações, e, os cristãos-velhos, com os monárquicos e católicos. A consciência maçónica desta divisão fá-la saber que, à unidade nacional não se segue uma unidade territorial. População e território não estão aderidos um ao outro em perfeição de forma: o povo português não é; será o povo a construir pela Maçonaria. O que é, o que se vê como facto presente é o território, que, não tendo perfeita soberania, é mais do que o solo permanente, um deserto de trânsito. Curioso é de notar que, nas sucessivas constituições, desde 1822, Portugal não é definido como uma Pátria, mas como um sítio onde se está, um território que se ocupa, aspecto que não deixa de convergir com certas noções existenciais do galut judaico, e que se agravou nas duas Constituições ditadas pelo poder não-maçónico, a de 1933 e a de 1971, que começaram por definir os limites territoriais, quando, em vista da evolução política, era mais justo definir a amplitude das gentes. A Constituição do Estado Novo delimitou a pluricontinentalidade, mas não definiu à letra a plurirracialidade, cujo conceito foi pensado e desenvolvido nos escritos ideológicos, mas que devia constar da Constituição. Se importa dividir para reinar, a Maçonaria coetânea conseguiu os intentos, ao desmembrar o território, sem a provocação de um exílio massivo, como decerto ocorreria, se houvesse população constitucionalmente definida. Houve os milhentos casos de desalojados, por terem optado pela nacionalidade portuguesa, mas isso pode não constituir uma diáspora, como seria de esperar, se a partilha de cidadania portuguesa fosse dirigida à profundidade. Assim, o território maçónico parece ser o território da União Ibérica, aspecto em que há nítida identificação com as imagens sefarditas, nas quais o Sefarad é apenas um. União Ibérica é, de resto, a existência histórica da comunidade judaica de Amesterdão, onde judeus portugueses e castelhanos comungavam e falavam, quer em português, quer em castelhano...».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Hebraico-Portuguesa»).





«A História de Portugal cinde-se em dois períodos radicalmente distintos. Sobretudo através de A Pátria e de A Mensagem, os nossos poetas, prolongando neste ou naquele sentido o ensino de O Encoberto, [e] os nossos filósofos tiveram disso perfeita consciência e o correspondente saber. O primeiro período, de um só rei para três Repúblicas - a judaica, a cristã e a islâmica -, vai até D. João III; com D. João III e o estabelecimento da Inquisição em Portugal tem início o segundo período. A tese de Sampaio Bruno é, porém, que foi no período, de absoluto predomínio da "casta" cristã, para empregar a expressão de Américo Castro, que se deu o maior avanço no aperfeiçoamento dos espíritos, cada vez mais próximos, de vinténio para vinténio, da era messiânica. O segredo deste contra-senso terá sido o aparecimento na história do cristão-novo. Deste ponto de vista, o estabelecimento da Inquisição foi providencial. É certo que os aspectos negativos ou sinistros da nossa sociabilidade se devem à especial complexão dessa criatura híbrida pela qual se define o cristão-novo: os judeus e os muçulmanos que não puderam ou não quiseram partir para o exílio, ao verem-se de repente obrigados a praticarem outra religião, aterrorizados com a destruição das suas mesquitas e sinagogas, tiveram de fingir o fanatismo, de cultivar a hipocrisia e a tradição, de praticar a denúncia ou então tiveram de viver em medo e inquietação constantes o seu criptojudaísmo ou o seu criptoislamismo. O ateísmo é também, em certos casos, um dejecto desta situação. A astúcia e o espírito diplomático, a capacidade de falar ou de pensar em duas línguas e o subtil sentido da metáfora ou da ironia são, entre outros, os seus produtos superiores. Esta última linha é a da nobreza espiritual sufi ou sefardi.

Toda a psicologia do cristão-novo converge para o dar como o elemento activo capaz de realizar a síntese entre as duas religiões, a antiga dos seus pais e a nova dos seus dominadores, isto no caso evidentemente de não ter sido corrompido pela hipocrisia, pela cobardia ou pelo ódio. Sampaio Bruno dá os jesuítas, no período de formação da Companhia, como um grupo de conversos, não diz qual a sua origem, se judaica se islâmica, mas Álvaro Ribeiro em Escolástica e Dedução Cronológica claramente significa que, ainda hoje, conduzem, na melhor forma cristã, o pensamento islâmico. Muito mais do que o sinal pela arquitectura das igrejas-salões barrocas nos alerta a semelhança dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola com os exercícios espirituais dos sufis. O jesuíta espanhol Asín Palacios tratou largamente da analogia no seu Islão Cristianizado. Santo Inácio era espanhol e, na verdade, a influência muçulmana é muito mais acentuada em Espanha do que em Portugal, com nítido reflexo nos fonemas da língua. Esta distinção entre portugueses e espanhóis carece de mais sólida fundamentação, mas fica aqui como uma aliciante hipótese.

"Heterodoxia" e "ortodoxia" são relativos entre si. Se houvesse incompatibilidade da doutrina, do dogma e dos sacramentos da Igreja de Christo com a kabbalah, como teria sido possível a obra catolicíssima de Joseph de Maistre, guia oculto da Ordem maçónica martinista? Joseph de Maistre não se afasta um yod da ortodoxia e, no entanto, outra coisa está por debaixo. Não será uma relação análoga que o próprio Filho do Homem estabelece entre o Novo e o Velho Testamentos?

No mundo árabe e no mundo hebraico, as relações entre heterodoxos e ortodoxos nunca atingiram o ponto de cisão que a história regista no mundo ocidental cristão, nem da parte dos primeiros nem da parte dos segundos e, se é possível, por exemplo, lembrar a excomunhão, na Holanda, de Espinosa e de Uriel da Costa, a verdade é que os kubbalim judeus ou muçulmanos nunca deixaram de respeitar integralmente a revelação dos profetas e de praticar os ritos da religião. A cisão entre heterodoxia e ortodoxia é a principal causa, no Ocidente, das grandes concepções científicas, elaboradas longe da Igreja e, por fim, contra a Igreja, que se mostra desde o início hostil ao livre pensamento, sem o qual não há filosofia, e à livre imaginação, sem a qual não há poesia. Tais concepções, nascidas da contemplação religiosa dos mistérios do universo, degeneraram, nos seus divulgadores, no materialismo mais estúpido, mas é nesta forma que abrem curso, se tornam prestigiadas pelas suas consequências no domínio da técnica e acabam por se impor ao próprio magistério eclesiástico, nos tempos modernos. Tenta-se então conciliar fé e razão, religião e ciência, mas tardiamente esquecido ou ignorado já o processo mental esotérico que poderia servir de mediador. Em consequência, têm se produzido verdadeiras monstruosidades, no domínio da apologética, como essa, por exemplo, de, perante o darwinismo vencedor, se ter chegado ao ponto de defender que Deus insuflou o espírito, o Espírito Santo, no "antropopiteco", como aquela de se vir a garantir o dogma da virgindade de Maria pela fisiologia, para não falar já das várias teses do pensamento de Teillard de Chardin, em que Deus é gerado pela própria matéria».

António Telmo («Filosofia e Kabbalah»).


«No propósito imenso de conciliar pessoalmente a razão com a fé, ou a razão com a vida, - porque a fé também nutre a vida espiritual, - procurei completar os estudos de filosofia, com os de teologia, e atraído pelo pensamento racionalista de Santo Anselmo fui levado a estudar também o problema enunciado no Cur Deus Homo. A relação do espírito divino com a alma humana, atestada por muitos testemunhos fidedignos que constituem a Bíblia, desde o profetismo ao messianismo, nunca opusera dificuldade à minha razão, mas a inserção directa do logos na carne transiente, corruptível e sofredora aparecia-me como um mistério hostil à puridade religiosa. Na perfeita consciência de que publicava um apelo a quem por demais meditara no pecado original e alcançara a fé que há-de ser católica, escrevi esta dedicatória a quem considerava integrado na filosofia portuguesa:

A JOSÉ RÉGIO, 
POETA DO MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO

A significação subtil do epigrama crucial foi entendida pelo comum dos leitores, mas a incompreensão do vulgo letrado ainda mais me fez meditar, obstinadamente, na razão universal que suporta o alcance transcendente de tão breves dizeres.

(...) No livro de A Chaga do Lado nada vemos de satírico, de fáunico, de dionisíaco nas imagens dos poemas, mas apenas o desenvolvimento da ironia em zombaria, sarcasmo, cómico, caricaturando a reacção passional de indignação e plasticizando o sentimento do pobre. Como também nada vemos de frieza lapidar dos números pagãos nos outros poemas, embora reconheçamos a existência do talento epigramático em outras obras de José Régio. Todo o livro é, pelo contrário, a expressão séria de um cristianismo notável, actuante e dominante.

A intenção caústica, fogosa e ígnea no procedimento de Jesus para com os vendilhões do templo nem sempre tem sido bem entendida pelos cristãos que celebram nesse episódio o justo castigo contra um crime comparável à simonia. Todos os antecedentes evangélicos, isto é, os livros dos profetas, parecem aconselhar outra interpretação. Jesus não faz mais do que proceder segundo o que disseram Isaías e Jeremias contra os holocaustos e os sacrifícios que os saduceus realizavam no Templo. O profeta havia afirmado que tal não era a vontade de Deus de Israel, o qual ordenara apenas aos fiéis que ouvissem a sua voz e cumprissem seus mandamentos.

Fiel ao Espírito Santo, Jesus exprime a sua ira e o seu furor. Justo é que se interprete a indignação do profeta contra aqueles que, apesar de tudo, tendem a conservar o culto dos sacrifícios em oferendas, vítimas expiatórias ou esmolas pecuniárias, lamentáveis restos de um paganismo de que o homem se desprende e desonera, em vez do aperfeiçoamento ético da alma, do culto de espírito a espírito, que só esse é verdadeiramente agradável a Deus. Não está, portanto, esse episódio focado sobre o pecado venial dos comerciantes que auxiliam os fiéis a praticar um culto errado, mas na significação do destino que os sacerdotes zeladores devem atribuir ao templo.

Convém não esquecer que Jesus também disse: Pai, perdoa-lhes que não sabem o que fazem. Esta frase está, aliás, mencionada num verso do poema intitulado Non est hic. Sentença de sublime ressonância que, aplicada não só aos juízes judeus como aos centuriões romanos, poderia ser estendida sobre a maioria dos cristãos ou glosada por outra de maior actualidade: Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem... o que dizem.

Eis que José Régio se nos apresenta neste livro singular, como iluminado pela doutrina verdadeira que, alguns anos mais tarde, haveria de ser de católica evidência, e saudada como o advento da compreensão universal. Esta doutrina é a de revisão do processo de Jesus, em diálogo fraterno, não só por meio de estudos bíblicos e teológicos, mas também por meio de estudos históricos, a fim de ilibar da culpa de deicídio os Judeus, suas autoridades e seus sequazes, culpa que foi outrora fanaticamente transformada em maldição sobre todo o povo de Israel. Toda a documentação histórica concorre para a verdade de que Jesus Cristo foi condenado à morte pelas leis e pelos interesses do Império Romano, quando a Judeia estava sob o poder de Pôncio Pilatos, representante de César [Jules Isaac - L'Enseignement du mépris - Verité historique et muthes theólogiques - Paris, 1949].

Ecce Homo ("Eis o homem"), pintura de António Ciseri, ilustrando a apresentação de Jesus Cristo por Pilatos à população de Jerusalém.

"Estava ali como Pilatos no Credo", dizem por vezes os cristãos que não sabem interpretar a verdade teológica da notação histórica e muito menos entender a razão bíblica de comparar o César com o Faraó. Tem, no entanto, muito alto significado para a cultura europeia o facto de o último profeta haver sido supliciado pelos legionários do Império Romano. No próprio credo litúrgico se faz a extensão católica desta verdade, quando se afirma que Jesus Cristo "foi por nós crucificado, morto e sepultado", o que significa o sacrifício pela redenção de todos os pecadores, sem distinção de cultos, povos ou raças.

(...) José Régio escreve como quem acredita ter sido Jesus o Messias, o Cristo, o Ungido, o Redentor, pois celebrou em muitos poemas o mistério do Natal. Os evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas são claros e explícitos ao afirmarem a divindade de Jesus, anunciada a Maria por intermédio verídico dos Anjos. Ora a aceitação da divindade de Jesus, e a crença perfeita nestes passos misteriosos dos Evangelhos, é que distingue o cristão de todos os outros fiéis da Bíblia, nomeadamente dos que seguem a religião de Moisés e a religião de Maomé, os quais de outro modo interpretam a divina missão do profeta de Deus.

José Régio teve ocasião de se pronunciar sobre a figura de Cristo em um escrito notável. Manifestou a sua dificuldade em conciliar as diferentes morais do Evangelho, ou a moral de Jesus. No entanto declarou limitar-se a falar apenas de Jesus Nazareno, Jesus Cristo homem, abstendo-se de quaisquer referências ao problema delicadíssimo da divindade.

Mais tarde, em escrito oportuno disse José Régio condenar "todo e qualquer antropomorfismo religioso". Esta sentença que afasta o mistério da encarnação, tão avultado no paganismo como no cristianismo, surpreendeu muitos leitores. Significou, para muitos, falta de consciência responsável perante uma obra artística.

Dir-se-ia que o douto jornalista se esquecera de que o antropomorfismo é uma condição natural do conhecimento humano, se não a sua norma, no dizer de Protágoras, para alcançar objectivamente as representações artísticas e religiosas, porque só o filósofo como tal pode aspirar a intuir o Espírito Absoluto. É a antropolatria, e não o antropomorfismo, que merece condenação, numa total repugnância pela divinização do homem, tal como surgiu historicamente no culto dos Faraós e no culto dos Imperadores. O Império Romano define a verdade que os Estados ensinam, e a presença de Pilatos na Judeia significa o intento de manter o predomínio de uma antropolatria ameaçada por um povo religioso que exalta a transcendência da fé.

Esquema lógico para esta meditação subtil é a tríade aristotélica de Tempo, Espaço, Movimento, referida em A Ideia de Deus, livro de Sampaio Bruno. Convém, todavia, recordar que para Aristóteles o movimento não se limita à deslocação na linha do espaço ou na linha do tempo, como acontece na física de Descartes. O movimento é a passagem da potência ao acto, e desta noção deriva a infinidade da vida religiosa.

Em réplica ao livro de Sampaio Bruno, escreveu Leonardo Coimbra uma tese cujo título exacto poderia ter sido Deus e o Mundo. Com efeito, ao problema que nestes dois termos se enuncia, só há duas soluções possíveis: a criação e a emanação. Leonardo Coimbra optou pela tese bíblica, judeo-cristã, que defendeu científica e filosoficamente no admirável livro que intitulou de O Criacionismo.

Jesus não se propôs ensinar a cosmologia do Génesis, nem defender a fidelidade literal aos escritos atribuídos a Moisés. A filosofia de Jesus, predominantemente messiânica, aparece muito mais voltada para o inteligível do que para o sensível, e o profeta, desinteressado das coisas deste mundo, nem sequer ensinou uma gnoseologia condicionada pelas ciências positivas. Tal é um ponto sobre o qual devem fixar seus olhos todos os historiadores ao julgarem como os cristãos procederam quando exigiram fidelidade a todas as palavras intangíveis da Vulgata Latina.

Tanto Leonardo Coimbra como José Régio se interessaram pela vida de Jesus, especialmente tal como ela aparece narrada nos Evangelhos, ou livros angélicos. A atenção à figura de Satanás, o tentador, como à dos diabos e demónios preocupou os dois escritores, como se pode verificar em leitura subtil de escritos muito notáveis. Diremos, todavia, que a figura mais sinistra dos Evangelhos nos parece ser a de Pilatos, homem suficientemente humano, político que não altera uma palavra das suas sentenças ou dos seus decretos, porque lhe repugnava emendar seus erros.

Estamos a vê-lo com todo o relevo actual a fazer perguntas escarninhas ao profeta. "Então o Senhor dedica-se à filosofia? Diga-me lá o que é a verdade". Jesus não responde porque as respostas excedem a inteligência limitada de quem se ocupa só com o reino deste mundo.

Cristo perante Pilatos, de Mihály Munkácsy (1881).




Aos Judeus, sobre os quais governava, Pilatos ousa dizer: "Este idiota parece-me inofensivo. Não vejo em que possam as suas opiniões loucas fazer qualquer mal à sociedade". Logo replicam os sacerdotes e os anciãos: "Mas vemos nós, porque as suas parábolas heréticas e as suas blasfémias sacrílegas incitam as multidões a revoltar-se contra o poder de César e o poder de Deus". Considerando de pouca monta a condenação à morte de mais um homem, Pilatos, depois de haver açoitado Jesus, limita-se a dar testemunho da sua neutralidade e da sua indiferença, lava as mãos, presta satisfação aos ímpetos sanguinários dos componentes do Sinédrio.

Cristo não professou qualquer doutrina política, económica ou social, e muito menos defendeu qualquer sistema jurídico semelhante aos que concorrem nas sociedades do nosso tempo. A Igreja de Cristo só perde, portanto, em se solidarizar com quaisquer teses alheias, e muito em considerá-las partes alienáveis do seu apostolado. A distinção entre o que é de César e o que é de Deus significa para o homem religioso a afirmação de que só é válida uma política de direito divino, isto é, convergente para a teocracia.

Jesus ensinava, de certo, na sinagoga ou biblioteca, a doutrina dos livros de Moisés, não à maneira dos escribas, mas com inspiração própria, ou autoridade. Usava, de preferência, uma linguagem com parábolas, pelo que é incorrer em erro interpretar à letra as palavras que Jesus dizia em acepção simbólica. Em especial os termos que usamos para designar valores económicos, tais como tesouros, riquezas, moedas, serviam muitas vezes para designar valores espirituais, como as parábolas e as palavras que os ricos hão-de distribuir pelos pobres.

Pobres e ricos, pobres de Espírito e ricos de Espírito, todos quantos entendiam as palavras de Jesus só pensavam no Reino dos Céus. Não assim aqueles que lhe faziam perguntas capciosas acerca da interpretação dos textos sagrados, nem aqueles que promoviam intrigas para que o sacerdócio judaico se incompatibilizasse com o Império Romano. A doutrina de Jesus, essencialmente voltada para o futuro incógnito, era por isso mais messiânica do que profética.

Jesus pede apenas aos homens de Israel que façam penitência, isto é, que se arrependam de seus pecados. Almas do Purgatório, que é o verdadeiro nome deste Mundo, sofrem a purificação pelo fogo e pela água, praticam meticulosamente as abluções sacramentais no Templo, quando João baptiza no rio Jordão. Cristo doutrina superior processo catártico, verdadeiramente espiritual, que é o perdão de todas as ofensas, e desse modo uma mudança de procedimento para com os homens e para com Deus.

Jesus ensina o que seja o Reino dos Céus por parábolas ou comparações. Entre elas avulta a de que o semeador é o orador; a semente, a palavra; a doutrina, o pão-e-vinho, pelo que a homilia vale de Eucaristia. Nutrimento e medicamento, o verbo simboliza o Espírito Santo.

Há muitos séculos já que estas parábolas foram difundidas, vulgarizadas pelo mundo inteiro. Muitos homens as conhecem bem, e ao aplicarem os seus provérbios rememoram a santidade do Velho Testamento, aliança de Deus com Israel. Diferem, porém, os crentes no discernir qual seja a originalidade da doutrina de Jesus.

Aos seus discípulos eleitos ensina Jesus uma doutrina superior, que eles haveriam de desocultar e propagar em tempo oportuno. "A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou". Ao declarar-se, como Moisés, enviado de Deus, mas também filho de Deus, usava de uma expressão tradicional que os seus contemporâneos já não entendiam, por muito que Jesus, referindo-se ao Espírito Santo, explicitamente dissesse: "Também vosso Pai, que está nos Céus".

Jesus ensina a invocação, antes de mais. Ensina os homens a receberem a mensagem divina. Jesus ensina os mandamentos de Moisés, que os fariseus, saduceus e escribas haviam deixado de cumprir e até de ensinar, mas o primeiro mandamento da lei de Cristo resume-se em dois verbos: doar e perdoar. Este preceito é constante e insistente ao longo das narrativas evangélicas. Ele aparece simbolicamente explicitado na expulsão dos demónios, no curativo das doenças, no desprendimento dos bens materiais, em sucessivos exemplos e conselhos.

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!, por James Tissot

A alusão torna-se explícita no comentário ao preceito da separação, do desquite ou do divórcio consentido por Moisés em atenção à dureza de coração, mas até nesse domínio delicadíssimo das relações entre homem e mulher aconselha Jesus a virtude infinita de perdoar. Apologia do perdão universal, do acto de perdoar ao irmão, ao amigo, ao próximo, ao vizinho, ao forasteiro, ao estrangeiro e até ao inimigo, como graça propiciatória do amor preceituado nos dois principais mandamentos de Moisés, causava escândalo aos legistas e escribas, homens dos livros, que começavam a adaptar os seus preceitos éticos às normas pautadas pelo direito romano. Eram legistas romanos os inspiradores daquela justiça social que não perdoa desigualdades, mas que para definir a igualdade recorre à abstracção matemática, por conta, peso e medida, que no rigor formal se desprende dos aspectos concretos nas relações humanas.

No código romano, o direito de matar, de prender e de punir, já se humanizava em contraste com as práticas vingativas que eram usuais nos povos bárbaros, conquistados e dominados, mas extraída dos livros inspirados por Deus, a doutrina de Jesus era infinitamente superior quando insistentemente afirmava: Não julgueis. "Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém, julgo". Jesus Cristo lutava contra a tendência de cada homem para condenar o seu semelhante, depois de o julgar em sentenças cujo formulário começa por expressões análogas a estas: O que ele merecia era que... Havia de haver uma lei que punisse... Não há direito!

Todos os homens querem dar sentenças, ser juízes, apreciar a justeza antes da justiça. O processo tem por fim condenar o culpado, e ao juiz compete escrever a sentença que determina a qualidade e a quantidade da pena, mediante recurso ao texto codificado. A condenação é essencial ao juízo, já que a absolvição é, tecnicamente, retrocesso, ou interrupção do processo a favor do acusado, que, desprendido de vínculos jurídicos, deixa de ser sujeito de qualquer sentença.

A justiça teológica é, deveras, o prémio, a recompensa, a retribuição, a dádiva, a graça. Eis o que, no direito romano, está fora da alçada do juiz, cujo raciocínio matemático permanece aquém da intuição de amor. Jesus ensina aos ricos de espírito que distribuam os seus bens pelos pobres de espírito, em parábolas que não entendem quantos as interpretam à luz da política, da economia e da técnica, como justiça de César e não como amor de Deus.

Interpretando com espírito cristão a letra dos Evangelhos redigidos em grego e traduzidos em latim, veremos que a penitência aconselhada ao povo de Israel para advento do reino dos céus significa exactamente aquele esforço de ascética, dificílimo ao homem inferior ou decaído, de sublimar a vingança pelo seu contrário, de abrir-se ao amor universal. As palavras evangélicas oscilam da designação para a significação, em obediência às leis da semântica. As parábolas de Jesus são comparações, e portanto juízos, na acepção teorética de opinar, apreciar, dizer, porque só os juízos permitem formar doutrina.

A mensagem cristã não era, pois, de condenação mas pelo contrário, de redenção. Só nesta acepção se entende que Jesus aceitasse ser condenado à morte na cruz romana, símbolo de um acontecimento que seria de assombro para os juízes da terra, a revogação final do direito de punir. Mais eloquente, e por isso mais profética, foi também a exclusão da espada romana como símbolo da pena de morte, nos dizeres condenatórios do procedimento livre de Pedro contra o automatismo inconsciente dos soldados.

Eis porque nem a cruz, nem a espada, nem o escudo nos parecem dignos de simbolizar a verdadeira doutrina de Cristo, ou cristismo. São meros emblemas acidentais de referência ao Império Romano e à sua justiça legal, desenhos de muito menor valor artístico do que a esfera armilar, símbolo da expansão generosa do povo português. Levar as riquezas do Espírito aos pobres de Espírito, difundir a revelação de Deus nas palavras de seus profetas, completar a doutrina messiânica pela acção missionária, são realidades que requerem símbolos próprios da filosofia literária.

Não era só a citação exacta de muitos passos das Sagradas Escrituras e de invocação aos patriarcas e profetas, o que na oratória do letrado Jesus, segundo os Evangelhos, causava assombro aos saduceus, aos fariseus e aos escribas. A sua argumentação surpreendia pela mobilidade da inteligência que, passando por tropos inauditos, rechaçava novas significações dos termos estratificados: esta pedra, este templo, este reino. Tais palavras vulgares, quando transformadas em símbolos de realidades superiores, transferência, desprendimento, absolvição, eram incompreendidas e deturpadas até por aqueles que se afirmavam doutores da lei.

Amaldiçoando os fariseus, por James Tissot

O entendimento universal, católico e ecuménico entre judeus, cristãos e pagãos não foi dificultado por intriga dos que temiam reconhecer o Messias, mas foi efectivamente impedido pela política do Império Romano, mediante os seus magistrados que ditavam leis a cumprir pelos cobradores de tributos e pelos militares a soldo. Acompanhado por lanceiros e escudeiros, o Rei dos Judeus não foi lapidado pelos seus correligionários mas obrigado a levar a cruz ao Calvário, onde morreu e perdoou àqueles que não sabiam o que faziam, pois limitavam-se a cumprir o que diziam as profecias. Outros impérios, séculos depois, assentes na tirania, no tormento e no trabalho, segundo a tríade clássica, continuaram a impedir o entendimento universal, católico e ecuménico de todos os povos.

Depois de Cristo, o messianismo já não pode ser interpretado como espera do advento de um homem superior. Tal não é também o dogma de quantos não reconhecem em Jesus a figura angélica ou sobrenatural do Messias. O messianismo é uma doutrina de fé, esperança e caridade, a propagar na intenção da fraternidade universal...».

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).




HÁ UMA IDEOLOGIA DOS CRISTÃOS-NOVOS?

O problema da ideologia dos Cristãos-Novos não pode pôr-se unicamente no terreno religioso. Haveria que averiguar, antes de mais, se este grupo social manifesta uma atitude global perante o mundo prático em que participava.

Para uma primeira sondagem, dispomos de um conjunto de textos em que, justamente a propósito da situação particular dos Cristãos-Novos, é patente uma concepção mercantilista que se apresenta como previdente e sensata frente ao aventurismo, à delação gratuita, ao fanatismo devastador ou à ignorância que se atribuem à sociedade tradicional.

Duarte Gomes de Solis é genro de Francisco Dias Gomes de Brito, grande capitalista de Lisboa, o qual é por sua vez sobrinho do célebre Francisco Mendes, Cristão-Novo emigrado, cunhado de Gracia Nassi. Na sua Alegación en favor de la Compañia de las Indias Orientales (1628), que é uma defesa das companhias de tipo holandês, ao mesmo tempo que uma apologia dos «homens de negócio» ou «homens da nação», um ataque à discriminação de que são vítimas e uma reivindicação do lugar que lhes compete na sociedade portuguesa e espanhola, o autor nota «o grande ódio que em Portugal se tem contra os homens de negócio», ódio que se manifesta na discriminação a que estão sujeitos, inclusivamente no que respeita aos contratos do Estado. Afirma que o comércio com as Índias Orientais deve correr por via destes «homens de negócio», «homens tão honrados como ricos, que não por contratos com chatins pobres. Que se os fidalgos e ministros apreciassem a mercancia, saberiam fazer diferença entre mercadores e mercadores» (30). Incita o Rei a «favorecê-los com privilégios e imunidades conforme à qualidade das suas pessoas e ao que delas pode esperar nas coisas do seu real serviço, para lhes levantar ânimo [...] E que os Portugueses da nação que hoje residem no reino de Portugal e em todas as suas conquistas sejam tidos na mesma conta, honrando-se aos que mais tratarem de aumentar a contratação, por ser a gente mais necessária e de que maior necessidade têm todas as Espanhas» (31). Gomes de Solis, em nome do interesse do Reino, identificado com o interesse da mercancia, insiste na necessidade de abolir a discriminação; e não deixa de tocar, embora sem alusão explícita, no melindroso problema da Inquisição. Propõe que «para que os bons possam gozar dos privilégios que a naturais são devidos», se desterre «a gente de má vida ou ruim presunção» e que fiquem os outros com todos os direitos dos «naturais». «Sejam as leis que se arbitram contra os Cristãos-Novos [para] os que saem sambenitados; e gozem os que podem provar nos seus ascendentes limpeza e fidelidade das imunidades de que gozam os naturais em todas as partes do mundo» (32). Esta proposta será retomada e desenvolvida mais tarde, como veremos, por D. Luís da Cunha e outros adversários da Inquisição. A peroração do livro é uma apologia da «gente da nação» portuguesa: «... tudo são causas para que a gente da nação portuguesa possa gloriar-se da natureza que lhe deu Portugal, com tão grande fama que possam valer tanto nas terras dos príncipes cristãos e tão pouco na sua própria pátria. Que, se nela o valor e a virtude pudessem granjear-lhes a honra, o ânimo se lhes levantaria a feitos históricos, pelo prémio que se poderia seguir. Pelo que não somente aventurando as vidas, mas ainda as fazendas, próprias e dos parentes, inventariam instrumentos de guerra para maior defesa da Pátria, se soubessem que seriam premiados pelos mesmos seus feitos. E cessariam os bandos que destroem tudo».




A Inquisição aparece, implicitamente, neste livro de Solis, como a inimiga do comércio, sendo este, ao fim e ao cabo, a base da prosperidade do império. A apologia da gente da nação não se apresenta neste Cristão-Novo como uma reivindicação de grupo; ela decorre naturalmente das necessidades económicas. É como se a Inquisição fosse um corpo estranho obstaculizando a ordem natural das coisas, que é progresso da riqueza pela expansão mercantil.

Outro autor fala dos «bandos que destroem tudo». É António Henriquez Gomez num livro que se refere especialmente a Portugal e escrito na comunidade portuguesa de Ruão. Este suposto judaizante, condenado pela Inquisição espanhola, era filho de um cristão-velho, casado com uma cristã-velha, homem de negócios e autor literário. Acabou queimado em estátua pela Inquisição espanhola. Numa obra impressa em 1647 com o título Política angélica (33), sustenta que «a maior ruína que pode vir à monarquia, à república, à nobreza e enfim à salvação das almas é excluir, apartar e vituperar as linhagens. Este é o mais acautelado, o mais cruel e o mais bárbaro arbítrio que o Demónio semeou entre a Cristandade. Com ele se manchou todo o lustre da nobreza, com ele se ausentaram do Reino as melhores famílias. Este arbítrio fez milhares de infiéis, tiranizou o amor ao próximo, dividiu os povos em bandos espirituais, empobreceu as cidades, eternizou as vinganças, tirou da Igreja de Deus muitos varões justos, levantou um cisma diabólico entre as gentes, deu vingança aos estranhos e pouca estimação aos próprios, pôs nas igrejas, em vez de santos, pinturas diabólicas como são chamas de fogo e figuras do Inferno, desterrou os mortos, desonrou os vivos, exibiu as estátuas dos ausentes, deu a entender ao povo inocente as heresias dos réus para meter cizânia nos discursos humanos [...]» (34).

Henriquez Gomez visa especialmente nos seus ataques o Fisco inquisitorial, que dá causa a se ausentarem muitos homens de negócio. Sem o comércio quebram-se as rendas reais, por falta de matéria tributável; decai a agricultura, por falta de investimento (como diríamos hoje); enche-se o Reino de vagabundos e de malfeitores. Entram em acção os «arbitristas», charlatães que querem fazer crer ao Rei que sabem tirar água de uma pedra. Estes agravam a situação propondo remédios desastrosos onde é preciso «deixar obrar a natureza». Acrescem os denunciantes e malsins, que vivem das confiscações. Em suma, o confisco, que é uma forma de roubo, consome os capitais do Reino, e «um império sem comércio é o mesmo que um corpo sem alma» (35).

Mais longe porque se eleva a um nível ideológico superior, vai o nosso conhecido Manuel Fernandes Villa Real, amigo de Henriquez Gomez e do P. Vieira, no seu mencionado El Politico Christianissimo. Sem dúvida que na origem das suas reflexões estão também os problemas económicos, porque o objectivo último dos seus esforços é levantar a hipoteca que por via do confisco inquisitorial pesava sobre a riqueza dos «homens de negócio» (36). No seu livro que já referimos há uma alusão expressa ao confisco: um vassalo que se convence de que o querem converter para lhe tomarem os bens julga que essa acção procede mais da cobiça que da caridade cristã. Mas o essencial é que o Autor se eleva a um ponto donde abrange todo o problema da liberdade de crença. A pretexto do panegírico do cardeal Richelieu, este cristão-novo português emigrado em França escreve que a redução dos súbditos à verdadeira religião se deve fazer pela persuasão e nunca pela força; não se pode iluminar uma alma cega «pela obscuridade de um processo e pelas trevas de uma longa prisão». De caminho, (...) o nosso Autor alfinetava a Inquisição portuguesa. Encontram-se no seu livro belas fórmulas inspiradas no racionalismo burguês, que Villa Real só podia ter conhecido fora da Península Ibérica: «Fazer escravos aqueles que a natureza fez livres não é obedecer a Deus, mas contradizer as suas obras». Por este lado, o livro aproxima-se ainda que discreta e longinquamente da problemática de Uriel da Costa.
Mas convém notar, sobretudo no que respeita aos temas económicos, que estas e outras ideias não são exclusivas dos Cristãos-Novos. Na realidade eles levantam problemas de que os homens esclarecidos desta época vão ganhando consciência à medida que se torna latente a contradição entre as instituições senhoriais dominantes e o processo de formação da riqueza, cada vez mais predominantemente mercantil. Adiante encontraremos homens como o marquês de Nisa, como Duarte Ribeiro de Macedo, como o embaixador Sousa Coutinho, no campo de Solis, de Villa Real ou de Gomez Henriquez, na luta contra a Inquisição em nome do interesse económico do Estado. O que está em causa, no fundo, é a transformação geral resultante do surto da burguesia mercantil e o ter ou não foro de cidade a mentalidade compatível com o papel dominante que ela se propunha desempenhar na sociedade portuguesa.

Mais do que todas significativa é a posição em que se coloca o P. António Vieira nos seus escritos a favor dos Cristãos-Novos a partir de 1646. Sendo Jesuíta, o P. António Vieira está em princípio excluído da mancha de cristão-novo. Mas na sua campanha pelos Cristãos-Novos retomou os argumentos e exprimiu os pontos de vista deles. A seu lado, na mesma trincheira, concertadamente com ele, combateu o cristão-novo Manuel Fernandes Villa Real e provavelmente Henriquez Gomez, que acabamos de conhecer. Como este último, Vieira desenvolve o tema da importância do comércio na «República». Segundo Vieira (37), foi pela navegação e pelo comércio que cresceu outrora a prosperidade do Reino, e foi por falta de comércio que Portugal decaiu no miserável estado a que está reduzido. A insegurança das fortunas dos homens de negócio, em resultado do fisco inquisitorial, é a causa principal da decadência do comércio. O que se impõe, portanto, é «libertar o comércio» isentando da pena do confisco a fazenda dos mercadores ou gente da nação. De passagem, Vieira sublinha o antagonismo entre as duas políticas económicas: a que vive da opressão tributária e a que vive da prosperidade comercial: «Onde se há-de advertir a diferença que há entre o rendimento dos tributos e o do comércio: que o dos tributos, além de ser violento, necessariamente mingua, e o do comércio a ninguém molesta e sempre vai em aumento» (38). As necessidades da guerra davam extrema acuidade a este dilema: «Portugal não poderá continuar a guerra presente [...] sem muito dinheiro; para este dinheiro não há meio mais efectivo, nem Portugal tem outro senão o do comércio; e o comércio considerável não o pode haver sem a liberdade e segurança das fazendas dos mercadores» (39). Tais são as razões que justificam a abolição do fisco inquisitorial. E Vieira vai mais longe. Atendendo à importância do comércio na «República», propõe a nobilitação dos mercadores: "que vossa Majestade fizesse nobre a mercancia, de maneira que não só lhe não tirasse mas desse positiva nobreza, ficando nobres todos os mercadores não só os que chamam de sobrado ( = comércio a retalho). Com o que muitas pessoas de maior qualidade e Cristãos-Velhos se aplicariam ao comércio mercantil com grande utilidade do Reino, a exemplo de Veneza, Génova, Florença e outras repúblicas em que os Príncipes são mercadores e elas por isso opulentíssimas" (40).

Esta curiosa proposta de nobilitação dos mercadores só se pode compreender no contexto da discriminação inquisitorial e dentro da interpretação segundo a qual a Inquisição pretendia isolar a burguesia mercantil em favor da nobreza dominante. Uma vez que os Cristãos-Velhos se entregassem ao comércio, desapareciam os «bandos» que são causa de todos os males. Mas a proposta de Vieira põe em questão nada menos que a estrutura político-social portuguesa no século XVII.

Pode, assim, falar-se de uma visão social e económica do mundo a que os Cristãos-Novos aderiram pela força da sua condição de mercadores, mas que de modo algum é uma visão consubstancialmente étnica. Se passarmos ao plano religioso, a situação deste grupo social aparece-nos dependente de variados factores.

Como notou Groethuysen na obra já citada, o Burguês é tendencialmente ateu. A sua própria actividade obriga-o à previsão, mostra-lhe que é possível disciplinar a fortuna caprichosa, dominar em certa medida o destino individual. «Os balanços do fim do ano, como os livros de Física, expulsam os mistérios» (41). Mesmo quando cumpria os ritos, o Burguês tendia a descrer do Deus medieval, deixando-o a um vulgo com que ele, Burguês, não se sente confundido. Mas no caso português há outros elementos a ter em consideração que são, por um lado, os antecedentes religiosos de uma parte dos antepassados da gente da nação, por outro, os efeitos da repressão inquisitorial.




Indicámos as razões pelas quais nos parece que o Judaísmo deixou de ser praticado em Portugal, a não ser excepcionalmente, em famílias muito tradicionais e que não se misturaram com os Cristãos-Velhos. Estas últimas devem ter constituído uma boa parte das primeiras vagas de emigração, e puderam judaizar além-fronteiras. Elas foram os pioneiros dos núcleos de Judeus portugueses na Turquia, em Marrocos, na Itália, na França, nos Países Baixos. Citemos, por exemplo, os irmãos Usque, Abraão, que editou livros portugueses em Ferrara, e Samuel, autor da Consolação às Tribulações de Israel, obra que pertence simultaneamente à cultura judaica e à literatura portuguesa.

Mas tem-se exagerado a importância destes núcleos como prova de persistência do culto judaico em Portugal. O facto de muitos dos emigrantes que posteriormente partiram para escapar à repressão inquisitorial aderirem às sinagogas já instaladas (embora outros, mesmo no estrangeiro, continuassem católicos) não prova que judaizassem em Portugal. A este respeito temos testemunhos preciosos de Cristãos-Novos e outros portugueses emigrados. Um deles é o de Ribeiro Sanches na obra já citada. Para se pôr a salvo de novas prisões, o Cristão-Novo que já conheceu o cárcere abandona a pátria na primeira oportunidade. «A navegação mais fácil que acha é para a Holanda, Inglaterra ou França, aonde chega ignorante da língua daquelas terras, sem conhecimentos mais do que dos Judeus portugueses ou castelhanos entre os quais acha parentes e amigos; e, ou de boa vontade, ou forçados da necessidade, como já sucedeu algumas vezes, se fazem judeus». Perdido no estrangeiro, outrora como hoje, o emigrante português tendia a aproximar-se dos compatriotas já instalados e organizados, sujeitando-se para tanto à lei em que estes viviam. Tanto mais que esses núcleos de portugueses eram ricos e poderosos.

Outro testemunho, muito curioso, é um passo pouco citado de Uriel da Costa, no Exemplar Humanae Vitae. «Por mero acaso», conta ele, «tive conversa com dois homens que, de Londres, vieram a esta cidade [Amsterdão], um espanhol, outro italiano. Eram cristãos e não tinham ascendência judaica; mas apertados pela penúria pediram-me conselho acerca de entrarem na sociedade dos Judeus e aderirem à religião deles». Uriel, que detestava a Sinagoga, onde era aliás obrigado a viver, tratou de dissuadi-los. «Mas, como agradecimento, estes maus homens, interessados no sórdido lucro que esperavam cobrar, revelaram tudo aos meus caríssimos Fariseus» (42). Tal era a força dos interesses representados na Sinagoga, que mesmo cristãos sem ascendência judaica, e inclusivamente não espanhóis, tentavam nela penetrar, com vista ao negócio. Entrar na Sinagoga, independentemente de motivos religiosos, ou mesmo nacionais, era entrar num clã e numa espécie de maçonaria cujas malhas se estendiam através do mundo. E, pelos vistos, havia muito nesta época quem pensasse que Paris vale uma missa - ou uma Páscoa judaica. De resto, a história do próprio Uriel da Costa, que teve de abdicar perante a Sinagoga, apesar de descrer do judaísmo, é muito significativa a este respeito.

O Cavaleiro de Oliveira, que saiu de Portugal em 1734 e que percorreu a Europa, tendo vivido vários anos em Amsterdão, testemunha acerca da crença dos supostos judaizantes portugueses emigrados, muitos dos quais conheceu pessoalmente. Escreve ele no Discours pathétique (1756):

«Essa pobre gente, vendo-se errantes e vagabundos pelo mundo, ignorando a língua desses países onde procuravam asilo, privados de todas as comodidades de vida, e até de pão [...] caíam nas mãos do Judeus, que os recebiam no pé de prosélitos da lei de Moisés. Uns tomavam esse partido porque encontravam nisso vantagens materiais, outros porque tinham inclinação. Mas que trabalho não tinham os mestres das sinagogas para os instruírem numa lei cujos mandamentos e preceitos eram para esta gente coisa inteiramente nova? Conheci alguns que por muito judeus que se dissessem nunca conseguiram desfazer-se da preferência pelos princípios da religião em que tinham sido criados. Havia os que chegavam a rezar todos os dias o rosário; outros conservavam e adoravam ainda as medalhas e imagens de vários santos, que tinham trazido de Portugal. Houve um que me confessou que, se se dissesse a missa na sinagoga, se faria judeu de todo o coração, mas, não sendo assim, só o seria nas aparências, a fim de alcançar a subsistência de que necessitava».

O nosso Autor dá como exemplo uma mulher chamada Ana, que ele conheceu pessoalmente, convertida com o marido, ao Judaísmo, «e que nunca deixava de rezar o seu rosário todas as noites, e de recitar o ofício de Santa Ana, diante duma imagem desta santa posta em cima de uma mesa e iluminada por duas velas».

Mas, conclui ele, «se estes pobres ignorantes se não tivessem retirado a tempo de Portugal, teriam infalivelmente caído nas mãos cruéis dos inquisidores e perdido a vida nos patíbulos» (43).

Estes testemunhos concordantes mostram que do grande número de Portugueses emigrados que participavam nas sinagogas não se podem tirar conclusões sobre a religião que praticavam em Portugal. As sinagogas fundadas pelos emigrados portugueses foram obra da minoria irredutível, a que aderiram, pelas circunstâncias indicadas, fugitivos estranhos à religião hebraica, mas perseguidos pela Inquisição.

Tem-se atribuído especial importância ao grande número de processos inquisitoriais movidos em Espanha aos Portugueses imigrados a partir do final do século XVI, prova, segundo se supõe, de que eles continuavam a praticar os ritos judaicos do seu país de origem, diferentemente do que sucedia com os Cristãos-Novos espanhóis, nesta época quase inteiramente cristianizados. Mas este problema precisa de ser revisto tendo em conta que os perseguidos, antes de Cristãos-Novos, eram Portugueses, que ainda por cima ocupavam posições privilegiadas em terra estranha. Como veremos adiante, os Portugueses constituíam um grupo económico poderoso espalhado em toda a Europa e com ramificações no Ultramar. Em Espanha particularmente tinham na mão uma grande parte das rendas e monopólios do Estado, sem falar da sua função de banqueiros e agiotas e do seu valimento na Corte. É natural que esta minoria nacional poderosa se tornasse alvo da animosidade dos naturais. Nenhuma conclusão definitiva pode tirar-se enquanto não for experimentada esta hipótese de trabalho. É certo, entretanto, que em muitos dos processos resumidos ou extractados por Júlio Caro Baroja encontramos frequentemente as pegadas de malsins, provocadores, testemunhas falsas, inclusivamente ao serviço do Conde-Duque de Olivares, dentro das redes de intrigas que, como no caso de João Nunes Saraiva, resultam de rivalidades entre grupos de interesses mercantis. E seja dito de passagem que o mesmo processo de Saraiva, tal como o resume Baroja, está cheio de episódios e diligências que fazem pôr em dúvida a culpabilidade do réu (44).

Mas da própria emigração é possível tirar argumento contra os que, tal como os inquisidores, acreditam no Judaísmo dos Cristãos-Novos. Muitos membros desta minoria perseguida emigraram para o Brasil, onde durante mais de um século desfrutaram de quase completa liberdade. Antes do século XVIII a Inquisição apenas fez ali três ou quatro breves investidas. Se estes Cristãos-Novos emigrados praticassem, de facto, o Judaísmo, o Brasil ter-se-ia tornado terra de judaizantes ou de fortes tradições marrânicas. Ora isto não aconteceu neste país onde, todavia, o encontro das culturas cristã, ameríndia e africana deu lugar a movimentos heréticos, e onde ainda hoje florescem ritos de origem africana. Não há uma tradição marrânica brasileira. O único núcleo de judaizantes conhecido foi fundado por dois rabinos portugueses vindos da Holanda, com a invasão holandesa, em terra ocupada por Holandeses. Por ocasião da «visitação» ou inspecção inquisitorial de 1591 já havia numerosos emigrados no Brasil; no entanto, as denúncias conhecidas quase não se referem a actos de Judaísmo. O próprio Lúcio de Azevedo o reconhece: o visitador recebeu poucas denúncias «em que aparecesse clara a prática das cerimónias judaicas...» Mas acrescenta, mostrando o seu parti pris: «tanto se acautelavam os observantes» (45). É mais simples e mais lógico supor que não havia tais «observantes», sobretudo tratando-se de uma terra onde as pessoas viviam muito mais soltas e com menos cautelas do que em Portugal. O que na realidade sucedia é que não existia ainda uma burguesia brasileira bastante considerável para interessar os inquisidores.

Houve-a mais tarde, no começo do século XVIII, e é então que a Inquisição começa a descobrir judaizantes numerosos entre os senhores de engenho e outros burgueses brasileiros. De tal modo que o rei de Portugal teve de proibir as confiscações dos "engenhos", especialmente atingidos pelo saque inquisitorial (46). A este grupo de perseguições pertence António José da Silva e sua família, cujos processos merecem o crédito que vimos noutro capítulo.


Mas o problema religioso dos Cristãos-Novos não se reduz ao Judaísmo que lhes é imputado pela Inquisição e pelas pessoas que ela influenciou. Além da condição de burgueses que lhes inspira uma certa mundividência, e provavelmente uma tendência à incredulidade, há a considerar que a conversão forçada, primeiramente, e a perseguição inquisitorial, depois, os colocaram sob o ponto de vista espiritual numa situação particular. A conversão forçada foi o ponto de partida, como vimos, de uma assimilação progressiva. Mas nas primeiras gerações, que por ela foram directamente atingidas, causou uma ruptura ideológica e psicológica cujas consequências não é fácil medir. Por um lado, uma duplicidade. Houve, certamente, uma minoria que sob a exterioridade do culto cristão se manteve fiel pelo coração à religião da infância e dos antepassados, minoria que tende a extinguir-se quer pela morte natural, quer pela emigração. Outros, pelo contrário, em virtude de uma lei psicológica bem conhecida, que deu origem, ao longo da história, a tantos renegados, tornaram-se cristãos fanáticos, como para se libertarem violentamente de uma opção vedada. Num e noutro caso, da antiga cultura devem ter subsistido usos e costumes tradicionais que, justamente por terem perdido o significado religioso, não eram obstáculo aos casamentos entre descendentes de antigos judeus e descendentes de antigos cristãos, e podiam inclusivamente transmitir-se a estes últimos. É o que sucede, parece, com certas receitas culinárias que começaram por ser ritualmente hebraicas e acabaram por se tornar tipicamente espanholas: caso do emprego do azeite onde no resto da Europa, como na Espanha antiga, se usa normalmente a gordura animal.

O que mais importa, no entanto, é que do traumatismo da conversão forçada parece resultar, globalmente, uma certa inquietação, ou talvez melhor um certo dinamismo que podiam aliás conduzir a duas conclusões opostas. Estes cristãos, que tinham sido judeus e portanto tinham conhecido duas formulações diferentes do sentimento religioso, podiam ser levados a depreciar o ritual exterior, precário e mutável, e a procurar, através de uma vivência religiosa intensa, a substância espiritual que ele esconde e degrada. Sob a letra morta ressuscita o espírito. Bataillon chama a atenção para a importância dos Cristãos-Novos nos movimentos místicos dos «alumbrados» e dos «desejados» em Espanha, cerca de 1525 (47); e não deixa de ser curioso que Santa Teresa de Ávila pertencesse a uma família de Cristãos-Novos, embora de longa data assimilada. Mas a atitude oposta, ou seja a incredulidade, era também possível como resultado da duplicidade, do formalismo, do sentimento de precariedade dos ritos. É à primeira vista surpreendente ver João de Barros em 1534 polemizar com o "averroísmo", nome pelo qual vulgarmente se designava a negação da imortalidade da alma e de outra vida além da terrena; mas, segundo parece, ele tinha em vista uma doutrina que tendia a expandir-se entre os antigos Judeus Portugueses (48). Não é difícil respigar aqui e além casos de cepticismo religioso, sobretudo na emigração, como o daquele médico de Santarém, que Fr. Pantaleão de Aveiro encontrou em Trípolis, praticando em público o Judaísmo mas vivendo na realidade como "gentio", descrendo da vinda do Messias e da ressurreição dos mortos (49). Já na época dos Muçulmanos grassava esta forma de materialismo entre os Judeus de Espanha, assumindo forma filosófica no chamado materialismo averroísta e expressão mais popular na doutrina dos «três impostores», que seriam os fundadores das três religiões então conhecidas na Península Ibérica, o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo (50). Esta tradição, favorecida pela situação dos Hebreus cultos entre duas outras religiões que pretendiam igualmente o exclusivo da verdade, encontra um terreno favorável nas condições criadas pelo traumatismo da conversão forçada de 1497 e vem por outro lado ao encontro da própria mundividência nascida da experiência burguesa segundo a teoria de Groethuysen.

E há a considerar, além disso, as condições resultantes da existência e da actividade do tribunal do Santo Ofício. Em que medida e em que sentido a discriminação condicionou e estimulou espiritualmente o grupo discriminado? Até onde chegou e que efeitos teve o processo de dissimulação com que a Inquisição procurou inverter a assimilação, em curso, da antiga comunidade judaica?

Não há, de momento, elementos para responder a esta pergunta, mas há lugar para propor algumas considerações e para lembrar alguns exemplos que talvez não sejam insignificativos.

Ribeiro Sanches sugere que as famílias que se sentiam discriminadas e ameaçadas pela Inquisição, quer por contarem judeus entre os seus ascendentes, quer por terem parentes penitenciados ou relaxados, criavam um reflexo de defesa fechando-se perante o exterior. Tendiam desta forma a isolar-se, por precaução, das famílias cristãs-velhas ou de todas aquelas donde poderiam sair eventuais inimigos. Uma vida secreta se constituía assim no interior destas famílias, que, já por isto, já pela pressão externa das leis discriminatórias, tendiam a solidarizar-se e a aliar-se entre si. O meio particular que por este processo se constituía era, segundo Ribeiro Sanches, um terreno favorável à difusão da semente judaica, aliás rara.




A constância e a densidade destes meios fechados e com tendência para o segredo deve ter variado naturalmente com as circunstâncias geográficas e sociais. Na grande e média burguesia urbana, especialmente em Lisboa, a mobilidade das famílias é maior, as mudanças de fortuna são mais fáceis, os encontros e as alianças chamados mistos mais frequentes. Mudando de condição, dissolvendo-se em meios diferentes, é evidente que o particularismo e o secretismo gerados na defesa contra a Inquisição não podiam fixar-se em formas perduráveis. Pelo contrário, nas aldeias e vilas era difícil, a não ser pela emigração, escapar à condição hereditária e à vigilância dos vizinhos. Daí resultou que a tradição impropriamente chamada «marrânica», uma certa vida secreta que em raros casos se conservou até ao nosso século, se fixou especialmente em pequenas povoações do interior com preferência pelas proximidades da fronteira. António Vieira diz-nos que existiam no seu tempo povoações inteiras constituídas exclusivamente por Cristãos-Novos, e a esse número devia pertencer a aldeia dos Carções, no distrito de Bragança, cuja personalidade de «judeus» ainda hoje é apontada pelos vizinhos. São também do interior do país, na maior parte, as famílias descobertas por Samuel Schwartz em 1920 que praticavam rituais secretos com reminiscências judaicas (51). Este é um sector fossilizado da sociedade portuguesa, e um daqueles caroços (e há-os de vária origem) que o pulsar da história não teve tempo de moer e assimilar.

Mas não está aqui porventura o essencial. Há que considerar também a situação kafkiana em que se encontravam os Cristãos-Novos, e não só os das aldeias como os das cidades. Há uma incomodidade essencial na situação do Cristão-Novo que, como já vimos, se encontra no primeiro degrau da escada que conduz, através de corredores sem destino, à morte sem culpa e sem causa. Ele é um prisioneiro virtual, como Joseph K. que, mesmo fora do cárcere, está emparedado dentro dos olhares que de todo o lado seguem como interrogando-o e culpando-o em silêncio. Procura disfarçar-se, mudar de nome e de estado, ganhar brasões de fidalgo ou ordens de clérigo; mas este mesmo disfarce acentuava a sua consciência de uma situação particular na sociedade. Esta situação leva-o a problematizar o mundo em que vivia. Não porque a «raça» judaica o marcasse, ou porque a fé judaica guardasse raízes no seu coração, mas porque era visto de fora, visto pela gente «normal» como um espúrio, um marginal e um culpado virtual. A persistência do Cristão-Novo é um problema de relação e de situação, não um problema de substância congenital. Há um tema que não foi posto ainda pelos historiadores da literatura: como se reflecte nos escritores de origem, ou, melhor, de situação cristã-nova, como António José da Silva, Francisco Rodrigues Lobo e talvez Fernão Mendes Pinto, esta consciência particular. O que é a Justiça? O que é a condição humana? O que é a sociedade mesma? São perguntas que o Joseph K. dos séculos XVI e XVII era inevitavelmente levado a fazer. A Justiça através do mundo é, por exemplo, um dos temas fundamentais da Peregrinação de F. M. Pinto, onde todos os valores da «nação portuguesa» são subtilmente problematizados (52).

Há outros aspectos ainda a considerar nesta matéria fluída e mutável. Nem tudo é passivo e kafkiano na atitude dos Cristãos-Novos. E isto é tanto mais verdade quanto, dentro do processo social em curso, a posição dos homens de negócio tende a tornar-se mais forte. Os textos já citados de Duarte Gomes de Solis e de António Henriquez Gomez mostram como eles ganham consciência de que a discriminação divide a sociedade peninsular em «bandos». É esta uma atitude mais activa, mais combativa. Os Cristãos-Velhos aparecem não já como sujeito histórico, mas como um bando que persegue outro bando, o dos Cristãos-Novos, e isto em prejuízo do interesse colectivo. Ora na origem de tal destruição está uma instituição bem identificável e responsável: o Tribunal da Inquisição.

Este pôr em causa da Inquisição é um dos caminhos por onde os Cristãos-Novos superam a sua consciência de prisioneiros virtuais dos Cristãos-Velhos e ascendem à de sujeito histórico, de braço dado com os grupos que sem estarem rotulados de Cristãos-Novos se tornaram no entanto aliados dos homens de negócio na crítica da sociedade tradicional.

A Inquisição apresentava-se como um tribunal santo, um instrumento da justiça divina. Era em nome de Deus que processava (...) confiscava e delapidava os bens dos mercadores abastados e que condenava (...) milhares de inocentes que morriam negando as acusações da sentença e declarando a sua fé católica. O ódio à Inquisição e a evidência flagrante da sua injustiça arriscavam-se a cair sobre o Deus que ela dizia representar. A religião católica aparecia aos perseguidos sob a máscara odiosa dos inquisidores.




Tocamos uma contradição própria da Inquisição ibérica. A sua força estava no seu carácter sagrado. O nome de Deus legitimava as confiscações, as prisões, as execuções dirigidas contra o sector burguês da população. Mas justamente porque o motivo da perseguição era a Fé, havia que produzir para cada indivíduo a prova do pecado. O Tribunal da Fé não podia condenar colectivamente todo um grupo social por motivo exterior meramente étnico, como o fazia, por exemplo, o nacional-socialismo alemão. O motivo para a Inquisição punha-se ao nível da subjectividade em que funcionava, que era a de perseguir um certo grupo social, nada tinha que ver com a consciência religiosa de cada indivíduo. A má-fé institucional do processo inquisitorial reflecte esta contradição e tornava o tribunal do Santo Ofício particularmente vulnerável ao juízo da opinião pública esclarecida. As consequências desta situação complexa poderiam constituir um curioso tema de sociologia da cultura e dar elementos de reflexão para o famoso problema da incroyance posto por Lucien Febvre.

Seria curioso estudar certo número de casos de conversão de Cristãos, velhos ou novos, ao Judaísmo. É o caso, já tratado, de Fr. Diogo de Assunção, cristão-velho, frade capucho, cujo despertar religioso parece ter sido provocado pelas disputas teológicas entre as várias correntes escolásticas. Fr. Diogo, que não tinha na família qualquer tradição judaica, morreu na fogueira proclamando o seu judaísmo. Curiosamente semelhante a este é o caso de um clérigo galego, Vasques de Araújo, que se declarou convertido ao Judaísmo em 1687 (53). Também este só conhecia o Judaísmo através dos escritos católicos contra os Hebreus. Há lugar para pensar que, dentro de um meio onde não era possível um racionalismo laico e onde se desconhecia o Protestantismo, a religião hebraica, constantemente lembrada pelos processos, pelos autos-de-fé, pelos livros de propaganda antijudaica, aparecesse como única alternativa para os que descriam do Catolicismo inquisitorial. As vítimas dos autos-de-fé davam ao Judaísmo o argumento suplementar da abundância de mártires.

O caso célebre de Uriel da Costa explica-se, porventura, na sua raiz, à luz desta hipótese, e não pela existência de uma tradição judaica na família. Gabriel, de seu nome cristão, nasceu na última década do século XVI, de uma família de Cristãos-Novos do Porto. O pai era um católico fervoroso. Igualmente a mãe era cristã e desconhecia os ritos judaicos. Uma tia-avó tinha sido relaxada em Coimbra em 1568 (o que nada prova, como sabemos, quanto ao Judaísmo da acusada); mas a família estava evidentemente assimilada: já o pai de Gabriel obtivera título de nobreza, e ele próprio tinha ordens eclesiásticas que lhe permitiam usufruir de rendas da Igreja.

No entanto, ao aproximar-se dos vinte anos, Gabriel teve uma crise religiosa. Espírito penetrante, audacioso, recto como uma espada, como mostrará na sequência da sua vida, julgou encontrar contradições insolúveis na doutrina cristã. Este despertar foi para ele um drama. «Era-me difícil», diz ele, «abandonar a religião a que me habituara desde a mais tenra infância e que lançara em mim as mais profundas raízes». Mas como solucionar em Portugal, neste começo do século XVII, uma crise de descrença? Se uma das duas religiões conhecidas no país não era verdadeira, devia sê-lo a outra - tal é o raciocínio que naturalmente ocorre a quem não vislumbrou a possibilidade de uma verdade não-religiosa. E a alternativa do Judaísmo devia aparecer tanto mais plausível a Gabriel quanto ele só tinha desse Judaísmo, que ninguém até então lhe ensinara, uma noção confusa que a sua imaginação e a sua razão facilmente podiam modelar.

Gabriel meteu-se portanto a estudar essa religião desconhecida onde pressentia a salvação. O único meio de que dispunha era a Bíblia, na parte do Velho Testamento. É através de uma interpretação pessoal da Bíblia, por conta e risco, que ele tenta reconstituir o Judaísmo. E, procurando ao mesmo tempo elementos rituais, veio dar com uma parenta afastada que praticava ritos judaicos, mais ou menos estropiados. Chamava-se Branca de Pina e vivia com a mãe, Leonor de Pina. Mas se a filha judaizava, a mãe conservava-se católica, refractária às investidas missionárias da filha. Não fora, com efeito, da mãe que Branca recebera o Judaísmo, mas de um tio. A tradição judaica extinguira-se, pois, na linha directa desta família, tal como sucedera na família de Uriel da Costa. Persistia só por via colateral.


Uriel da Costa


Gabriel, com o auxílio do Velho Testamento, e com os elementos rituais mais ou menos desfigurados, trazidos pela prima, constituiu uma doutrina e um culto presumidamente ou aproximadamente judaicos, incluindo, segundo mostrou depois o processo inquisitorial, cerimónias que o verdadeiro Judaísmo desconhece. Fundou nesta base uma pequena comunidade judaica convertendo a própria mãe e os irmãos, excepto uma das irmãs, Maria da Costa (que, apesar disso, os inquisidores obrigaram mais tarde a «confessar» culpas de Judaísmo). Inicialmente ficou também de fora desta comunidade a mulher de Gabriel. Mas participavam nela Branca de Pina assim como a velha Leonor, que, finalmente, Gabriel e sua mãe lograram convencer. Em 1614 toda a família se pôs a salvo embarcando para Amsterdão, ficando apenas Maria da Costa que, como vimos, não se deixara catequizar.

Ora em Amsterdão o Judaísmo ideal de Uriel da Costa chocou-se com o Judaísmo real, ou realizado. Uriel reage contra o ritualismo, o formalismo e sobretudo a intolerância da Sinagoga, e uma nova evolução espiritual começa para ele. Mas desta vez encontra-se num meio cultural que lhe oferece outras vias, e a sua audácia pode ir muito mais longe: negou a imortalidade da alma, a verdade de todas as religiões reveladas e propôs um Deus que apenas exige dos homens o cumprimento de uma lei moral. A Sinagoga expulsou-o, mas (tal era a situação de um cristão-novo exilado) a vida tornou-se-lhe impossível fora da comunidade portuguesa. Uriel rendeu-se e voltou, mas foi obrigado a uma abjuração pública e a uma penitência. A semelhança entre este acto de abjuração e aqueles a que a Inquisição obrigava os seus «reconciliados» deve ter impressionado Uriel. Fosse como fosse, tornou-se-lhe tão impossível viver na Sinagoga como viver fora dela e, dando um exemplo particularmente ímpio, suicidou-se. Mas antes teve o cuidado de redigir a sua biografia espiritual, narrando num escrito a que chamou Exemplar Humanae Vitae o processo que o levara àquela conclusão (54).

A história que acabamos de contar contradiz os que crêem na persistência do culto judaico entre os Cristãos-Novos portugueses. O que na realidade sucedeu foi que a tradição judaica desapareceu na família de Uriel da Costa, e ele, provavelmente, não se teria convertido a um Judaísmo, aliás ideal, se não existisse a Inquisição. Era ela que, lembrando permanentemente a presença do Judaísmo, oferecia uma alternativa para o crente cristão frustrado; era ela que, nas famílias atingidas pela perseguição, como fora a de Uriel da Costa, devia criar uma atitude de retraimento, de exílio e de crítica perante os valores correntes, atitude que podia ir até ao processo do Deus que fazia dos inquisidores os seus agentes. Em Uriel da Costa, homem de pensar sistemático, este ódio generalizou-se finalmente a todas as formas de opressão religiosa, fossem elas cristãs ou judaicas. Não é talvez um acaso que a mais radical condenação moderna de todos os mitos religiosos tenha aparecido no seio dos emigrados ibéricos cristãos-novos na Holanda, cujo mais notável representante, Bento de Espinosa, meditou a obra e o exemplo de Uriel da Costa (in ob. cit., pp. 141-157).


Notas:

(30) Solis, ob. cit., p. 68.

(31) Ibid., p. 209.

(32) Ibid., p. 210.

(33) A segunda parte desta obra foi publicada, com introdução por Révah, na Revue des Études Juives, 4.ª série, tomo I, 1962.

(34) Ob. cit., p. 149.

(35) Ob. cit., p. 100.

(36) Sirvo-me da análise dada por Révah no seu estudo citado sobre Villa Real.

(37) «Razões apontadas por El-Rei D. João IV», nas Obras Escolhidas citadas, vol. IV.

D. João IV



Ducado de Bragança (1640-1910).

(38) Ob. cit., p. 69.

(39) Ob. cit., p. 70.

(40) «Proposta» de 1646, ob. cit., pp. 49-50.

(41) Groethuysen, ob. cit., p. 225.

(42) Exemplar Humanae Vitae, ed. de Karl Gebhardt, 1922, p. 111.

(43) Discours Pathétique, Coimbra, 1922, pp. 74-75.

(44) Ver resumo do processo em Baroja, Los Judios, II, pp. 60-66. Saraiva foi posto a tormento e não confessou. Os inquisidores parecem ter hesitado, em certo momento, entre a condenação a relaxamento e o tormento (o que sucedeu também a Duarte da Silva...) Optando pelo tormento davam-lhe possibilidade de salvar a vida: quiçá foi a riqueza do réu que os decidiu. Não se percebe em que é que se fundamenta Baroja para dizer: «Juan Nuñez era, en el fondo, un fanático de la religion hebraica». Faltam as provas desta opinião.

(45) Azevedo, ob. cit., p. 225.

(46) Lei de 1728 mencionada por Sanches, ob. cit., p. 21.

(47) M. Bataillon, Erasmo y España, edição Fondo de Cultura Económica, pp. 209-219.

(48) A. J. Saraiva, História da Cultura em Portugal, Vol. II, pp. 576-579. Révah, em Le Colloque Ropica pnefmade João de Barros publicado nos «Mélanges offerts à Marcel Bataillon», sugere que esta refutação do averroísmo tem em vista ideias correntes no meio dos conversos. Note-se que os Saduceus negavam a imortalidade da alma e neste ponto, como noutros, se opunham aos Fariseus.

(49) Baroja, ob. cit., p. 234.

(50) Léon Poliakof, ob. cit., p. 133.

(51) Vieira, ob. cit., p. 91. Samuel Schwartz, em Os Cristãos-Novos em Portugal no século XX, Lisboa, 1925 (separata de arqueologia histórica, vol. IV). Ver também, Francisco Manuel Alves, ob. cit., vol. VII; Leite Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. IV; José de Alcambar, O Estatismo e a Inquisição, Lisboa, 1956.

(52) No seu livro sobre Fernão Mendes Pinto, Christovam Ayres publica uma informação de Cardoso de Bethencourt relativa a processos inquisitoriais contra a família daquele escritor.

(53) Baroja, ob. cit., vol. I, pp. 510-513.

(54) Sobre a biografia de Uriel da Costa seguimos o Exemplar Humanae Vitae, já citado, e os extractos e análises de processos apresentados por Révah em La Religion d'Uriel da Costa, artigo publicado na Revue de l'Histoire des Religions (1962). A nossa conclusão, à vista destes elementos, é diferente da que Révah propõe.






Continua

TERMINATOR DIRECTOR JAMES CAMERON: 'THE MACHINES HAVE ALREADY WON'

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Escrito por Mikael Thalen




























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«Microsoft founder Bill Gates disputed Tesla CEO Elon Musk’s contention that artificial intelligence (AI) will eventually become very dangerous in a WSJ. Magazine interview published Monday.


“The so-called control problem that Elon is worried about isn’t something that people should feel is imminent,” Gates said when asked if his fellow tech entrepreneur’s concerns were warranted. “This is a case where Elon and I disagree. We shouldn’t panic about it.”

Musk, who heads a nonprofit research firm called OpenAI, said earlier in July that government bureaucrats must craft regulations for AI before robots begin killing people in the streets. He and 115 other tech leaders collectively announced in August that they sent a letter to the United Nations asking it to ban “killer robots,” formally known as lethal autonomous weapons.

“If you’re not concerned about AI safety, you should be. Vastly more risk than North Korea,” Musk wrote in a tweet that featured what appears to be a public service announcement reading “In The End The Machines Will Win.”

He also asserted that people need to eventually add an extra digital layer of intelligence to their brains so humans don’t become “house cats” to AI. Musk essentially argues that as AI gradually advances, humans will be left behind and struggle to keep pace.

Musk’s reservations towards the technological concept — which is generally the development of computer systems with the ability to perform functions that typically require human intellect — could even be interpreted as fear-mongering.

Such outspoken contentions seemed to cause Facebook CEO Mark Zuckerberg to speak out, calling the fears over the advent of AI “pretty irresponsible.” 

“I think you can build things and the world gets better. With AI especially, I am really optimistic,” Zuckerberg said, according to Axios. “I think people who are naysayers and try to drum up these doomsday scenarios — I just I don’t understand it. It’s really negative and in some ways I actually think it is pretty irresponsible … In the next five to 10 years, AI is going to deliver so many improvements in the quality of our lives.”

A Google executive later expressed similar sentiments to Zuckerberg, describing the arousal of fear as “unwarranted and irresponsible.” However, not before Musk hit back against Zuckerberg by saying that his fellow bigwig has a “limited understanding of artificial intelligence.”

Gates, Zuckerberg and other tech leaders argue, though, that there are careful considerations that need to be addressed as the nascent technology expands in the near future. (RELATED: Bill Gates: Advanced Terrorism Could Exterminate 30 Million People In Less Than A Year) 

After saying “we shouldn’t panic about” AI, Gates added in respect to the question of it whether it’s an “existential threat to humanity” that we also shouldn’t “blithely ignore the fact that eventually that problem could emerge”».

Eric Lieberman («BILL GATES REASSURES AMERICA THAT ARTIFICIAL INTELLIGENCE IS NOTHING TO 'PANIC' ABOUT», in Infowars, September 26, 2017).





















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«Documents uncovered as part of a separate court case reveal that multi-millionaire Silicon Valley elitist Anthony Levandowski started a religion based around the concept of worshipping artificial intelligence as a God.

Levandowski, who is currently embroiled in a high profile lawsuit with Google over accusations he stole sensitive data about their self-driving car program and gave it to Uber, founded a religious organization called Way of the Future two years ago.

The goal of the religion is to “develop and promote the realization of a Godhead based on Artificial Intelligence,” in line with the species reaching the singularity, the point at which computers surpass humanity in intelligence.

Although the group has not responded to requests from the IRS for the forms it must submit annually to operate as a non-profit religious corporation, “Documents filed with California show that Levandowski is Way of the Future’s CEO and President, and that it aims “through understanding and worship of the Godhead, [to] contribute to the betterment of society,” reports Wired Magazine.

As we have previously documented, the Singularity is embraced by many Silicon Valley elitists as part of their drive to achieve immortality by merging man with machine.

Ray Kurzweil’s 1999 book The Age of Spiritual Machines describes the technocratic elite’s plan to become super beings by augmenting their bodies, eventually to the point where an entire consciousness can be uploaded to a computer.

“We’re going to become increasingly non-biological to the point where the non-biological part dominates and the biological part is not important any more,” said Kurzweil in 2013. “In fact the non-biological part – the machine part – will be so powerful it can completely model and understand the biological part. So even if that biological part went away it wouldn’t make any difference.”

However, Kurzweil’s transhumanist utopia will probably not be available to the entirety of humanity but instead will be the domain of a wealthy aristocracy, creating yet another class system. Kurzweil admits this in his book, labeling those who refuse or are incapable of cybernetically augmenting themselves as MOSHs – Mostly Original Substrate Humans.

Humans who resist the pressure to alter their bodies by becoming part-cyborg or are unable to afford such procedures will be ostracized from society. “Humans who do not utilize such implants are unable to meaningfully participate in dialogues with those who do,” writes Kurzweil.

As Kurzweil entertains in his book, this will inevitably lead to the very situation described by none other than Unabomber Theodore Kaczynski – widely quoted by Kurzweil and fellow futurist Bill Joy – where the elite will see the mass of humanity as worthless parasites and either prevent them from reproducing via mass sterilization programs or simply slaughter them outright.

“Due to improved techniques the elite will have greater control over the masses; and because human work will no longer be necessary the masses will be superfluous, a useless burden on the system. If the elite is ruthless they may simply decide to exterminate the mass of humanity. If they are humane they may use propaganda or other psychological or biological techniques to reduce the birth rate until the mass of humanity becomes extinct, leaving the world to the elite,” wrote Kaczynski in his manifesto, a key passage quoted in Kurzweil’s book.

All of this sounds fantastical, but it’s what many ultra rich elitists in Silicon Valley firmly believe and in some cases are working towards».

Paul Joseph Watson («SILICON VALLEY ELITIST STARTS RELIGION TO WORSHIP ARTIFICIAL INTELLIGENCE AS GOD», in Infowars, September 28, 2017).



































TERMINATOR DIRECTOR JAMES CAMERON: 'THE MACHINES HAVE ALREADY WON'

Legendary filmmaker fears humans may lose control of artificial intelligence



Renowned filmmaker James Cameron warned against the dangers of artificial intelligence in an interview published by The Hollywood Reporter Wednesday. 

Cameron, discussing his upcoming addition to the Terminator franchise, argued that technology has already “won” against humanity given the public’s reliance on electronic devices. “Technology has always scared me, and it’s always seduced me,” Cameron said. “People ask me: ‘Will the machines ever win against humanity?’ I say: ‘Look around in any airport or restaurant and see how many people are on their phones. The machines have already won.'”

As humans co-evolve and merge with technology, the screenwriter added, the line between the two will begin to increasingly blur. “The technology is becoming a mirror to us as we start to build humanoid robots and as we start to seriously build AGI — general intelligence — that’s our equal,” Cameron said. “Some of the top scientists in artificial intelligence say that’s 10 to 30 years from now.”

Cameron compared the optimism among scientists towards artificial intelligence to that of scientists prior to the development of nuclear weapons.

“And when you talk to these guys, they remind me a lot of that excited optimism that nuclear scientists had in the ’30s and ’40s when they were thinking about how they could power the world,” Cameron said. “And taking zero responsibility for the idea that it would instantly be weaponized.”

“The first manifestation of nuclear power on our planet was the destruction of two cities and hundreds of thousands of people. So the idea that it can’t happen now is not the case. It can happen, and it may even happen.”

Recalling a recent discussion with an artificial intelligence expert, Cameron said some scientists are beginning to express concern over the burgeoning technology.

“One of the scientists we just met with recently, she said: ‘I used to be really, really optimistic, but now I’m just scared.’ Her position on it is probably that we can’t control this,” Cameron said. “It has more to do with human nature.”

“Putin recently said that the nation that perfects AI will dominate or conquer the world. So that pretty much sets the stage for ‘We wouldn’t have done it, but now those guys are doing it, so now we have to do it and beat them to the punch.’ So now everybody’s got the justification to essentially weaponize AI. I think you can draw your own conclusions from that.”

In a letter to the United Nations last month, more than 100 artificial intelligence experts called for an international ban on the development and use of autonomous weapon systems.

While some, including Google search chief John Giannandrea and Facebook co-founder Mark Zuckerberg, have pushed back against concerns over artificial intelligence, tech icons such as Tesla CEO Elon Musk have repeatedly drawn attention to the technology’s potential dangers (in Infowars, September 27, 2017).




















































































"Gárgula alienígena"



















































Ver 123 e 4






A obra de arte é filha de pai...

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Escrito por Fernando Pessoa







Meu querido Teixeira de Pascoaes:

Muito lhe agradeço o exemplar do seu Livro de Memórias, que ontem recebi mas só hoje pude ler. Dizer-lhe que o li com inteiro agrado seria mentira.

Aprecio, como ninguém, as suas altíssimas qualidades de intuição e de sentimento intelectualizado. Mostrei sempre, por palavras ditas e escritas, que as aprecio. Reconheço - mais - que dificilmente haverá hoje no mundo - dentro dos limites das literaturas que conheço, e dos autores que, a dentro delas, não ignoro - quem, como o Pascoaes, tenha tão interpenetradas as qualidades intelectuais e as emotivas, e pois tão espontaneamente sinta com o pensamento e pense com a emoção. Mas também não ignoro que essa faculdade andrógina da alma, sendo grande quando se possui ao nível em que a possui o Pascoaes, não é mais que a base, a mãe, ou, se preferir, a matéria, para sobre ela se fundar, nela fazer ou com ela se fabricar a obra de arte definitiva. E a obra de arte é filha de pai, ou de um pensamento formativo, que esculpe a matéria bruta da emoção (impensada ou pensada), ou de uma emoção intensa, que orquestra em unidade a dualidade essencial do pensamento.

São admiráveis as frases nascidas espontaneamente da sua admirável intuição; porém o Pascoaes di-las duas, três, quatro, cinco e mais vezes; repete-se e sobrerepete-se, e, sendo a essência da impressão estética produzida pela intuição e pasmo, não repara que, repetindo-se, o pasmo cessa, porque cessa a novidade.

Por isso os poetas passam e os artistas ficam. Ouso quase dizer que os artífices talvez fiquem mais que os poetas. Falo deste mundo, da glória que há nele, e da acção que nele se emprega. Não duvido de que a emoção do poeta possa viver mais do que a arte do artista em outras esferas, noutros mundos, em outros planos, como dizem os ocultistas menores (in Correspondência, 1923-1935, Assírio & Alvim, 1999, pp. 144-145).











Ver aqui



O Templo português: um caso atípico e único em toda a Cristandade

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Escrito por Juan G. Atienza





Aparição da Virgem a S. Bernardo, de Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682).




«Hugo de Payens, o mestre do Templo, mantivera correspondência com Bernardo de Clairvaux. Ainda existe uma das cartas que Bernardo lhe escreveu. Foi escrita mais ou menos na mesma altura em que Bernardo se viu envolvido no cisma papal. O pequeno monge devia andar muito atarefado. Tratava-se de uma longa carta, dirigida a Hugo de Payens, mas com a intenção de ser aberta a toda a gente. É conhecida como De Laude Novae Militae: "Em louvor da nova cavalaria".

"Uma, duas e três vezes, meu querido Hugo", dizia S. Bernardo, "me pedistes que escrevesse um bilhete de encorajamento para vós e para os os vossos irmãos e, como me está proibida a lança, que brandisse a minha pena contra tiranos hostis; e assegurastes-me que vos seria muito útil [...] Aguardei um certo tempo antes de vos responder, não porque não apreciasse o vosso pedido, mas sim para estar mais apto a satisfazê-lo. Na verdade, fiz-vos esperar o suficiente".

A carta mais do que justificava a longa espera: continha treze capítulos de louvor aos Templários, de mistura com ácidas críticas a cavaleiros seculares.

"Apareceu uma nova cavalaria na terra da Encarnação, uma cavalaria que trava uma batalha dupla, contra adversários de carne e osso e contra o espírito do mal. Não considero uma coisa maravilhosa que esses cavaleiros resistam a inimigos físicos com força física, porque isso, bem sei, não é raro. Mas empunham armas com forças do espírito contra vícios e demónios, e a isso chamo não só maravilhoso, mas também digno de todo o louvor dado a homens de Deus [...] O cavaleiro que tanto protege a sua alma com a armadura da fé, como cobre o seu corpo com uma cota de malha, é deveras sem medo e está acima de toda a censura. Duplamente armado, não teme homens nem demónios".

Entre todos quantos conheciam os Templários, havia alguns que não podiam conciliar as ideias de um homem religioso e da guerra; na lei canónica e no sentimento comum, era sem dúvida homicídio; mas Bernardo, com diplomático sofisma, distinguia entre o homicídio cometido por um cavaleiro secular e aquilo a que chamava malicídio de um cavaleiro santo, que tinha de matar homens para matar o mal. Ver o inimigo como a encarnação do mal foi a partir de então a ideia percursora de toda a propaganda militar, e produziu tanto efeito no século de Bernardo como no nosso.

O desprezo de Bernardo pelos cavaleiros comuns não conhecia limites; eram tão frívolos e vaidosos como os cavaleiros templários eram sérios e dignos de louvor.

"Estorvais os vossos cavalos com seda e cobris a vossa armadura de arrebiques indescritíveis. Pintais as vossas lanças, os vossos escudos e as vossas selas. Os freios das vossas rédeas e os vossos estribos estão incrustados de ouro, prata e pedras preciosas. Com pompa vos enfeitais para a morte, e cavalgais apenas para a ruína [...] São tais adornos próprios de um cavaleiro ou enfeites espalhafatosos de mulheres? Ou talvez penseis que o ouro desviará as armas do vosso inimigo? Que as pedras preciosas serão poupadas? Que a seda não pode ser trespassada? Há três coisas essenciais a um cavaleiro em combate: deve estar alerta para se defender, saltar rápido para a sela e ser pronto no ataque. Mas vós - vós, ao contrário, como mulheres, tendes o cabelo tão comprido que não podeis ver; as vossas roupas são tão compridas que vos roçam pelos pés; ocultais as vossas mãos frágeis e delicadas em enormes mangas... e depois, assim vestidos, ides lutar pelas coisas mais vãs e ridículas!"

A vaidade só tem êxito quando é tomada a sério. A opinião que Bernardo tinha dos cavaleiros seculares era tão clara, tão inocente e tão embaraçosa como a da criança que viu através da "roupa nova" do imperador. O contraste com os Templários dificilmente poderia ser maior. As últimas barreiras foram afastadas e em toda a parte as pessoas clamaram pela ajuda aos Cavaleiros Santos».

Stephen Howarth («A Verdadeira História dos Cavaleiros Templários»).


«O ano de 1156 marca o regresso da Terra Santa de uma personagem que na altura já era um herói nacional da terra portuguesa e que, depois da sua morte, passará a ser legendário.


Estátua de D. Gualdim e a torre da Igreja de S. João Baptista.



Gualdim Pais nasceu em Bragança, mas as suas origens são bastante imprecisas. Foi aluno no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, e muito jovem ainda ficou ao serviço do futuro rei, Afonso Henriques, que ajudou juntamente com os seus irmãos de armas, os cavaleiros Mem Ramires e Martim Moniz, em todas as batalhas travadas contra os Mouros com vista à conquista do Reino. Evidenciou-se na tomada de Santarém, em 1147, e, mais tarde, na conquista de Lisboa, em 1149, antes de partir para a Palestina, onde participou no cerco de Gaza, em 1153.

Os seus dotes de guerreiro e chefe aumentam ainda mais o prestígio que lhe é conferido pelas qualidades notáveis de combatente e de organizador. A estada no Oriente aperfeiçoa uma experiência militar já confirmada e, quando regressa da cruzada, Gualdim Pais sabe perfeitamente qual a missão que o espera. Não tarda a receber o título de Grão-Mestre provincial da Ordem dos Templários em Portugal, sendo assim confirmada oficialmente a missão para que fora destinado.

Alguns anos antes, enquanto Afonso Henriques se preparava para travar a famosa Batalha de Santarém, São Bernardo deu-lhe a conhecer que, em sonho, vira a Virgem Santa revelar-lhe a vitória do rei.

Imediatamente, Afonso Henriques promete oferecer a Clairvaux as terras e subsídios necessários para a construção de uma grande abadia, caso obtenha essa vitória decisiva. A revelação do sonho torna-se realidade e o rei mantém a promessa: São Bernardo vai pessoalmente a Alcobaça, acompanhado por cinco monges arquitectos encarregados de delimitarem os terrenos necessários para a fundação, cuja primeira pedra será colocada pelo próprio soberano.

Mas a implantação de um mosteiro em Alcobaça necessita de forte protecção militar, de que são encarregados os Templários, que já possuem alguns castelos na região. No entanto, a construção do Mosteiro de Alcobaça não poderá iniciar-se antes de estar perfeitamente garantida a segurança total dos bens cistercienses.

Afonso Henriques doa então à Ordem dos Templários todas as terras situadas entre Santarém e Tomar. Gualdim Pais é encarregado de elaborar a cintura defensiva que rodeia os bens de Clairvaux e que ao mesmo tempo reforça a protecção das linhas portuguesas contra as incursões árabes.

Tomar será a chave estratégica que permitirá opor resistência a qualquer ataque vindo da fronteira andaluza e vigiar a estrada de Coimbra, artéria vital do Reino. No dia 1 de Março de 1160, Gualdim Pais inicia a construção do Castelo de Tomar, reforçado um pouco mais tarde, em 1171, pelo Castelo de Almourol, edificado no meio do Tejo, e pelo Castelo de Bode, no rio Zêzere, castelos estes que são dois bastiões de vigilância das águas e dos territórios. A protecção completa-se com os castelos de Pombal, Penela, Castelo Branco, Idanha e Cera.

Perto de Óbidos, reconquistada em 1148, é erigido um bastião portuário com a finalidade de suster qualquer ataque marítimo. O porto de Serra de El-Rei desapareceu totalmente. Invadido por aluviões, está agora situado a dez quilómetros para o interior.

Tomar, símbolo templário, corresponde simultaneamente aos imperativos ditados pelas exigências estratégicas da política territorial e religiosa contra os infiéis. Mas a charola e a cúpula de oito arcos ogivais da capela octogonal, réplica do Rochedo de Jerusalém, contêm o Tabernáculo de Ouro e a cidadela passa a ser a guarda dos mistérios da génese templária, germe fecundo de um futuro brilhante.

Devido às suas qualidades pessoais de bravura, à sua acção incansável e às suas realizações, Gualdim Pais representa o tipo ideal do templário cuja memória permanece fervente em terra portuguesa. Representa até o iniciado perfeito, capaz de trabalhar com presciência para o futuro do seu país; os seus sucessores limitar-se-ão a aperfeiçoar a obra que iniciou.

Castelo de Tomar



Localização de Tomar




Convento de Cristo em Tomar



Charola do Convento de Cristo







Janela do Capítulo no Convento de Cristo





Quando regressa da Terra Santa, passaram-se trinta e quatro períodos de trinta e quatro anos desde o início da era cristã e o destino dá-lhe também trinta e quatro anos para levar a cabo a missão de que foi pessoalmente incumbido. Terá consciência destes factos? As viagens enriqueceram os conhecimentos astronómicos que já tinha e a formação templária que possuía levou-o a dedicar-se a preliminares já confirmados antes de se lançar no amadurecimento de projectos mais longínquos».

Maurício Guinguand («O Ouro dos Templários»).


«Logo em 1308, pela Bula Regnans in Caelis, o Papa se dirigiu aos soberanos europeus, denunciando os alegados crimes dos templários franceses e ordenando a abertura de um inquérito aos de todos os reinos. No caso português, D. Dinis não só recebeu essa Bula, mas uma outra, intitulada Callidi serpentis vigil, expedida a 30 de Dezembro do mesmo ano, recomendando e pedindo mesmo a prisão dos templários portugueses, para serem entregues aos tribunais.

O Rei mandou-lhes de imediato instaurar um processo judicial, mas, agindo com notável circunspecção, tudo fez com delongas, dando tempo aos cavaleiros para prepararem a sua defesa. Nesse período quase todos fugiram ou esconderam-se, com a sua evidente protecção. Entretanto formou-se um tribunal, constituído pelo Bispo João de Lisboa, pelo jurista Mestre João das Leis e pelo Prior dos Franciscanos.

Nenhum templário foi preso, mas, por sentença de 27 de Novembro de 1309, todas as propriedades e bens templários reverteram para a Coroa, a começar pelas propriedades de Pombal, Soure, Ega e Redinha, mais tarde Idanha-a-Velha, Salvaterra do Extremo, Rosmaninhal, etc.

Um perigo se avolumava no entanto para a Coroa portuguesa, o de que, depois da extinção oficial da Ordem, o Papa e os Bispos pudessem reclamar a "herança" dos seus avultados bens, o que além de tudo o mais, pela transferência de castelos e praças fortes para fora da jurisdição real, podia colocar em risco a paz do Reino. Foi então que D. Dinis congeminou um entendimento com o seu genro, o Rei D. Fernando de Castela, que resultou na Convenção de Salamanca, de 21 de Janeiro de 1310, a que aderiu pouco depois o Rei D. Jaime II, de Aragão.

Esta aliança dos reis peninsulares revelava toda a consideração que tinham pelos templários. Era, no fundo, uma barreira levantada para a sua defesa e ao mesmo tempo para garantia dos direitos dos soberanos aos seus bens.

A inquirição ordenada por D. Dinis aos templários portugueses, à sua vida, aos seus costumes, às suas práticas e à sua fé, ilibou-os totalmente. Também os nossos Prelados, reunidos, os declararam inocentes de quaisquer crimes. E assim pouco a pouco, começaram todos a regressar à pátria, recebendo pensões sobre os bens penhorados e sendo tratados com respeito por toda a gente, como "antigos Templários" (quondam Milites).

A aliança dos reis peninsulares foi extraordinariamente efectiva. Assim, quando a Ordem do Templo foi extinta, em 1312, concedendo-se muitos dos seus haveres aos Hospitalários, o Papa abriu uma excepção em favor dos três soberanos, D. Dinis, D. Fernando e D. Jaime II, fixando um prazo para concertar com a Santa Sé a aplicação dos bens. Para entretanto os administrar em Portugal, o Papa nomeou o Bispo do Porto, D. Estevão, personalidade de ambicioso que anteriormente tivera o favor real, mas que se mostrava agora indigno da sua confiança. Por isso o nosso monarca rejeitou tal nomeação e, pondo os tempos entre os males, foi atrasando as negociações.

E, quando a Bula de suspensão foi enfim publicada, já não podia ter entre nós qualquer efeito. Os cavaleiros haviam desaparecido; os bens estavam em poder de D. Dinis; o administrador do Papa achava-se repudiado. Os hospitalários não podiam ter a ousadia de chamar a si os territórios templários.




Cruz da Ordem de Cristo








Não cessaram porém as pressões da Ordem de S. João do Hospital, de alguns Bispos e da própria Igreja de Roma, considerando-se com direitos à herança templária. D. Dinis não esquecia que o próprio Papa João XXII, em 1317, tinha tomado a liberdade de doar ao Cardeal Bertrand, um dos seus prelados favoritos, nada menos do que a povoação e o castelo de Tomar, com todas as suas rendas. No lance, como sempre habilíssimo, D. Dinis instigou o príncipe herdeiro e alguns nobres do reino a apresentarem um protesto, decisivo e formal. O cardeal desistiu da posse, para que estava autorizado por uma bula, e não se falou mais nisso.

Por outro lado, ao defender de forma tão sábia e eficaz os Templários em desgraça e ao conservar sem perdas, mesmo mínimas, todo o seu património, D. Dinis não fez como os seus pares de Castela ou de Aragão, que absorveram na Coroa todos os bens templários. Pelo contrário, tudo indica que, desde o princípio, teve a ideia preconcebida e o propósito de restaurar de algum modo a Ordem, que lhe prestara bons serviços e sobretudo na qual via uma força de primeira importância para os seus planos, se é que estes não tinham uma das suas fontes principais na própria herança espiritual da Ordem.

Não o soube a tempo Dante Alighieri, que no Canto XIX do Paraíso, na Divina Comédia, condena duramente o de Espanha (provavelmente D. Fernando IV, de Castela e Leão) pela sua luxúria e vida de moleza, os reis de Aragão, Sicília e Maiorca (provavelmente Jaime II e Frederico II), cujas obras ignóbeis (...) desonraram uma raça ilustre e duas coroas, e ainda o nosso D. Dinis, também por obras ignóbeis.

Eram os reis peninsulares que tinham assinado o pacto de guardar os bens templários, resistindo às pressões de Clemente V para a sua absorção no património eclesiástico, através dos Hospitalários ou dos Bispos. Mas Dante foi duplamente injusto para o Rei português. Não se sabe exactamente quando concluiu, no exílio, a sua Divina Comédia. Os primeiros Cantos, o Inferno e o Purgatório, terão sido escritos entre 1290 e 1313. O Paraíso, muito possivelmente entre 1313 e 1317-1320, isto é, nos últimos anos da vida do grande poeta e pensador, que morreu em 1321. O certo, contudo, é que, se foi tão severo para com D. Dinis, associando-o a outros reis, foi por o ter julgado, como eles, um ambicioso, que se apropriou para seu proveito dos bens dessa Ordem pela qual tinha particular reverência.

Não teve Dante tempo para saber que, ao invés de ter acrescentado a sua fortuna com as propriedades e tesouros templários, D. Dinis foi o Príncipe justo e sábio (denominação pelo poeta reservada para os habitantes, no Paraíso, do Sexto Céu ou Céu de Júpiter) que salvou a Ordem dos Templários, que resgatou e restaurou todos os cavaleiros do país e, mais do que isso, que preservou o seu legado, cumprindo-o em superabudância e dando-lhe um sentido amplificante e universal ao transformá-la na Ordem de Cristo.

Sampaio Bruno tocou neste ponto, embora ao de leve, no seu artigo D. Dinis e os Templários, postumamente inserido no livro Os Cavaleiros do Amor, ao escrever que se Dante, tendo acabado os seus dias em 1321, conhecimento teve da nobre conduta do Rei português, houve de levar com ele o desgosto de ter mal-entendido um benfeitor dos seus confrades».

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério», II).


«Com a mesma espontaneidade e obediência com a qual os Templários castelhanos se prestaram à entrega das suas fortalezas, deram mostras da maior docilidade de cada vez que foram requeridos para prestar declarações e ser interrogados por bispos e inquisidores no reino castelhano-leonês. O papa Clemente V tinha encarregado especialmente os arcebispos de Toledo e de Santiago de Compostela e o bispo de Sigüenza de, em conjugação com um inquisidor apostólico, frei Aimerico de Placência, da Ordem dos Predicadores, disporem os lugares e o momento mais apropriado para levar a cabo os interrogatórios. Estes tiveram lugar em Medina do Campo, Alcalá (1309), Toledo (1310) e Santiago, aonde foram acorrendo disciplinadamente os cavaleiros do Templo para responder às acusações que se reflectiam no interrogatório pontifício. O resultado, segundo estava previsto, iria engrossar a documentação que devia ser apresentada no concílio-geral que o papa vinha anunciando desde 1309 e que não se celebraria até 1312, em Viena. Mas o resultado deveria unificar-se depois de todos os interrogatórios se apresentarem num concílio provincial prévio a celebrar em Salamanca, que foi convocado para 15 de Julho de 1310 e que, confirmando o resultado dos tribunais locais, declarou todos os templários do reino, sem excepção, livres de todas as culpas que se lhes imputavam. Alguns dos interrogatórios apenas reflectiam certas faltas consideradas menores, que respondiam a costumes ancestrais de carácter supersticioso, que os Templários - ou alguns deles, pelo menos - tinham continuado a praticar, como pintar cruzes nos estribos dos cavalos para que, ao serem pisadas ao montar, protegessem o ginete dos perigos que o podiam ameaçar na batalha.



Brasão de Armas do Reino de Portugal (1247).




A propósito destes interrogatórios e destes concílios, convém recordar que, no organigrama do Templo, e apesar de se tratar de distintos reinos, Castela e Portugal constituíam uma única província templária. Os Templários portugueses, contudo, quase não se apresentaram para serem interrogados pelas comissões de inquérito castelhanas. Pelo contrário, o rei D. Dinis, que se limitou a fingir que retirava os bens à Ordem, conforme ordenavam as bulas papais, esperou pacientemente que um novo papa substituísse Clemente V e, à morte deste, a solicitar ao seu sucessor, João XXII, através de um enviado - que era, e não casualmente, um templário, João Lourenço -, permissão pontifícia para fundar uma ordem monástica que se chamaria de Cristo e que não só acolheria todos os Templários portugueses, mas também nasceria com o dote acrescentado de todos os bens que tinham sido oficialmente arrebatados à ordem por desígnio papal.

O caso português é atípico em toda a aventura templária, porque aquele reino foi o único de toda a Cristandade que não se incomodou em interrogar os seus Templários, procurando possíveis culpas e hipotéticas heresias mas que, de facto, prolongou sine die a sobrevivência do Templo, muito simplesmente mudando o nome da ordem e fazendo o simulacro de assumir outra regra, a de Calatrava, que, por certo, desde a sua fundação navarra por Raimundo de Fitero, se tinha guiado por umas ordenações cistercienses paralelas às que a Ordem do Templo acolhera na sua regra oficial.

É necessário reparar que do Templo português se conservou uma parte seguramente fundamental da documentação, que foi zelosamente guardada pelos seus sucessores da Ordem de Cristo e que se converteria com o tempo no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mas essa documentação, como é habitual, contém lacunas que parecem muitas vezes inexplicáveis e que introduzem os estudiosos na suspeita fundada de que a Ordem fosse em Portugal ainda mais poderosa e influente do que os documentos revelam. Entre essas lacunas existe uma especialmente suspeita: a de não nos dar notícia alguma sobre a considerável quantidade de frades com apelidos franceses (alguns apenas transformados) que apareceram incorporados na Ordem de Cristo a partir do próprio momento da sua constituição. O silêncio, no entanto, faz pensar com certo fundamento que Portugal, possivelmente através do porto de La Rochelle, acolheu bastantes dos escassos Templários que conseguiram escapar ao cerco sincronizado montado por Filipe IV, o Belo, e que, uma vez no novo destino, sem serem sequer remotamente incomodados por qualquer tribunal, colaboraram activamente na transformação formal do Templo na nova Ordem de Cristo, a qual, de facto, poderia ser considerada, perante a multiplicidade de tentativas espúrias e escassamente documentadas, como a verdadeira herdeira de, pelo menos, uma parte fundamental do ideário templário.

(...) há indícios que confirmam que o Templo teve amplos conhecimentos em matéria de navegação e em cartas marítimas que lhe permitiram reunir uma importante frota que não só lhe serviu para alcançar os portos mediterrânicos da Terra Santa e do Egipto como também lhe permitiu adentrar-se pelo Atlântico a partir das docas que controlava em França, Galiza e Portugal. A tradição templária foi fielmente continuada pela Ordem de Cristo portuguesa, que, segundo indiquei, noutro lugar, fundou sob os seus auspícios a escola náutica de Sagres, situada na ponta peninsular do cabo de São Vicente, para trabalhar na qual recorreram aos serviços dos melhores desenhadores de cartas marítimas da época, entre os quais se destacavam, a considerável distância dos restantes, alguns membros e famílias judaicas maiorquinas, como a dos Cresques, que viveram na ilha balear e tinham a sua casa praticamente anexada aos muros da dos Templários na capital. Daquela escola náutica saíram as cartas de navegação utilizadas pelos primeiros exploradores atlânticos portugueses, impulsionados pelo entusiasmo de D. Henrique, o Navegador, que foi o grão-mestre da Ordem de Cristo. Mas existem também bem fundamentados indícios de que aquelas cartas foram conhecidas por Cristovão Colombo que, certamente, enquanto se discutia o seu plano na Junta de Salamanca, realizou uma misteriosa viagem a La Rochelle, antigo porto templário - de que saiu a expedição canária de Jean Bethancourt -, da qual regressou a tempo de a Junta determinar que era viável o projecto que o futuro almirante lhe tinha apresentado.

Naturalmente, trata-se apenas de indícios. Mas são indícios bastante coerentes para nos fazerem suspeitar, com fundamento, de que o Templo não só colocou a Guerra Santa como meta e acesso à teocracia que projectava, como também penetrou, ou pelo menos tentou penetrar, em outros caminhos paralelos, através de saberes que podiam contribuir para que o seu plano fosse realizável e tivesse garantias de êxito em todos os campos. Não existem dúvidas de que o conhecimento - e sobretudo esse outro tipo de conhecimento que os poderes instituídos tendem a proibir, designando-os, conforme as circunstâncias, como inoperantes ou como satânicos - faz sempre parte dos grandes projectos concebidos com o objectivo de conquistar o mundo, pois essa conquista, quando se apresenta a níveis totais, nunca é só militar, mas também se deve coroar com uma mudança na consciência dos conquistados, para que se adaptem ao novo paradigma colocado pelo colectivo conquistador».

Juan G. Atienza («A Herança dos Templários. A história oculta do Templo na Idade Média Peninsular»).







«Se havia uma doutrina secreta ligada aos Descobrimentos, as causas que, em geral, se lhes apontam vêm a ter um valor secundário, importante no seu plano - económico, religioso ou outro - , mas incapaz de dar a verdadeira razão. Do nosso ponto de vista, tudo se integra num processo que vem de longe (pelo menos, desde a fundação da nacionalidade), cujo momento fundamental e decisivo se deve situar na queda dos Templários.

O que é que permitiu que, em Portugal, a Ordem da Milícia do Templo continuasse a existir coberta pela Ordem da Milícia de Cristo? Este facto simples: Portugal é a Ordem do Templo até D. Manuel I e desde a sua origem.

Só assim se explica que a cruz da Ordem simbolizasse a Pátria nos templos e nas caravelas.

Nos romances medievais de cavalaria, refere-se uma terra do Ocidente, junto ao mar, a terra de Anfortas ou Afonso, o Rei Pescador, onde estaria o Graal, símbolo da sabedoria iniciática, de que os Templários seriam os misteriosos guardiões. Pode suspeitar-se que, embora o Grão Mestre visível da Ordem estivesse em França (na altura de destruição da Ordem chama-se Jacques de Molay), fosse aqui em Portugal onde realmente se ocultasse o seu Mestre invisível.

É inútil procurar nos documentos utilizados pelos historiadores a prova do que se avança. O que estava tão hermeticamente guardado não poderia, certamente, aparecer em relatos de cronistas e de frades que talvez nada sabiam do assunto ou, se sabiam, não teriam qualquer interesse em divulgá-lo. Só em palavras cobertas alguma coisa poderia vir de dentro para fora e é por isso que documentos como o "manuelino", em que as palavras estão caladas e somente falam para quem sabe e quer pôr a demanda, fazer a pergunta, são afinal os documentos onde se conta a verdadeira história. Deste ponto de vista, parece-nos ser útil interrogar também a poesia dos trovadores.

A pergunta foi feita no estrangeiro. Notáveis intérpretes, como Gabriel Rosseti, Eugène Aroux, Denis de Rougemont, Otto Rahn e muitos outros estabeleceram de maneira decisiva, a ligação da poesia medieva ao Sul da França com os cátaros e com os Templários. Esqueceram, como em geral sempre acontece até com assuntos em que Portugal desempenha um papel dominante, a nossa poesia medieval. Não puderam, por isso, observar o facto importantíssimo, até para defesa da tese que sustentaram, que, vinte anos depois da cruzada católica contra os albigenses, que silenciou para sempre, no Sul da França a voz dos trovadores, foi posta em movimento a corrente dos poetas galegos e portugueses, durante cem anos activa à queda dos Templários».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).


«A reconquista cristã da Península Ibérica, operada de norte a sul, significa não só a submissão dos Árabes mas também a dos Judeus; não podemos, portanto, dá-la por concluída antes de 1498. Para alguns autores espanhóis, esta reconquista religiosa deveria ser completada pela unificação política dos cinco reinos cristãos, o que se operou só no século seguinte, em 1580. Convém comparar a data em que os Árabes foram expulsos do Algarve, 1260, com a de 1492, referente à conquista de Granada pelos Reis Católicos. A poesia dos trovadores, que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tem origens imprecisas que tanto podem ser atribuídas à poesia popular árabe como à poesia provençal».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).


«Poder-se-á provar que a poética árabe tenha realmente influenciado a cortezia? Renan escreveu em 1863: "Um abismo separa a forma e o espírito da poesia românica da forma e do espírito da poesia árabe". Um outro sábio, Dozy, declara nessa época que se não provou a influência árabe sobre os trovadores "e que ela não será provada". Esse tom peremptório faz sorrir.

De Bagdade à Andaluzia, a poesia árabe é só uma, pela língua e pelo contínuo intercâmbio. A Andaluzia está em contacto com os reinos espanhóis, cujos soberanos se ligam aos do Languedoc e Poitou. O florescimento do lirismo andaluz nos séculos X e XI é-nos hoje bem conhecido. A prosódia precisa do zadjalé a mesma que reproduz o primeiro trovador, Guillaume de Poitiers, em cinco dos onze poemas seus que nos restam. "Provas" da influência andaluza sobre os poetas corteses nem é preciso procurá-las já [cf. os trabalhos de um autor americano, A. R. Nykl, a sua tradução do Colar da Pomba, d'Ibn Hazm  que é uma teoria do amor cortês árabe - e a sua obra de conjunto Hispano-Arabic Poetry and its relations with the old Provençal Troubadours, Baltimore, 1946. Ver também as obras de Louis Massignon, de Henry Pérès, de Émile Dermenghem, de Menendez Pidal, de Karl Appel, etc., etc.]. E poderia aqui encher páginas inteiras de citações de Árabes e Provençais, que os nossos grandes especialistas do "abismo que separa" teriam por vezes dificuldade em adivinhar de que lado dos Pirenéus teriam elas sido escritas. Está entendida a causa. Mas eis o que me importa.


Denis de Rougemont






No século XII, no Languedoc como no Limousin, assiste-se a uma das mais extraordinárias confluências espirituais da História. Por um lado, uma grande corrente religiosa maniqueísta, que havia tido a sua origem no Irão, subiu pela Ásia Menor e pelos Balcãs até à Itália e à França, trazendo a sua doutrina esotérica da Sophia-Maria e do amor pela "forma de luz". Por outro lado, uma retórica altamente requintada, com os seus processos, seus temas e personagens constantes, suas ambiguidades, renascendo sempre nos mesmos lugares, e seu simbolismo, enfim, remonta do Iraque dos Sufis platonizantes e maniqueizantes até à Espanha árabe e, atravessando os Pirinéus, encontra no Sul da França uma sociedade que, parece, estava à espera desses meios de linguagem para dizer o que ela não ousava nem podia confessar nem na língua dos clérigos nem na fala vulgar. A poesia cortês nasceu deste encontro.

E é assim que na última confluência das "heresias" da alma e das do desejo, vindas do mesmo Oriente pelas duas margens do mar civilizador, nasceu o grande modelo ocidental da linguagem do amor-paixão».

Denis de Rougemont («O Amor e o Ocidente»).


«Entre os glaciares dos Alpes e os Pirenéus ensolarados, das margens do Loire plantadas de vinhas aos paradisíacos jardins em socalcos da Côte d'Azur e da Côte Vermeille, desabrochou no início do nosso milénio uma civilização brilhante, amável, espiritual, onde a poesia e o amor, a Minne, ditavam leis. Diz-se que essas leis, as leys d'amors, foram dadas ao primeiro trovador por um falcão pousado no ramo de um carvalho dourado.

As leys d'amors continham trinta e uma prescrições. Facto singular, dispunham como princípio supremo que a Minne excluía toda a ideia de amor carnal ou de casamento. A Minne representa a união de almas e corações... O casamento significa a morte da Minne e da poesia. O amor, simples paixão, esvai-se depois do prazer sensual. Com a verdadeira Minne no coração, não se deseja o corpo da bem-amada, mas o seu coração. A verdadeira Minneé pura e imaterial. A Minne não é o amor, como eros não é o sexo.

"Os amantes devem ser de coração puro, não pensarem senão na Minne. A Minne não é pecado, é uma virtude que torna bons os maus e os bons ainda melhores. E d'amor mou castitaz (e do amor vem a castidade)". Assim falava Guillaume Montanhagol, trovador de Toulouse.

Foram os trovadores que impuseram as leys d'amors. Nas chamadas "cortes de amor", os cavaleiros e rapsodos culpados de infringir as leis da Minne eram julgados pelas damas.

O Minnedienst, serviço de amor, homenagem rendida à graça e à beleza, era designado pelos trovadores pelo termo domnei (de domina, senhora). O domnei concedia ao domnejaire, servidor da Minne, a joy d'amour, anelo amoroso do poeta. Era honrado o que compunha as Minnelieder mais belas, e, uma vez homenageada a sua dama, o cantor tornava-se seu vassalo e tributário, ficava ao seu dispor como um servo. Ajoelhado aos seus pés, o trovador jurava fidelidade eterna, como ao senhor suserano. Como prenda de amor, a dama oferecia ao seu paladino-poeta um anel de ouro, pedia-lhe que se levantasse e beijava-o na fronte. Era o primeiro beijo, em geral, o único... chamado Consolament. E d'amour castitaz. Alguns padres provençais chegaram a benzer essa união mística e a pô-la sob a protecção da Virgem Maria.

No norte da França, mais ainda na Itália e principalmente na Alemanha, o cavaleiro não conhecia outra pátria que a sala de armas, a justa e o campo de batalha. Não se concebia cavalaria sem nobreza. Só era nobre o cavaleiro que partia para a guerra no seu corcel e com os seus homens de armas montados. Nas terras occitanas, o burguês ou o paisano podiam aceder à cavalaria se eram bravos e leais e capazes de comporem rimas. Os atributos do cavaleiro occitano eram a espada, a palavra e a harpa, acessíveis a todos. O plebeu com dom de palavra podia ser enobrecido, o operário poeta podia ser armado cavaleiro.

"O homem bem nascido deve mostrar-se bom guerreiro e anfitrião generoso, dar a maior importância a uma bela armadura, ser elegante e polido. Quanto mais virtudes tiver o nobre, mais perfeito cavaleiro será. Os burgueses também podem ter virtudes cavaleirescas. Mesmo não-nobres de nascença, podem sê-lo no sentimento. Há uma virtude, porém, que deve ser comum a todos, nobres e burgueses: a fidelidade. O pobre pode suprir as suas carências com o discurso cortês e com a delicadeza. O que, pelo contrário, não sabe ser nem dizer, não terá a minha consideração, não é digno dos meus versos", diz o trovador Arnaud de Mareuil, ele próprio filho de pais pobres e humildes, que começou como copista e chegou a poeta na corte do visconde de Carcassonne e Béziers.






Otto Rahn



Parzifal




Cruz cátara



Vemos, pois, que, grande ou pequeno, qualquer um se podia tornar cavaleiro se era valente e honesto, e, inclusivamente, servidor da Minne e poeta. Os cobardes e grosseiros são indignos da cavalaria, não merecem corcel, têm a mula.

"Afastai-vos dos tontos e fugi dos discursos malévolos. Se quereis fazer o vosso caminho no mundo, sede magnânimos, francos, corajosos, estai sempre prontos a falar de coisas corteses. Se não tendes dinheiro para vestir bem, cuidai ao menos que tudo esteja limpo, em especial os vossos sapatos, o vosso cinto e o vosso punhal. Nada agrada mais, nada confere melhor aparência. O que pretende chegar a alguma coisa ao serviço das damas, deve ser hábil em tudo, de tal modo que a sua dama nunca lhe descubra defeitos. Esforçai-vos em agradar aos amigos e conhecidos da vossa senhora, para que ela só ouça dizer bem de vós. Isso exerce uma influência muito especial nos corações. Quando a vossa dama vos receber, não hesiteis em dizer-lhe que conquistou o vosso coração. Se vos conceder o que lhe pedis, que ninguém saiba. Pelo contrário, lamentai-vos perante todos de nada terdes conseguido, as mulheres não suportam tagarelas e idiotas. Agora, já sabeis como abrir o caminho neste mundo e como agradar às damas...", ensina-nos o trovador Amanieu des Escas.

Os trovadores eram homens alegres. Fora do serviço dedicado à sua dama, que importava, afinal, se pelo caminho se enamoravam de uma cara bonita e não chegavam à noite ao castelo onde deviam cear e dormir? O céu do Midi é aprazível; basta estender a mão para se colherem frutos e a água das fontes é, para o que a bebe, tão agradável como o vinho de Roussillon.

As leys d'amors prescreviam que a Minne devia ser pura como uma oração. Nas veias dos homens do sul corre sangue quente; antes de envelhecerem, os trovadores eram jovens, e as mulheres idosas não procuravam paladinos.

A poesia era a voz melodiosa da cavalaria. A sua língua amável, o provençal, primogénito dos idiomas neo-latinos, era matizada de retalhos iberos, gregos, latinos, celtas, góticos e árabes como a trama de um tapete multicolor. Da França, da Itália, da Catalunha, de Aragão, de Portugal, os trovadores iam a Montpellier, a Toulouse, a Carcassonne e a Foix aprender rimas novas e a medirem-se com reis e príncipes poetas, Ricardo Coração de Leão, Afonso de Aragão, Raymond de Toulouse.

Quem não conhece o inteligente e lutador Bertrand de Born, que Dante vê decapitado nos infernos, e Arnaud Daniel, eterno amoroso que no Purgatório"canta a chora e olha com desolação a loucura passada", suplicando ao grande florentino que pense sempre nele? Ou os seus pares, cada qual mais louco e dotado que os outros, Bernard de Ventadour, Gaucelm Faidit, Peire Vidal, Raymond de Miraval, o melancólico Arnaud de Mareuil, discípulo favorito de Arnaud Daniel e desditado paladino da condessa de Carcassonne?...».

Otto Rahn («Cruzada contra o Graal»).


«No Islão, a Guerra Santa - a jihad - era um projecto consubstancial ao ensinamento alcorânico, ao contrário do que sucedia no ambiente cristão, em que os Evangelhos apostavam, decididamente, na paz e na concórdia entre os seres humanos.

No mundo islâmico, tanto no Oriente como no Magrebe e no Al Andaluz, os ribats eram conventos fortificados onde se concentravam grupos de monges guerreiros especialmente preparados para integrar os corpos de elite dos exércitos muçulmanos. Ali se praticavam ao limite os ensinamentos corânicos, ao mesmo tempo que se preparava conscienciosamente os professos para aquela Guerra Santa que o Profeta tinha declarado como meta fundamental do Islão. A dita guerra, tal como era concebida pelos adeptos do ribat, era vista, em princípio, como uma purificação que se traduzia em luta consigo mesmo e contra as paixões próprias da condição humana, para se transformar depois em guerra aberta em prol do triunfo universal da ideia islâmica. Ao ribat contudo, não chegavam os devotos guerreiros para aí ficarem encerrados o resto da vida, como os monges cristãos, mas para receber a sagrada iniciação guerreira que permitiria aos adeptos enfrentar os inimigos da fé numa batalha que tinha muito de mística, de modo que matar e morrer por ela convertia-se num acto transcendente emanado directamente da vontade divina.

Ainda que crónicas contemporâneas não costumem admiti-lo, os guerreiros cristãos, na sua luta contra os mouros peninsulares, deviam ter conhecimento daqueles monges-soldados do Islão. A toponímia, por seu lado, deixou-nos muitos nomes que revelam lugares onde estiveram instalados esses conventos: San Carlos de la Rápita, na desembocadura do Ebro, Calatrava (transformação de Qalat aç-Ribat) e a Rábida onubense, assim como os nomes sorianos de Rabanera e Los Rábanos, dão conta de que na Idade Média peninsular houve monges-guerreiros islâmicos que defrontaram as tropas cristãs.






Estátua equestre de Saladino na Cidade Antiga de Damasco, na Síria.




(...) Algo mais do que notícias em segunda mão devem ter tido os cruzados da eficácia e valentia religiosa dos monges-soldados dos ribats muçulmanos, porque a sua fama e até algum esforço primário de imitação começaram a expandir-se, tanto entre os que ficaram na Terra Santa após a tomada de Jerusalém como entre os que regressaram à sua pátria uma vez cumprida a missão, muitos deles influenciados pela sacralidade da aventura que tinham acabado de viver.

Ainda que se saiba que o papa Urbano II vetou tacitamente aos espanhóis a sua intervenção na cruzada, alegando que as condições daquela convocatória já se davam na Guerra Santa que tinha lugar na Península sob os auspícios de Cluny, não é menos certo que numerosos cavaleiros e nobres, tanto castelhanos como catalães, navarros e aragoneses, acorreram ao chamamento, na sua maior parte integrados nas hostes de Raimundo IV, de Tolosa, casado com uma princesa castelhana que o acompanhou na empresa, a infanta Elvira, filha de Afonso VI. Também se afirma, por parte de alguns historiadores, a presença na Terra Santa, durante esta Primeira Cruzada, do conde Henrique de Borgonha, casado com Teresa, outra das filhas de Afonso VI e fundador do que seria o reino de Portugal, ainda que esta questão pareça duvidosa, à luz dos numerosos problemas que o conde teve de enfrentar na sua tentativa de tornar o mais independente possível o território que o sogro lhe legara.

Os cruzados peninsulares regressaram aos seus reinos originários imbuídos de lendas milagrosas e carregados de relíquias, entre as quais começaram a adquirir justa fama, passado algum tempo, as supostas imagens de Nossa Senhora esculpidas por São Lucas e, sobretudo, numerosos fragmentos da cruz em que morrera Nosso Senhor. Isso conta a tradição que aposta na participação na cruzada do conde de Portugal, a quem o próprio Godofredo de Bulhão teria oferecido numerosas relíquias e o imperador de Bizâncio nada menos do que um braço do evangelista São Lucas, que ainda hoje se venera na Sé de Braga. Prodígios deste teor contam-se igualmente, ainda que com mais laivos de certeza, do infante Ramiro, pai daquele que seria rei de Navarra com o nome de García Ramírez, o Restaurador, e genro do Cid Campeador pelo matrimónio que contraiu com a sua filha Elvira. O infante Ramiro lutou valentemente na cruzada e esteve na tomada de Jerusalém, por cuja Porta dos Leões entrou na cidade. A tradição conta que alcançou a piscina e que, no seu fundo seco, encontrou uma imagem de Nossa Senhora - executada, naturalmente, por São Lucas - e um fragmento do Lignum Crucis. Para albergar tais relíquias, encarregou no seu testamento o abade Pedro Virila, que o era do mosteiro de São Pedro Cardeña, de erigir uma igreja que se chamaria de Nossa Senhora da Piscina e que para custodiar o templo e venerar as relíquias se fundasse em seu nome uma casa-divisa ou confraria de devotos cavaleiros, de que fariam parte os seus descendentes e familiares e gente de bom berço, que se comprometeria a levar vida de caridade e a defender a fé dos seus inimigos, constituindo uma espécie de ordem cavaleiresca entregue à luta pela religião. Isto sucedia em 1110 e no testamento especificava-se que nunca poderiam entrar nela nem plebeus nem descendentes de muçulmanos ou de judeus, carentes todos eles do espírito aristocrático e devoto que aquela fraternidade exigia.

(...) O facto que creio objectivamente indubitável é que a Ordem do Templo se constituiu para um fim muito concreto; e que esse fim se manifestou discretamente desde o seu início - uma prova concludente disso é que despertou controvérsia e paixões, até mesmo ódios, a partir do próprio momento da sua constituição - e desenvolveu-se com altos e baixos de poder e de prestígio ao longo do processo, até um final que ocorreu por se ter posto em evidência - certa ou parcialmente falsa - um comportamento herético que a sociedade e os poderes do seu tempo não podiam consentir, aparentemente por ignorar as regras aceites, na realidade por constituir uma ameaça já evidente para a autoridade estabelecida e reconhecida.

O documento que acredita em primeira instância este projecto é a própria regra do Templo. Insistiu-se muito - e eu próprio caí nisso, arrastado pela insistência generalizada - em propor Bernardo de Claraval como autor da dita regra, tal como foi transmitida por Cister. Lendo-a atentamente surgem, todavia, determinadas pistas que indiciam que, com toda a probabilidade, o mestre de Claraval se teria limitado a corrigir ou a acrescentar algo que os próprios Templários tinham redigido em Jerusalém, tendo presentes os capítulos do código cisterciense, mas adaptando-os, por um lado, à circunstância guerreira da ordem templária, que tinha de ser adequada à sua natureza conventual - e não monástica - e, ainda que já de forma muito mais discreta, com os fins a longo prazo a que os fundadores se tinham proposto. Prova destas circunstâncias é encontrada no facto de o texto se ter transformado subtilmente desde a sua primeira aprovação, até ao ponto em que já se detectam diferenças substanciais entre a Regra Latina, que seria a adoptada no concílio de Troyes (1128), e a primeira versão francesa, de que se conservam manuscritos redigidos muito pouco tempo depois da oficialização da ordem. Igualmente, apreciam-se diferenças - subtis, mas importantes - com a posterior tradução da regra para uso dos Templários ingleses, italianos, castelhano-portugueses e catalano-aragoneses. Diferenças que, ainda que sejam em cifra, poderiam indicar-nos, mediante um estudo consciencioso, que o programa de actuação da ordem teve diferenças segundo o país no qual se estabelecia, do mesmo modo que existem ligeiras mas importantes alterações nos programas que hoje em dia são desenvolvidos pelas grandes multinacionais nos distintos Estados em que jogam os seus interesses

(...) Entre os elementos que deram forma às provas acusatórias do processo dos Templários figuram dois que muitos dos processados confirmaram com mais ou menos variantes. Um deles foi a presumível adoração de uma figura ou cabeça diabólica, sobre a qual ninguém se pôs de acordo no momento de fazer uma descrição apropriada e cujo suposto nome, baphomet, continua a despertar a curiosidade sobre o seu significado em muitos estudiosos. O outro referia-se à ofensa da cruz, na qual supostamente os noviços tinham de cuspir e renegar quando pronunciavam os seus votos de ingresso na ordem.




Comecemos por essa cruz. Os inquisidores, como é lógico, insistiram sobre este acto, que consideravam como o mais herético de quantos comprometiam os Templários e que contribuíram para a sua condenação. Alguns dos acusados deram respostas afirmativas a estas perguntas, outros disseram que, ainda que não o tivessem praticado pessoalmente, tinham ouvido falar dessa prática em alguma ocasião ou a tinham presenciado em cerimónias de que tinham sido meras testemunhas. Em qualquer caso, os textos que chegaram até nós sobre cerimónias de recepção na ordem, por cima de uma evidente ortodoxia, mostram-nos algo curioso: em nenhum momento destas cerimónias os textos citam Jesus Cristo ou o seu sacrifício na cruz, mas unicamente, Deus Pai e Santa Maria. Esta circunstância - se atendermos a que a ordem nasceu precisamente onde Jesus Cristo nasceu, viveu e morreu sofrendo a Paixão não deixa de ser significativa. Não tentemos encontrar provas que a motivem em documentos que eventualmente confirmem o que vou indicar, mas em circunstância templária, parcialmente conformada pela regra e pelos seus estatutos, leva-nos ao convencimento de que, em matéria devocional, os Templários tendiam a recusar, sempre que lhes fosse possível, a sacralidade do sacrifício crístico, cujo processo vital lhes parecia, sem dúvida, infinitamente mais digno de devoção do que o seu lado escatológico, sobre cuja circunstância a Igreja tinha erigido boa parte dos seus dogmas.

Assim, pois, a cruz, para o Templo, não era uma memória sacrificial, antes simbolizava as magnitudes cósmicas que já conformaram esse signo nos alvores da tradição arcana da Humanidade. Um significado que coincidia com a cruz grega vermelha e de braços iguais que acabou por ser, com ligeiras variantes, o signo de reconhecimento da ordem, uma forma muito distinta da que fora adoptada como senha vencedora da Igreja, tanto como símbolo como quando foi esquematizada nos templos da Cristandade. Os templos da Ordem, excluídas as capelas poligonais a que já fizemos menção, eludiram muitas vezes a planta de cruz latina, trocando-a por uma estrutura que, em muitos casos, poderia ser chamada - ignoro se tem um nome oficial concreto - de chave. São igrejas com uma girola que substitui o cruzeiro convencional e que, muito frequentemente, têm uma capela aos pés que imita, pela sua posição, os dentes de uma chave cuja parte superior seria constituída pela girola.

Sem ir mais além, para o que necessitaria de um longo estudo sobre os seus possíveis significados, parece evidente o facto de que o Templo sentiu - no plano do simbólico ou, pelo menos, do significativo - uma certa aversão em relação à cruz passional. Contudo, inclinou-se a carregar de significado a figura do Lignum Crucis, supostos fragmentos da cruz do Gólgota, expostos ou simplesmente guardados em relicários que tomaram a forma de cruzes patriarcais ou de dois travessões, aos quais conferem virtudes e capacidades milagrosas que em muitos casos, como o da chamada Cruz de Caravaca, se prolongaram popularmente até aos nossos dias».

Juan G. Atienza («A Herança dos Templários. A história oculta do Templo na Idade Média Peninsular»).





O Templo português: um caso atípico e único em toda a Cristandade


Criar um Estado a partir do nada


A questão já vinha de longe; nada menos que do instante em que os beneditinos clunicences penetram na Península e começaram a fazer o que queriam com a liturgia tradicional dos devotos e, na medida da sua influência, também com as decisões políticas dos seus governantes. Reinava em Castela e Leão Afonso VI, casado com Constança de Borgonha, a terra onde nasceu a reforma de Cluny, em cujo cenóbio se gerou aquela primeira ideia sinárquica de um Ocidente europeu fortemente regido pelos princípios teocráticos emanados de Roma, a cuja autoridade teria de se submeter toda a Cristandade, não só no aspecto religioso mas inclusivamente nas decisões fundamentais da alta política.

Ninguém parece querer atirar a primeira pedra. Todavia, a decisão tomada por Afonso VI de casar duas das suas filhas com condes borgonheses sempre me pareceu arranjo de sacristia, a vinculação concertada nos dois mosteiros, arranjar um elo de ligação que vinculasse definitivamente a terra castelhano-leonesa e, sobretudo, a margem atlântica peninsular a dinastias dedicadas ao ideal teocrático de Cluny. É curioso, em qualquer caso, que Urraca fosse destinada a Raimundo de Borgonha e que a filha bastarda, Teresa, casasse com o seu primo Henrique [eram ambos, por sua vez, sobrinhos de São Hugo, abade de Cluny]. E não é menos curioso que a outra filha, Elvira, contraísse matrimónio com Raimundo de Tolosa, destinado a ser um dos principais dirigentes da Primeira Cruzada. E até é curiosa a coincidência de que o único filho varão do rei Afonso, Sanchuelo, comprometido com a irmã de Al-Motamid de Sevilha, Zaida-Isabel - algo que raiava o cúmulo da frivolidade religiosa -, fosse morrer prematuramente na chamada batalha dos Sete Condes. deixando o destino do reino nas mãos de mulheres casadas com estrangeiros ligados a Cluny.

Prossigamos com as coincidências curiosas. Após os respectivos matrimónios, Urraca e Raimundo foram nomeados condes da Galiza e Teresa e Henrique condes de Portugal. Tanto o bispo português de Braga como o galego de Santiago eram eleitos entre monges clunicences. E muito em particular o bispo Gelmírez, que o foi de Compostela desde 1093 e foi o primeiro arcebispo eleito da terra jacobeia, mostrou sempre a sua repulsa às veleidades políticas de Urraca - sobretudo em virtude do seu segundo casamento com Alfonso, o Batalhador, de Aragão - e sua decidida inclinação por Alfonso Raimúndez, o futuro Afonso VII, o qual coroou rei da Galiza em 1111, vinte e cinco antes de aceder à coroa castelhano-leonesa.






Até 1095, o conde Raimundo de Borgonha, casado com Urraca, tinha sido conde da Galiza e de Portugal. Nesse ano passou a sê-lo só da Galiza, porque o seu primo Henrique contraía matrimónio com Teresa e recebia o condado português. Mas segmentação fez-se sem traumas nem protestos, após o convénio que firmaram os dois primos perante o monge Dalmas Geret, delegado do tio de ambos, Hugo de Cluny, no qual especificava que, no caso de Urraca e Raimundo se converterem em soberanos da coroa castelhana, Henrique e Teresa seriam donos, jure hereditario (ou seja, para eles e para a sua descendência), de Portugal, ainda que sob a soberania, já só nominal, dos monarcas castelhanos. Como vemos, algo a que ninguém poderia fazer o menor reparo.

Em três anos morriam Raimundo de Borgonha (1107), o infante Sancho, filho de Afonso VI e de Zaida (batalha de Uclés, 1108) e o próprio soberano (1109); cinco anos depois seria a vez do conde Henrique de Portugal, que tinha alargado consideravelmente o seu território à custa de numerosas conquistas aos muçulmanos. Era um momento de máxima tensão entre todas as forças políticas que pretendiam dominar o reino castelhano-leonês, mas o que parecia indubitável era que, apesar das dissensões e do estado de guerra civil aberta, nenhum dos elementos do conflito parecia disposto a ceder os direitos sobre Portugal, e muito menos Cluny, que tinha habilmente firmado a sua influência atlântica peninsular. Teresa, contudo, embora viúva, ignorou os deveres e os pactos contraídos e mal o marido morreu fez-se clamar rainha e, aparentemente - ainda que os historiadores não estejam de acordo quanto à data - chamava para  seu lado os Templários, mesmo antes de a ordem ser oficialmente reconhecida em Troyes, em 1126.

O Templo, como obra inspirada que foi na doutrina cisterciense, constituía um colectivo monástico-guerreiro visto com maus olhos por Cluny. Por seu lado, um condado português independente, susceptível de se converter em reino, era uma possibilidade política não admitida pelo todo-poderoso arcebispo compostelano Gelmírez, que já tinha provocado a ira dos súbditos do conde Henrique quando, em 1102, entrara à força no seu território para levar de Braga a Compostela as relíquias do monge San Frutuoso, uma acção que foi chamada pelos portugueses «o pio latrocínio». Não é estranho, nestas circunstâncias, que a rainha Teresa visse no Templo uma confirmação dos seus desejos e uma defesa tácita das suas intenções e, na Cister de Bernardo de Claraval, a tendência monástica que melhor se quadrava com os seus interesses. Calcula-se como muito provável a data de 1126 como a da entrada dos primeiros Templários em Portugal, e tem-se quase por seguro que naquele mesmo ano receberam em custódia a fortaleza de Soure e o lugar de Fonte Arcada. O primeiro mestre da ordem de Portugal foi Guillelme (talvez Guillaume) Ricard.

Ainda que não pudessem servir como força capaz de lutar contra cristãos, o Templo significava, no nascente Estado português, a tranquilidade de não ter de atender a duas frentes de batalha, a dos castelhanos e a do Islão. Por seu lado, os Templários viam, sem dúvida, a importância de se estabelecerem solidamente num país nascido do nada, com uma dinastia jovem e com vontade nacionalista, sobre a qual poderiam exercer uma influência mais eficaz do que em Castela e, sobretudo, poderiam conservar uma exclusividade que entre os castelhano-leoneses se afigurava muito mais difícil. O tempo dar-lhes-ia razão. Portugal chegaria a admitir, como esmola, a presença das ordens militares espanholas, sobretudo as de Santiago e Alcántara, nascidas na vizinha Extremadura, mas o Templo conservaria sempre a sua primazia em Portugal. O que essa primazia poderia significar para o projecto  templário vê-lo-emos mais adiante. Agora basta verificarmos com evidência os rapidíssimos avanços da influência templária, tanto com D. Teresa como, a partir de 1128, com o seu filho e herdeiro, Afonso Henriques, o qual, segundo confirma a Compostelana, «não se quis submeter à dominação do rei (Afonso VII), mas ergueu-se arrogante, logo que obteve o senhorio».

Os Templários tiveram de esperar até ao ano de 1137 para entrarem em acção. Antes, seguramente, limitaram-se ao seu papel oficial de guardiães da fronteira. Mas naquele ano assinou-se o tratado de Tui, pelo qual Afonso VII reconhecia a soberania do seu primo sobre todo o território português. Chegara o momento de empreender a recuperação da cornija atlântica. E ali estavam os Templários, dispostos a colaborar e, aparentemente, ali estava também em pessoa Bernardo de Claraval, recém-saído do conflito do antipapa Anacleto e glorioso profeta que anunciou a tomada de Santarém. Nos nove anos seguintes a ofensiva foi imparável, como se houvesse pressa em conquistar territórios antes que a máquina almóada se pusesse em marcha. Em 1146 tinha sido reconquistada a praça e com Santarém, Leiria e todo o território circundante entre os rios Mondengo e Tejo. Em 1149, com a colaboração de cruzados (Templários?) ingleses, conquistava-se Lisboa e em toda a área de conquista o Templo acumulava igrejas, conventos e castelos. Um Templário português, Gualdim Pais, distinguia-se como herói indiscutível daquelas acções guerreiras e, mal alcançada a vitória, partia para a Terra Santa, para receber a iniciação reservada às mais altas hierarquias da ordem.

Cerco de Lisboa, por Roque Gameiro


(...) Sem dúvida, o historiador gostaria de encontrar sempre a documentação suficiente que lhe permitisse abordar o estudo de um tema com todos os dados necessários, sem lacunas nem dúvidas e sem ter de recorrer a hipóteses carentes de apoio documental ou às eventuais tergiversações promovidas pelos cronistas que contaram os sucessos a partir de perspectivas cronológicas mais próximas, sujeitos, por isso, a pressões do mais diverso tipo, que os obrigavam a tomar partidos que hoje consideraríamos obsoletos. Infelizmente, continua a haver episódios da História que nunca conseguiram reunir a devida documentação, fosse porque tivessem passado despercebidos ou porque houvesse a concorrência de interesses para os ignorar ou para os julgar segundo critérios próprios. Assim aconteceu em Espanha com a Ordem dos Templários, cuja primeira penetração parece ter-se sumido em silêncios e contradições, permitindo com isso o aparecimento de hipóteses por vezes descabidas que, num momento ou noutro, chegaram a figurar como certezas em determinados ambientes: hipóteses que, por sua vez, configuraram atitudes, opiniões e tendências que só conduziram a confusões dificilmente superáveis, chegado o momento de estabelecer certezas impossíveis de fundar em dados objectivos.


Chauvinismo penibético

Vou contar uma mentira histórica na qual, de modo algum, pretendo que alguém acredite. Apenas quero que sirva para comprovar como atitudes que costumamos reprovar aos historiadores de outras terras nos podem também afectar. Mas também queria que tal mentira nos desse, se possível, a medida da importância que a Ordem do Templo teve nestas terras, até ao ponto de, num determinado momento, haver quem não se tivesse coibido de tergiversar a evidência histórica para estruturar uma aventura que, presumivelmente, caso se acreditasse nela, teria posto a Espanha, mais concretamente a Catalunha, como berço histórico - e, é de supor, ideológico - do processo templário.

A história chegou-me às mãos, por casualidade, através de uma pequena e quase desconhecida obra dos Templários, publicada em Burgos por uma editora já desaparecida e escrita por um autor com o qual, na altura, tentei inutilmente estabelecer contacto (1). Esse autor, investigando os manuscritos da Biblioteca Nacional, encontrou um do século XVII (2), no qual um tal D. Esteban Corbera descrevia ao conde de Guimerá a história e os pormenores que rodeiam o Lignum Crucis que se conserva na igreja de San Estéban de Bagá, nas beiras pirenaicas catalãs. Falei deste manuscrito e de quanto nele se referia a uma suposta história sobre as origens da Ordem do Templo, apresentando todos os dados e fontes de que me socorrera. Depois de a ter dado a conhecer, confirmei que outros a traziam também à luz como se tivessem acabado de a descobrir e nem sequer referiam o primeiro que a tinha revelado, à margem da confiança que esse autor pudesse merecer. Terei agora de a repetir, voltando uma vez mais a insistir na maneira como me chegou às mãos.

Apesar de não vir citado nem nos Anales de Zurita nem na obra de Fernández de Navarrete (3), o manuscrito em questão, fazendo-se, aparentemente, eco de uma tradição espalhada pela comarca de Bagá, conta que à Primeira Cruzada, e atendendo à chamada de Urbano II, acorreram os irmãos Hugo e Galcerán de Pinós, filhos do almirante da Catalunha e senhor de Bagá, e da sua esposa, Berenguela de Montcada, pondo-se às ordens do já citado Ramón IV de Tolosa e fazendo parte da campanha catalã comandada pelos condes de Rossilhão e da Sardenha. Na tomada de Jerusalém (1099), os irmãos Pinós lutaram e entraram na cidade pela porta chamada de S. Estevão e, posteriormente, o irmão mais velho, Hugo, uniu-se a outros cavaleiros cruzados para fundar uma confraria dedicada de corpo e alma à protecção dos peregrinos, à qual o rei Balduíno concedeu como sede uns edifícios situados nas dependências do antigo Templo de Salomão, pelo que os confrades passaram a chamar-se Templários, enquanto o seu fundador, convertindo em cabeça da ordem nascente, mudava o seu apelido para o do nome do seu povo originário, passando a chamar-se Hugo de Bagá, latinizado como Hugo de Baganis, ou Paganis, que os franceses rebaptizaram como Hugo de Payons ou Payns. Seria ele a enviar o seu irmão de volta à terra natal, portador do Lignum Crucis e com o encargo específico de fundar a igreja de San Estéban, que haveria de albergar a relíquia, e começar o recrutamento de cavaleiros para a ordem que tinha fundado na Terra Santa.

A história completa-se com um milagre já quase tradicional na hagiografia peninsular, segundo o qual D. Galcerán de Pinós teria caído em mãos dos sarracenos quando interveio na primeira conquista de Almería, uma minicruzada hispânica promovida pelo conde Ramón Berenguer IV de Barcelona, que teve lugar em 1145. Diz a lenda que o mouro pedia como resgaste do cavaleiro catalão nada menos do que cem vacas bragadas, cem cavalos brancos, cem peças de pano de ouro e cem donzelas; um preço difícil de pagar, uma quantidade quase impossível de reunir. Porém, enquanto os seus vassalos tentavam consegui-lo a todo o custo, ainda que condenando ao sacrifício os seus bens e as suas mulheres, D. Galcerán encomendou-se ao protomártir, por cuja porta tinha entrado anos antes em Jerusalém, e Deus dignou-se aceder às suas súplicas, depositando-o são e salvo no porto de Salou, exactamente quando o seu pai se dispunha a embarcar o dispendioso resgate solicitado pelo infiel.






É necessário reconhecer, contudo, pondo de parte os chauvinismos, que a trama da história concorda com toda uma série de pistas tradicionais que se podem encontrar ainda na Península, sob a forma de ritos ou de festejos, em lugares nos quais, significativamente, dominou o Templo. Recordemos que o culto ao Lignum Crucis contido no relicário em forma de cruz patriarcal, cuja origem remonta a Santa Helena, mãe do imperador Constantino, aparece não só em Bagá mas também em lugares como Ponferrada, Segóvia e Caravaca, todos eles com importantes recordações dos Templários que os possuíram. Por seu lado, o episódio do resgate tem um paralelismo com o mito do Tributo das Cem Donzelas, uma transformação cristianizada de ritos de fecundidade que se praticaram na Península muito antes de se implantar o Cristianismo e que subsistiram precisamente em lugares como Tomar e San Pedro Manrique, nos quais houve igualmente importantes possessões templárias.

Se não há documento, à parte este tão tardio, do século XVII, que possa confirmar a estranha história de um fundador do Templo de origem catalã - e, pelo contrário, muitos que testemunham a existência real do borgonhês Hugues de Payns -, existem e foram devidamente consignados pelos medievalistas (4) os que nos mostram de modo iniludível que a família Pinós esteve relacionada com a ordem quase desde o seu início, tanto através de constantes doações (5) como por actos como o legado do Templo de armadura e corcel (1179) que denotam que, pelo menos, alguns dos membros da família foram donatários dos Templários ou membros activos da ordem. O longo período de tempo desta relação (1154-1279) demonstra, no mínimo, que os Templários e a família Pinós mantiveram uma longa amizade, sem dúvida alguma estranha por ser tão prolongada, até ao ponto de não parecer absurdo pensar numa relação que proviria talvez dos próprios inícios da ordem na Palestina.

Ainda sem conceder a quanto vou atribuir mais valor do que o de uma hipótese, sobre a qual haveria que trabalhar em profundidade, creio que esta história de D. Hugo de Pinós ou de Bagá vem a ser como uma corroboração local e sem fundamento de algo que apontei ao princípio e que teremos ocasião de analisar mais adiante: ainda que criado por uma maioria de franceses, no Templo houve, seguramente, frades espanhóis desde os primeiros alvores da ordem. E, se bem que seja certo que os seus nomes permaneceram desconhecidos, talvez por obra e graça do sempiterno «puxar a brasa à sua sardinha» habitual em boa parte dos investigadores gauleses, não deixa de ser curioso que fosse Espanha o primeiro país onde se começou a falar dos Templários - como sucedeu com os da Militia Christi de Monreal, dos quais falei no capítulo anterior -, o condado de Barcelona o primeiro em que um governante morre membro da ordem (Ramón Berenguer III) e um nome espanhol, o templário Gondemar (6), o primeiro estrangeiro não francês que surge no contexto originário dos primeiros membros do Templo de Salomão.


[...] Gualdim Pais, a personalidade do Templo português

Conta Herculano, pai da historiografia portuguesa, que na campanha que terminou com a conquista de Santarém (1147) o rei D. Afonso Henriques ia acompanhado por 250 cavaleiros e «muitos Templários», o que parece significar que o número de frades foi pelo menos tão elevado como o de nobres que intervieram naquela primeira grande acção guerreira do Estado nascente. Fossem mais ou fossem menos, os números importam bastante menos do que o facto de se confirmar que a ordem estava solidamente fixada em Portugal e que, no início da sua particular reconquista, constituía já uma força militar de importância, capaz de se medir com vantagem com as forças almorávidas do rei de Badajoz.

No mesmo ano, antes de se lançar ao assalto de Lisboa, o soberano endossava uma escritura de doação à ordem do Templo, em que afirmava cumprir o voto de «dar aos cavaleiros e demais religiosos do Templo de Salomão que residem em Jerusalém em defesa do Santo Sepulcro todo o direito eclesiástico sobre Santarém» (7). Esta cessão supunha, para os Templários, passarem a ser proprietários de facto de um território extensíssimo que, ainda que compartilhado com Cister - que receberia, por sua vez, o lugar onde se edificaria o mosteiro de Alcobaça - representava a maior parte do território a norte do Tejo em terras portuguesas.

Neste momento, era mestre dos Templários portugueses o segundo deles, Hugo Martins, e um dos frades que mais se destacaram na campanha chamava-se Gualdim Pais, nascido cerca de 1118-1119 e armado cavaleiro pelo próprio rei depois da batalha de Ourique, quando apenas tinha vinte ou vinte e um anos de idade. Agora, mal terminada a ofensiva que resultou na tomada de Santarém, foi chamado pela Ordem para que se incorporasse na casa-mãe de Jerusalém, onde permaneceu mais de seis anos ao lado dos grão-mestres Robert de Craon e Evérard de Barres. Não era seguramente o primeiro Templário português que se unia ao poder central da ordem - há suspeitas fundadas de que um dos nove primeiros cavaleiros que constituíram o grupo fundacional, o assim chamado pelos franceses Arnaud de Roche, podia ser um Rocha e proceder da terra que se transformaria em breve no reino de Portugal. Em qualquer caso, a permanência de um Templário na Terra Santa supunha o acesso às mais profundas intimidades da Ordem e, sem dúvida, o suporte que lhe permitiria alcançar os postos de maior responsabilidade dentro da estrutura hierárquica templária.

Castelo de Almourol


Da estada de Gualdim Pais na Terra Santa apenas podemos supor que teria intervindo nas acções guerreiras nas quais os Templários tiveram um protagonismo destacado. Assim, podemos também supor que estaria junto do mestre Barres, seguramente um dos valores espirituais mais firmes do primeiro período da ordem (8). E, com toda a probabilidade, encontrar-se-ia no cerco de Gaza e na tomada de Ascalón, onde Bernardo de Tremelay, o quarto grão-mestre, encontrou a morte. É até quase seguro que, antes do seu regresso a Portugal, conheceu de perto André de Montbart, o tio de São Bernardo, e que colaborara na redacção dos estatutos da ordem que seriam publicados durante o mestrado de Bernard de Balanquefort. Se tivesse sido realmente assim, o que não é absurdo, verificaríamos que a estada do templário Gualdim Pais em Jerusalém coincidiu com um dos momentos mais intensos da Ordem, aquele em que se estruturou definitivamente o ideário do Templo e definiu os seus esquemas como poder multinacional capaz de começar a influir activamente nos projectos políticos da Europa do seu tempo.

Facto certo é que a presença de Gualdim Pais em Portugal volta a ser detectada cerca de 1155, em coincidência com a carta de protecção ao Templo dispensada pelo rei Afonso. Aparentemente, Gualdim trazia da Palestina uma preciosa relíquia, altamente simbólica como a maior parte das relíquias de origem tradicional: uma mão de São Gregório Nacianceno, guardada num rico estojo de prata. Neste caso, como em tantos outros, cabe pensar num especial valor posto na recordação deste santo padre da Igreja, não só filho de um bispo ligado à heresia dos ipsistários (9), mas também companheiro dos cenobitas Basílio e Gregório na sua campanha espiritual pelo estabelecimento do monaquismo oriental, de que tantos outros ensinamentos e chaves do conhecimento extraíram tanto os Templários como as então chamadas igrejas separadas.

A partir do regresso de Gualdim Pais a Portugal, começaram a acelerar-se acontecimentos fundamentais do recém-nascido reino. A disputa pelos direitos eclesiásticos sobre Santarém, iniciada pelo bispo inglês de Lisboa, D. Gilberto, durante a estada de Gualdim na Terra Santa, começava a acalmar-se; e após a morte do terceiro mestre português, Pedro Arnaldo, na conquista de Alcácer do Sal resolveu-se, mal Gualdim Pais foi eleito quarto mestre. O arranjo, politicamente muito inteligente, implicou a cessão das igrejas de Santarém, com todos os seus dízimos, à mitra lisboeta; mas, por outro lado, o rei confirmava os Templários como donos praticamente absolutos dos territórios da vertente norte do Tejo e da margem do rio Zézere: Pombal, Tomar, Ces, Almourol, Idanha, Monsanto, onde começariam a repovoar os campos desertos, convertendo imediatamente aquelas regiões ermas num lugar de Nullius Diocesis - diocese de ninguém - nas quais a única autoridade religiosa reconhecida seria o Sumo Pontífice, a quem os Templários ofereceram o bispado honorário na pessoa, primeiro de Adriano IV e depois na de Alexandre III (1159-1181); ambos os pontífices as aceitaram como tal e assim as confirmaram e reafirmaram como propriedade exclusiva do Templo, contra quem nada nem ninguém tinha o direito de intervir.

Não restam dúvidas de que aqueles territórios sobre os quais os templários tinham adquirido direitos tão firmes eram estrategicamente muito importantes. De facto, cortavam toda a possibilidade de futuras surpresas invasoras, porque por eles passavam absolutamente todas as vias e vaus que permitiam penetrar no território português a partir do Sul. Mas, além disso, tratava-se do espaço sagrado tradicional mais importante do país, carregado de memórias e de vivências ancestrais que o convertiam, ou podiam converter, no Axis Mundi a partir do qual se poderia concretizar o projecto firme de acção messiânica.

Tentarei explicá-lo.


A pista ocidental

A margem atlântica europeia, e fundamentalmente os seus confins mais ocidentais, aqueles qque mais se adentram no mar desconhecido - Cornualha, Normandia, Irlanda, Galiza e Portugal - gozaram sempre de um particular prestígio mágico, baseado em tradições relacionadas com o fim do mundo e com os valores míticos do conhecimento. Sei perfeitamente que a historiografia mais académica sempre se preocupou muito pouco com a improvável realidade encerrada nestas crenças, muitas vezes assumidas exageradamente pelos estudiosos do esoterismo e dos saberes tradicionais. Contudo, ninguém seria capaz de negar que os povos e as ideologias se moveram muito frequentemente empurrados pelas crenças ancestrais, firmemente enquistadas na consciência colectiva e dispostas a emergir à menor oportunidade que se lhes dê.

Neste sentido, o extremo ocidente, como final de um mundo e porta para outro, desconhecido, foi uma constante nos esquemas mentais do mundo antigo e medieval, desde o Caminho dos Mortos traçado pelos sacerdotes egípcios até ao Amenti, às inumeráveis migrações e invasões que se produziram ao longo da História, seguidoras quase sem excepção da rota este-oeste. O Ocidente e o seu Mais Além foi o núcleo protagonista da lenda tradicional atlante noCrítias platónico e, curiosamente, em muitos períodos-chave do passado dá-se o caso de as estruturas criadoras da cultura chegarem também do Ocidente, pela mão de povos que percorreram o caminho até aos Finis Terrae e voltaram, presumivelmente imbuídos dos conhecimentos que ali receberam. Assim, o caminho para ocidente foi como uma vontade ancestral que teve a sua expressão mais definitiva no Caminho de Santiago, que unia nas suas motivações a soma das vontades que moveram os homens e os povos desde a origem até à beira do desconhecido, até esse ponto indefinido onde, tradicionalmente, se unia o fim com o princípio, a morte com a vida, a ignorância com o saber.

Cabo Carvoeiro

















De certo modo, a posse daquele território português, que praticamente ia do cabo Carvoeiro até ao rio Zêzere, supunha a propriedade do principal conjunto de tradições e crenças ancestrais do território, um lugar onde, em muito maior medida do que em qualquer outro, sobrevivia a memória mítica de um passado remoto transformado em lenda ou em evidência mais próxima da fé e da fantasia do que a realidade imediata e quotidiana.

Sobre esta vivência, que sem dúvida propiciou que aquela zona inóspita se repovoasse rapidamente com cristãos procedentes do Norte e com muçulmanos que preferiam ficar ali em vez de emigrar para o Sul, havia, sem dúvida, outras razões susceptíveis de despertar o interesse do Templo: a posse de portos estratégicos que poderiam servir de escala para uma frota templária que muito rapidamente haveria de se converter na mais importante da Europa do seu tempo, fazendo franca competição com as esquadras de Pisa e de Génova, que repartiam oficialmente o domínio comercial marítimo do Mediterrâneo. O Templo, tal como possuiu de facto - e não de direito - o porto de La Rochelle, tal como preparou cuidadosamente um embarcadouro próprio em Burgo, muito perto da Corunha, controlou a costa portuguesa entre a Nazaré (muito perto de Alcobaça) e Peniche, junto a Óbidos, uma cidade que então se encontrava muito mais perto do mar do que hoje em dia. Naquele vasto trecho de costa existiam pelo menos quatro pontos-chave para construir ou dispor portos próprios, que poderiam ser guardados a partir da rede de fortalezas que bordejavam o Tejo e rodeavam aqueles apreciados enclaves.

O centro daquele denso núcleo de poder haveria de constituir-se no castelo de Tomar, cuja construção se iniciou sob o mestrado de Gualdim Pais, em 1160. Os Templários da sua guarnição que constituíam de facto o conselho de governação da ordem no reino, instalaram-se ali imediatamente, antes inclusivamente de se lançarem as fundações da fortaleza. Com o tempo, aquele lugar transformar-se-ia em panteão da ordem, onde seriam enterrados todos os mestres, enquanto os cavaleiros teriam o seu cemitério ao lado do horto da ordem, que ficaria conhecido até agora como o Horto do Rei.

Ao longo do tempo que decorreu antes de a fortaleza ser terminada, o mestre Pais, dono e senhor indiscutido do território, concedeu até três foros distintos à povoação. Nestes, a Ordem chama-se a si mesma o senhor e o primeiro deles tem início com uma declaração singular: «Eu, mestre Gualdim Pais, com os meus frades, a vós, que de Tomar sois moradores grandes e pequenos, de qualquer classe que fordes, e a vossos filhos e a vossas gerações, nos corresponde a nós, frades do Templo, integrados na fé de Salomão, fazer-vos uma carta de afirmação do direito sobre as vossas herdades».

No terceiro foro, promulgado em 1774, (10) o Templo manifesta-se já como uma autêntica força feudal sem paliativos, que obriga os habitantes da sua terra a abonar impostos que chegavam à quarta parte sobre os bens e colheitas de pessoas que se tinham arriscado a sobreviver numa das comarcas menos favorecidas do reino. O abuso, aparentemente constante, devia-se, segundo os Templários, a que a população daquelas terras nunca antes se vira atingida por imposto algum. Os camponeses tentaram mais de uma vez o protesto, mas a prepotência templária e a sua influência sobre os monarcas portugueses conseguiu que todos os pleitos fossem ganhos pela Ordem. Esse protesto prolongou-se até à extinção da milícia no concílio de Viena, em 1312. Nos sete anos que passaram entre o desaparecimento do Templo e a sua substituição pela Ordem de Cristo, os cidadãos de Tomar conseguiram fazer desaparecer do foro as seis linhas que marcavam a sua indiscriminada dependência dos frades, que tinham actuado, pelo menos neste caso conhecido, com muito maior dureza e com uma cobiça digna dos mais absolutos princípios emanados do feudalismo (11).


Portugal templário

Gualdim Pais, o quarto mestre, morreu a 13 de Outubro de 1195 e foi o primeiro a receber a sepultura em Santa Maria do Olival, depois de ter resistido a um duro assédio dos almóadas, cinco anos antes. A sua lápide sepulcral ainda se conserva, na segunda capela existente após a porta de entrada do templo e junto às dos outros mestres da ordem até à sua extinção. Por estas e pelas notícias que deu no século XVIII o cronista da Ordem de Cristo Frei Bernardo da Costa, que se propôs escrever uma crónica da sua ordem e que só conseguiu redigir o seu primeiro volume, dedicado precisamente ao Templo, temos uma ideia bastante clara do que foi o processo templário português. Um processo que, resumido ao máximo, nos dá a ideia do poder que o Templo teve na História do jovem reino.

A Gualdim Pais sucedeu, em 1195, o quinto mestre, frei Lopo Fernandes, que, apesar dos preceitos da Ordem, que proibiam os frades de intervirem nas lutas entre cristãos, morreu em 1199 no cerco de Ciudad Rodrigo, lutando contra o rei de Leão, Afonso IX.




O sexto mestre foi frei Fernando Dias, que teve como inimigos os elementos. Primeiro uma grande fome que se espalhou por Portugal, em 1202. Depois, em 1206, uma peste que assolou Tomar e a sua comarca e também levou o mestre.

O sétimo mestre, frei Gomes Ramires, foi-o dos Templários portugueses, leoneses e castelhanos a partir de 1210. Naquele tempo, o comendador de Tomar foi reposteiro do rei Sancho I e seu grande amigo. E os bens da coroa, ou pelo menos uma boa parte do tesouro do reino, cerca de 20 000 maravedis, encontravam-se em custódia no castelo de Tomar. O mestre, sendo-o dos Templários castelhano-leoneses, interveio directamente na batalha das Navas de Tolosa (1212) e morreu lutando contra os almóadas, oito dias depois desta batalha, no assalto a Úbeda.

O oitavo mestre, Pedro de Alvito, também dos três reinos, recebeu para o Templo a possessão de Castelo Branco, a que deu foro, e confirmou de Inocêncio III, em 1216, a sujeição dos domínios portugueses do Templo à Santa Sé. Reuniu os Templários dos três reinos e outros Templários europeus para a conquista de Alcácer do Sal (1217) e foi conselheiro privado e grande valido do rei D. Sancho I, tal como o seu sucessor, o nono mestre, Pedro Anes, que o foi entre 1223 e 1224.

Também mestre dos três reinos foi o décimo, Martim Sanches, que exerceu o seu cargo até à renúncia, em 1229. Sucedeu-lhe frei Esteban de Belmonte (1229-1237), que se converteu também em valido de Afonso II depois das acções guerreiras que levou a cabo, conquistando as praças de Jeromenha, Aljustrel, Serpa e Arronches. Sucedeu-lhe Pero Nunes, o décimo segundo, que faleceu em 1239, e, a este, frei Guilherme Fulcon (possivelmente francês, décimo terceiro mestre) que governou nos três reinos e faleceu em 1242.

O mestre mais jovem do Templo castelhano-português foi o que figura como décimo quarto, Martim Martins, que assumiu o cargo com apenas vinte e cinco anos e estava ligado familiarmente à nobreza mais antiga do reino português. Irmanado com Sancho II, conseguiu unir as suas forças à dos cavaleiros de Santiago, que até então apenas tinham intervindo esporadicamente em Portugal, e com eles lançou-se à reconquista do Algarve (12). Durante o seu mestrado, o rei português Sancho II teve de se exilar em Toledo (1247). No mesmo ano, o mestre renunciou ao cargo, passando ao serviço de Fernando III e morrendo na conquista de Sevilha (1248). Era já mestre do Templo castelhano-português Gomes Ramires, que entrou com as suas forças na cidade e conseguiu do monarca a doação da alcaidaria de Rastiñana.

O mestre Gomes Ramires morreu como décimo quinto mestre português em 1251, partidário do rei Afonso III.

Paio Gomes continuou a ser mestre dos três reinos e, ainda, que tivesse fixado residência em Zamora - o que já sucedia há muito tempo, embora seja difícil determinar a data - convocou o capítulo de Templários em Tomar (1251) no mesmo ano em que morria na Sicília o imperador Frederico II Staufen, uma personagem que não podemos esquecer e que reaparecerá nos próximos capítulos. O mestre Paio Gomes esteve sempre muito perto do rei Afonso III, não só nas suas acções bélicas mas também como conselheiro. Contudo, fazendo - desta vez sim - honra à tradição templária, renunciou ao seu cargo quando se lhe deparou à obrigação de levar os seus Templários portugueses à luta contra Castela.

O seu sucessor, o décimo sétimo mestre Martín Nunes, foi intermediário, com os seus Templários, para dirimir a questão da partilha entre os dois reinos da comarca do Algarve. O papa Urbano IV dirigiu-lhe pessoalmente a bula Gloriosus Deus in Sanctis suis, pela qual se concediam indulgências aos membros da irmandade de Santa Maria do Olival, fundada a instâncias do Templo. Durante o seu mestrado tinha terminado, graças à sua intermediação, a conquista portuguesa. Por isso se incorporou com os seus Templários castelhanos e lutou ao lado de Afonso X de Castela nas suas campanhas andaluzas. Em 1265 regressou a Portugal para morrer (in «A Herança dos Templários. A história oculta do Templo na Idade Média Peninsular», Editorial Estampa, 2005, pp. 86-90; 61-66; 108-119).






Notas:

(1) JOSÉ MARIA BERERCIATÚA OLARRA, La Orden de los Templarios. Ediciones Aldecoa, Burgos, 1957.

(2) Declaração da inscrição grega da cruz da igreja de San Esteban de Bagá, cabeça das baronias de Pinós, guia da armada que tomou a Terra Santa, ano de 1110, D. Hugo de Bagá, primeiro mestre do Templo. Sign. ms. 7.377, pp. 81-91 v.

(3) MARTÍN FERNÁNDEZ DE NAVARRETE, Españoles en las Cruzadas, op. cit. 

(4) J. MIRET I SANS, Les cases de templers i hospitalers à Catalunya. Impr. da Casa Provincial de la Caritat, Barcelona, 1910.

(5) A família cedeu ao Templo uma casa em Lérida, enquanto se reparava o castelo de Gardeny.

(6) Dado transmitido, sem indicar fontes, por RAFAEL ALARCÓN HERRERA, La outra España del Temple. Martínez Roca, Barcelona, 1988, p. 40.

(7) Citação de ANTÓNIO RIBEIRO em AMORIM ROSA, História de Tomar. Gabinete de Estudos Tomarenses, 1965.

(8) Evérard de Barres demitiu-se do seu cargo em 1149 e retirou-se para Citeaux, onde morreu com aura de santidade em 1173. Veja-se a minha lista de mestres em La Mística Solar de los Templarios. Martínez Roca, Barcelona, 1983.

(9) Esta heresia destacava-se pelo seu sincretismo com o mundo judeu e pagão. Chamava a Deus Ipsistos, o Altíssimo, como a Júpiter.

(10) Os documentos conservam-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cujo maço n.º 71 reúne os papéis correspondentes à Ordem do Templo.

(11) AMORIM ROSA, Op. cit., p. 50.

(12) Nessa altura chamava-se também Algarve à parte da comarca que se estende à margem esquerda do Guadiana, território oficialmente castelhano-leonês.






Philosophie et vie angélique

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Escrito por M.-M. Davy





Cristo no Sepulchre guardado Em anjos, por William Blake.







«É com razão que estes seres imortais e bem-aventurados, estabelecidos nas moradas celestes, se regozijam por participarem do seu Criador, de cuja eternidade recebem a sua estabilidade, de cuja verdade recebem a certeza, de cujo favor recebem a santidade. E porque nos amam com amor misericordioso, a nós mortais e infelizes, para que sejamos felizes e imortais, não querem que lhes votemos a eles os nossos sacrifícios mas Àquele de quem eles próprios, como bem sabem, são connosco o sacrifício. Realmente, com eles formamos a única Cidade de Deus a que se refere o Salmo:

De ti se disseram as coisas mais gloriosas, ó Cidade de Deus [Gloriosissima dicta sunt de te, Civitas Dei. Salmo LXXXVI, 3].

E uma parte dela, que somos nós, peregrina; e a outra parte, que são eles, presta auxílio. É dessa Cidade Suprema onde a vontade de Deus é a lei inteligível e imutável, é dessa como que Cúria do Alto (efectivamente é lá que se cuida de nós) que nos vem, pelo ministério dos anjos esta Escritura onde se lê:

Será exterminado aquele que sacrificar aos deuses em vez de somente ao Senhor [Sacrificans diis eradicabur, nisi Domino soli. Êx., XXII, 20].

Esta Escritura, esta lei, preceitos como este, foram confirmados por tão grandes milagres que não é possível pôr em dúvida a quem querem aqueles espíritos imortais e bem-aventurados (que querem para nós o que eles são) que nós ofereçamos sacrifícios».

Santo Agostinho («A Cidade de Deus», Vol. II).


«Na admirável Ética a Nicómaco, que é essencialmente um tratado dessas virtudes sobrenaturalizantes [as cardeais e teologais], enuncia Aristóteles o sempre difícil problema de conferir à liberdade humana a perfeição pela passagem da potência ao acto, pela realização das mais nobres acções. Numa página que ficou célebre pelo entusiasmo e pela eloquência, dá-nos o filósofo um exemplo admirável do que seja um raciocínio completo e perfeito. Vamos transcrevê-lo do capítulo 7 do livro X, na certeza de que em tão expressivo encómio da filosofia vibrará talvez um pensamento perene, elevado e digno de persuadir o leitor.

"Se entre as acções virtuosas", escreve Aristóteles, "as que o homem pratica na vida civil e na vida militar prevalecem sobre todas as outras pelo heroísmo, pela beleza e pela magnanimidade, certo é que dependem por sua vez de valores mais desejados, e por isso não constituem propriamente virtudes. Falta-lhes, aliás, a paz de alma, indispensável à verdadeira felicidade.

A actividade da inteligência apresenta, pelo contrário, esta particularidade distintiva mas importante: é especulativa, e não está subordinada a outro fim; é acompanhada de uma alegria bem sua e perfeita, que lhe dá maior vigor; basta-se a si própria num lazer sem fadiga, pelo menos tanto quanto é possível ao homem, e parece reunir todas as condições da felicidade. A actividade pura da inteligência constituiria a perfeita felicidade do homem, se pudesse preencher a duração total da vida, já que nada de incompleto pode constituir a felicidade. Uma vida tal seria demasiado bela para ser uma vida humana! Se ao homem é por momentos dado viver assim, tal não acontece por virtude da sua condição de homem, mas porque há dentro dele algo divino; e tanto quanto esta faculdade difere do composto humano, tanto a sua actividade difere das outras virtudes. Se a inteligência é, portanto, divina em relação ao homem, a vida inteligente é também divina, em comparação com a vida humana. Diremos, por consequência, que ao homem não basta, como muitos preceituam, ter pensamentos humanos, nem aos mortais pensamentos mortais; tanto quanto nos seja possível, cumpre-nos sermos imortais, esforçando-nos por viver segundo o que, para a nossa vida, considerarmos melhor; este melhor tem certamente pouco lugar na nossa vida, mas pelo seu poder e pela sua dignidade está sem dúvida acima de tudo!"».

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).




«SE SOMOS IMORTAIS, temos de sê-lo em essência e não por acidente. A imortalidade é então a nossa verdadeira condição e o plano de realidade no qual efetivamente existimos. Nesse caso, a presente vida corporal não é senão uma fração diminuta da nossa realidade, uma aparência momentânea que encobre a nossa verdadeira substância. Em consequência, todo o conhecimento que podemos adquirir dentro dos limites da existência corporal é apenas uma aparência dentro de uma aparência. Ainda que apreenda porções genuínas da realidade, não pode ter em si o seu próprio fundamento, mas tem de buscá-lo na esfera da imortalidade.

Tudo isso é bem claro. O que confunde as coisas é que o termos "imortalidade", na presente cultura, adquiriu a conotação de algo que só se manifesta - se existe - depois da morte física. Esconde-se aí uma sugestão inteiramente absurda: somos mortais em vida, mas "tornamo-nos" imortais após a morte, como se a morte fosse a passagem a um estado de existência radicalmente separado, heterogêneo e incomunicável com a vida presente. É nesse pressuposto que repousa toda a esperança de um conhecimento puramente imanente, sem referências ao "além". Se a imortalidade existe, essa esperança é tão absurda quanto o pressuposto que a sustenta. Se temos uma vida que transcende toda a duração, essa vida transcende, e portanto abrange, em vez de excluir, a sua fatia imersa em duração. Se somos imortais, temos de sê-lo agora, desde a vida presente, em vez de sermos, por assim dizer, imortalizados pela morte. A morte não pode imortalizar o mortal: só pode tornar manifesta a imortalidade preexistente e impugnar, no mesmo acto, a ilusão da mortalidade.

Mas, se já somos imortais nesta vida, é claro que não podemos conhecer adequadamente esta última senão à luz da imortalidade: o conhecimento mortal da vida mortal é o conhecimento ilusório de uma ilusão.

O esclarecimento da imortalidade torna-se assim uma exigência primeira do método filosófico: ou demonstramos que a imortalidade não existe ou, caso a aceitemos ao menos como hipótese, temos de fundar nela toda a possibilidade de um conhecimento efetivo da realidade.

Demonstrar que a imortalidade existe pode ser difícil, mas provar que ela não existe é impossível: todas as provas estariam limitadas ao acessível na vida presente, em nada debilitando a possibilidade de que haja algo para além dela. Já as provas da imortalidade nada perdem com essa limitação, de vez que a vida presente está dentro da vida imortal e o que se sabe de uma pode revelar algo da outra.

As provas, no entanto, de nada servem se, uma vez obtidas, não modificam em nada o hábito reflexo de raciocionar a partir da vida presente como se esta fosse um todo fechado e auto-suficiente - hábito que tanto pode fundar-se na negação quanto na afirmação da imortalidade.

A própria busca de provas cientificamente válidas, obrigantes, portanto, para toda a comunidade dos estudiosos, já tende a fazer da existência presente a medida da vida imortal, já que, na escala desta última, a autoridade humana da comunidade científica não conta para absolutamente nada.






De um lado, a prova científica da imortalidade não dá a ninguém por si, uma consciência de imortalidade pessoal e muito menos a força para operar a passagem de nível desde uma cognição baseada na experiência temporal a outra fundada no senso da imortalidade.

De outro lado, quem quer que tenha operado essa passagem não precisa de provas científicas daquilo que lhe foi dado em experiência pessoal direta. Pode usar essas provas como meios pedagógicos para estimular os outros a buscar experiência idêntica, ou para tapar a boca de adversários da imortalidade, mas esses dois objetivos são menores e secundários em comparação com a experiência em si.

A expressão "experiência da imortalidade"é, decerto, metonímica. Designa o objeto da experiência por uma de suas partes, subentendendo que esta requer incontornavelmente a existência do todo. Deve-se falar de experiência de cognição extracorpórea, ou mais propriamente supracorpórea, estando aí implícito que, se a consciência opera fora e acima do corpo, não tem por que morrer quando ele morre.

Essas experiências não são necessariamente "paranormais". Qualquer um pode ter acesso a elas, contanto que se prepare para isso mediante uma série adequada de meditações. Em geral não se trata de perceber objetos à distância, ou futuros, mas de tomar consciência daquilo que, na percepção comum e corrente, já é supracorpóreo embora não seja percebido habitualmente como tal. Tão logo você assuma consciência dos elementos supracorpóreos que perpassam e fundamentam a percepção corporal, sua noção de "eu" vai modificar-se automaticamente. Quando digo "assumir consciência" quero dizer que há aí algo mais que um simples ato de percepção isolado ou mesmo repetido. "Assumir consciência"é algo mais que "tomar consciência": implica um ato de responsabilidade intelectual e moral pelo qual você se compromete intimamente a não permitir que a porta aberta para a consciência de extracorporeidade se feche e o conteúdo aí assimilado se dilua no fluxo de impressões corporais até ser esquecido ou ao menos perder toda força estruturante sobre a sua vivência de "eu"».

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).


«A palavra divina, ou teologia, foi estudada pelos filósofos orientais; mas os filósofos mediterrâneos, que mais racionalistas se mostraram reduzindo todos os princípios da razão aos princípios da dialéctica, não deixaram de falar e escrever em relação às tradições teológicas. O princípio escolástico, tal como Santo Anselmo o concebeu na relação convergente do Proslogium com o Monologium, não é um processo de reacção obscurantista contra o iluminismo da razão, mas, pelo contrário, um princípio libertador da inteligência humana. Não tem, consequentemente, significação pejorativa ou depreciativa, mas, pelo contrário, significação muito honrosa, o falar-se do escolasticismo de qualquer pensador.

Nem todos os homens são filósofos, porque a filosofia tem por objecto de estudo as relações do mundo sobrenatural com o mundo natural. Saber se entre um e outro existe separação, confusão ou distinção, saber se um actua sobre o outro por emanação, criação ou conservação, tal é o saber mais amado e mais procurado pelos estudantes. Filosofia escolástica de livre especulação para fiéis e infiéis, nem sempre foi considerada ortodoxa pela filosofia eclesiástica.

A filosofia moderna opõe-se à filosofia escolástica de todos os tempos, à filosofia perene, afirmando que tudo é natural, que não há sobrenatural, ou, noutra linguagem, que tudo é Terra, que não há Céu. Tal afirma porque a ciência moderna, verificando que a mesma mecânica, a mesma química e a mesma física são aplicáveis a todo o mundo sensível, desde a geologia à astronomia, julgou anular a distinção entre Terra e Céu. A filosofia moderna, em vez de admitir a relação do natural com o sobrenatural, constitui ao lado da física a metafísica, completa a ciência real pela ciência virtual, por mera transposição idealista dos princípios lógicos.

A distinção entre Terra e Céu permanece porém inalterável como o sinal da cruz, e permanece porque não significa separação de lugares diferentemente qualificáveis no espaço, como em algumas escolas se ensinou, mas distinção entre Matéria e Espírito. Território pode todavia significar Estado. O Céu tem a significação figurada de lugar das realidades espirituais, porque assim o exige a representação itinerante da vida da alma humana, mas uma psicologia subtilíssima poderá determinar mais puro significado da palavra Céu».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).




«Todo o progresso da filosofia e da religião solidárias, todo o desenvolvimento do sentido iniciático, se orientam, pois, na via inelutavelmente aberta para atribuir ao verdadeiramente sábio e ao autenticamente justo a única responsabilidade do erro e da injustiça. E tal como o verdadeiramente santo não luta contra o mal, mas o assume em si para redimi-lo, pois só com o mais fundo sentido do bem é o mal possível, assim também o verdadeiramente sábio, ultrapassada a ilusão do juízo e da crítica, não luta contra o erro mas o assume em seu verídico pensamento, único capaz de errar.

Pela compreensão, finalmente, decidindo já para o decidir último, se confirma a possibilidade actual e infinita não só de aceitarmos todo o outro no amor, na crença e no discurso do pensamento, mas também de o sermos em nós ou sermos nele. E o outro aparece então como o que é e o que não é para ser - esse que de início obsessivamente surgira ao que contempla ainda e já medita no seio do enigma da visão unívoca do ser da verdade na cisão transcendida mas ignorada. Pois, no que é ou vê antes de todo o pensar, o absoluto é, e, o que ele é, se vê a si, e ao mesmo ver, indistinto no absoluto. E, com todo o saber do que é, há então a real e simbólica ignorância do que sabe e no mesmo saber. Pois, sem o que não é para ser, e sem a cisão, e sem a assumpção do Nada, nenhum ser ou forma de ser teria sentido.

Da possibilidade de aceitar plenamente a cisão, ou o que infinitamente separa o ser de si e da sua verdade, queda enfim dependente não só o pensamento do homem e o ser do homem para si mas, enquanto para ele são, todo o divino, todo o angélico ou demoníaco, tudo quanto apreendemos como imediação e imediato, ou na mediação cósmica da razão mais ampla e mais profunda.

A nenhum homem enquanto tal é dado transcender a cisão, a nenhum ser divino, enquanto para o homem, tal é dado. Podemos, entretanto, saber como a cisão que para nós é em realidade e verdade, não é verdadeiramente para si nem para nós enquanto propriamente pensamos. Pois se a cisão está na relação do que imediatamente une para infinitamente cindir, do que infinitamente cinde para absolutamente unir, a cisão é para si como o que se anula. Aquele que sabe como e quanto é dado ao espírito, cuja secreta meditação renovamos chamando-lhe insubstancial substante, aceitar a plenitude da cisão, sabe que o espírito é plenamente livre, sabe que, pelo espírito, o ser que o implica, mas nele se implica, assume imediata mas mediatamente a liberdade. Da doutrina da liberdade, mas não apenas concebida como liberdade humana, como liberdade do e para do homem queda tudo dependente. Também aqui, por certo, não prejulgamos de inédito dizer. Pois a doutrina da liberdade, decisiva para toda a séria teoria da razão e da compreensão, emerge, com a mesma liberdade em sua insubstancialidade incoercível, do vagaroso fluir das primeiras idades do homem e de todo o ser humano ou humanado, para o fim dos tempos que se precipitam».

José Marinho («Teoria do Ser e da Verdade»).


«(...) O que confundiu a cabeça do sr. Pinheiro foi ter lido o meu artigo [A filosofia e seu inverso II]  à luz da crença rotineira de que a grande filosofia do século XIII foi um fruto natural da universidade. Vistas as coisas por esse ângulo, daí decorrem duas consequências. Primeira: o sr. Pinheiro acaba entendendo a minha crítica às universidades medievais como se implicasse uma depreciação da filosofia escolástica, o que só acontece na sua imaginação. Segunda: dessa confusão ele é levado, como em ricochete, a proclamar que as realizações notáveis da escolástica só não apareceram mais cedo porque nas escolas catedrais e monacais vigorava um modelo pronto de homem virtuoso, do qual não podiam resultar grandes filósofos. Foi só quando aquele modelo se dissolveu na "livre discussão" que uma "filosofia propriamente dita" pôde florescer. Ele diz isso com toda a franqueza.

São erros, naturalmente, mas pelos quais sou muito grato, porque (...) permitem (...) explicar-me sobre pontos incomparavelmente mais importantes.

Desde logo, a imagem que hoje temos do esplendor escolástico é construída com base nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S. Boaventura e Duns Scot. Se os apagássemos dos registros, o escolasticismo não teria passado de um episódio curioso na história da educação. E esses não são nomes só de filósofos, mas de Doutores da Igreja: três santos canonizados e um bem-aventurado. Não existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do "modelo pronto" que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo pela "discussão racional" poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem para o fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo filosófica e mística que os caracteriza, o qual não cresce fora e independentemente da graça santificante, mas decorre dela como um dom especial do Espírito.



Santo Alberto Magno




Também é ingenuidade supor que essas encarnações máximas do génio escolástico fossem produtos típicos do novo meio acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se ajustaram confortavelmente jamais. Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua compreensão superior dos mistérios da fé e, last not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas, mesquinharias e maledicências de seus colegas.

Alberto pulou como um cabrito para que a congregação engolisse, de má-vontade, suas teorias aristotélicas sobre o mundo físico. Boaventura sofreu ataques medonhos de Guilherme de Sain-Amour, um potentado universitário da época, no curso de uma campanha sórdida movida pelo clero secular contra os Frades Mendicantes. Quem o defendeu foi Tomás, que depois, também graças a intrigas de acadêmicos, foi por seu turno denunciado como herético duas vezes (uma delas depois de morto). Duns Scot foi expulso da universidade e teve de fugir de cidade em cidade, ameaçado de morte, por defender doutrinas impopulares e tomar o partido do Papa na disputa com o poder real, hegemônico entre os intelectuais na ocasião. Só cinco séculos depois da sua morte ele foi retirado da lista dos indesejáveis, quando sua grande doutrina da Imaculada Concepção de Maria foi finalmente aceita e se tornou dogma da Igreja. Sua beatificação só veio ainda um século depois disso, em 1993.

No mínimo, no mínimo, o sr. Pinheiro, ao enaltecer as vitórias intelectuais da escolástica acima das virtudes "meramente morais" do monaquismo que a antecedeu, deveria ter tido a prudência de notar que os quatro autores maiores daquelas vitórias, aqueles que acabo de mencionar, não podiam de maneira alguma ser universitários típicos, pelo simples fa[c]to de que não eram membros do clero secular que dominava as universidades, e sim, bem ao contrário, vieram das ordens monásticas, nas quais se conservava ainda a disciplina moral das velhas escolas. O contraste entre as mentalidades desses dois grupos era tão pronunciado, que os professores ofereceram uma resistência feroz ao ingresso de monges no corpo docente das universidades (v. o episódio de Boaventura que mencionei acima). Bem, sem esse ingresso, a universidade medieval estaria desprovida de Alberto, Tomás, Boaventura e Duns Scot - de tudo aquilo que para nós, hoje, mais nitidamente caracteriza e merecidamente enobrece a imagem da filosofia escolástica.

Sim, porca miséria, os quatro eram monges, intrusos na comunidade universitária! Como poderiam ser típicos da corporação que rejeitava sua presença? Longe de ser produtos característicos da universidade da época, como o acredita o sr. Pinheiro, esses monges severos e devotos, provindo de um meio social diferente, com hábitos e valores contrastantes, se sobrepunham de tal modo àquele ambiente que só a duras penas puderam ali sobreviver e, às vezes postumamente, triunfar. A magnitude de suas realizações intelectuais deve-se menos à atmosfera universitária do que à força de suas personalidades majestosamente centradas, firmadas na fé e na integridade de propósitos, em contraste com a sofisticada tagarelice de seus colegas, muitas vezes tecnicamente admirável, mas com tanta frequência inspirada em motivos fúteis e na sedução das novidades heréticas. Quando hoje enxergamos a universidade medieval como um momento luminoso na história da educação, é em grande parte porque os melhores homens que ela rejeitou projetam retroativamente sobre ela o brilho da sua glória, e não o inverso. E essa glória, sem dúvida, vem mais das ordens monásticas que os formaram, que do meio social onde ingressaram já adultos, fortes o bastante para desafiá-lo e, a longo prazo, vencê-lo. Se, quando critico a universidade medieval, o Sr. Pinheiro entende que estou falando mal da filosofia dos grandes escolásticos, é, em parte, por seu desconhecimento da história, em parte por seguir o consagrado erro de ótica que coletiviza os méritos individuais e toma as exceções como regras, como se as cátedras universitárias na época estivessem superlotadas de homens da estatura de Tomás e Alberto, e não de técnicos, burocratas, agitadores, doutrinários de dedinho em riste, bedéis e uma infinidade de puxa-sacos.

Não é culpa do sr. Pinheiro, é do vício generalizado de entender os grandes homens como "produtos do seu tempo", quando justamente a grandeza deles consistiu em quebrar a redoma da ideologia de época e injetar no organismo da cultura, a um tempo e contra a resistência do ambiente, a sabedoria esquecida de um passado remotíssimo e as mais inimagináveis perspectivas de futuro.



A Tentação de Tomás de Aquino, por Diego Velázquez.




No caso da filosofia escolástica, toda ela inspirada por aberturas para a eternidade que nenhum condicionamento histórico-social poderia explicar, isso deveria ser perceptível à primeira vista.

Só os medíocres são filhos do seu tempo. Os sábios, os heróis e os santos inspirados são pais dele; são canais por onde a luz da transcendência rompe as limitações do tempo e abre possibilidades que a mente coletiva, por si, jamais poderia conceber. Se a opinião corrente não enxerga isso, é porque o acesso de milhões de incapazes às altas esferas das profissões universitárias obriga hoje a conceber a História sub specie mediocritatis. Que Alberto e Tomás reivindicassem uma filosofia velha de mil e setecentos anos, fazendo-a enfim predominar sobre o rígido agostinismo dominante, e que Duns Scot, contra vento e maré, antecipasse em cinco séculos um dogma da Igreja, são fa[c]tos que deveriam fazer os devotos dos condicionamento histórico pelo menos coçar as cabeças se alguma tivessem».

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





PHILOSOPHIE ET VIE ANGÉLIQUE


Selon Bernard de Clairvaux, les âmes el les anges possèdent une source identique d'où provient leur beauté réciproque. Ils sont les uns et les autres «en capacité d'éternité» (1). Cependant une grande différence les sépare, l'homme est versatile et l'ange stable; l'homme cède à un constant mouvement de va-et-vient, l'ange est fixé en Dieu.

A l'intérieur de la condition humaine, il existe comme chez les anges une hiérarchie correspondant à des degrés d'orientation, d'amour et de connaissance. Certains hommes n'ont cure du spirituel et s'en détournent; autres commencent à cheminer sur une voie à la recherche de la perfection; mais tout leur paraît difficile et ils abandonnent leur projet. Il en est qui souhaitent vaquer uniquement à Dieu et n'avoir d'autre amour que lui. Amoureux de la Sagesse, ils choisissent la voie de la «Philosophie du Christ» et deviennent moines. Ainsi ils imitent les «anges philosophes» et passent de la région des corps à celle des intelligences.

«Ce que les anges accomplissent au ciel, les moines l'accomplissent sur la terre», écrivait saint Jérôme. Anges et moines se trouvent dans des lieux différents tout en s'adonnant à des occupations identiques; ils vaquent les uns et les autres à Dieu seul; rien ne les distrait de Dieu. Les moines vivent encore dans des corps dont ils éprouvent la pesanteur, mais ils passent constamment du terrestre au céleste et goûtent déjà avec les anges les prémices de la béatitude.

Avec les anges ils chantent Dieu et ne cessent de le louer. Ce n'est donc pas aux anges des rangs inférieurs que les moines s'apparentent, mais aux Séraphins et aux Chérubins, dont ils sont les imitateurs en tant que contemplatifs (2). Anges et moines forment comme deux choeurs qui unissent leurs voix et relient le céleste ao terrestre. Ils lancent des ponts au-dessus de l'abîme qui les sépare; les uns et les autres sont comparables à des passeurs allant d'une rive à l'autre: ils se rejoignent dans le mystère. A vrai dire, suivant les écrivains monastiques, ce sont les moines qui retrouvent les Séraphins et les Chérubins et campent près d'eux. Ils dressent leur tente, car ils sont encore incapables de se tenir constamment dans la dimension céleste. Cependant ils en éprouvent la nostalgie et voudraient s'y fixer de façon définitive. Purifiés de toute pensée et de tout souci terrestre, les moines parviennent à une liberté qui coïncide avec um état de sagesse. Ils sont ainsi capables d'intelliger et de goûter la savoureuse «philosophie du Christ», qui les introduit sinon dans un état de stabilité parfaite, du moins les situe dans sa proximité.

Les moines célèbrent la louange divine et quand leurs lèvres se taisent leur coeur continue la prière; le silence a remplacé la sonorité musicale. La liturgie intérieure qui accompagnait la liturgie extérieure se poursuit quand celle-ci s'interrompt. Cette prière incessante, si chère à l´hésychasme, ne connaît aucune trève puisque même dans le sommeil le coeur du moine veille. Les Psaumes récités au choeur ou dans la solitude de la cellule, comme chez les chartreux, constituent la prière par excellence des philosophes du Christ; elle exprime à la foi l'angoisse de l'éxilé, la confiance en un Dieu qui soutient par ses anges (P.S. XC, 11); les moines devenus ailés échappent aux filets de l'oiseleur (PS. XCI, 3). Bernard de Clairvaux compare le joug du Christ à un plumage léger qui permet d'échapper à la pesanteur terrestre. Il évoque les oiseaux qui peuvent voler grâce à leurs plumes. Qu'on arrache celles-ci l'oiseau deviendra incapable de prendre son vol, il sera fixé sur le sol sans aucun espoir de le quitter (3). Ainsi la vie monastique, pourvoyeuse d'ailes, formes des anges. Ces derniers sont souvent comparés à des oiseaux en raison de leurs ailes et de la beauté de leurs chants. Le moine aussi est un chanteur qui célèbre comme l'oiseau le lever de l'aurore, non seulement celle du jour, mais l'aurore constamment renouvelée de sa connaissance et de son amour. Il chante les saisons liturgiques et celles de son âme.






La récitation du Psautier, l'attention donnée au mouvement des neumes n'est jamais un distraction, car le moine est constamment animé par un rythme intérieur; il chante spontanément comme il danserait. Jean Leclercq dira que la danse liturgique comporte des mouvements (4), processions, inclinations, prosternations qui se font en accord avec l'esprit.

Le cloître est comparable à un Paradis. Non pas le Paradis, mais un Paradis. En effet la tradition en distingue trois. Le Paradis terrestre correspond au premier ciel; le Paradis monastique au deuxième ciel; quant au troisième on ne peut rien en dire car il est secret, il se nomme le Paradis céleste. Cependant, lors de grâces momentanées, d'une brièveté extrême, le troisième ciel s'entrouve sains qu'on puisse pour autant y pénétrer et s'y asseoir. Dans ce troisième ciel, une porte s'entrebaille pour se clore aussitôt. L'ouverture est suffisante pour que la lumière fuse et provoque dans le coeur et l'esprit la nostalgie de l'habiter en permanence.

Bernard de Clairvaux dira à ses moines: «Ne sommes-nous pas montés au troisième ciel?» (5). Il est en effet possible d'y montrer mais pour en redescendre aussitôt. Toutefois les anges se tiennent dans la cellule du moine car elle est déjà un Paradis. Cellule et ciel se correspondent, le mystère de la cellule est une réplique du mystère du ciel. Guillaume de Saint-Thierry, dans son Traité de la Vie solitaire adressé aux chartreux du Mont-Dieu, insiste sur les rapports entre le ciel el la cellule: «ce que recèle le ciel est identique à ce que recèle la cellule; ce qui s'expérimente dans le ciel s'expérimente dans la cellule» (6). C'est pourquoi, selon Guillaume, les anges se tiennent dans la cellule comme dans le ciel, et la cellule du moine apparaît comparable au ciel de l'ange: «Alors, à l'âme qui prie ou qui parfois s'échappe de son corps, de la cellule au ciel, ni longue ni malaisée n'est la route» (7). Adam le Chartreux tiendra un langage identique en écrivant dans son traité De quadripertito exercitio cellae: «Qu'est-ce que la cellule sinon l'entrée du ciel (caeli aula)?» (8). «L'arche était sous les ailes des Chérubins», précise le Livre des Rois (I, VIII, 6), on pourrait en dire autant du monastère protégé par des ailes des anges, car il se tient à l'ombre de leurs ailes (Cf. Ps. XVII, 8; XCI, 4). Pierre de Celle compare le monastère à une mère qui protège ses petits; l'office des anges est de remplir cette fonction maternelle.

C'est ainsi que les anges et les moines deviennent des amis. Entre eux une familiarité s'instaure; ils peuvent s'entretenir de sujets identiques, et communiquent plus encore les uns avec les autres, quand ils demeurent en silence: Dieu les instruit par son silence. Les anges apprennent aux moines à vivre dans les cieux, à monter au dessus du soleil, leur esprit est déjà dans les cieux et plus tard leur corps suivra (9).

Cette tendresse réciproque entre les moines el les anges s'inscrit dans l'ancienne tradition monastique, à laquelle les auteurs du XIIe siècle sont demeurés fidèles. En effet, dans les Apophtegmes, il est souvent parlé des anges qui visitent les solitaires. Antoine reçoit la visite d'un ange qui lui enseigne la division du temps qu'il doit consacrer à l'oraison et au travail manuel; la première Règle monastique est révélée à Pácôme par un ange; un solitaire allant visiter l'abbé Colobos le trouve endormi, près de lui se tient un ange qui l'évente doucement afin de protéger son sommeil (10).

De tels hommes secourus par les anges sont intégrés dans l'harmonie régissant tous les mondes, ils entretiennent avec eux de justes rapports. D'une part, ils fraternisent avec les anges qui appartiennent au monde céleste; d'autre part ils vivent fraternellement avec les plantes et les animaux. Même les bêtes sauvages leur tiennent compagnie. Cette alliance est significative, le moine retrouve létat d'Adam avant la faute; en lui l'image divine déformée a recouvré sa parfaite ressemblance. Au dire d'Ephrem, lors de la mutation d'Adam, les anges furent atterrés. Que l'homme reprenne sa situation primitive, ils se réjouissent. En devenant de nouvelles créatures rénovées par le Christ, les moines-anges sont réintegrés dans l'état de l'Eden originel. Guigues II le Chartreux pouvait dire: «Reviens, mon âme, reviens vers ton origine» (11). Ce retour s'étant effectué, l'âme n'a plus à chercher, «car on ne cherche pas ce que l'on possède» (12).

«Les événements de l'angèlologie, écrit Henry Corbin, sont essentiellement "des événements dans le ciel"; ils transcendent l'histoire; ils sont hiéro-histoire, hagiographie; leur temps n'est pas le temps continu de l'Histoire et de la causalité historique, mais tempus discretum» (13). Il en est de même pour le moine-philosophe; les événements de son existence ne se déroulent pas dans le temps historique, ils se situent par rapport à l'intelligence spirituelle qui déchire les voiles empêchant la lumière de se manifester dans sa plénitude. Ces événements correspondent aux degrés de son ascension, aux étapes franchies durant l'accès au Mont de l'Horeb, à des initiations successives le conduisant vers la Face divine. Cette face, il ne pourra la contempler que dans la béatitude future, mais déjà il lui est possible de loin d'en discerner l'aura. Les chevaliers angéliques, les chevaliers célestes comme nommait les moines le concile de Frioul de 796, non seulement prolongent l'órdre des anges, mais peuvent l'égaler. L'ange témoigne de la Présence divine et de sa transcendance, le moine aussi. Il est parlé des Cherubim qui forment le trône de Dieu, le coeur du moine devient aussi un trône. La voie angélique est d'ordre extatique, celle du moine l'imite. Certes les différences subsistent: d'un côté, la réalité plénière est atteinte; de l'autre, il n'en existe que l'ébauche. Toutefois l'ange et l'homme sont initiés aux mystère de la Face divine. Et c'est dans ce sens que moines et anges sont de parfaits Philosophes.


Le moine n'a pas seulement à s'associer aux anges, il est lui-même un ange. En accédant à l'état angélique, il rend vivante la lumière qu'il possède par sa propre naissance. Cette lumière n'est rien d'autre que l'image (eikon) impérissable, à qui le Logion 84 de l'Évangile selon Thomas donne le nom d'ange (14). Quand l'homme devient angélique, son homme de lumière, c'est-à-dire son ange, se manifeste. Il se produit une éclosion de son ange dès qu'il est parvenu à l'État d'«homme spirituel», d'anthropos pneumatikos. Il est donc parfaitment normal que le moine soit appelé «ange» (in Initiation Médiévale. La philosophie au douzième siècle, Bibliothèque de l'Hermétisme Éditions Albin Michel, 1987, p. 254-258).



Notes:

(1) Bernard de Clairvaux, De Consideratione, V, III, S. P.L. CLXXXII, 790.

(2) Les anges supérieures, tels les séraphins et chérubins, remplissent ce qu'on pourrait appeler une vocation acosmique, tandis que les anges des hiérarchies inférieures tiennent un rôle cosmique sous les ordres de Dieu. Les moines imitent «en partie» ces différents degrès. La vocation acosmique humaine est fort rare et ne peut répondre qu'à un appel tout à fait particulier. Une telle vocation ne saurait être comprise para la majorité des hommes. En Occident, même dans les ordres chrétiens strictment contemplatifs, la réalization acosmique n'est guère possible et sans doute fort dangereuse. On peut la trouver en Inde chez ceux qui pratiquent le sannyâsa. Voir Dom Henri Le Saux (Swami Abhishiktananda), Initiation à la spiritualité des Upanishads, op. cit., p. 159 sq.

(3) Serm. XVII, 1, De Diversis. P.L. CLXXXIII, 583.

(4) Jean Leclercq, La Vie parfaite. Points de vue sur l'essence de l'état religieux, op. cit., p. 19.

(5) Serm. XXXVII, 8, de Diversis, P.L. CLXXXII, 643.

(6) Guillaume de Saint-Thierry, Un Traité de la Vie Solitaire, éd. M.-M. Davy, Paris, Vrin 1945, p. 207.

(7) Ibid.

(8) P.L. CLIII, 810.

(9) Bernard, Lettre CCLXXVIII, I. P.L. CLXXXII, 427-428.

(10) Voir les différents textes cités par M.-M. Davy, Le moine et l'ange en Occident au XIIe siècle, dans L'Ange et l'Homme, «Cahiers de l'Hermétisme», Paris, Albin Michel 1978, p. 109 sq.

(11) Guigues II le Chartreux, Lettres sur la vie contemplative, Douze méditations, trad. par un chartreux, S.C. 163, Paris, Éd. du Cerf 1978, p. 157.

(12) Bernard, Serm. in Cant., LXXV, 9. P.L. CLXXXIII, 1149.

(13) Henry Corbin, Nécessité de l'angéologie, dans L'Ange et l'Homme, «Cahiers de l'Hermétisme», Paris, Albin Michel 1978, p. 48.

(14) Cf. H.-C. Puech, Doctrine et thèmes gnostiques dans l´´evangile selon Thomas, compte rendu d'un cours donné au Collège de France, dans Annuaire du Collège de France, 70e anné, Paris 1970, p. 274.





Infini et continu

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Escrito por René Guénon








«Aristóteles nega que exista o infinito em acto. Quando fala de infinito, refere-se sobretudo a um corpo infinito e os argumentos que aduz contra a existência de um infinito em acto visam precisamente a existência de um corpo infinito. O infinito existe só como potência ou em potência. Infinito em potência é, por exemplo, o número, porque sempre é possível acrescentar a qualquer número outro, sem jamais se chegar a um limite extremo após o qual não mais se posssa avançar; o infinito em potência é também o espaço, porque é divisível até ao infinito, enquanto o resultado da divisão é sempre uma grandeza que, como tal, é ulteriormente divisível; por fim, infinito potencial é também o tempo, que não pode existir simultaneamente na sua totalidade, mas se desenvolve e cresce sem fim.

Aristóteles não chegou a entrever nem de longe a ideia de que o imaterial possa ser infinito, porque associou o conceito de infinito à categoria de quantidade, que só se pode aplicar ao sensível. E explica-se também que o filósofo acabasse por adoptar defnitivamente a ideia pitagórica (e, em geral, própria de quase toda a cultura grega), segundo a qual o finito é perfeito e o infinito é imperfeito. Escreve Aristóteles numa página paradigmática:

"Infinito é (...) aquilo fora do qual, se se tomar como quantidade, sempre é possível tomar alguma outra coisa. Pelo contrário, aquilo fora do qual nada há é perfeito e inteiro. Porque definimos assim o inteiro: aquilo a que nada falta, por exemplo, o homem inteiro. E tal como sucede no particular, assim se passa também no mais autêntico significado lógico, isto é, que o inteiro é aquilo fora do qual nada há; mas aquilo fora do qual há alguma coisa que lhe falta não é um todo, pois carece de alguma coisa. Pelo contrário, o inteiro e o perfeito são a mesma coisa em tudo e por tudo, ou algo semelhante por natureza. Mas nenhuma coisa que não tenha um fim é perfeita, e o fim é limite".

Esta exposição ajuda-nos a compreender bastante bem a razão por que Aristóteles tinha de negar necessariamente a Deus o atributo da infinitude. Depois desta concepção do infinito como potencialidade e imperfeição, era forçoso eliminar a antiga intuição dos milésios, de Melisso e de Anaxágoras, que consideravam o Absoluto como infinito: semelhante intuição era excêntrica relativamente ao pensamento de toda a cultura grega e, para poder renascer, haveria que esperar a descoberta de ulteriores horizontes metafísicos».

Giovanni Reale («Introdução a Aristóteles»).


«A noção de infinito, de que só a teologia pode dar alta representação, entrou para o cálculo matemático por motivos que não interessa agora estudar. O cálculo operativo sobre o acidente que é a quantidade transforma-se com Leibnitz no cálculo diferencial e integral, e procura a abstracção da física para a metafísica. Seria, porém, ilusão geradora de enganos inverter a ordem lógica, atribuindo primazia ao pensamento matemático sobre o pensamento filosófico.

Não interessa, também, para este estudo, averiguar em que medida o pensamento de infinidade e de continuidade permite ver e interpretar o mundo em fluxão. As existências que aparentemente perduram no tempo e resistem no espaço deixam de corresponder a essências, pelo que o pensamento tem de interpretar em termos de história e de profecia a aparência que lhe encobre a realidade essencial. A aplicação do infinito ao espaço e ao tempo transforma-os em conceitos, mas desse modo suscita maior número de dificuldades para a filosofia.

A razão, procurando para além do espaço e do tempo, para além do infinito da extensão e da duração, o verdadeiro infinito das inferências de finalidade, de causalidade e da substancialidade, acaba por verificar que estes processos de conveniência, de concorrência e de convergência se encontram num limite que os transcende. Todas as existências e todas as essências respectivamente se situam segundo uma hierarquia infinita que a razão concebe sem poder compreender o seu misterioso princípio. Quando a noção de infinito se encontra implícita ou explícita no silogismo, segundo a doutrina aristotélica, o pensamento conclui pela existência de Deus.

Só numa tríade, de que um termo é infinito, pode a razão chegar ao conhecimento de Deus. O pensamento dualista, considerando apenas a relação de dois termos que são Deus e o Homem, tende a raciocinar segundo a oposição dialéctica, gerando vários erros teológicos que resultam do esquecimento da mediação. Na teoria dos seres intermediários, que descem de Deus ao Homem e que ascendem do Homem a Deus, se distinguem os cultos religiosos que caracterizam a piedade dos povos.

O racionalismo tende para o misticismo e, no limite místico, o panteísmo apresenta alguma sedução. Anular em Deus as criaturas, fechar os olhos ao espectáculo do mundo, viver mais de vida comum do que de vida própria, parece a muitos homens perder sofrimento e ganhar felicidade. Mas esta forma de anulação da consciência, esta mortificação ou imitação da morte, por indistinção entre o homem e Deus, se possível fosse, corresponderia a anular a liberdade.


Existe um panteísmo moderno que tende a perder carácter pagão e a constituir-se em religião da humanidade, panteísmo que se forma insistindo nos elos biológicos que existem entre todos os homens, lembrando a Vida e esquecendo o Espírito. Um abstracto humanitarismo de anulação acaba por se projectar em doutrinas jurídicas. No limite, esta forma de panteísmo chega a eliminar a ideia de Deus.

A distinção intelectual entre Deus e as almas é um princípio católico de garantia para a liberdade. Só a separação que um terceiro elemento demasiado denso interponha, ou a distância no espaço e a demora no tempo, podem ser causa de sofrimento para o homem que anseia ver a Deus. Mas a contemplação da realidade divina, da verdadeira realidade, de forma nenhuma anula a nossa identidade espiritual.

O processo pelo qual a razão ascende ao conhecimento de Deus é uma inferência, como a de Aristóteles, a de Santo Anselmo e a de Hegel, mas as inferências não podem rigorosamente denominar-se provas. A prova é já algo de secundário, pertence ao plano escorregadio da discussão, da dialéctica e da polémica. A prova incide sobre o finito, o particular e o relativo, o que obriga a recorrer a analogias quando em teologia se pretende provar os predicados, os epítetos e os atributos de Deus.

O infinito, o universal e o absoluto escapam à metodologia da prova. Compreende-se que se fale de provas da existência de Deus, porque existência é manifestação, mas ninguém falará de provas da essência de Deus, porque a essência de Deus nos é incompreensível. A prova efectua-se por medida, correspondência, representação de termos que se compõem no tempo ou no espaço.

O tempo, o espaço e a quantidade são susceptíveis de predicação infinita, mas este infinito não provém daquela infinidade que é, a nosso ver, o atributo que mais esclarece o predicado da personalidade. Toda a resistência que os deístas opõem a este predicado assenta numa repugnância pelo antropomorfismo, e o argumento não deixa de ter defesa. Mas o que de análogo possa existir do homem para Deus - a analogia é um processo de infinidade ascendente - não tem por termo inferior a triste figura que o homem apresenta aos nossos olhos, mas o que de melhor o homem esconde no seu corpo mortal.

Considere-se o homem no mais alto ponto da escala animal, e admita-se que pela razão - prática, estética e teórica - a alma se transfigura numa consciência; já não considerará a personalidade uma noção indigna de comparação com Deus. Decerto que a personalidade divina será uma personalidade infinita, o que aos mortais parece obscuro, mas impiedoso seria negar a Deus a personalidade, pensar Deus num predicado inferior à personalidade, ainda que lhe concedendo outros atributos infinitos. Se não admitirmos a personalidade de Deus, nunca poderemos ter esperança de que sejam conhecidas as nossas preces, que, encorporadas em palavras, se chamam orações.

Todo o homem que, elevando a sua meditação ao plano da oração, ousa humildemente pensar o seu louvor religioso, não tardará em reconhecer que verdadeiramente existe natural mediação entre o pensamento humano e o pensamento divino. A oração é que é, para nós, a prova da existência de Deus, e esqueleto de orações nos parecem os argumentos chamados silogísticos de alguns compêndios de teologia. Ao desenvolvimento dessa prova oral chamam alguns pensadores experiência religiosa».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).







«[...] a extensão não é pura e simplesmente um modo da quantidade, ou, noutros termos, que, se podemos falar com segurança em quantidade extensa ou espacial, não é por isso que a extensão se reduz exclusivamente à quantidade; devemos ainda insistir neste aspecto, tanto mais que ele é particularmente importante para fazer aparecer a insuficiência do "mecanicismo" cartesiano e das outras teorias físicas que, nos tempos modernos, provém dele mais ou menos directamente. Primeiro, pode notar-se a este respeito que, para que o espaço seja puramente quantitativo, era preciso que fosse inteiramente homogéneo, e que as suas partes não pudessem ser distintas entre si por nenhuma outra característica além das suas grandezas respectivas; isto faz supor que não há continente sem conteúdo, isto é, qualquer coisa que, de facto, não pode existir isolada na manifestação, em que a relação do continente e do conteúdo supõe necessariamente, pela sua própria natureza de correlação, a presença simultânea dos seus dois termos. Pode pôr-se a questão, pelo menos com uma certa aparência de razão, de saber se o espaço geométrico está concebido como apresentando tal homogeneidade, mas, de qualquer modo, esta dúvida não serve para o espaço físico, isto é, ao que contém os corpos, cuja presença é suficiente para determinar uma diferença qualitativa entre porções do espaço que eles ocupam respectivamente; ora, é do espaço físico que Descartes quer falar, ou então a sua teoria não teria significado, pois que só se aplicaria ao mundo para o qual pretende fornecer a explicação [É certo que Descartes, no ponto de partida da sua física, pretende somente construir um mundo hipotético através de certos dados que se reduzem à extensão e ao movimento; mas como se esforça para mostrar que os fenómenos que se produziriam num tal mundo são precisamente os mesmos que se constatam no nosso, está claro que, apesar desta precaução verbal, a conclusão a que ele quer chegar é que este último é efectivamente constituído como o que ele tinha suposto inicialmente]. Não serviria de nada objectar que o que está no ponto de partida desta teoria é um "espaço vazio", porque, em primeiro lugar, isso levar-nos-ia à concepção de um continente sem conteúdo, e assim o vazio não teria nenhum lugar no mundo manifestado, porque ele próprio não é uma possibilidade de manifestação [Isto vale também contra o atomismo, porque este, não admitindo, por definição, nenhuma outra existência positiva para além dos átomos e das suas combinações, é levado forçosamente a supor entre eles um vazio no qual se possam mover]; e, em segundo lugar, já que Descartes reduz inteiramente a natureza dos corpos à extensão, é porque deve supor que a presença deles não acrescenta nada efectivamente ao que a extensão é já em si mesma. Com efeito, as propriedades diferentes dos corpos só representam para aquele filósofo, simples modificações da extensão; mas então, de onde podem provir essas propriedades se elas não são inerentes de modo nenhum à própria extensão? E como poderiam elas sê-lo se a natureza desta última estivesse desprovida de elementos qualitativos? Há nisto algo de contraditório, e, de facto, não ousamos afirmar que esta contradição, como muitas outras, aliás, não se encontra implicitamente em Descartes; este, como os materialistas mais recentes que a mais de um título deveriam reclamar-se discípulos dele, parece realmente quererem tirar o "mais" do "menos". No fundo, dizer que um corpo é só extensão, se o entendermos quantitativamente, é dizer que a sua superfície e o seu volume, que medem a porção de extensão que ele ocupa, são o próprio corpo com todas as suas propriedades, o que é manifestamente absurdo; e, se o entendermos de outro modo, é preciso admitir que a própria extensão é qualquer coisa de qualitativo, e então já não pode servir de base a uma teoria exclusivamente "mecanicista".

Mas se estas considerações demonstram que a física cartesiana não é válida, ainda não chegam, no entanto, para estabelecer nitidamente o carácter qualitativo da extensão; com efeito, poder-se-ia dizer que, se não é verdade que a natureza dos corpos se reduz à extensão, é precisamente porque eles só têm desta os seus elementos quantitativos. Mas aqui surge imediatamente a seguinte observação: entre as determinações corporais que são incontestavelmente de ordem puramente e espacial, e que, por conseguinte, podem ser olhadas verdadeiramente como modificações da extensão, não há somente a grandeza dos corpos, mas também a sua situação; ora esta é ainda alguma coisa de quantitativo? Os partidários da redução à quantidade dirão claramente que a situação dos diferentes corpos é definida pelas suas distâncias, e que a distância é uma quantidade: é a quantidade da extensão que os separa, tal como a sua grandeza é a quantidade de extensão que eles ocupam; mas esta distância será suficiente para definir a situação dos corpos no espaço? Há outra coisa que é preciso ter em conta, que é a direcção segundo a qual esta distância deve ser contada; mas, do ponto de vista quantitativo, a direcção não é importante, já que, nesta relação, o espaço não pode ser considerado como homogêneo, o que implica que as diferentes direcções não se distinguem umas das outras nele; portanto, se a direcção intervém efectivamente na situação, e se ela é evidentemente, tal como a distância, um elemento puramente espacial, é porque há na própria natureza do espaço alguma coisa de qualitativo».

René Guénon («O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos»).


«Na segunda parte dos Princípios, Descartes começa por apresentar os conceitos fundamentais da sua física e as leis da natureza para, em seguida, deduzir deles todo o sistema do mundo. A primeira coisa na qual Descartes insiste no início desta parte é na sua tese fundamental da identificação da extensão, ou do espaço, com a substância material, tese que sustenta, segundo a expressão desta passagem, que "a mesma extensão que constitui a natureza do corpo constitui também a natureza do espaço". Não esqueçamos que, em função da tese da criação das verdades eternas, esta identificação significa que o espaço, sendo ele próprio criado por Deus, possui o mesmo estatuto ontológico que a matéria: "não haveria qualquer espaço... se Deus não o tivesse estabelecido".


Newton, por William Blake



Desta tese, Descartes deduz que "não se consegue encontrar em todo o universo nenhum ponto que esteja verdadeiramente imóvel", ou seja, "que não há local de nenhuma coisa no mundo que seja fixo e definido senão quando nós o definimos no nosso pensamento". Este enunciado revela uma concepção muito relativista no que respeita à noção de espaço. Ela é uma consequência lógica da tese da identificação da matéria com o espaço. Porque, para que um ponto fique verdadeiramente imóvel, torna-se necessário pressupor, como fez Newton, um espaço absoluto independente da matéria, algo que, em Descartes, entra em contradição com a sua tese da identificação do espaço com a matéria, que o impede de colocar o espaço no exterior da matéria criada. Segundo esta tese, o espaço só é concebível em relação à matéria que constitui o universo.

Descartes transpõe esta concepção relativista para as noções de duração e tempo. Acerca da duração afirma, com efeito, no artigo 55 da primeira parte dos Princípios que "a duração de qualquer coisa é o modo pelo qual concebemos essa coisa enquanto ela continua a ser". Quanto ao tempo, considera-o como não sendo "nada, fora da verdadeira duração das coisas, senão uma maneira de pensar" para a compreender "sob a mesma medida". O espaço e o tempo, em Descartes, não são concebidos como passíveis de serem separados da matéria.

Ora, desta identificação da extensão com a matéria, ele vai deduzir várias noções importantes no tocante à concepção da natureza. São elas, em primeiro lugar, a negação do vazio e a divisibilidade da matéria até ao infinito, a saber, a negação do átomo. Há ainda duas outras, que são o carácter indefinido do mundo e a homogeneidade entre a Terra e os céus, concepções essas que determinam a visão moderna da natureza.

O segundo conceito fundamental que define a física cartesiana é o do movimento dos corpos. Descartes define-o, unicamente, como movimento local (mudança segundo o local), e exclui as outras modalidades advogadas por Aristóteles tais como as mudanças em função da qualidade, da quantidade e da substância. Nos Princípios, afirma, em primeiro lugar, que, por "movimento", entende apenas "aquele que se efectua de um lugar para outro". Mas, seguidamente, precisa-o como "o transporte de um corpo, da proximidade daqueles que o tocam imediatamente e que nós consideramos como estando em repouso, para a proximidade de outros quaisquer". Ora, em que é que consiste esta precisão que se refere à "proximidade"? Parece, numa primeira instância, que ela consiste em fornecer um ponto de referência exacto. Porém, na passagem onde Descartes defende a ausência de um ponto verdadeiramente imóvel, diz que determinamos o lugar de um corpo à superfície da Terra "por alguns pontos imóveis que imaginamos presentes no céu", pontos que não serão, portanto, vizinhos do corpo em questão.

Parece-nos, por conseguinte, que a verdadeira razão para esta precisão se encontra noutro local: Descartes fornece esta definição complementar do movimento a fim de se furtar à condenação da Igreja. Porque, devido à sua teoria do turbilhão, segundo a qual a Terra gira com a matéria do céu que a envolve, esta definição complementar permite-lhe conciliar engenhosamente a sua teoria do heliocentrismo com a negação do movimento relativo da Terra. Com efeito, exceptuando-se a passagem onde simula negar o movimento da Terra, ele não faz intervir nas suas explicações concretas dos fenómenos naturais esta definição mais restrita. Aliás, em O Mundo, o movimento é definido como aquilo "que faz com que os corpos passem de um lugar para outro e ocupem, sucessivamente, todos os espaços que estão entre eles". De toda a maneira, o movimento local só é concebido, segundo Descartes, em relação ao ponto de referência fixado por nós. Donde decorre, como é evidente, que "o movimento e o repouso não são mais do que dois modos diferentes do corpo onde eles se encontram"».

Michio Kobayashi («A Filosofia Natural de Descartes»).


«No que respeita àquelas coisas que consideramos como tendo alguma existência, necessário é que as examinemos aqui uma após outra, a fim de distinguir o que é obscuro e o que é evidente em a noção que temos de cada uma. Quando conhecemos a substância, concebemos somente uma coisa que existe de tal maneira que só tem necessidade de si própria para existir. Mas pode haver obscuridade no que toca à explicação desta frase: só ter necessidade de si próprio. Porque, falando com propriedade, só Deus é isso, e não há nenhuma coisa criada que possa existir, um só momento, sem ser sustentada e conservada pelo seu poder. Por isso há razão para dizer na Escola que o nome de substância não é "unívoco" aos olhos de Deus e das criaturas, isto é, que não há nenhuma significação desta palavra que concebamos distintamente, que convenha a ele e a elas. Todavia, porque, entre as coisas criadas, algumas são de tal natureza que não podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando então, a estas, substâncias, e, àquelas, qualidades ou atributos das substâncias.


[...] A noção que assim temos de substância criada refere-se da mesma maneira a todas, isto é, tanto às que são imateriais como às que são materiais ou corpóreas, porque para compreender o que são substâncias, basta tão só que vejamos que podem existir sem o auxílio de qualquer outra coisa criada. Mas quando é questão de saber se alguma dessas substâncias existe verdadeiramente, isto é, se está presente no mundo, digo que não é suficiente que exista dessa maneira para que nós a apercebamos. Porque isto, só por si, nada nos faz descobrir que excite algum conhecimento particular do nosso pensamento. É necessário, além disso, que tenha alguns atributos que possamos notar; e não há nenhum que não seja suficiente para este efeito, porque uma das noções comuns é que o nada não pode ter nenhuns atributos, nem propriedades ou qualidades. Por esta razão é que logo que encontramos algum, temos motivo para concluir que é atributo de alguma substância, e que tal substância existe.

[...] Embora cada atributo seja suficiente para fazer conhecer a substância há, no entanto, um em cada uma, que constitui a sua natureza e a sua essência e de que todos os outros dependem. Assim, a extensão em comprimento, largura e altura, constitui a natureza da substância corporal e o pensamento constitui a natureza da substância que pensa. Com efeito, tudo quanto pode atribuir-se ao corpo pressupõe a extensão e não passa de dependência do que é extenso. Igualmente, todas as propriedades que encontramos na coisa pensante, limitam-se a serem diferentes maneiras de pensar. Assim não poderíamos conceber, por exemplo, uma figura, sem ser uma coisa extensa, nem movimento sem um espaço que é extenso; assim a imaginação, o sentimento e a vontade dependem de tal maneira da coisa pensante que não os podemos conceber sem ela. Podemos, pelo contrário, conceber a extensão sem figura ou sem movimento e a coisa pensante sem imaginação ou sem sentimento, e assim por diante.

[...] Podemos, portanto, ter duas noções ou ideias claras e distintas, uma de substância criada que pensa, e outra de uma substância extensa, desde que separemos, cuidadosamente, todos os atributos do pensamento dos atributos de extensão. Também nos é possível possuir ideia clara e distinta de uma substância incriada que pensa e que é independente, isto é, de um Deus, desde que não pensemos que tal ideia represente tudo o que nele é, e que a isso não misturemos nenhuma ficção do nosso entendimento: na condição de atendermos simplesmente ao que verdadeiramente está compreendido em a noção distinta que dele temos e sabemos pertencer à natureza de um Ser sumamente perfeito. Na verdade, ninguém há que possa negar que tal ideia de Deus seja em nós, pois não há razão para acreditar que o entendimento humano não possa ter nenhum conhecimento da Divindade».

René Descartes («Os Princípios da Filosofia»).


«Henry More percebia inteiramente que a noção de "espírito" era quase sempre apresentada como inconcebível, pelo menos para o espírito humano.

"Mas por minha parte, diz-nos ele, penso que a natureza de um espírito é tão concebível e fácil de definir quanto a natureza de qualquer outra coisa. Porque, no que respeita à própria essência, ou à substância despida de qualquer coisa, apenas quem é um completo noviço em especulação não admite que ela é inteiramente inconhecível, mas quanto às propriedades essenciais e inseparáveis, elas são tão inteligíveis e explicáveis num espírito quanto em qualquer outro sujeito. Ainda, por exemplo, concebo que a ideia completa de um espírito em geral, ou pelo menos de todos os espíritos finitos, criados e subordinados, consiste nas propriedades e poderes seguintes: a saber, a autopenetração, a automação, a autocontracção e dilatação, e a indivisibilidade; estas são aquelas que se estima serem mais fundamentais; acrescento aquelas que possuem em relação com outras (substâncias), e estas são o poder de penetrar, mover e modificar a matéria. Estas propriedades e poderes, reunidas em conjunto, constituem a ideia ou a noção do espírito, por meio das quais este se distingue claramente do corpo, cujas partes não podem penetrar uma na outra, que não é automotor, não pode nem contrair-se nem dilatar-se ele próprio, e cujas partes são divisíveis e separáveis umas das outras; mas as partes de um espírito não podem estar mais separadas [uma da outra] do que se não pode também destacar do Sol um raio de luz, cortando-o com tesouras feitas de um cristal transparente. Isto [o que precede] pode servir para fixar a noção de um espírito. E desta descrição resulta claramente que o espíritoé uma noção de maior perfeição que o corpo, e que está, por conseguinte, mais apta a ser um atributo do que é absolutamente perfeito do que o está um corpo".

Como vemos, o método utilizado por Henry More para chegar à noção ou definição de um espírito não é complicado. Basta atribuir-lhe propriedades opostas ou contrárias às de um corpo: penetrabilidade, indivisibilidade e a faculdade de se contrair e de se dilatar, ou seja, de se estender sem evolução de continuidade a um espaço maior ou menor. Esta última propriedade tinha sido considerada durante muito tempo como pertencendo igualmente à matéria, mas, sob a influência conjunta de Demócrito e de Descartes, More nega-a à matéria e ao corpo que, enquanto tal, é incompressível e ocupa sempre a mesma quantidade de espaço.

Na Imortalidade da Alma, Henry More explica mais claramente ainda a sua noção de espírito e a maneira pela qual esta pode ser denominada. Tenta, além disso, introduzir na sua definição uma espécie de precisão terminológica. Diz, por exemplo: "Entendo por divisibilidade actual a 'discerpibilidade', a possibilidade de romper, de destacar uma parte da outra (separabilidade)". É absolutamente evidente que esta "discerpibilidade" (separabilidade) apenas pode pertencer a um corpo e que não é possível cortar em dois um espírito ou dele arrancar e destacar um pedaço.




Quanto à faculdade de se contrair ou de se dilatar, More atribui-a à "espessura" (spissitude) essencial do espírito, espécie de densidade espiritual, quarto modo ou quarta dimensão que a substância espiritual possui e que se junta às meras três dimensões normais de que estão dotados os corpos. Assim, de cada vez que um espírito de contrai, a sua "espessura essencial" cresce; pelo contrário, ela diminui quando ele se dilata. Não podemos, é certo, imaginar esta espessura, diz-nos Henry More; mas "este quarto modo é tão simples e familiar para o meu entendimento quanto as Três Dimensões o são para os meus sentidos ou para a minha imaginação".

Sendo assim, a definição do espírito torna-se muito fácil:

"Vou então definir um espírito em geral da maneira seguinte: uma substância penetrável e inseparável (indiscerpível). Compreender-se-á a conveniência desta definição e dividimos a substância em geral nos seguintes géneros primeiros: Corpo e Espírito e, seguidamente, definamos o Corpo: uma substância impenetrável e divisível (discerpível). Portanto, o género oposto a este está convenientemente definido: uma substância penetrável e inseparável (indiscerpível).

Apelo agora a qualquer homem que possa afastar todo o preconceito e que possua livre uso das suas faculdades [para que nos diga] se, na definição de espírito, não é cada termo tão inteligível e conforme à razão quanto na do corpo. Com efeito, a noção precisa de substância, [noção] na qual concebo incluídas a extensão e a actividade, é a mesma em ambos, quer ela seja inata ou comunicada. Porque a própria matéria, uma vez movida, pode mover uma outra matéria. E é tão fácil compreender o que é [ser] penetrável como impenetrável, e o que é [ser] inseparável (indiscerpível) como separável (discerpível); e sendo penetrabilidade e indiscerpibilidade [propriedades] tão imediatas do espírito quanto impenetrabilidade e a discerpibilidade o são do corpo, tanta razão há para os considerar como os atributos de um como do outro. Ora, não compreendendo a substância, na sua noção precisa, mais a impenetrabilidade do que a indiscerpibilidade, o facto de que um género de substância mantenha umas das suas partes exteriores às outras, de modo a torná-las impenetráveis umas para as outras (como o faz, por exemplo, a matéria para as partes da matéria) poderia constituir um tão bom motivo para espanto quanto o facto de que as partes de uma outra substância se mantenham tão fortemente em conjunto que elas não sejam de modo algum discerpíveis"».

Alexandre Koyré («Do Mundo Fechado ao Universo Infinito»).


«O espaço, bem como o tempo, é uma das condições que definem a existência corporal, mas estas condições são diferentes da "matéria", ou antes, da quantidade, embora se combinem naturalmente com esta; são menos "substanciais", logo, mais próximas da essência, é isso que implica a existência nelas de um aspecto qualitativo; acabámos de ver isso com o espaço, e vê-lo-emos também com o tempo. Antes disso, diremos ainda que a inexistência de um "espaço vazio", é suficiente para mostrar o absurdo de uma das "antinomias" cosmológicas de Kant; perguntar "se o mundo é infinito ou se é limitado no espaço", não tem qualquer sentido; é impossível que o espaço se estenda para além do mundo, para o poder conter, porque então tratar-se-ia de um espaço vazio, e o vazio não pode conter nunca seja o que for; pelo contrário, é o espaço que está no mundo, isto é, na manifestação, e se só estivermos atidos à consideração do domínio da manifestação corporal, poder-se-á dizer que o espaço é co-extensível a este mundo, visto que é uma das condições dele; mas este mundo não é mais infinito que o espaço, porque, como este, não contém todas as possibilidades, não representa senão uma certa ordem de possibilidades particulares, e está limitado pelas determinações que constituem a sua própria natureza. Diremos ainda, para não ter que voltar ao assunto, que é igualmente absurdo perguntar "se o mundo é eterno ou se começou no tempo"; por razões todas semelhantes, foi na realidade o tempo que começou no mundo, se se trata da manifestação universal, ou com o mundo, se se trata da manifestação corporal; mas o mundo não é eterno por causa disso, porque também há os começos intemporais; o mundo não é eterno porque é contingente, ou, noutros termos, há um começo, do mesmo modo que há um fim, porque ele não é por si só o seu princípio, ou porque não o contém em si, mas este princípio é-lhe necessariamente transcendente. Não há nenhuma dificuldade em tudo isto, e é por isso que uma boa parte das especulações dos filósofos modernos se baseia só em perguntas mal feitas, portanto, insolúveis, logo, susceptíveis de dar lugar a discussões infindas, que se desfazem inteiramente ao serem examinadas fora de qualquer preconceito, ficando logo reduzidas ao que são na realidade, isto é, simples produtos da confusão que caracteriza a mentalidade actual».

René Guénon («O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos»).







«Nous l'avons remarqué déjà, l'idealité de l'espace est double, étant tantôt la formalité d'une détermination abstraite, tantôt l'intuitivité du tableau perçu par les sens. Bergson dès l'Essai discerne ces deux aspects de la notion. Mais il les ramène l'un à l'autre. La perception de l'étendue, c'est celle des qualités hétérogènes, aperçues localisées dans l'espace homogène. Il n'y a donc qu'un seul espace, homogène et divisible à l'infini, à la fois perçu et conçu conformément à la doctrine kantienne. Mais Bergson affirme déjà cependant: "Il faudrait distinguer entre les perceptions de l'étendue et la conception de l'espace; elles son sans doute impliquées l'une dans l'autre". Bergson conclut en soulignant l'originalité de l'espace homogène conçu par l'homme, et que la perception animale ignore, l'étendue hétérogène de l'animal ne constituant pas véritablement un espace.

Matière et Mémoire fait beaucoup plus nettement la distinction de l'étendue perçue et de l'espace abstrait. Bergson y renonce à la doctrine strictement kantienne. L'étendue perçue en effet ne résulte plus d'une forme a priori de la sensibilité; la perception n'est plus considérée à la manière idéaliste comme une représentation inextensive. Bergson dénonce au contraire "la confusion métaphysique de l'étendue indivisée et de l'espace homogène".

C'est "au-dessous de la continuité des qualités sensibles" qu'il faut tendre l'espace homogène comme "un filet aux mailles indéfiniment déformables et indéfiniment divisibles". Ainsi on saisira "la masse confuse à tendance extensive... en deçà de l'espace homogène", et l'on pourra "se dégager de l'espace sans sortir de l'étendue".

Dans la perception, "ce qui est donné, ce qui est réel, c'est quelque chose d'intermédiaire entre l'étendue divisée et l'inétendu pur; c'est ce que nous avons appelé l'extensif. Ainsi, par l'extension, une médiation redevient possible entre l'inétendu et l'étendu, entre la conscience et la matière.

[...] Mais l'espace mathèmatique lui-même est-il bien toujours homogène? N'ya-t-il pas, à côté de l'uniformité de l'espace métrique, un espace diversifié, qualitatif?

Bergon recontre évidemment ici les fameux paradoxe kantien des figures symétriques non superposables sur lequel Boutroux avait insisté: "nous distinguons nous-même notre droite et notre gauche par un sentiment naturel, et... ces deux déterminations de notre propre étendue nous présentent bien alors une différence de qualité; c'est même pourquoi nous échouons à les définir".

Mais on pourrait objecter que la droite et la gauche ne sont pas des déterminations intrinsèques, mais des directions concrètes que notre action trace au travers du filet d'espace homogène. Bergson dans L'Evolution créatrice hésitera entre les deux interprétations. La "géométrie naturelle", dit-il d'abord, qui transparaît sous la "géométrie savante" emprunte sa force "à ce que sous la qualité, nous voyons confusément la grandeur transparaître": elle ignore la qualité. Quelques lignes plus loin cependant Bergson évoque "le sauvage (qui) s'entend mieux que le civilizé à evaluer les distances, à déterminer une direction" et l'animal "qui ne se représente pas non plus un espace homogène". Le sauvage et l'animal se représentent donc un espace qualitatif.

Sans doute peut-on regretter que Bergson ne soit jamais revenu sur ce point pour le préciser. Car la science de l'espace non métrique, ou qualitatif, existe (ailleurs que chez les "sauvages"): c'est la topologie, ou analysis sitûs, et Poincaré dans des articles retentissants en avait signalé aux philosophes l'importance. Si nous passons de l'abstrait au concret, cette science des directions concrètes de l'espace perçu, ce sera la gestaltpsychologie. Mais sans doute ici Bergson pourrait répondre qu'il ne s'agit pas de l'espace, mais des qualités qui le remplissent et le colorent. La doctrine en effet veut l'espace homogène, afin que ce réceptacle indéterminé puisse accueillir toutes les déterminations qualitatives, qui sont extra-spatiales, sinon par leur lieu. Mais leur lieu n'entre point dans leur essence.

L'espace homogène aura donc le dernier mot: "Plus on insistera sur la différence des impressions faites sur notre rétine par deux points d'une surface homogène, plus seulement on fera de place à l'activité de l'esprit, qui aperçoit sous forme d'homogénéité étendue ce qui est donnée comme hétérogénéité qualitative"».

François Heidsieck («Henri Bergson et la notion d'espace»).






INFINI ET CONTINU


L'idée de l'infini tel que l'entend le plus souvent Leibnitz, et qui est seulement, il ne faut jamais le perdre de vue, celle d'une multitude qui surpasse tout nombre, se présente quelquefois sous l'aspect d'un «infini discontinu», comme dans le cas des séries numériques dites infinies; mais son aspect le plus habituel, et aussi le plus important en ce qui concerne la signification du calcul infinitésimal, est celui de l'«infini continu». Il convient de se souvenir à ce propos que, quand Leibnitz, en commençant les recherches qui devaient, du moins suivant ce qu'il dit lui-même, le conduire à la découverte de sa méthode, opérait sur des séries de nombres, il n'avait à considérer que des différences finies au sens ordinaire de ce mot; les différences infinitésimales ne se présentèrent à lui que quand il s'agit d'appliquer le discontinu numérique au continu spatial. L'introduction des différentielles se justifiait donc para l'observation d'une certaine analogie entre les variations respectives de ces deux modes de la quantité; mais leur caractère infinitésimal provenait de la continuité des grandeurs auxquelles elles devaient s'appliquer, et ainsi la considération des «infiniment petits» se trouvait, pour Leibnitz, étroitement liée à la question de la «composition du continu».

Les «infiniment petits» pris «à la rigueur» seraient, comme le pensait Bernoulli, des «partes minimae» du continu; mais précisément le continu, tant qu'il existe comme tel, est toujours divisible, et, par suite, il ne saurait avoir de «partes minimae». Les «indivisibles» ne sont pas même de parties de ce par rapport à quoi ils sont indivisibles, et le «minimum» ne peut ici se concevoir que comme limite ou extrémité, non comme élément: «La ligne n'est pas seulement moindre que n'importe quelle surface, dit Leibnitz, mais elle n'est pas même une partie de la surface, mais seulement un minimum ou une extrémité» (1); et l'assimilation entre extremum et minimum peut ici se justifier, à son point de vue, par la «loi de continuité», en tant que celle-ci permet, suivant lui, le «passage à la limite», ainsi que nous l'avons déjà dit, du point par rapport au volume; mais, par contre, les éléments infinitésimaux doivent être des parties du continu, sans quoi ils ne seraient même pas des quantités; et ils ne peuvent l´être qu'à la condition de ne pas être des «infiniment petits» véritables, car ceux-ci ne seraient autre chose que ces «partes minimae» ou ces «derniers éléments» dont, à l'égard du continu, l'existence même implique contradiction. Ainsi, la composition du continu ne permet pas que les infiniment petits soient plus que de simples fictions; mais, d'un autre côté, c'ést pourtant l'existence de ce même continu qui fait que ce sont, du moins aux yeux de Leibnitz, des «fictions bien fondées»: si «tout se fait dans la géométrie comme si c'étaient de parfaites réalités», c'est parce que l'étendue, qui est l'objet de la géométrie, est continue; et, s'il en est de même dans la nature, c'est parce que les corps sont également continus, est parce qu'il y a aussi de la continuité dans tous les phénomènes tels que le mouvement, dont ces corps sont le siège, et qui sont l'objet de la mécanique et de la physique. D'ailleurs, si les corps sont continus, c'est parce qu´'ils sont étendus, et qu'ils participent de la nature de l'étendue; et, de même, de la continuité du mouvement et des divers phénomènes qui peuvent s'y ramener plus ou moins directement provient essentiellement de leur caractère spatial. C'est donc, en somme, la continuité de l'étendue qui est le véritable fondement de toutes les autres continuités qui se remarquent dans la nature corporelle; et c'est d'ailleurs pourquoi, introduisant à cet égard une distinction essentielle que Leibnitz n'avait pas faite, nous avons précisé que ce n'est pas à la «matière» comme telle, mais bien à l'étendue, que doit être attribuée en réalité la propriété de «divisibilité indéfinie».

Nous n'avons pas à examiner ici la question des autres formes possibles de la continuité, indépendantes de sa forme spatiale; en effect, c'est toujours à celle-ci qu'il faut en revenir quand on envisage des grandeurs, et ainsi sa considération suffit pour tout ce qui se rapporte aux quantités infinitésimales. Nous devons cependant y joindre la continuité du temps, car, contrairement à l'étrange opinion de Descartes à ce sujet, temps est bien réellement continu en lui-même, et non pas seulement dans la représentation spatiale par le mouvement qui sert à sa mesure (2). A cet égard, on pourrait dire que le mouvement est en quelque sorte doublement continu, car il l'est à la fois par sa condition spatiale et par sa condition temporelle; et cette sorte de combinaison du temps et de l'espace, d'où résulte le mouvement, ne serait pas possible si l'un était discontinu tandis que l'autre est continu. Cette considération permet en outre d'introduire la continuité dans certaines catégories de phénomènes naturels qui se rapportent plus directement au temps qu'à l'espace, bien que s'accomplissant dans l'un et dans l'autre également, comme, par example, le processus d'un développement organique quelconque. On pourrait d'ailleurs, pour la composition du continu temporel, répéter tout ce que nous avons dit pour celle du continu spatial, et, en vertu de cette sorte de symétrie qui existe sous certains rapports, comme nous l'avons expliqué ailleurs, entre l'espace et le temps, on aboutirait à des conclusions strictement analogues: les instants, conçus comme indivisibles, ne sont pas plus des parties de la durée que les points ne sont des parties de l'étendue, ainsi que le reconnaît également Leibnitz, et c'était d'ailleurs là encore une thèse tout à fait courante chez les scolastiques; en somme, c'ést un caractère général de tout continu que sa nature ne comporte pas l'existence de «derniers éléments».






Tout ce que nous avons dit jusqu'ici montre suffisamment dans quel sens on peut comprendre que, au point de vue où se place Leibnitz, le continu enveloppe nécessairement l'infini; mais, bien entendu, nous ne saurions admettre qu'il s'agisse lá d'une «infinité actuelle», comme si toutes les parties possibles devaient être effectivement données quand le tout est donnée, ni d'ailleurs d'une véritable infinité, qui est exclue par toute détermination, quelle qu'elle soit, et qui ne peut par conséquent être impliquée para la considération d'aucune chose particulière. Seulement, ici comme dans tous les cas où se présente l'idée d'un prétendu infini, différent du véritable Infini métaphysique, et qui pourtant, en eux-mêmes, représentent autre chose que des absurdités pures et simples, toute contradiction disparaît, et avec elle toute difficulté logique, si l'on remplace ce soit-disant infini par de l'indefini, et si l'on dit simplement que tout continu enveloppe une certaine indéfinité lorsqu'on l'envisage sous le rapport de ses éléments. C'est encore faute de faire cette distinction fondamentale de l'Infini et de l'indéfini que certains ont cru à tort qu'il n'était possible d'échapper à la contradiction d'un infini déterminé qu'en rejetant absolument le continu et en le remplaçant par du discontinu; c'est ainsi notamment que Renouvier, qui nie avec raison l'infini mathématique, mais à qui l'idée de l'Infini métaphysique est d'ailleurs tout à fait étrangère, s'est cru obligé, par la logique de son «finitisme», d'aller jusqu'à admettre l'atomisme, tombant ainsi dans une autre conception qui, comme nous l'avons vu précédemment, n'ést pas moins contradictoire que celle qu'il voulait écarter (in Les Principes du Calcul infinitésimal, Gallimard, 1988, pp. 68-71).


Notes: 

(1) Meditatio nova de natura anguli contactus et osculi, horumque usu in practica Mathesi ad figuras faciliores succedaneas difficilioribus substituendas, dans les Acta Eruditorum de Leipzig, 1686.

(2) Cf. Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, ch. v.


René Guénon



O tomismo: uma filosofia do século XIII e da Europa Central

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Escrito por F. Van Steenberghen




Santa Escolástica. Ver aqui


«[...] - E a renovação do tomismo?

- Do tomismo, ou da Escolástica? 

- Do tomismo, repito.

- É um engano. Efectivamente, o magistério eclesiástico impõe aos professores dos seminários a obrigação de ensinar o tomismo e a obra de S. Tomás, que os clérigos se esforçarão por transmitir aos leigos. Mas o tomismo é uma filosofia do século XIII e da Europa Central muito diferente do nosso aristotelismo arábico e judeu -, que por isso mesmo, não pode ser assimilado pelos pensadores do nosso tempo e do nosso país. 

Mando vir dois cafés, enquanto ao nosso lado continua a zumbir o eterno tema, o futebol. E Álvaro Ribeiro prossegue:

- Que acontece, então? Há uns intérpretes que se dedicam a mostrar a concordância de S. Tomás com uma filosofia perene, que vai de Aristóteles a Heidegger. Em vez de citar os filósofos que produziram as doutrinas, cita-se a sua tradução tomista, se possível em latim. É uma questão de fontes ou de citações. Tomista é, em suma, aquele que cita S. Tomás de Aquino. 

- Em Portugal...

- Em Portugal nem sequer há tábuas de concordância. O nosso tomismo é franco-belga, um tomismo vergado ao preconceito da razão pura, mais próprio para cartesianos do que para aristótelicos, enfim, um tomismo sem filiação em Santo Alberto Magno. Não houve até agora um sacerdote ilustre que se desse ao trabalho de criticar, interpretar e traduzir, do ponto de vista tomista, a filosofia portuguesa, de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Tal acontecerá, porém, dentro de alguns anos, a julgar por certos sintomas de interesse que não enganam. 

- Sim, tenho lido alguns - bem raros, já sei - artigos de pensadores católicos em que começa a notar-se a referência à filosofia portuguesa, embora sobretudo com carácter histórico...

- Não há dúvida. Mas teria interesse e seria oportuna a publicação de um livro que fosse para hoje o que foi para 1924 a tão discutida obra de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, «A Igreja e o Pensamento Contemporâneo». A apologética católica tem hoje aspectos muito diferentes em todos os países do mundo, mas em Portugal deram-se acontecimentos culturais que obrigam a uma revisão da doutrina. Depois do positivismo de Augusto Comte e dos seus sequazes franceses, divulgou-se entre nós o positivismo de Kant, Feuerbach e Marx, que alguns estudantes julgam ser materialismo dialéctico, e divulgou-se também o positivismo alemão de Husserl, mera teoria da descrição dos efeitos, com as suas consequências existencialistas. Três formas de positivismo em referência às quais teve de reagir a filosofia portuguesa. Haverá um sacerdote português, suficientemente culto, que possa escrever o livro da resposta à inquietação das novas gerações? Um livro que resolva enfim os problemas da nossa apologética? Um livro intitulado «À Igreja Católica pela Filosofia Portuguesa»?...».

«O Testemunho de Álvaro Ribeiro» (in «As Portas do Conhecimento», dispersos escolhidos).


«Quando em 1882 Renan tão sorridentemente anunciava a morte do Cristianismo, as correntes então dominantes do pensamento humano pareciam na verdade justificar as suas fementidas palavras.

Como PILATOS outrora em face de Jesus, que declarava ser a Verdade, o mundo intelectual perguntava cepticamente, agora: "que é a verdade?" - e não a viu, como ele... Quis medir a grandeza da Obra Divina pela sua pequenez - e passou sem a reconhecer.


O positivismo, o cientismo, o diletantismo, o pessimismo e o realismo condenavam a Religião Cristã, em nome da razão humana - substituindo ao culto puríssimo de Cristo o culto de uma coisa impuríssima, o homem!

[...] Não só o Positivismo foi abandonado como sistema filosófico, mas só os cegos poderão deixar de ver a brilhante renovação e reconquista tomista que se vai operando nos meios intelectuais mais modernos. Lovaina, Paris e Roma são centros muito activos da brilhante renascença. A mocidade ardente de JACQUES MARITAIN, a cabeça mais filosófica deste movimento, desde que descobre a filosofia perennis, reconhecendo a absurda contradição intrínseca das filosofias chamadas modernas, consagra-se inteiramente ao saneamento do pensamento contemporâneo, por meio dela. Sendo anti-moderno, com denunciar a degradação intelectual da filosofia moderna, e especialmente da de BERGSON, seu antigo mestre, proclama-se ao mesmo tempo ultra-moderno, e é-o, pela corajosa audácia de um pensamento que fez toda a experiência do pensamento anterior, e lhe mediu... os absurdos. A filosofia de BERGSON foi uma filosofia de étape, que libertou os espíritos da tirania positivista; mas MARITAIN, seguido pelos novos, trabalha eficazmente para consolidar o pensamento actual na filosofia que o próprio BERGSON chamou "natural ao espírito humano".

[...] Acaso se haverá notado que até agora tenho falado excessivamente da França, e pouco de Portugal.

Poderia justificar-me, dizendo que, à semelhança do que no século XVI dizia PEDRO RAMUS da Universidade de Paris, assim a França é a mãe espiritual de todo o orbe, pelo menos o orbe latino. Até as criações mais admiráveis do profundo mas nebuloso génio germânico, ou do positivo génio inglês, ou do místico génio slavo, não entram verdadeiramente na grande circulação do pensamento universal, senão depois de passadas pelo belo e claro espírito francês.

Pelo que diz especialmente respeito a Portugal, já desde há muito que emigrou espiritualmente para a França, não estando eu muito longe de supor que o melhor meio de dizer novidades na nossa terra é falar... em português. EÇA DE QUEIRÓS, o português que até hoje teve o espírito mais gaulês, escreveu um dia que "Portugal era um país traduzido do francês em calão". Sem ferir a nota do paradoxo, poder-se-ia dizer que quem deseje saber o que se passou em Portugal, interrogue a... França.

Foi com a geração de 1870 que "o estúpido século XIX", como brutalmente diz LÉON DAUDET, chegou a Portugal».

D. Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).


«A escolástica constitui-se, sem dualismo gnóstico, numa translatio studii que caminha em duas vias: a lectio, ou exegese das doutrinas, que necessariamente induz à disputatio, à altercatio, à arte de argumentar e de demonstrar, que foi a "arte de Raymundo" (Lullo) e de Tomás de Aquino. A arte disputativa, necessária à demonstração da verdade e à refutação dos erros e sofismas, gera as tendências doutrinais, nascidas de oposição tética, raro atenta à busca da coincidentia dos opostos, que foi um ideal de Nicolau de Cusa. A primeira fase da escolástica como que fica preenchida pela polémica dos Universais, no século IX, que, a partir da exegse de Aristóteles, determina as sequências ideológicas futuras, tanto em filosofia, como em ciência, como em teologia, tanto mais que as disputas não visam apenas confronto das três teologias, mas envolvem também uma disputa interna, a que opõe idealistas e realistas, universalistas e nominalistas, não obstante a obediência à regra de ouro de que o philosophus amator Dei est, ou exactamente por causa dessa regra. A multiplicidade de tendências é característica da segunda fase, em que se assumem as quatro grandes escolas: augustinismo, tomismo, escotismo e nominalismo.

Foram estas três últimas escolas que recuperaram Aristóteles da imagem negativa que, dele, legara a patrologia greco-latina, e foram elas as nossas origens porquanto a "escolástica (medieval) representa para nós, portugueses, um período de formação filosófica", e a medievalidade escolástica é "a idade das nossas origens" (A. Ribeiro, in Atlântico, 5, 1947, pág. 59). A escolástica lusitana participou de forma activa e determinante na doutrinação da filosofia da cristandade medieval. Paulo Orósio serviu a lectio da dedução providencialista até quase ao fim da primeira escolástica e os escritos de Martinho de Dume entraram em lições gerais do magistério, por vezes atribuídos a Séneca. A escola franciscana vê-se ilustrada com Santo António de Lisboa, enquanto Fr. Paio de Coimbra ilustra a escola dominicana. Pedro Hispano, com seu platonismo avicenizante, é o mestre das Sumas Logicais cuja leitura foi obrigatória nas escolas até meados do século XVI, por ele se obtendo iniciação na lógica. Álvaro Pais é modelo do augustianismo, tanto em seu país como lá fora. Um estrangeiro, Tomás Escoto, afirma em Lisboa o averroísmo latino como se gnose fosse. A tendência escotista acha exemplos europeus em Gomes de Lisboa e André do Prado. A ética senequizante serve a maioria dos mestres, incluindo os laicais, como D. Duarte e D. Pedro. O nominalismo é porventura menos relevante, ainda que se proponha nos escritos de Pedro Margalho (Escólios em ambas as Lógicas, 1520. Tra. port. de M. P. de Meneses, 1965) que mitiga o nominalismo dos precursores de Descartes como sejam Gomes Pereira e Francisco Sanches. O tomismo foi, nesta primeira escolástica, menos substancial do que seria depois, sem embargo de a lição tomista ser ouvida desde meados do século XIII na escola dominicana de Santarém, e desde cerca de 1270, em Alcobaça, cujos alunos iam a Paris escutar o mestre.

Pedro Hispano


As polémicas internas, a especialização científica com a tónica da separação do trívio e do quadrívio (assim se introduzindo a distinção entre ciências morais e ciências naturais); o empirismo dos Descobrimentos, que privilegiou uma razão indutivo-experimental e rectificante das deduções a priori, se bem que assentes no critério silogístico; o ideal humanista, que preconiza a abertura ao relativismo teológico e ao interculturalismo; e, acima de tudo, a reforma luterana e a assunção da nações germanas à ilustração; determinam, em conjunto, a decadência da primeira escolástica, cujo património se sujeita à corrosão que deriva, não da filosofia, mas dos acidentes e conjunturas sociais. Todavia, do mesmo passo que os factores corrosivos prevalecem, há motivações renovacionistas que progridem, e que vão dar como fruto a Segunda Escolástica.

A Segunda Escolásticaé a escolástica medieval renovada segundo os critérios dos novos tempos, e preparada para uma controvérsia com as novas correntes de pensamento. O cânone medieval reveste-se das aquisições modernas e eis a nova escolástica. Os factores de ascensão, embora dispersivos, são unificáveis: a dialéctica revaloriza-se como arte primacial na Europa católica e, recuperando a lição antiga, Belchior Beleago e Diogo de Contreiras tentam revalidar o coração mental do pensamento antigo; há uma palingénese do aristotelismo, apesar do ascenso do platonismo e da filosofia pré-platónica, palingénese essa que questiona Aristóteles segundo o método humanista, conforme ao modo do aristotelismo de António de Gouveia; o tomismo, face à heterodoxia reformista, advém aparelho disputativo de primeira grandeza, revelando uma flexível mas autoral funcionalidade; contra o vernaculismo filosófico da Reforma, valoriza-se a iniciação latina; o Concílio de Trento determina as políticas culturais da Contra-Reforma: criação dos seminários diocesanos, novos institutos religiosos (Companhia de Jesus), reforma do Santo Ofício, aprofundamento das fontes doutrinais da Escritura, da Tradição e do Magistério. A Hispânia soergue-se a baluarte geográfico da Contra-Reforma em todo o mundo: pela disputa anti-reformista na Europa, pela missionação no resto do mundo. É um século de ouro que se inicia (1540-1640) e que começará a ser o da fundação ou renovação das escolas. O Colégio das Artes é fundado em 1547 num meio universitário onde, desde 1540, já tinham sido criados vários colégios universitários das ordens religiosas. Os jesuítas tomam conta do Colégio das Artes (1555) e a breve trecho o esquema topográfico da Segunda Escolástica está definido: Salamanca, Alcalá, Coimbra, Évora. De 1540 a 1640 é um tempo de ascensão, de 1640 em diante é um tempo de enfraquecimento. O episódio mais considerável é o Curso Conimbricense que recapitula as grandes teses da primeira escolástica: a filosofia não reside na vontade mas na inteligência; ela é o amor da sabedoria; ciência das cousas humanas e divinas, visa a contemplação da verdade olhando as coisas como as coisas são. Próprias da nova escolástica são duas sínteses: em filosofia, a síntese aristotélica que, modelada por Pedro da Fonseca e pelos Conimbricenses, como que esgota a lógica formal de Aristóteles; em teologia, a síntese tomista, já segundo o rigor literalista dos dominicanos, levado a um alto momento de síntese por António de Sena e por João de Santo Tomás, já segundo a síntese dos jesuítas, desde Fonseca a Suárez e a Molina. Sem embargo, a estrutura das sínteses concede espaços de ambientação eficaz, tanto ao platonismo renascentista, como ao augustinismo, como ao avicenismo e ao empirismo, apesar de notória falta de contacto entre as ciências especulativas e as ciências experimentais no plano da natureza. Há, porém, certa mutação externa da cultura em acto que a escolástica suscitou, mas que não acompanhou através de magistral influência. Convém distinguir: a escolástica manteve a essência do saber filosófico, mas não respondeu em tempo oportuno ao processo de cisões que, dela derivado, se concluiu fora dela e, algumas vezes, contra ela. O método filosófico escolástico não se transformou em erro dentro da escolástica, mas a dialéctica do saber, já apontada por Aristóteles, dividida entre ciência e opinião, levou ao maior avaliamento da opinião e a um como que juízo de que também a opinião é ciência, quando a ciência está para além da opinião. Supunha-se, na emergência, que todo o filósofo cristão deve aderir a uma seita (Melgaço, Scotus Aristotelicus, II, pág. 44), sendo, a escolástica peripatética, não mais do que uma seita, a par do gassendismo, do cartesianismo, do newtonismo, do ecletismo e do sincretismo, de todas as opiniões ou doxologias recentiores, esquecida ou posta de parte a regra de ouro da ancilaridade transracional da filosofia, e a norma de que esta procede por dedução lógica. A falta de actualização quanto a uma epistemologia das ciências é uma das causas que afecta o prestígio da escolástica. Além disso, o método escolástico é menos vulgar do que a exposição dos filósofos modernos que, assim, devém mais perceptível pelo poder político. A importação das ideologias recentiores, a incapacidade de actualização do Curso Conimbricense (Francisco Soares e António Cordeiro ainda tentaram a reforma, mas os ventos da história sopravam contra), a ascensão do iluminismo, destruíram a influência da escolástica, depois de ela ter fecundado o pensamento moderno, como se mostra nas obras de Descartes, de Leibniz e de Wolffio. Considera-se que a reforma pombalina dos estudos, coetânea da expulsão da Companhia de Jesus marca, entre 1758 e 1773, o fim da Segunda Escolástica. Erradicada a escolástica jesuítica, Pombal deu aos franciscanos, através de Fr. Manuel do Cenáculo, as faculdades de reforma dos estudos, pelo que, em tempo de Cenáculo (fal. 1814) há uma revivescência da escolástica franciscana e dos seus valores, o escotismo e o lulismo, emparceirados com uma adesão formal às filosofias modernas. Em boa verdade, a escolástica, afecta à mendicância, só termina em 1834, quando as ordens religiosas são expulsas. De um modo ou de outro, o peripatetismo sobreviveu nas religiões às quais o pombalismo concedeu licença de ficar, e que ficaram, até 1834. O fenómeno a que, a partir daí, se assiste é o da tentativa de instauração de uma escolástica nova, orientada pela política de Estado, decidida a influenciar a sociedade mediante o ensino. A essa nova escolástica três caracteres a definem: laicidade, eclectismo (que se dissolve na constante implantação de compêndios expositivos) e carência de um corpo axiológico prévio, contrariamente ao que ocorre na escolástica propriamente dita. Considere-se, em todo o caso, que o abandono da tradição escolástica equivale à decadência da filosofia.

A sequela decadentista afectou o magistério filosófico em todas as escolas. No último quartel do século XVIII assume vitalidade um movimento de renovação, a Neo-escolástica, que é definível como um regresso crítico à tradição pela leitura da filosofia e dos métodos à luz dos modernos, segundo o critério das escolas, o tomismo, o escotismo, o suarezismo, conforme as vinculações dos institutos religiosos, e sobretudo, já dos jesuítas exilados, já dos dominicanos de obediência tomista. O movimento evita o encarecimento pouco crítico da filosofia clássica e procura a plena informação no conhecimento científico, natural, psicológico e sociológico; de igual modo evitando o encerramento no sistema a favor de uma permanente análise crítica, por forma a concluir pelas coincidências e pela interacção da tradição e da evolução. Depois de uma fase de elaboração, o movimento vê-se oficializado pela encíclica Aeterni Patris (1879) a partir de cuja doutrina a neo-escolástica atinge uma dinâmica de radicação expansiva, embora o tomismo fosse privilegiado naquele documento. O neotomismo assume corpo em centros como Coimbra (Tiago Sinibaldi) e Braga (Martins Capela) ainda no século XIX. Há uma fractura de sequência entre 1910 e cerca de 1930, apesar do aparecimento de autores isolados. A criação da Faculdade de Filosofia (Braga, 1947) e do Centro de Estudos Escolásticos (Lisboa, 1950) ajuda a desenvolver novas sequências de tipo colegial. O neotomismo acha expressão em Manuel Correia de Barros, em pensadores dominicanos (Francisco Rendeiro), em professores jesuítas, já matriciados a uma visão existencial, já orientados para a exegese fenomenológica. O neo-escotismo tem corpo no pensamento da escola franciscana, mediante autores como Ilídio de Sousa Ribeiro, L. Cerqueira Gonçalves e Manuel Barbosa da Costa Freitas. Do augustinismo é típico o pensamento de Arnaldo Miranda Barbosa e de A. Ambrósio de Pina, havendo uma tendência augustinizante no âmbito da Faculdade de Teologia».

Pinharanda Gomes («Escolástica», in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).








«[...] entre todos os doutores escolásticos brilha, como astro fulgurante, e como príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual como observa o Cardeal Caetano, "por ter venerado profundamente os santos doutores que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos". Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como especial defensor e honra da Igreja. De espírito dócil e penetrante, de fácil e segura memória, de perfeita pureza de costumes, levado unicamente pelo amor da verdade, rico em ciência divina e humana, justamente comparado com o sol, aqueceu a terra com a irradiação de suas virtudes, e encheu-as com o resplendor da sua doutrina.

Não há ponto da filosofia que não tratasse com tanta penetração como solidez. As leis do raciocínio, Deus e as substâncias incorpóreas, o homem e as outras criaturas sensíveis, os actos humanos e os seus princípios, são objecto das teses que defende, e nas quais nada falta, nem a abundante colheia de investigações, nem a harmoniosa coordenação das partes nem o excelente método de proceder, nem a solidez dos princípios, nem a força dos argumentos, nem a lucidez do estilo, nem a propriedade da expressão, nem a profundidade e gentileza com que resolve os pontos mais obscuros.

Ainda mais. O doutor angélico buscou as conclusões filosóficas nas razões e princípios das coisas, que têm grandíssima extensão e encerram em seu seio o gérme de quase infinitas verdades, para serem desenvolvidas em tempo oportuno e com abundantíssimo fruto pelo mestre dos tempos posteriores. Empregando o mesmo procedimento na refutação dos erros, o santo doutor chegou ao seguinte resultado: debelou todos os erros dos tempos passados, e subministrou invencíveis armas para dissipar os que haviam de aparecer nos tempos futuros. Além disto, ao mesmo tempo que distingue perfeitamente, como convém, a fé e a razão, une-as ambas pelos vínculos da mútua amizade, conservando a cada uma seus direitos e salvando sua dignidade; de modo que a razão, levada por Tomás até ao zénite humano, não pode elevar-se a maior altura; e a fé não pode esperar que a razão lhe preste mais numerosos e mais valentes argumentos do que aqueles que lhe forneceu Tomás.

Por isso, principalmente nos séculos passados, homens doutíssimos, de grande renome em teologia e filosofia, procurando com incrível empenho as obras de Tomás, se têm consagrado, não só a cultivar sua angélica sabedoria, mas também a compenetrar-se inteiramente dela. É sabido que quase todos os fundadores e legisladores das Ordens religiosas têm imposto aos seus companheiros o estudo e a doutrina de S. Tomás e o cingirem-se a ela religiosamente, ordenando que a nenhum deles seja lícito separar-se impunemente, ainda em coisas pequenas, das pegadas deste grande homem.

Para não falarmos da família de S. Domingos, que se gloria de direito próprio de o ter por mestre, os Beneditinos, os Carmelitas, os Augustinianos, a Companhia de Jesus e outras muitas Ordens estão obrigadas a esta lei, como atestam os respectivos estatutos.

É aqui que se levanta jubilosamente o espírito ao pensar nessas celebérrimas academias e escolas, que outrora floresceram na Europa, de Paris, de Salamanca, de Alcalá, de Douai, de Tolosa, de Lovaina, de Pádua, de Bolonha, de Nápoles, e de Coimbra e outras muitas. Ninguém ignora que as glórias destas Academias cresciam de certo modo com o tempo, e que as consultas que se lhes faziam, nos mais importantes negócios, gozaram de grande autoridade em toda a parte. É também sabido que, naqueles grandes asilos da sabedoria humana, Tomás reinava como príncipe em seu próprio império, e que todas as inteligências, tanto dos mestres como dos ouvintes, se curvavam com admirável harmonia ao magistério e autoridade do Doutor angélico.

[...] outra palma parece ter sido reservada a este homem incomparável. Tem sabido granjear dos mesmos inimigos do dogma católico o tributo de suas homenagens, de seus elogios e da sua admiração. Com efeito, é sabido que entre os chefes dos partidos heréticos tem havido alguns que declararam em voz alta que, suprimida a doutrina de S. Tomás de Aquino, se comprometiam a empreender uma luta vantajosa contra todos os Doutores católicos e aniquilar a Igreja. Infundada esperança, mas não infundado testemunho.






Sendo assim, veneráveis irmãos, todas as vezes que olhamos para a bondade, força e inegável utilidade desta disciplina filosófica, tão amada de nossos pais, entendemos que tem sido uma temeridade o não haver continuado em todos os tempos e lugares a render-se-lhe a honra que merece; principalmente tendo a filosofia escolástica em seu favor o largo uso, a opinião dos homens eminentes e, o que é o principal, a aprovação da Igreja.

[...] Finalmente, todas as disciplinas humanas devem esperar grande incremento e prometer-se uma grande defesa desta restauração dos estudos filosóficos que Nós temos proposto. Porque da filosofia, como da sabedoria moderadora, costumam as belas-artes tomar a sã razão e recto método, e beber dela o seu espírito como de fonte comum da vida.

De facto, e por uma constante experiência se prova que as artes liberais têm florescido principalmente quando tem permanecido incólume a honra e o sábio juízo da filosofia; e que têm jazido no desprezo e quase olvidadas, quando a filosofia tem decaído e se tem envolvido em erros e vãs subtilezas. Pelo que, ainda as mesmas ciências físicas que agora são de tanto valor, e que causam singular admiração em toda a parte com tantas ilustres invenções, não só nenhum dano hão-de padecer, causado pelo restabelecimento da filosofia antiga, mas antes receberão muito auxílio. Pois que para o frutuoso exercício e incremento delas não basta só a consideração dos factos e a contemplação da natureza; senão que, quando constam os factos, deve subir-se muito alto e procurar com todo o cuidado reconhecer a natureza das coisas corporais, investigar as leis a que obedecem e os princípios de onde provém a ordem das mesmas, sua unidade no meio da verdade e sua afinidade no meio da diversidade. Para cujas investigações é admirável a força, luz e auxílio que presta a filosofia escolástica, se for ensinada com ilustrada razão.

A este respeito apraz-nos consignar que só com grave injúria se pode atribuir à mesma filosofia o defeito de opor-se ao adiantamento e progresso das ciências naturais; pois que os escolásticos, seguindo o parecer dos Santos Padres, tendo ensinado a cada povo na antropologia, que a inteligência só por meio das coisas sensíveis pode elevar-se ao conhecimento dos seres incorpóreos e imateriais, têm compreendido por si mesmos que nada há mais útil para o filósofo do que investigar atentamente os segredos da natureza, a aplicar-se por largo tempo ao estudo das coisas físicas. Isto mesmo fizeram eles: porque S. Tomás, o bem-aventurado Alberto Magno e outros príncipes da escolástica, não se entregaram à contemplação da filosofia de tal sorte que não dessem também grande atenção ao conhecimento das coisas naturais; antes, nessa ordem de conhecimentos, muitas das suas afirmações, muitos dos seus princípios são aprovados pelos mestres modernos, que reconhecem sua exactidão. Além disto, mesmo neste nosso tempo, muitos e insignes doutores das ciências físicas têm dado público testemunho de que entre as afirmações certas e verdadeiras da física moderna e os princípios filosóficos da escola, não existe realmente contradição alguma. Nós, pois, proclamando que é preciso receber de boa vontade e com reconhecimento tudo o que for sabiamente dito, ou utilmente inventado seja por quem for, vos exortamos, veneráveis irmãos, com todo o encarecimento, a que, para defesa e exaltação da fé católica, para o bem da sociedade e para o adiantamento de todas as ciências, ponhais em vigor e deis a maior extensão possível à preciosa doutrina de S. Tomás. Dizemos doutrina de S. Tomás, porque se se encontrar nos escolásticos alguma questão demasiadamente subtil, alguma afirmação inconsiderada, ou alguma coisa que não estiver em harmonia com as doutrinas experimentadas nos séculos posteriores, ou que seja finalmente destituída de probabilidade, não intentamos de modo algum propô-la para ser imitada pelo nosso século».

S. S. Leão XIII (in Carta Encíclica «Aeterni Patris»).


«A palavra Escolástica evoca, na consciência dos estudantes mal avisados, um processo bárbaro de didáctica, que consiste na leitura de textos sagrados, canonizados ou oficializados, acompanhada ou seguida de comentários que interpretem ou actualizem a doutrina perpétua. O lente examinará a memória e a ortodoxia do estudante por meio de exame, isto é, pela prova oral e pela prova escrita. Desse modo a Escolástica autoritária é uma didáctica adversa ao diálogo socrático e à dialéctica platónica, mas aquela obsta à liberdade do espírito que aspira pela verdade e que a reconhecerá em Deus.

A Escolástica medieval teve, efectivamente, uma origem teológica, bíblica ou livresca, proveniente das antigas "casas de estudo e de oração", que a História nos diz terem surgido nas comunidades judaicas, cristãs e islâmicas. Foi depois da queda do Império Romano, ou durante a Idade Média que os Islamitas invadiram a Penísula Ibérica, e entre eles foram os Árabes os importadores de traduções de muitos livros da literatura, da ciência e da filosofia gregas, alguns dos quais inteiramente desconhecidos dos estudiosos cristãos. Ernesto Renan, no seu célebre livro sobre Averrois, escreve o que merece ser citado para nunca ficar esquecido.

Averroes

"A introdução dos textos árabes nas escolas ocidentais divide a história científica e filosófica da Idade Média em duas épocas completamente distintas. Na primeira, o espírito humano não tem para satisfazer a sua curiosidade mais do que alguns restos do ensinamento dado nas compilações de Marciano Capella, de Beda, de Isidoro, e alguns tratados técnicos, cujo uso frequente salvou do olvido; na segunda é a ciência antiga que volta ao Ocidente, mas agora mais completa, nos comentários árabes ou nas obras originais da filosofia grega a que os romanos haviam preferido os compêndios vulgares" [Ernest Renan, Averroès et l'Averroisme: Essai historique - Paris, 1850, pag. 200].

A Europa cristã teve em Carlos Magno um grande defensor da cultura ocidental, pois deve a esse célebre imperador o estabelecimento parisiense da filosofia escolástica segundo os programas e os métodos do ilustre Alcuíno. A este monge britânico se deve a tripartição das disciplinas escolásticas em gramática, retórica e dialéctica, as quais constituem o grau preparatório, ou propedêutico, dos estudos filosóficos e teológicos. A Escolástica cristã não praticou o estudo da língua grega, deu preferência à língua latina, - a língua dos letrados ou sábios, - e daquela falta resultaram inexactidões, impropriedades e deslizes na nomenclatura filosófica, as quais só seriam corrigidas em edições publicadas depois da Renascença italiana.

Alguns historiadores consideravam a Idade Média como época bárbara de trevas e de obscurantismo. Tal juízo impróprio e excessivo tem sido atenuado pela investigação moderna que exalta os valores da escolástica cristã e da literatura popular. Foi durante a Idade Média que se fundou a nacionalidade portuguesa, e em belas páginas escritas pelo historiador Teófilo Braga está relatado o esforço dos escritores leigos, representativos do povo, pela constituição de uma cultura independente da ortodoxia dos clérigos.

Com a fundação das ordens mendicantes no século XII, Franciscanos e Dominicanos, foi dada ao clero regular a possibilidade de praticar a livre docência em diversas universidades europeias. Bastará uma breve referência à obra apologética de Santo Tomás de Aquino. Ao ilustre doutor da Igreja Católica deve a cultura moderna a separação radical dos domínios próprios da teologia e da filosofia, ou a distinção das duas faculdades gnósicas do conhecimento humano, a fé sobrenatural e a razão natural.

Este princípio de separação nítida entre a lei científica e o dogma religioso, imperante nas Universidades, facilitou o advento do racionalismo iluminista, característico da Idade Moderna. Ele permitiu o desenvolvimento da experimentação numericamente medida, e abriu novos caminhos para a visão mecanista e monista do Universo. Hipótese ousada para estabelecer grandes sistemas filosóficos, segundo os quais a única substância obedece a esquemas mecânicos, visíveis ou invisíveis, mas adequados à representação mental da dedução geométrica.

Ensinou o Santo Doutor que a filosofia culmina na ideia de Deus, a qual pode ser demonstrada, provada, argumentada segundo os processos lógicos da razão humana. Há cinco raciocínios, ou cinco vias, de prova existencial de que do espectáculo do Universo se infere uma inteligência suprema, criadora, reguladora e conservadora, à qual devemos atribuir o santo nome de Deus. Os cinco argumentos clássicos, e outros mais que possam ser apresentados pelos filósofos, constituem os preâmbulos da fé, e devem ter lugar propedêutico na catequese cristã.

Para o autor de A Alegria, a Dor e a Graça o significado da vida humana está no esforço inconsciente para conhecer, amar e servir a Deus. A maioria dos homens ignora essa verdade, ou procede como se tal ignorasse, e tal ignorância se patenteia na idolatria prestada aos valores efémeros com que julgam o indivíduo e a sociedade, a moral e a política, a arte e a técnica. Compete aos filósofos transformar aquela obscura inconsciência em luminosa consciência para que do amor humano se deduza a fraternidade universal.



Leonardo Coimbra



O problema de Deus apresenta-se por várias vezes na obra escrita por Leonardo Coimbra. Ele formula-se na indagação da prova que se torne evidente e luminosa, como o Amor dantesco que move o Sol e, com ele o ser de todas as criaturas. Tal indagação, longe de ser única ou uniforme para todos os espíritos, é variável segundo o carácter, o temperamento e a afectividade dos adolescentes, os quais, por não encontrarem a prova racional ou experiencial que lhes fale à alma, se tornam sujeitos à malícia das inferiores idolatrias.

Leonardo Coimbra elimina sucessivamente os erros das provas consideradas cousistas, admitidas por pessoas que não aprofundaram as doutrinas religiosas, e recorre a uma apologética dependente dos conceitos de infinito, de sublime e de amor. A teologia há-de, porém, ser sujeita ao exame da teodiceia, que, sendo a doutrina da justiça de Deus, exige a conciliação do bem com o mal. Aos adolescentes, que vivem num ambiente que lhes é adverso, difícil, proibido, parece-lhes evidente a prevalência do mal, quando confessam sucessivamente o cepticismo, o pessimismo e o nihilismo, variantes de uma antropologia sem Deus.

Leonardo Coimbra viveu numa época em que a Escolástica, o tomismo e o aristotelismo ainda não haviam sido dignificados pelo resultado das investigações eruditas que os papas Leão XIII e Bento XV haviam aconselhado e promovido entre clérigos e leigos. A Universidade de Coimbra, na medida em que se mostrava continuadora do ensino dos Jesuítas, expulsos de Portugal em 1759, era tida como reaccionária contra o positivismo de Teófilo Braga e dos seus continuadores. O espírito anti-clerical dos políticos monárquicos e republicanos fomentava um ateísmo que descia dos jornalistas até às massas populares.

A filosofia portuguesa decaiu profundamente ao afastar-se da escolástica e do aristotelismo, tradicionais no país. O Marquês de Pombal, procedendo como quem sabe o que não quer enquanto ignora o que quer, considerava Aristóteles como um filósofo abominável, indigno de ser mencionado nos compêndios escolares, e até mandou cancelar, censurar ou suprimir as referências que eram feitas ao Estagirita na tradução portuguesa do tratado de lógica de António Genovesi. Não prescreveu, porém, qual o sistema filosófico que deveria ser adoptado no ensino universitário, porque o espírito do reformador estava apenas preocupado com o ensino politécnico, quer dizer, da ciência e da tecnologia, enfim, da habilitação sindical.

A decadência dos estudos filosóficos no período do liberalismo religioso, político e económico que sucedeu ao "reinado" do Marquês de Pombal, explica perfeitamente que os estudiosos mais sérios vissem no sistema de Augusto Comte um plano aceitável para a reforma da educação portuguesa. A tal apostolado se dedicou Teófilo Braga, que tendo sido primeiramente atraído por Hegel e Vico, assimilou, ensinou e divulgou o sistema positivista, logo que para tal obteve cadeira no Curso Superior de Letras de Lisboa (1872). Entendia o ilustre professor que a reforma filosófica deve preceder a reforma política, já que tal era a motivação do Partido Republicano Português, mas os revolucionários impacientes e apressados desrespeitaram a ordem normal, impuseram ao País instituições determinadas pela fraseologia mitológica e metafísica, e precipitaram os acontecimentos para o abismo retrógrado que tem sido julgado pelos historiadores esclarecidos.

A filosofia portuguesa, disciplinada durante quatro séculos pelos textos de Aristóteles, traduzidos em latim segundo os comentários de Santo Tomás, não poderia crescer, florescer e frutificar perante a literatura romântica e realista do liberalismo religioso, político e económico. A Universidade não aceitou a lição de Jorge Hegel ou de Augusto Comte, dois escolásticos, na construção da enciclopédia das ciências filosóficas. O século XIX foi, por isso, um século de decadência nos estudos liceais e universitários, e caracterizado por reduzida produção de escritos originais de estudos especulativos.

Em 1868, quando publicou a História da Filosofia em Portugal, Lopes Praça, então estudante de jurisprudência, apreciava com desgosto o atraso em que se encontrava o ensino oficial do nosso país. A reflexão do moço estudioso sobre a filosofia jurídica e a filosofia política dos publicistas portugueses permitiu-lhe augurar um período de confiança benévola no futuro da cultura portuguesa. Merecem transcrição alguns trechos desse notável documento histórico.



"Ainda não se criou entre nós uma Filosofia Nacional Característica. Uma das vitórias alcançadas neste terceiro período é a preferência do português ao latim para escrever em matérias filosóficas. A vulgarização e o radicamento da Filosofia Racional entre nós depende muito desta conquista. Se muitos dos nossos Reformadores escreveram ou desejaram que se escrevesse em latim, era só para as Academias e para os sábios; mas amavam a instrução e procuravam pôr a Filosofia ao alcance de todos.

O que falta é uma escola superior junto da Universidade onde a Filosofia seja ensinada em toda a sua altura, a fim de os estudantes subirem devidamente preparados para as diversas faculdades que se destinarem. Este estabelecimento auxiliaria muitíssimo as escolas de instrução secundária e contribuiria para os progressos e radicamento da Filosofia Racional na nossa terra.

Mas admitindo já que nós possamos chegar um dia a imprimir nas Ciências Filosóficas o selo da nova individualidade, é de crer que a Filosofia que houvermos de nos apropriar não seja a idealista. Porque, posto que até hoje haja preponderado nas nossas escolas uma Filosofia imposta e não livremente escolhida, é certo que o génio português não propende para as abstracções aturadas do Idealismo, nem possui suficiente energia para as demoradas generalizações metafísicas de uma Filosofia toda espiritualista. Que um ou outro espírito o consiga, facilmente o acreditaremos; que a generalidade se eleve até ele, é o que as nossas convicções nos não deixam admitir. E aqueles dos nossos Filósofos que pensarem livremente não controvertem o nosso modo de pensar a este respeito.

Não passe muito embora de uma conjectura o que vamos dizer, estamos persuadidos que, a adoptar-se em Portugal uma escola Filosófica, ou a criar-se, só se generalizará e será portuguesa quando se recomendar pelo senso prático e moderação que deu à Escola Escocesa um lugar eminente na História Geral da Filosofia"».

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», II).


«Em geral podemos afirmar que a Filosofia que substituiu entre nós a Aristotélico-escolástica, foi a Eclética, embora predominasse no Ecletismo este ou aquele sistema e, designadamente, o sensualismo. Os nossos filósofos não se desembaraçaram facilmente do axioma escolástico: - nihil est in intellectu, quod prius non fuerit in sensu».

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).


«Em Portugal, apesar de o consenso geral sobre este assunto (o da existência de uma Filosofia portuguesa) afinar pelo juízo que antes expusemos (negativo), houve um erudito que não se dedignou de empreender uma crónica do pensamento filosófico lusitano, em tempo em que o espírito nacional, saindo do romantismo racionalista e patriótico, enveredava pela senda desdenhosa do cosmopolitismo hipercrítico, bem longe da aproveitada economia com que modernamente se recolhem todos os esforços das velhas gerações (...). Esse cronista, que em pleno realismo ousou afirmar a existência de alguma especulação entre nós, foi o Doutor J. J. Lopes Praça, então ainda estudante na Universidade de Coimbra (...). Lopes Praça deu uma compreensão muito vasta à filosofia, que por vezes se torna sinónimo de instrução pública, não aprofundou a análise dos monumentos e não levou o seu estudo além de Silvestre Pinheiro Ferreira. Mas nem por isso deixa de ser um pioneiro muito para encomiar».

Fidelino de Figueiredo («Estudos de Literatura», 4.ª série).


«Aquela filosofia que hoje se ensina nas escolas com a designação de "filosofia moderna", caracteriza-a Hegel por "abandonar totalmente o domínio da teologia filosofante" e constituir "o ponto de partida daquilo  que os franceses chamam as ciências exactas". O que lhe é essencial, o primado da vontade, recebe-o todavia a filosofia moderna da teologia escolástica. Por isso dizemos que só aparentemente ela representa uma ruptura com a teologia, filosofante ou não, e antes a prolonga dando-lhe, precisamente no abandono da expressão teológica e na construção das ciências exactas, as condições para um triunfo que, há quatro séculos indiscutido, hoje podemos ver ter sido, e estar sendo, ilusório.

Tal como é entendida escolarmente, a filosofia moderna teve o seu primeiro pensador em Descartes e o último em Hegel. "Herói do pensamento" - chama Hegel a Descartes; e acrescenta: "Jamais se poderá insistir bastante nem com suficiente amplitude expor a acção exercida por este homem sobre o seu tempo e sobre o desenvolvimento da filosofia em geral"; "com ele, podemos enfim sentirmo-nos em casa, como o mareante que grita depois de uma longa e temorosa viagem por turbulentos mares: Terra!"



Num trecho do seu Discurso do Método, enuncia Descartes aquilo a que deve dedicar-se a filosofia:

"... em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode encontrar-se uma outra, prática, que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos céus e de todos os corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artesãos, de igual modo os poderíamos utilizar em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que donos e senhores da natureza".

Tão significativo texto, o mais significativo quanto aos propósitos da filosofia moderna, abre com o repúdio dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, e certo tom desdenhoso da expressão pressupõe que já então ela se podia dar por repudiada. Essa filosofiaé a escolástica, de que será portanto o contrário essa outra, prática, que Descartes preconiza. Na clara segurança do texto não aflora a mínima suspeita de que a filosofia prática venha, não substituir, mas prolongar a especulativa ou escolástica. Assim se forma a imagem de ruptura que, da sua época e do seu pensamento, Descartes transmite: aí, o futuro se dissocia e libertará do passado. Não se trata de uma mesma filosofia que terá tido a primeira fase na escolástica e a segunda, dela complementar, no pensamento chamado moderno. Aquele todo que, fundado no primado da vontade, nós vimos ter reunido a patrística agostiniana, a escolástica medieval e o pensamento científico e ao qual se adunava a designação de filosofia moderna ou até, numa sugestão de mais verídico rigor, a de filosofia nórdica, aqui surge decididamente negado. Uma ruptura se declara.

Quem parece ter seguramente sabido que de ruptura se não tratava, terão sido os pensadores meridionais: os ibéricos da neo-escolástica, os aristotélicos conimbricenses, Pedro da Fonseca. Também Pedro da Fonseca enaltece o princípio da liberdade e faz ceder o teocentrismo escolástico perante o antropocentrismo renascentista; mas ainda polemiza contra o nominalismo e o escotismo e, sobretudo, acentua o carácter transcendente da criação. Assim participa, por um lado, na nova fase humanista da filosofia moderna enquanto, por outro lado, procura preservar a possibilidade de conciliação com a filosofia antiga, possibilidade comprometida no escotismo e, em especial, na evanescência do que há de essencial e perene, se não eterno, na natureza quando reduzida, mediante a ideia de criação sem garantia transcendente, a formas de existência efémeras e acidentais. Ora a neo-escolástica de Pedro da Fonseca é que é, propriamente, essa filosofia especulativa que se ensina nas escolas [Desde o século XIII até ao século XVI, o livro de ensino da lógica, ou arte de pensar, utilizado na generalidade das escolas da Europa foram as Sumas de Pedro Hispano, só substituídas, a partir do século XVI, pelas Institutiones Dialecticae, de Pedro da Fonseca, que, no tempo de Kant, ainda era o livro seguido no ensino da filosofia]».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


«Vai sendo afirmado, dentro das instituições que renovam o cultivo da filosofia escolástica, algum espírito de independência na interpretação do tomismo, que tende a deixar de ser positivista para ser existencialista, interpretação distante da verdade aristotélica, mais fiel às tradições culturais do povo português. Do ponto de vista filosófico mais nos interessa o regresso a Aristóteles do que à consequente interpretação da obra de S. Tomás de Aquino. Em 1960 já é possível reler a encíclica de 1950 sem receio de que ela afecte a pluralidade e a liberdade dos modos nacionais de filosofar.

A tendência para fazer do tomismo, e de uma só escola tomista, ou de uma só interpretação do tomismo, a filosofia católica, tem ido sempre esbarrar com os ditames da experiência e do bom senso. Étienne Gilson, em um dos seus mais divulgados livros, não deixa de remeter irónicas censuras àqueles escritores católicos, para os quais:

"...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson".

Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores, comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando desde o século XIII ao nosso tempo.

Consequentemente, aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.






É notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto, o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634, pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de Toledo.

Formaram-se também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem necessariamente as divergências e as deturpações. Convém, a propósito, dizer algumas palavras sobre a notável discussão havida em torno das 24 teses tomistas, aprovadas pela Sagrada Congregação dos Estudos em 27 de Julho de 1914.

Reconduzir o tomismo a vinte e quatro teses, quer figurem ou não ao longo da extensa obra do Anjo da Escola, pareceu a vários autores como obra arbitrária, de critério difícil de aceitar, e portanto de consequências temerárias. Como entre as teses escolhidas algumas havia que contradiziam ou contrariavam o ensino tradicional das outras ordens escolásticas, logo surgiram reparos dos teólogos e filósofos que seguiam os ensinamentos de Duns Escoto ou de Francisco Suárez. Consultada aquela congregação sobre o alcance doutrinário e disciplinar das referidas teses, foi em 1916 esclarecido que representavam apenas normas directivas para o ensino eclesiástico. Assim se entendeu que não havia razão para excluir do ensino eclesiástico as teses contrárias de Escoto ou de Suárez, que costumavam ser ensinadas respectivamente pela Ordem dos Frades Menores e pela Companhia de Jesus. O Papa Bento XV, em carta datada de 19 de Março de 1917 e dirigida ao padre Ledochowski, Geral da Companhia de Jesus, significou uma quebra do rigorismo tomista.

Também a encíclica Studiorum ducem, do Papa Pio XI, inclui textos que permitem uma interpretação mais liberal da filosofia escolástica. O ponto mais litigioso das 24 teses tomistas estava na distinção entre essência e existência, considerado por alguns teólogos o fundamento da filosofia cristã. As discussões escolásticas sobre tal distinção, que segundo os intérpretes pode ser lógica, modal ou ôntica, influíram certamente na efervescência de doutrinas que mais tarde seriam agrupadas no capítulo da filosofia existentiva, existencial ou existencialista.

Na encíclica Humani Generis foram especialmente mencionados o idealismo, o imanentismo, o pragmatismo, o evolucionismo e o existencialismo. Sabido é, porém, que a Igreja Católica não condena palavras, mas apenas teses ou proposições que se verifique serem contrárias à fé ou à moral. A prova está na liberdade concedida ao existencialismo cristão que os fiéis continuam a discutir. A condenação incide, pois, em determinadas teses que se encontram implícitas nos sistemas filosóficos designados pelas palavras mencionadas. Afinal de contas verifica-se serem teses condenadas pelos concílios ou por decisões eclesiásticas, aquelas que abrem o caminho que vai das heterodoxias para as heresias. A cosmologia escolástica parece ameaçada por aquele tipo de hipótese que nega a realidade das espécies substanciais e que consequentemente reduz ou anula as virtudes dos sacramentos, mediante os quais se exerce a acção transítica do mundo visível para o mundo invisível, quer dizer, a mais alta missão do sacerdócio e, consequentemente, a missão da Igreja. Efectivamente só a física aristotélica, perseguida ou repelida pela tecnologia moderna, permite atribuir à distinção entre a natureza e a graça aquele valor indispensável para a acção religiosa. Assim, a filosofia será uma arte, nunca uma ciência, e muito menos um sistema. A gnoseologia activista de um Maurice Blondel torna-se atraente a quantos duvidam daquele preceito parmenidiano segundo o qual a verdade surge na adequação do pensar ao ser. O ser, conforme ensina Aristóteles, é susceptível de acepções, categorias e modos que possibilitam a mobilidade do pensamento, e que portanto repugnam à sua quietação. Os sistemas condenados pela Humani Generis permitiam dúvidas sobre a aptidão da inteligência para atingir a verdade una, certa e imutável, enquanto a filosofia escolástica, se apresenta como um método seguro de exposição das verdades atingidas, ou um sistema coerente de todas as teses compostas para harmonizar a razão com a fé.

Tão insistente referência a um pensador do século XIII, considerado assim no cume, na cúpula ou no cabo da Escolástica, é facto que, ao ser historicamente explicado, tem dado motivo a diversas interpretações. A proeminência atribuída à obra e à doutrina de S. Tomás, considerado doutor comum da Igreja, tinha em vista garantir a perenidade de certos princípios da metafísica - os princípios de razão suficiente, de causalidade, de finalidade -, senão a unidade doutrinal da própria filosofia. Esta é a explicação mais frequentemente dada de se recomendar o regresso à escolástica na formação cultural dos futuros sacerdotes.

Abadia de Monte Cassino onde estudou Tomás de Aquino.


Dir-se-ia que a escolástica medieval, elaborada em latim, língua do culto e da cultura, subordinada à razão, ainda precavê como nenhuma outra os fiéis de incorrerem no perigo dos erros filosóficos e teológicos que ameaçam o cristianismo. É, aliás, perfeitamente compreensível e admissível que o Magistério Eclesiástico não quebre o zelo de avisar os fiéis quanto aos erros dos sistemas filosóficos, e assim tem procedido ao longo dos séculos, como se pode ler nos respectivos compêndios de história. A sucessão de tantos e tão variados sistemas de heterodoxia não impressionará, porém, o estudioso que souber qual é a causa da ilusão, ou do prestígio, dos caleidoscópios. Cada novo sistema filosófico, garantido pelo talento literário do seu autor, apresenta-se como agrupamento ou composição de novos argumentos em torno de um reduzido número de teses antiquadas. Compete à crítica examinar a validade desses argumentos e discernir as teses que ressurgem com uma tenacidade explicável pela condição humana. Enquanto houver quatro tipos humanos, ou temperamentos, classificáveis pela caracterologia, haverá também um reduzido mas irredutível número de atitudes ou reacções para com a verdade. A classificação e a esquematização facilitam o discernimento. Assim, no que do ponto de vista escolástico mais importa conhecer, convém atender a que os sistemas variam pela actualização dos argumentos às circunstâncias e às oportunidades, mas classificam-se essencialmente em torno dos problemas singulares das relações da razão com a fé, da filosofia com a teologia e do Estado com a Igreja.

Seria piedosa mentira, mas por isso mesmo seria faltar à verdade, dizer-se que nunca houve heresias e heterodoxias no território que teve outrora o nome de Portugal. Omitir o nome de hereges célebres e de célebres heresiarcas, para manter a ilusão de que o povo português foi sempre e totalmente fidelíssimo à Igreja Católica, seria proceder ao contrário do que a história exige quando se propõe explicar as razões implícitas nos eventos. Merece, por isso, perpétua gratidão dos estudiosos admirados esse célebre monumento de erudição que é a Historia de los Heterodoxos Españoles, escrito por Marcelino Menendez y Pelayo. A religiosidade dos povos ibéricos é minuciosamente analisada nesse livro que inclui documentação útil sobre a heterodoxia. Trabalho análogo, mas de resultados dispersos por publicações efémeras, realizou-o Sampaio Bruno quando pretendeu demonstrar que a convergência das tradições hebraica, cristã e islâmica se configura no culto do Espírito Santo».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).


«Para propor ao pensamento a finalidade de dominar a natureza, supõe-se a sujeição do pensamento à vontade; para tornar possível essa finalidade, supõe-se a natureza como fabulosa. Como obter, então, a segurança de que tal pensamento não é mais do que artificioso e arbitrário? Onde fundar aquela necessidade que se apresenta como o que é característico da ciência moderna, de suas leis e suas certezas? Como não alargar à ciência a mesma irrealidade atribuída à natureza de que ela é o conhecimento?

Lançada já a caminho, apresentando-se já, à imagem da teologia medieval, como um saber feito e dado, agora não se revelando nos textos sagrados, nos eventos simbólicos e na religião em geral, mas contendo-se nas forças que se manifestam através das fugazes aparições que são "os corpos que nos rodeiam", a ciência moderna faz da filosofia uma ancilla scientiae como a escolástica a fizera uma ancilla theologiae, e encarrega-a da tarefa de a libertar do antagonismo que lhe está na origem. Os filósofos nórdicos aceitam docilmente o encargo e, fiéis à tradição escolástica, "inibidos - como de Hegel dirá Heidegger - de considerar a verdade e o seu reino", não lhes custa reconhecer que a expressão do saber dado e feito transitara da teologia para a ciência, e fazem consistir a filosofia no estudo das condições e processos pelos quais o conhecimento recebe, agora dada na ciência, a verdade que fora dada na religião. Substancialmente, praticamente, o encargo da filosofia foi o de assegurar que à irrealidade do mundo sensível corresponde a realidade do seu conhecimento científico, e pode dizer-se que todo o desenvolvimento da filosofia moderna consistiu em determinar a radical distinção entre pensamento e natureza para situar no pensamento toda a origem do conhecimento. Em oposição à natureza, só o pensamento será real, tese que levou a "filosofia prática" a, simultânea e paradoxalmente, se fazer, por um lado, ciência exacta e a suscitar, por outro lado, uma complementar "filosofia especulativa" que, apresente-se ou recuse-se como tal, implica o mais extreme, e também o mais abstracto, espiritualismo.

Num primeiro momento, destituiu-se a sensação de qualquer virtualidade cognitiva. Para os antigos, constituía a sensação, por mais fugaz e instante, uma apreensão daquilo que de permanente e real pode conter o que é sentido (ao avistar Callias, dizia Aristóteles, imediatamente conheço o homem que há em Callias), e a sensação era portanto o início de um processo que conduzia o pensamento até ao universal. Para os modernos, a sensação é, segundo a sugestiva expressão de Gabriel Marcel, um "paraíso perdido": o que na sensação se dá, imediatamente, com a sensação, se perde. Assim começam os modernos por negar que o conhecimento do mundo sensível tenha origem nesse mesmo mundo sensível, isto é, que a realidade do pensamento dependa da irrealidade da natureza. Os corpos, aparições e fenómenos naturais não estão em si mesmos, mas nas representações que adquirem nas formas da sensitividade e nas relações entre elas que lhes são dadas pelas categorias do intelecto. Sistematizada pela crítica de Kant, esta doutrina já se encontra na escolástica, sobretudo em Duns Escoto. Mas o seu fundamento lógico e ontológico foi-lhe dado por Descartes que, também neste ponto, se ergue na torre de vigia dos mareantes onde Hegel o imaginou a gritar "Terra!" No mesmo Discurso do Método onde preconiza a ciência moderna, estabelece ele a dependência em que a afirmação do ser está do pensamento: só se pode dizer que é o que é pensado. E ao fechar o círculo iniciado por Descartes, já identificado o conhecimento científico com o conhecimento racional, ou já sobreposta a noção escolástica de razãoàs antigas noções de intelecto, pensamento, inteligência e espírito, Hegel identifica, já não a afirmação do ser, mas o mesmo ser, com a razão, e diz que o racional é real.

No intervalo entre o primeiro e o último dos filósofos nórdicos, a questão da irrealidade do mundo sensível e da realidade do conhecimento vai-se exprimindo em sucessivos graus, ora admitindo-se que o mesmo real se representará simultaneamente na natureza e no pensamento, ora afirmando-se que só o pensamento garantirá o real, ora identificando-se o real com o cognoscível, ora limitando-se o cognoscível ao sensível e remetendo-se o que não cabe na ciência para o silente mundo do ignoto metafísico ou nomenal.




Orlando Vitorino


Sempre, todavia, a ciência moderna vê fugir-lhe a segurança que os filósofos nórdicos se haviam comprometido alcançar-lhe; sempre neles sente latejar aquele espiritualismo extreme que chega a tornar-se patente em algumas explosões do ideísmo inglês e do idealismo alemão; sempre, com o espiritualismo, vê espreitar, vigilante, uma transcendência que ameaça a "filosofia prática" de atribuir realidade à natureza e destituir "os corpos que nos rodeiam" daquela inteira e dócil disponibilidade com que se devem entregar às mãos da ciência. Até em alguns pensadores - certos empiristas ingleses ou aqueles em quem o espiritualismo se reacendeu - aflora e toma corpo a suspeição, não só sobre o valor, mas sobre o sentido do conhecimento científico. E sendo embora inegável que a generalidade dos filósofos nórdicos afirma a realidade do saber próprio da ciência, nenhum deles no entanto nega em definitivo a transcendência. Os pensadores mais rigorosa ou limitadamente científicos, os cientistas em geral, tácita ou declaradamente manifestam por isso suas preferências pelas soluções - primárias embora - que levam a concluir que o pensamento é matéria. Como na matéria se supõe uma evidente e imediata realidade, dizer que o pensamento é matéria imediatamente o assegura como real; e como, por outro lado, se supõe também que a matéria seja o contrário de toda a transcendência, pois o que a transcendência transcende é a matéria, a realidade que a matéria confere ao pensamento radicalmente repudia qualquer modo, suposição ou afirmação da transcendência. A tese da irrealidade do mundo sensível deixará, então, de ser necessária e perde o carácter de condicionante da ciência. Com efeito, se o pensamento, ou a representação de um objecto é real, e dado que um mesmo objecto é susceptível de múltiplas, diversas e até contrárias representações, então já não é preciso afirmar a irrealidade do mundo sensível para que o pensamento disponha indiscriminadamente da natureza, à qual dará as representações mais adequadas aos seus desígnios.

Assim se foi formando um materialismo moderno que se deu por missão autorizar o conhecimento científico a constituir-se tão dono e senhor da natureza que pode levar esse senhorio até à destruição dela, para isso derrotando o obstáculo que a transcendência representa ao atribuir às formas naturais, aos "corpos que nos rodeiam", uma realidade, ou intrínseco ser, que os tornaria, se não intocáveis e sagrados, ao menos indisponíveis».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


«Decisivo será saber quais as razões da específica forma que, sob vários matizes, assume a filosofia em Portugal, com suas profundas implicações estéticas e religiosas, sua exclusão tão peculiarmente marcada das exigências cientistas ou positivistas. Por isso bem parece urgente determinar as profundas e não extrínsecas ou convencionais razões por que a filosofia portuguesa se emancipa mais tardia e lentamente da teologia e da dogmática, determinar por que motivo os nossos pensadores ou se detêm subitamente a meio de uma promissora carreira especulativa, ou regressam às mesmas formas de ortodoxia das quais o pensamento se libertara.

Torna-se cada vez mais urgente averiguar se foi, como em geral se julga, por insuficiência, receio ou crédula obstinação que os nossos pensadores, como os da vizinha Espanha, se mantiveram perplexos e até renitentes perante os caminhos da filosofia moderna, ou se, pelo contrário, se aperceberam da unilateralidade, hoje patente, em que na linha cartesiana ou baconiana a filosofia europeia se começara desenvolvendo. Notamos, por um lado, que a história não está por inteiro contada, propendemos, por outro lado, a admitir, e cada vez com mais implacável firmeza, que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica.

A causa da filosofia não é a daquele céu, mas não é também a desta terra. Importa primordialmente aprendê-lo. A partir disso será compreendida e valorizada a filosofia que temos e tivemos».

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).


«A doutrina da cisão atinge não só a teologia, mas também a antropologia. Estando, por várias vezes, figurada no livro Teoria do Ser e da Verdade a posição dos deuses contra os homens, em palavras de subtil ludicidade, seria de esperar que também nele fosse representada a oposição das mulheres aos homens, segundo um jogo antigo que no nosso tempo vai declinando já para a arte e também para o trabalho. Repreensível falta numa fenomenologia da cisão, já que é para todos evidente que da secção genésica emergem os sexos, já que a observação da criança, da tendência para o género, da previsão da hereditariedade merece ser demoradamente considerada no preâmbulo de uma ontologia do amor. Entendido como problema, segredo ou mistério, o amor representa sempre a sublime virtude criacionista, porque longe de ser a paixão consistente no aprender e no receber vive na acção generosa do dar e do ensinar. A inclusão dos entes racionais nos três grupos naturais dos homens, das mulheres e das crianças, superando a cisão crónica das eras, das épocas e dos séculos, propícia a todos os pensadores de dedução cronológica, paira acima da planificação usada pelos historiadores das religiões, das filosofias e das ciências. A humanização está longe de ser ilusão dos humanistas, porque na consciência humana se espelhou a palavra divina, talvez perdida mas também prometida, e portanto infinita. A parábola cristã não revoga, porque apenas purifica e simplifica, os mitos, os ritos e os símbolos de mais velhas teologias e teogonias».

Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).


«Regra de ouro da "Filosofia Portuguesa"é a de não haver Filosofia sem Teologia, nem Filosofia substante sem Teologia que a justifique».

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).








«Ao ponto de vista do ensino francês se deve aquela opinião corrente, que se apoia na oposição polémica de Descartes a Aristóteles. É uma tradição escolar que substitui a tradição escolástica. A lógica e a metafísica de Aristóteles, princípio e fim de um sistema filosófico, são fundamentalmente criticadas por incompatíveis com o sistema da física moderna; de aí a inverter a posição do problema filosófico, a pedir à física moderna uma lógica e uma metafísica, a fundamentar na epistemologia o novo intelectualismo, vai o passo rápido e fácil do ensino francês.

Os escritores de formação universitária que ultimamente têm abordado, entre nós, assuntos de carácter filosófico, seguem o ensino estrangeiro: manifestam geral concordância em atribuir à matemática e à física um predomínio intelectual que leva à adulteração da lógica e à repulsão da metafísica; mas, assim, acompanham tardiamente um movimento caduco.

E por daquele ponto de vista terem sido julgadas as vicissitudes da filosofia em Portugal, admite-se inadvertidamente que a persistência na silogística escolástica e a resistência passiva ao cartesianismo, longe de parecerem um enigma cuja decifração seria de proveito, dêem pretexto a juízos pessimistas, e até injuriosos, acerca da capacidade especulativa dos portugueses.

Afastados da Europa Central, por situação geográfica e por missão histórica, desatentos à aurora e ao crepúsculo da filosofia "moderna", (da Renascença ao Iluminismo), talvez os portugueses preservassem dessa maneira uma qualidade oculta mas original; assim, o que na linha internacional parece marcha retardatária, talvez possa ser interpretado como fidelidade nobilíssima, se não como astúcia antevisora.

A expressão especulativa do génio manifestado nos Descobrimentos só mais tarde, e de outras fórmulas, poderia surgir. Quando o movimento romântico e o idealismo alemão se reflectiram em Portugal como luar distante, quando uma nova relação entre a cultura e a Natura modificou a direcção da filosofia, já o pensamento português procurou exprimir-se pelos sistemas contrários que do romantismo, por acção ou reacção, se consideram derivados; mas o iluminismo repelia ainda para as zonas infernais qualquer tentativa audaciosa dos filósofos especulativos. O pensamento hodierno, levando mais longe do que o romantismo o estudo dos conceitos de tempo e de vida, verificou a deficiência filosófica da interpretação determinista da lei natural, da hipótese comteana dos três estados, da generalização indevida da doutrina evolucionista, além de outros dogmas afins. Agora, a problemática filosófica, resultada da crítica aos erros dominantes nos três séculos passados, oferece ao espírito português a possibilidade de verificar a compatibilidade do aristotelismo dos coimbrões com o mais elevado e o mais recente voo do pensamento especulativo».

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»).


«O Marquês determinou, em 1758, o encerramento de todas as escolas e de todos os colégios orientados pela Companhia. Em 1759, decreta a expulsão da mesma e a total proibição de exercício do ensino. Por fim, no alvará de 28 de Junho de 1759 lança as bases do novo ensino público, que afastaria o "fastidioso método" dos Jesuítas. Último Reitor do Colégio das Artes, Francisco Taveira (fal. 1770), seguiu para o exílio em Itália; o último professor do curso filosófico, Eleutério de Sousa (fal. 1768 em Ferrada), já não concluíu o curso que iniciara em 1756. O exílio era decretado: a influência dos Conimbricenses proibida. O cânone pombalino é de uma fatal objectividade: "Sou servido abolir e desterrar, não somente da Universidade, mas de todas as escolas públicas e particulares, seculares e regulares de todos os meus reinos e domínios, a Filosofia Escolástica" - leia-se: a filosofia conimbricense. Quem não aceitasse a disposição, seria proibido de aceder ao ensino público, sem apelo. Enfim, confirmando a execução da vontade consular, o Reitor Reformador da Universidade de Coimbra, D. Francisco de Lemos, em carta de 23 de Fevereiro de 1773 para o Marquês de Pombal, garantia o exílio de Aristóteles das "lições de Coimbra". Era o termo de um ciclo de procura (muitas vezes de comodismo e de sedentarismo intelectual) que durara quase duzentos anos. Enfim, num gesto não totalmente esperado, o breve Dominus a Redemptor Noster Jesus Christus, assinado pelo papa Clemente XIV, em 1773, extinguia a Companhia de Jesus, reconstituída em 1814, fora da circunstancialidade que ao nosso tema inere.

Queremos omitir a apologia pombalina em favor das decisões contra os Jesuítas. Limitamo-nos a remeter para livros como a Dedução Cronológica e Analítica (1767) e para o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra (1772), em que todo o argumentário gira em torno de um mote: que os jesuítas eram sequazes da seita muçulmana, disfarçados de cristãos, para a conquista do Reino. Obnubilado, o método conimbricense entrava na era da ocultação.

Tudo tem a ver com tudo. As dificuldades da filosofia portuguesa continuam vigentes, tal como Álvaro Ribeiro demonstrou no seu polémico, e pouco atendido, O Problema da Filosofia Portuguesa (1943). Aristotélico, Álvaro não aceitava de ânimo leve o aristotelismo conimbricense, que achava impuro, uma vez ser assumido numa proporção eclesial, e porque, segundo Álvaro Ribeiro, a filosofia tinha de se dispôr a uma equidistância do Estado e da Igreja, para ser livre. A outra tese alvarina concerne ao seguinte: a filosofia é a visão enciclopédica de todas as ciências. Que lhe era dado ver? Que, depois da prova real conimbricense, a filosofia nunca mais voltou a ser apresentada como organon total e circular do saber. Os exercícios filosóficos, tal como dizia Manuel de Góis, são ensaios parcelares. Uns se imergem na ontologia, outros na metafísica, outros na ética, outros na estética, outros na política, outros no direito, outros em ínfimas especialidades. A ciência propriamente física como que se divorciou da filosofia, sendo claro que nem os físicos abundam em filosofia, nem a filosofia abunda em física. Lamentava Álvaro Ribeiro, que demorasse o surgimento do "nosso Aristóteles", isto é, do autor, ou da instituição, - individual ou colegial - que elaborasse o ciclo de todas as ciências à luz dos primeiros princípios. Para que não haja lugar a disputas subjectivas, diremos de um modo simples: a meditação da experiência conimbricense testemunha que subsiste o problema da filosofia portuguesa, que dorme na esperança do seu novo filósofo, tal como a alma, no tratado de Manuel de Góis, anseia por toda a clarividência universal: Deus spes mea, cogita móri».

Pinharanda Gomes («Os Conimbricenses»).







«Na verdade, a ciência da alma comunica admiravelmente com a filosofia primeira, pois por uma certa analogia e semelhança atingimos pelo nosso intelecto as substâncias inteligíveis e livres da matéria, e a mente humana, transformando-se para além de si mesma, é chamada para a natureza divina donde proveio. O que quer que na mente exista de perfeição encontra-se em Deus, fonte de todas as perfeições e nela ainda mais bem conhecida uma vez afastada toda a imperfeição.

Por último, por uma razão comum, a todas as partes da filosofia é oportuna esta meditação sobre a alma, porque a alma participa da razão e da prudência (como afirma Trismegisto no Asclépio), como que Orizon da eternidade e do tempo, do inteligível e do nexo da natureza corpórea e dos limites. Ou, como outros disseram, suma de todo o mundo, pois a natureza intermédia representa as extremas, a superior como imagem, a inferior, como exemplar. Acontece que a doutrina da alma é como um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um outro conhecimento da verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contemplação aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra, que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa, aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados».

COMENTÁRIOS DO COLÉGIO CONIMBRICENSE DA COMPANHIA DE JESUS Sobre os três Livros do Tratado Da Alma de Aristóteles Estagirita.


«De facto, se deixarmos de lado, como condição indispensável de progresso espiritual, o que em termos historiográficos se traça e divulga nas instituições universitárias, veremos surgirem novos rumos de investigação já apontados por Álvaro Ribeiro. O mais importante é o de a cultura cristã, não obstante as obras de Porfírio e de Boécio, dever a Pedro Hispano, num período que se poderia dizer anterior à vigência do aristotelismo de S. Tomás e de Santo Alberto Magno, o conhecimento da obra lógica e psicológica do Estagirita. E porque, com razão, "tem sido afirmada a primazia do aristotelismo arábico na Península Ibérica", com a sua tradição esotérica oralmente transmitida, urge prestar a devida atenção ao que realmente distingue a Escolástica portuguesa da Escolástica francesa.

De resto, Pedro Hispano representa a possibilidade de os Portugueses poderem vir a encarar positivamente a influência das três tradições orientais na formação da nossa Nacionalidade. E neste processo, a possibilidade de também poderem vir a compreender como a preponderância do nosso aristotelismo, aliado, por vezes, a formas neoplatónicas, garantiu ao nosso ensino escolástico a superioridade com que se afirmou na história do pensamento europeu. Enfim, um aristotelismo que, presente na Idade Média sob a forma de proposições de origem revelada e sobrenatural, decaiu no racionalismo moderno, nomeadamente quando, em Portugal, "na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista", se deu a nítida separação entre a fé e a razão. Mas isso, caro leitor, fica, por agora, na expectativa de "um novo Cristo cujos milagres sejam argumentos"».

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa»).








O tomismo: uma filosofia do século XIII e da Europa Central



 1 - O tomismo na filosofia do século XIII

A intuição fundamental


Para julgar equitativamente a filosofia de Tomás de Aquino, é preciso situá-la no seu contexto histórico. Ora, a cristandade medieval foi, no século XIII, teatro de uma crise intelectual sem precedentes, provocada pela invasão maciça da filosofia pagã a partir de meados do século XII. O avanço irresistível do aristotelismo no seio das jovens universidades e até nas faculdades de teologia era uma séria ameaça para o pensamento cristão; nas faculdades das artes, cada vez mais emancipadas, o perigo de um neopaganismo não era imaginário. Todos os grandes doutores do século XIII tiveram consciência desta inquietante situação. A intuição pessoal de Tomás de Aquino parece-me ter sido a de compreender que era urgente dotar a cristandade com uma filosofia autêntica, depois de repensar os problemas teológicos à luz deste instrumento racional. Até ao fim do século XII, o mundo cristão tinha vivido sob um regime intelectual teológico: fora das escolas de ciência sagrada, onde se ensinava a doutrina cristã sobre a base dos escritos inspirados (sacra pagina), e de algumas escolas de direito e de medicina não existiam senão escolas de artes liberais, que ofereciam aos jovens uma formação de base destinada a prepará-los para os estudos superiores de teologia, às vezes de direito ou de medicina. À parte a lógica, sétima das artes liberais, a filosofia estava ausente destes programas escolares.

Em resumo, a cristandade não possuía nenhuma filosofia digna deste nome; sob a pressão da literatura nova, corria o risco de adoptar a filosofia pagã de Aristóteles.

Tomás de Aquino lançou-se à obra desde o início da sua carreira professoral (1252). Em alguns anos criou a primeira filosofia verdadeiramente original produzida pela civilização cristã: o tomismo.


As fontes

O termo criar não é aqui tomado em sentido estrito, pois esta filosofia nova não foi construída de cima a baixo a partir de nada. Alimentou-se, pelo contrário, de uma tradição muito larga, e este é o primeiro mérito de São Tomás. A conjuntura histórica era favorável a esta rica achega do passado: o jovem mestre dominicano encontrava-se na confluência de todas as correntes de pensamento vindas da Antiguidade, pagã e cristã, depois da Idade Média, latina, árabe e bizantina: platonismo e aristotelismo, helenismo e arabismo, paganismo e cristianismo, encontram-se pela primeira vez na Universidade de Paris, que é já, por este tempo, a metrópole intelectual da Igreja. Tomás de Aquino soube explorar estas abundantes e variadas fontes: a sua informação é surpreendente e alarga-se a toda a literatura disponível.

A sua fonte principal, em filosofia, é evidentemente Aristóteles, que ele adopta resolutamente como mestre de pensamento: rompendo com as hesitações dos seus contemporâneos, mesmo do seu mestre Alberto de Colónia, faz suas as teses essenciais do aristotelismo e restitui-as à sua pureza primitiva. A sua fidelidade ao Filósofo condu-lo a opor-se muitas vezes a Platão e mesmo a Santo Agostinho (sem o contradizer abertamente), ao iraniano Avicena, ao judeu Avicebron, ao árabe Averróis, ao colega franciscano Boaventura. Os seus numerosos comentários a Aristóteles são inigualáveis obras-primas, pois manifestam ao mesmo tempo uma penetração extraordinária de textos muitas vezes obscuros em razão da sua extrema concisão, uma exegese quase sempre muito fiel, mas ao mesmo tempo uma independência de espírito sem reserva quando julga dever corrigir ou ultrapassar Aristóteles. A sua exegese é por vezes menos fiel porque, quando o sentido de um texto é discutível no seu conteúdo literal, chega a interpretá-lo no sentido mais próximo do pensamento cristão, sem ter em conta posições fundamentais do aristotelismo: é assim que atribui ao Estagirita a doutrina da criação e a doutrina da imortalidade da alma humana individual.

Já nenhum historiador sério vê hoje no tomismo um aristotelismo integral e exclusivo. O aristotelismo autêntico não podia satisfazer nenhum pensador cristão, pois as lacunas da sua metafísica tornavam-no inaceitável para todo e qualquer pensador monoteísta: judeus, cristãos ou muçulmanos, todos recorreram ao platonismo ou ao neoplatonismo para dar uma forma filosófica às verdades religiosas fundamentais. Como eles, Tomás de Aquino professa um aristotelismo neoplatonizante: aproveita do neoplatonismo, da causalidade metafísica, da composição de esse e de essentia em todo o ser criado.

Para ser completo, têm de mencionar-se também as fontes patrísticas e as fontes escolásticas do pensamento de São Tomás, mas, além delas, numerosas fontes secundárias, de ordem filosófica (o estoicismo, por exemplo), literária, jurídica e científica.


A síntese pessoal

Se Tomás de Aquino é largamente tributário das suas fontes pelos materiais que explorou com uma curiosidade insaciável, a síntese filosófica que edificou é profundamente original, e este facto impressionou vivamente os seus contemporâneos, a uns para exaltar o seu génio criador, a outros para denunciar as suas perigosas inovações.






Guilherme de Tocco, confrade de Tomás e seu primeiro biógrafo, é a testemunha eloquente da impressão que o ensino do mestre causava aos seus ouvintes pela sua novidade radical: «Ele levantava novos problemas, tratava-os com um método novo e com argumentos novos; tão bem que, depois de o ter ouvido expor novas doutrinas apoiadas em novas razões, ninguém duvidava de que Deus o iluminava com clarões de uma nova luz: o seu juízo era desde o início tão firme que ele não hesitava em ensinar novas opiniões que Deus se tinha dignado revelar-lhe em uma nova inspiração".

Alguns anos após a morte de Tomás, a escola teológica dominicana está conquistada pela sua doutrina e defende-a com vigor contra os ataques dos conservadores. A influência do mestre defunto conquista também outros teólogos eminentes, tais como os seculares Godofredo de Fontaines e Pedro de Auvergne, Egídio de Roma, o fundador da escola dos Ermitas de Santo Agostinho, mais tarde a escola carmelita. Ainda em sua vida, o ascendente de Tomás de Aquino era marcante na Faculdade das Artes de Paris; a sua influência sobre Sigério de Brabante é hoje bem assente. O renome do ilustre pregador atingirá a sua apoteose no Paraíso da Divina Comédia, onde preside à coroa dos doze sábios no quarto céu, o da luz.

Mas se a obra de Tomás de Aquino suscitou a admiração fervorosa de numerosos discípulos, foi também vivamente contestada. Os seus adversários foram teólogos, seculares e sobretudo franciscanos, que permaneciam fiéis às tradições da faculdade de teologia e se reclamavam de Santo Agostinho. Já em 1270 Tomás tinha sido atacado publicamente pelo mestre franciscano João Peckham. Várias das suas teses filosóficas tinham sido atingidas, se não visadas, pela grande condenação de Paris de Março de 1277. Entre 1277 e 1279, o franciscano Guilherme de la Mare publica o Correctório de Frei Tomás (Correctorium fratis Thomae), no qual denuncia 117 erros encontrados nos escritos de Tomás. Teses tomistas foram censuradas em Oxford em 1277, 1284 e 1286.

A ameaça de excomunhão que acompanhava o decreto de 7 de Março de 1277 travou incontestavelmente o progresso do tomismo em Paris, pois várias das suas doutrinas pareciam suspeitas em razão do seu parentesco com as do aristotelismo heterodoxo. Foi necessária a canonização de São Tomás em 1323 para pôr fim a estes entraves.

Com a maior parte dos historiadores, penso que os receios dos teólogos conservadores não eram fundados: as doutrinas filosóficas de Tomás de Aquino não ameaçavam a ortodoxia cristã. No plano filosófico, o seu pensamento parece nitidamente superior ao dos seus adversários e marca um progresso decisivo na evolução da filosofia. Aos olhos do historiador do pensamento, Tomás de Aquino domina o seu século, pois a sua obra é o coroamento do longo esforço de reflexão provocado pela literatura nova. Sem dúvida, a escola tomista não chegará a ser maioritária na Idade Média, por razões históricas bem conhecidas, sobretudo o maremoto do nominalismo do século XIV. O valor da filosofia criada por São Tomás só mais tarde se revelará plenamente: como dizia Gilson, «este solitário não escreveu para o seu século, mas tinha o tempo a seu favor» (1).


II - Condições de um renascimento do tomismo

Conspecto histórico


A ideia de um retorno ao tomismo autêntico surge entre os dominicanos de Nápoles desde meados do século XVIII, em reacção contra a escolástica eclética que dominava nas escolas católicas de filosofia. Mas a necessidade de restaurar o pensamento católico fez-se sentir ainda mais nos princípios do século XIX, na sequência da confusão provocada pela Revolução e da ameaça que a filosofia de Kant representava para o pensamento tradicional. Alguns professores italianos consideram que o pensamento de São Tomás oferece as bases de renovação filosófica cuja necessidade se sente. O movimento tomista desenvolve-se lentamente no decurso do século XIX até à sua consagração oficial por Leão XIII na encíclica Aeterni Patris, datada de 4 de Agosto de 1879. O impulso dado aos estudos tomistas por esta intervenção foi decisivo ao suscitar uma vasta corrente de estudos históricos e doutrinais, que se estendeu a todo o mundo católico e ultrapassou mesmo notavelmente as fronteiras do mundo católico.

Mas, desde o fim do século XIX, o movimento tomista cinde-se em duas correntes divergentes. Em Lovaina, e mais tarde em Paris e em Milão, desenvolve-se uma escola tomista nitidamente progressista, na qual o tomismo é largamente aberto à ciência e se presta ao diálogo com todas as correntes do pensamento contemporâneo; fiel no essencial ao pensamento de São Tomás, este neotomismo não hesita sacrificar o que é caduco na sua obra e sobretudo a formulação escolástica da sua doutrina. Nas universidades romanas, pelo contrário, e noutros centros que se inspiram no mesmo espírito, professa-se um paleotomismo, um tomismo de estrita observância, caracterizado por uma preocupação de rejuvenescer a expressão do seu pensamento e de a confrontar com a ciência e a filosofia actuais.

Hoje, as universidades romanas libertaram-se largamente deste tomismo ultraconservador e pode-se esperar que o recente concílio lhe tenha dado o golpe de misericórdia. Era demasiado optimismo, pois um paleotomismo agressivo sobrevive ainda em alguns meios bastante influentes e numerosos discípulos de São Tomás sofrem ainda, em diversos graus, o contágio destes meios.

Polegar de S. Tomás de Aquino preservado num relicário na Basílica de Sant'Eustorgio em Milão.



Uma opção desconcertante

A escolha de São Tomás como mestre do pensamento terá sido feliz? À primeira vista, ser-se-ia levado a duvidar, pois a opção dos pioneiros do renascimento tomista no início do século XIX parece desconcertante. Eles sentem vivamente a necessidade de uma filosofia sólida, que possa entrar em diálogo com o pensamento contemporâneo e nomeadamente com o kantismo. Ora, eles voltam-se para um teólogo que não deixou nenhuma exposição da sua síntese filosófica; para um escolástico do século XIII, admirador de Aristóteles, cujas doutrinas, na maior parte, conservou, incluindo a sua física; para um autor cujas obras estão todas escritas em latim, o latim da Escola, com o seu vocabulário filosófico hoje extravagante.

Certos observadores, na Igreja e sobretudo fora dela, não deixaram de formular estas objecções. Alguns fizeram-no em termos muito agressivos, denunciando como sem sentido querer ressuscitar em pleno século XX uma maneira medieval de pensar, ligada a uma cultura inteiramente ultrapassada. É difícil dizer em que medida os promotores do retorno a São Tomás se aperceberam dos escolhos que iam encontrar. O que é certo é que o estudo pessoal dos escritos do santo doutor lhes tinha revelado a extraordinária profundidade do seu pensamento filosófico e que esta convicção os levou a minimizar e, de toda a maneira, a afrontar as dificuldades da sua empresa.

Por meu lado, penso, com todos os tomistas, que estes pioneiros tinham razão, pois estamos convencidos do valor permanente e da fecundidade da filosofia que Tomás de Aquino incorporou na sua obra literária imensa e variada, deixando-nos o cuidado de a pôr em evidência e de a reconstruir. A sua concepção do conhecimento intelectual, a sua ontologia (nela compreendendo a sua teologia natural), a sua antropologia e a sua moral mantêm um valor inestimável; mesmo as teses filosóficas da sua cosmologia são de natureza a esclarecer o estudo do universo corporal, que deve evidentemente fazer-se hoje tendo em conta as aquisições da ciência positiva.


Modernizar o tomismo

É verdade, no entanto, que estes tesouros estão escondidos num conjunto de escritos que têm a marca do seu tempo: a sua linguagem, o seu vocabulário, a sua forma literária e muitas vezes mesmo a sua estrutura lógica pertencem à Idade Média. Por isso, os partidários de uma renascença tomista encontraram-se e encontram-se ainda perante uma tarefa imensa: a de modernizar a filosofia de São Tomás, de a repensar e de a reescrever numa linguagem acessível aos homens do nosso século. Os tomistas mais clarividentes compreenderam-no e têm produzido obras notáveis. Mas esta imperiosa necessidade escapa aos tomistas «de estrita observância», porque não dão conta da historicidade de qualquer pensamento humano concreto. A sua veneração pelo mestre leva-os a um culto da letra que exclui qualquer crítica e todo o progresso para além dos limites de uma rigorosa ortodoxia tomista. Este estado de espírito surpreendente, tanto mais que contrasta com a liberdade de que actualmente usam os melhores exegetas católicos dos livros inspirados, explica-se em parte pelo medo do relativismo: receia-se comprometer a imutável verdade sacrificando fórmulas consagradas pela tradição. É confundir a verdade com a sua expressão. A verdade não muda, mas a sua expressão é sempre tributária da linguagem e da cultura em que se encarna. Um pensador que, por impossível, se exprimisse sem respeitar os usos do seu meio seria incompreensível para os seus contemporâneos. Reconhecer isso nada tem de comum com o relativismo; é, pelo contrário, a condição requerida para que a verdade, liberta da sua expressão ultrapassada, se possa revelar no seu valor necessário e imutável. Além disso, seria insensato pretender que nenhum progresso filosófico tenha sido realizado desde o século XIII e que o pensamento de São Tomás representa a forma definitiva e imperfectível da filosofia.

A atitude dos tomistas ultraconservadores compromete gravemente qualquer renascimento tomista, pois ela enclausura o tomismo num verdadeiro gueto intelectual e impede por completo a irradiação do pensamento de São Tomás no mundo actual. Esta atitude é, de resto, muito antitomista, pois Tomás de Aquino deu o exemplo de uma perfeita abertura ao progresso, a ponto de suscitar a violenta reacção dos conservadores do seu tempo. Recusar-se a modernizar o pensamento de Tomás de Aquino é fazer dele um fóssil, um vestígio interessante do passado, uma peça de museu, e não um pensamento vivo.

Que é preciso modernizar na obra de São Tomás? 

Primeiro a sua problemática filosófica, pois é preciso interpelá-la com a problemática actual. Três exemplos entre os mais importantes farão compreender de que se trata.

É preciso aceitar pôr adequadamente o problema crítico, isto é, o problema do valor do conhecimento humano. Não se pode ignorar Guilherme de Ockham, Descartes, Hume, Kant, Husserl e o neopositivismo neste domínio. Numerosos tomistas eminentes compreenderam-no, desde Balmes e Mercier até Noël, Maréchal, Olgiati, de Vries e tantos outros. Não se pode, pois, seguir Gilson na sua curiosa recusa de qualquer crítica fundamental do conhecimento, sob pretexto de que qualquer concessão deste género conduziria fatalmente ao idealismo.


Segundo exemplo: o problema da existência de Deus. A maior parte dos tomistas tem apresentado e apresenta ainda as célebres cinco vias da Suma de Teologia sem ter em nenhuma conta o estado da ciência e da crítica filosófica. Foi preciso chegar a 1958 para ler uma exposição aprofundada da inadaptação das cinco vias ao pensamento científico actual: o Padre D. Durbale, dominicano francês, pôs muito bem em evidência (embora num estilo por vezes difícil) as diferenças de clima intelectual que tornam os homens de ciência impermeáveis a estas demonstrações medievais (2). Eu mesmo tentei recentemente alargar a inquirição à obra literária integral do santo doutor, para discernir nela aquilo que para nós continuava válido e aquilo que não resiste à crítica (3).

Finalmente, é claro que o problema cosmológico deve ser colocado em bases muito diferentes daquelas que se encontram em São Tomás. Desde sempre se sabia que o santo doutor tinha feito sua, como todos os seus contemporâneos, a física de Aristóteles, mas os tomistas minimizavam quase sempre o impacto desta física caduca sobre a filosofia de Tomás de Aquino. Numa notável investigação sobre os corpos celestes, o Padre Litt mostrou que São Tomás considerava as teses da física aristotélica como doutrinas fundamentais da filosofia da natureza: o geocentrismo; os quatro elementos e as suas propriedades essenciais; as esferas celestes transparentes portadoras dos planetas e das estrelas fixas; a incorruptibilidade dos corpos celestes e a sua influência determinante sobre todos os fenómenos do mundo sublunar. As suas reservas incidem unicamente na astronomia de observação e nas teses divergentes dos astrónomos gregos (4).

Em não poucos casos, têm também de se actualizar as soluções propostas por São Tomás aos problemas filosóficos. O que acaba de ser dito sobre a problemática implica já numerosos retoques doutrinais, quer eliminando uma argumentação pouco satisfatória, quer rectificando certas posições, quer completando o pensamento do mestre. Mas outras actualizações se impõem. Percorramos as etapas que distinguimos na exposição da sua filosofia e indiquemos de passagem os progressos que podem ser realizados.

As doutrinas que agrupámos no primeiro capítulo, porque oferecem as bases do saber científico, podem ser desenvolvidas em um tratado completo de epistemologia. Este termo é aqui tomado no sentido de uma teoria fundamental do conhecimento tal como ela pode ser elaborada no limiar da filosofia, apoiando-se nos dados imediatos da consciência. Em um tratado deste género, a análise tomista da consciência pode ser completa à luz dos dados da psicologia empírica; a crítica da sensação deve ser modernizada, assim como a crítica do conceito; por fim, a unidade do conhecimento deve ser mais sublinhada, ultrapassando o dualismo da sensação e do pensamento, demasiado marcado no aristotelismo (5).

Em metafísica, que é, sem dúvida, a parte mais sólida da filosofia de São Tomás, são desejáveis numerosos progressos na formulação e na demonstração das teses do santo doutor. Eis alguns deles: extensão verdadeiramente transcendental da ideia de ser (o Ser infinito não é estranho ao ens commune); dedução rigorosa dos atributos transcendentais; demonstração da composição constitutiva do ser finito (esse-essentia); demonstração do princípio de actividade (todo o ser finito é princípio de actividade); formulação do princípio metafísico de causalidade; demonstração da existência do Ser infinito pela dupla via do ser e do agir; crítica das cinco vias (quinque viae); esquema da dedução rigorosa dos atributos divinos; alcance exacto da transposição das noções de potência e de acto em metafísica; demonstração da unicidade divina, da inteligência divina; impossibilidade da presciência eterna dos actos livres; identidade da criação, da conservação e da moção das criaturas; natureza exacta do mal (que não conduz a uma simples privação do bem); eliminação de diversas excrescências cujo lugar não cabe na metafísica (composição de matéria e de forma; devir substancial); predicamentos; problema teológico da subsistência); a introdução destes temas na metafísica pertence mais à escola tomista do que ao próprio São Tomás (6).

A filosofia da natureza legada por São Tomás está evidentemente em grande parte ultrapassada. Tem de ser repensada de alto a baixo, tendo em conta o que as ciências positivas nos ensinam hoje sobre o mundo corporal. A tarefa é particularmente delicada pelo facto de a própria ciência estar em contínua evolução, de ela não pretender revelar-nos a natureza ontológica do mundo corporal e de não ser fácil encontrar nela as bases de uma interpretação filosófica do universo.



S. Tomás de Aquino




Isto é sobretudo verdadeiro para o mundo inanimado, que constitui o objecto das ciências físico-químicas e de todas as ciências conexas. Parece, no entanto, possível elaborar uma cosmologia sóbria e prudente, concebida como uma metafísica especialdo mundo corporal, quer dizer, um ensaio de aplicação da metafísica dos seres finitos ao caso particular dos seres materiais: mostrar-se-ia em que medida e sob que formas as noções de indivíduo, de substância, de actividade, encontram aplicação no universo corporal; também aí se estudariam as noções de movimento, de tempo e de espaço; abordar-se-ia aí, enfim, a questão da origem do universo (onde penso que a posição agnóstica de São Tomás deve ser ultrapassada e que o mito de um mundo eterno no passado deve ser rejeitado).

A antropologia de São Tomás é uma das peças mais preciosas da sua filosofia. Nela se encontra uma concepção notável da natureza humana, das actividades específicas do homem e do seu lugar no universo. São Tomás elaborou-a vencendo as antinomias com as quais o platonismo e o aristotelismo, o augustinismo e o averroísmo tinham esbarrado. Progressos são, todavia, desejáveis na apresentação actual desta antropologia: natureza da sensação, demonstração da natureza imaterial do pensamento (São Tomás retomou sobretudo a prova aristotélica, mas a demonstração do carácter espiritual da inteligência humana pode ser enriquecida hoje pondo em relevo diversos aspectos da actividade intelectual); a distinção real dos dois intelectos, activo e receptivo, não parece impor-se; terminologia mais exacta para exprimir a composição hilomórfica (o homem não é composto de alma e de corpo, segundo correntemente o diz São Tomás utilizando uma fórmula dualista, enquanto rejeita o dualismo, mas de alma e de matéria prima); tratamento mais sóbrio do estatuto da alma separada, reservando à teologia avançar mais a tal respeito.

A filosofia tomista do agir humano conserva todo o seu valor, não somente nas suas teses fundamentais, mas em numerosas aplicações. É, todavia, claro que os problemas de ordem prática têm todos de ser abordados e resolvidos em um contexto novo. O moralista não pode ignorar o contributo imenso das ciências humanas, sobretudo da psicologia e das ciências afins, da sociologia e das ciências económicas. Muito menos pode ignorar os processos por vezes revolucionários das ciências biológicas, cujos sucessos põem em termos novos certos problemas de ordem ética. Enfim, há que tomar em consideração todas as situações novas resultantes das condições de existência actuais da humanidade: citemos, a título de exemplos, a repartição desigual da riqueza e o subdesenvolvimento de uma parte considerável da humanidade; a existência de numerosas ditaduras de esquerda e de direita; a corrida aos armamentos e a ameaça de guerra nuclear.

É preciso, enfim, modernizar a expressão do pensamento de São Tomás. É quase supérfluo dizê-lo, pois a actualização da problemática e de numerosas soluções dos problemas filosóficos de modo nenhum seria eficaz se as doutrinas do santo doutor não fossem apresentadas em uma linguagem acessível aos nossos contemporâneos. Ainda aqui, a atitude dos tomistas conservadores foi muitas vezes aberrante: sustentava-se outrora, em certos meios tomistas, e não dos menos influentes, que a filosofia de São Tomás estava indissoluvelmente ligada ao latim e que, em virtude disso, era preciso ensiná-la e aprendê-la em latim. Era condenar a própria ideia de um renascimento do tomismo, pois se esta filosofia não pode exprimir-se senão em latim, não tem interesse para o pensamento contemporâneo. O dilema é inevitável: ou falamos a linguagem do nosso tempo, ou então pregamos no deserto. É preciso, pois, transpor o pensamento de São Tomás do latim escolástico para as nossas línguas vivas. É preciso também traduzir a sua terminologia escolástica em um vocabulário menos desconcertante para o leitor moderno ou pelo menos explicar claramente o sentido dos termos escolásticos que se considera dever conservar. Este trabalho de transposição é por vezes difícil, é verdade, mas foi realizado com êxito por tomistas eminentes e nós devemos inspirar-nos nos seus exemplos.


Realizações

O programa que acaba de ser esboçado como condição de sucesso de um renascimento tomista já não está no estádio dos projectos e dos votos. Existe uma literatura tomista de alto valor científico, na qual este programa está em larga medida realizado. Parece-me útil apresentar aqui algumas destas realizações sob a forma de uma introdução breve às obras que foram seleccionadas para a bibliografia sumária dada no fim deste volume, em conformidade com as regras da colecção. A literatura tomista conta hoje mais de 10 000 títulos: quer isto dizer que não é fácil separar de entre eles algumas obras particularmente recomendáveis. O critério de selecção foi mencionar os trabalhos mais proveitosos para uma primeira iniciação ao estudo de São Tomás e algumas monografias particularmente modelares do género de estudos que convém empreender se se quer contribuir para a renovação do tomismo.



Triunfo de São Tomás de Aquino sobre os hereges, de Filippino Lippi.



A) Textos. - A edição da Somme théologique em fascículos contam hoje 55 volumes; é realização de numerosos autores, de maneira que o valor da tradução e das notas é desigual. Constitui, em todo o caso, um instrumento de trabalho muito útil para os principiantes. A tradução francesa da Summa contra gentiles foi feita pelos dominicanos da província de Lião; é deliberadamente mais literária que literal. O livro primeiro é precedido de uma Introduction historique (pp. 7-123) do Padre Gauthier, obra magistral na qual todos os problemas de crítica relativos à suma são sujeitos a um aprofundado exame.

B) Ambiente histórico. - La philosophie au XIIIe siècle (594 páginas) é o resultado de uma longa elaboração. Tratava-se primitivamente de uma inquirição sobre a génese histórica do pensamento de Sigério de Brabante (1942); este trabalho foi desenvolvido para o tomo 13 da Histoire de l'Église, de Fliche e Martin, que descreve o movimento doutrinal no século XIII (1951); uma nova reelaboração deu-lhe a forma definitiva (1966). São Tomás é aí situado no seu ambiente histórico e é-lhe consagrado um capítulo de 50 páginas; a carreira de São Tomás, a intuição fundamental, a realização, as fontes da sua filosofia, o tomismo, filosofia e teologia.

C) Vida e obras. - O dominicano suíço Padre Walz publicou uma vintena de trabalhos relativos à vida de São Tomás, e entre outros uma biografia em alemão: Thomas von Aquin (Basileia, 1953). Esta obra foi actualizada e consideravelmente ampliada pelo cónego Novarina, então director do Seminário Maior de Lons-le-Saunier. É a melhor biografia de São Tomás em francês; nela se encontram excelentes tábuas, inclusive a lista dos escritos autênticos, classificados por géneros literários e datados.

A Introduction, do Padre Chenu, é um precioso complemento da biografia de São Tomás. Com uma mestria inigualável, o autor situa primeiro a obra literária do mestre na vida concreta de um professor de Teologia nos meados do século XIII. Descreve a seguir as diferentes categorias de escritos legados por São Tomás e termina cada capítulo com Notes de travail que abrem pistas aos investigadores. Não poderá prescindir-se desta mina de informações se se quer abordar os textos de uma maneira inteligente.

D) Personalidade. - Le Docteur Angélique, de Maritain, data da época em que o autor se declarava antimoderne; ele evoluiu até um dia se proclamar ultramoderne, mas o seu fervor tomista não variou. O objectivo deste pequeno livro é mostrar em que sentido o tomismo está acima da história e, por conseguinte, sempre actual. Nele se encontram quatro painéis: o santo; o sábio arquitecto; o apóstolo dos tempos modernos; o Doutor Comum. Em anexo, três documentos pontifícios em tradução francesa: a encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII (1879); o «motu proprio» Doctoris Angelici, de Pio X (1914); a encíclica Studiorum ducem, de Pio XI (1923).

O Saint Thomas d'Aquin publicado pelo Padre Sertillanges na colecção «Les Grands Coeurs» é um estudo atraente da personalidade do santo doutor. Nele se encontra um esboço biográfico, um resumo sobre a obra literária do mestre, um retrato do escritor e do poeta, enfim uma exposição sobre a sua missão póstuma. São Tomás visto e apreciado por um humanista.

Mons. Grabmann foi o maior medievista alemão do nosso século. O seu livrinho Thomas von Aquin. Persönlichkeit und Gedankenwelt teve sete edições; a tradução francesa aqui mencionada foi feita sobre a 6.ª edição alemã. O autor apresenta a personalidade e o pensamento do santo doutor em um escorço que é uma boa iniciação.

O Thomas d'Aquin de Mons. Gillet, antigo mestre geral dos Dominicanos, apareceu na colecção «Les Constructeurs». A obra está centrada sobre a personalidade do teólogo e mostra em que é que Tomás de Aquino foi um construtor em teologia: fez deste saber uma verdadeira ciência, foi um grande teólogo e um perfeito humanista. Vários bosquejos completam as obras precedentes: a vocação dominicana de São Tomás e a sua formação intelectual na escola de Alberto Magno; filosofia e teologia; Tomás moralista e místico, sociólogo e pedagogo.

E) Filosofia. - Obra de dimensões modestas, Les grandes thèses de la philosophie thomiste dirige-se ao público culto, em uma linguagem viva, que nada tem de escolástico. É uma apresentação muito pessoal, na forma, das principais doutrinas filosóficas de São Tomás; o ser e o conhecimento; Deus, a criação, a providência; a natureza e a vida; a alma humana, a actividade moral [Trad. portuguesa, As Grandes Teses da Filosofia Tomista, Braga, Livraria Cruz, colecção «Critério», 1951. Na mesma colecção encontra-se traduzida a interessante obra de G. C. Chesterton S. Tomás de Aquino, Braga, 1957. (N. do T.)].



Santo Tomás de Aquino confundindo a Averroes, por Giovanni di Paolo.



A obra em dois volumes do mesmo dominicano francês apareceu primeiro com o título Saint Thomas d'Aquin, na colecção «Les grands Philosophes» (1910); a 5.ª edição tem um título mais esclarecedor: La philosophie de saint Thomas d'Aquin (1940). A ordem adoptada é a da Suma de Teologia. À parte este defeito, estes volumes apresentam uma exposição muito fiel das doutrinas filosóficas do santo doutor: é uma tradução em bom francês das melhores páginas da Suma e por vezes de outros escritos.

Editada pela primeira vez em 1919 em um modesto volume de 174 páginas, Le thomisme, de Gilson, tornou-se em 1954 uma importante obra de 552 páginas. Nas primeiras edições, Le thomisme trazia como subtítulo: Introduction au système de saint Thomas d'Aquin. Tendo Gilson adoptado, como Sertillanges, a ordem da Suma de Teologia (que é naturalmente uma ordem de exposição teológica, o inverso da ordem filosófica), fez-se-lhe observar que, procedendo assim, renunciava a expor o sistema filosófico do santo doutor. Mas Gilson via uma característica da «filosofia cristã» no facto de tratar a filosofia em uma ordem teológica; a partir disso, mais do que modificar o plano do seu livro, preferiu mudar o subtítulo, que se tornou, a partir da 3.ª edição, Introduction à la philosophie de saint Thomas d'Aquin. À parte este processo de exposição, Le thomismeé uma muito boa iniciação às doutrinas filosóficas de São Tomás. Gilson põe bem em relevo (nas últimas edições) aquilo a que chama «a metafísica do Êxodo»: a doutrina do Esse subsistens (Deus é o Existir puro, subsistindo sem essência limitadora) é apresentada como a transposição da revelação divina: «Eu sou aquele que é».

F) Monografias. - O Padre Rousselot, jesuíta fracês morto em 1915 na batalha de Verdun, tinha publicado em 1908 L'intellectualisme de saint Thomas. Em muito foi uma revelação, pois o autor oferecia, com mão de mestre, uma notável introdução às posições mais essenciais do santo doutor. A inteligência é descrita como a faculdade do real e, em consequência, como a faculdade do divino. O intelectualismo de São Tomás é, portanto, um realismo metafísico, que está nos antípodas de todas as variedades de idealismo. Recentemente ainda, o livro do Padre Rousselet encantava um leitor culto, que, sem ser filósofo, tinha o gosto pelas coisas do espírito.

A metafísica tomista foi objecto de numerosos trabalhos de grande valor. Eis alguns dos mais notáveis. Estamos no coração da ontologia tomista com o livro do Padre de Finance, também jesuíta francês. Être et agir dans la philosophie de saint Thomas. É, em suma, um vasto comentário do adágio Agere sequitur esse (o agir é consequência do ser). Metafísica do ser: o acto supremo, a composição de ser e de essência, a participação no ser pela criação. Metafísica do agir: finalidade do universo, dinamismo universal, graus do agir.

Apresentado primeiro como tese principal para o doutoramento em letras (1931), o livro de M. Forest La structure métaphysique du concret selon saint Thomas d'Aquin foi reeditado em 1956 com uma redacção notavelmente melhorada. O método histórico é nele relevante: o pensamento de São Tomás não é apresentado como uma entidade intemporal, mas sim no mundo vivo do seu século. O autor vê no tomismo um esforço bem sucedido em ordem a conciliar Platão e Aristóteles.

Já em 1939, em uma obra italiana, o Padre Fabro tinha repensado a metafísica tomista por meio da ideia de participação e tinha chegado à mesma conclusão que Forest: São Tomás unificou, em uma síntese superior, as filosofias de Platão e Aristóteles. Estes temas são retomados e desenvolvidos no importante volume de 1961: Participation et causalité selon saint Thomas d'Aquin (650 páginas). O seu vasto conhecimento da história permite ao Padre Fabro dialogar com Hegel, Kierkegaard ou Heidegger da mesma maneira que com Parménides, Platão, Aristóteles e Proclo, ou ainda com Eckhart, Nicolau de Cusa e Suarez. Bem entendido, esta suma não se destina a principiantes.

O meu livro recente Le problème de l'existence de Dieu dans les écrits de saint Thomas d'Aquiné uma inquirição que se estende a toda a carreira do santo doutor. Aqui, como em outros casos, se verifica o contraste entre o seu pensamento, cujo valor é eminente, e a expressão, que traz a carga das marcas do tempo.

Para a filosofia da natureza, duas obras foram assinaladas. A do Padre Legrand, jesuíta belga, é um estudo de uma vastidão considerável; extravasa mesmo os quadros da filosofia da natureza, pois fala também dos espíritos criados. A variedade dos temas tratados nestes dois volumes é surpreendente; e como o autor se refere constantemente aos textos, é a inesgotável riqueza da obra literária de São Tomás que ressalta desta obra: L'univers et l'homme dans la philosophie de saint Thomas.



A Criação do Céu e das Estrelas, na Catedral de Monreale, Sicília (finais do século XII).



Claustro



Interior



O grande Pantocrator na abside


O Padre Litt era um trapista belga, grande leitor de São Tomás desde a sua juventude. O seu livro Les corps célestes dans l'univers de saint Thomas d'Aquin preenche uma lacuna evidente. Pelo exame de centenas de passagens em que São Tomás fala dos corpos celestes, o autor mostra que não se pode expor objectivamente a filosofia do santo doutor sem dar lugar aos corpos celestes.

No domínio da filosofia moral, quatro obras foram referidas. A do Padre Sertillanges, La philosophie morale de saint Thomas d'Aquin, completa os dois volumes mencionados acima, no final dos quais somente 35 páginas foram consagradas ao acto moral.

O livro de Gilson Saint Thomas d'Aquiné uma recolha de textos traduzidos em bom francês (texto maior) e explicados (texto menor).

Quanto à obra de Mons. Leclercq, então professor em Lovaina, La philosophie morale de saint Thomas devant la pensée contemporaine, é uma exposição muito pessoal, e, por conseguinte, por vezes discutível, da moral tomista. Nela se encontram títulos como estes: o enigma do livre arbítrio, a evolução psicológica da moral moderna, o desejo de Deus antes do cristianismo, o problema do amor, a procura do amor gratuito, o amor na filosofia contemporânea, a obrigação e imperativo categórico, limites da moral sem Deus, a prova da existência de Deus pela ordem moral.

O Padre Marty, jesuíta francês, estuda La perfection de l'homme selon saint Thomas d'Aquin. É uma maneira muito sugestiva de abordar o problema moral. O homem, microcosmo, síntese da matéria e do espírito, pessoa cujo destino é eterno, é o único ser vivo que goza do privilégio das espécies: a perenidade. A sua perfeição realiza-se por interiorização. O interesse principal desta monografia reside nas análises minuciosas de numerosas noções e doutrinas utilizadas por São Tomás na construção da sua filosofia moral.

G) O renascimento tomista. - Sob o título Le retour à saint Thomas estão agrupados estudos relativos ao renascimento do tomismo e às condições de sucesso deste intento.

O objectivo principal dos trabalhos que acabo de apresentar é fazer conhecer a filosofia autêntica de São Tomás, expô-la numa linguagem moderna e fazer a distinção entre aquilo que está desactualizado e aquilo que permanece precioso para nós. É, pois, um tomismo rejuvenescido, quanto ao fundo e quanto à forma, que se salienta nestas publicações. Na medida em que esta modernização seja alcançada, poderá o tomismo entrar em diálogo com as outras correntes da filosofia contemporânea e estar presente na vida actual do pensamento (in O Tomismo, Gradiva, 1990, pp. 151-174).



Notas:

(1) É. Gilson, La philosophie au Moyen Âge, 2.ª ed., Paris, 1944, p. 590.

(2) D. Dubarle, «Pensée scientifique et preuves traditionnelles de l'existence de Dieu», na obra colectiva De la connaissance de Dieu, pp. 35-112 (Desclée De Brouwer, 1958).

(3) F. Van Steenberghen, Le problème de l'existence de Dieu dans les écrits de saint Thomas d'Aquin (Lovaina-a-Nova, ed. do Instituto Sup. de Filosofia, 1980).

(4) Th. Litt, Les corps célestes dans l'univers de saint Thomas d'Aquin (Lovaina, Public. universit., 1963).

(5) Encontrar-se-á um ensaio de epistemologia tomista concebido desta maneira no meu pequeno tratado de Epistémologie (Lovaina, Public, universit., 4.ª ed., 1965).

(6) Encontrar-se-á um ensaio de rejuvenescimento da metafísica tomista no meu pequeno tratado Ontologie (Lovaina, Public. universit., 4.ª ed., 1966). Eliminar-se-á também da metafísica o estudo das substâncias espirituais, cuja existência não pode ser demonstrada rigorosamente pela razão.


A Expulsão do Paraíso, por Giovanni di Paolo.



Tradição e Inovação

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Escrito por Miguel Bruno Duarte









«Esta penúria lusitana em matéria filosófica foi (é ainda) atribuída ao efeito deprimente duma educação perversamente adequada a embrutecer as gerações. Deste pavoroso crime ter-se-iam tornado réus os jesuítas; e é esse tema tenebroso o que constitui a matéria da célebre "Dedução cronológica" e do não menos célebre "Compêndio histórico".

Sem embargo, os jesuítas foram expulsos do alto ensino por Pombal, e a sua sociedade acabou por ser dissolvida e exterminada pelo Papa Ganganelli. E, contudo, a esterilização filosófica portuguesa continuou como até ali.

Mesmo, os espíritos mais vivazes, desprendidos, liberais, de personalidade crítica e iniciativa mental, obscurecem e esmorecem desde que sentem que sobre eles se projecta a vasta e solene sombra da metafísica. Com o novo regime político e social não coincide um novo regime filosófico. Os ânimos afrouxam e as inteligências inquietam-se».

Sampaio Bruno («A Ideia de Deus»).


«Um aristotelismo romântico –, passe a expressão – parece-me ser a melhor directriz para a futura filosofia portuguesa».

Álvaro Ribeiro («Dispersos e Inéditos»).





Tradição e Inovação


No espírito dos portugueses cultos continua presente o modelo medievo de uma escola em que a filosofia é o orgão da liberdade. Porém, esta última expressão, de cunho leonardino, poderá enganar à primeira vista, pois o pensador português, menosprezando a Idade Média, deu-nos a entender, como reconhece Álvaro Ribeiro, que «o seu pensamento estava longe da tradição galaico-portuguesa e do espírito lusíada» (1). Seja como for, nada invalida o facto de Álvaro Ribeiro, a par da sua admiração pela eloquência sublime e imaginal do Mestre, ter feito corresponder, nos termos de uma boa organização do ensino público, o curso dos liceus «ao que na Idade Média, depois da reforma de Carlos Magno, se designou por Colégio das Artes».

Quer dizer: todo e qualquer sistema de ensino que não actualize as disciplinas do trívio e do quadrívio, imitando e adoptando o modelo medievo das artes liberais, está espiritualmente condenado à inexistência. Este preceito, se assim o podemos dizer, dá lugar a um princípio a que ninguém pode hoje fugir: o princípio de que, sem o estudo trivial da gramática, da retórica e da dialéctica, não é possível progredir na resolução dos problemas e das interrogações que ao pensamento se apresentam por entre as infinitas potencialidades da memória ignota. Ora, Portugal parece estar, de facto, sem memória, pois, hoje, mais do que nunca, os portugueses permanecem no desconhecimento da sua matriz histórica e espiritual.

Consequentemente, convém discernir a razão por que os Conimbricenses se escudavam na subestrutura do pensamento escolástico, já de si aceite e reconhecida na quarta parte das Constituições da Sociedade de Jesus, que era, por sinal, a mais extensa. E convém ver como depois do trívio advinha o quadrívio, isto é, advinha Aristóteles. Mas porquê Aristóteles, perguntarão os historiadores e os paleógrafos do nosso tempo? Porque quer a obra quer o seu pensamento não só permanecem susceptíveis de se adaptarem à nomenclatura técnica, científica e metafísica de toda a época passada, presente e futura, como ainda revelam em si a possibilidade de virem a integrar os métodos, os progressos e as descobertas resultantes do aparecimento de novas ciências, técnicas ou artes.

Todavia, como ensina Álvaro Ribeiro, não «nos é lícito interpretar o aristotelismo em termos de mecanismo, porque contra tal interpretação conspiram a letra e o espírito das obras de Aristóteles. Vemos, aliás, que na Física de Aristóteles se passa da dinâmica para a cinemática, e da cinemática para a estática, em gradação ascendente da Terra para o Céu, ao contrário da mecânica ensinada nos tempos modernos. O ideal “moderno” da física parece ter sido contrariado pela classificação dos movimentos, das forças e das energias que figura na obra aristotélica; mas no nosso tempo, em que os fenómenos magnéticos, eléctricos e luminosos por sua vez contrariam o determinismo mecanista e materialista, já os esquemas aristotélicos ressurgem para cingirem, melhor do que os outros, a onda, a emissão e a explosão que configuram os principais fenómenos físicos». Logo, se «o fenómeno nos é descrito por uma série de fases, entre a aparição e a aparência se restabelece um nexo lógico que permite a inteligibilidade do Universo» (2).

Como tal, a lógica de Aristóteles, pela sua actualidade, traduz-se numa lógica operativa perfeitamente compatível com as expressões do idioma português. Não se trata, portanto, de um caso de erudição ou de simples leitura do texto grego de Aristóteles. Trata-se, sim, de torná-lo nosso contemporâneo mediante tradução portuguesa, como, aliás, Pinharanda Gomes tornou patente ao traduzir o Organon do maior filósofo da Antiguidade.


Até hoje, na sequência do que já reconhecera P. Gomes na sua nota introdutória àsCategoriasde Aristóteles, a verdade é que os portugueses ainda não se libertaram da já longa «falência dos institutos universitários e da educação pátria» (3). Senão vejamos: saberão os portugueses por que razão Silvestre Pinheiro Ferreira optara por traduzir ousia por essência, até então traduzida por substantia na língua do culto e da cultura católicas? (4) Depois, terão eles consciência do que realmente significa permanecer sob o jugo de «traduções intermediárias e obscurantistas, assim como dos respectivos prefácios tendenciosos»? (5) E, por último, saberão ainda o que leva a que filósofos portugueses, como Pinharanda Gomes, Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro, quedem praticamente desprezados nas traduções que fizeram em benefício da cultura portuguesa?

No fundo, é como dizer que os textos, para ganharem vida, precisam do espírito que os anima. E se bem que os escritos de Aristóteles sejam obra humana, eles são, no entanto, susceptíveis de, uma vez actualizado o Verbo mediador entre a Letra e o Espírito, serem entendidos como via de acesso à «filosofia natural do homem». Aliás, nesse sentido o entendera o Padre Manuel Alonso quando, considerando a «Expositio libri de anima» (6), do nosso Pedro Hispano, como estando à altura dos melhores autores do século XIII, se apercebera de «como mediante tão imperfeitas traduções e tão escassos recursos chegaram aqueles autores a uma clarividência tão precisa dos conceitos aristotélicos».

Não foi, porém, o estudioso espanhol o único a reconhecer o significado sempre actual e actuante do dinamismo aristotélico, pois também Olavo de Carvalho, referindo-se à «ideia medular» que atravessa a obra do Filósofo, não deixa de considerar admirável como S. Tomás de Aquino, sem acesso directo à Poética de Aristóteles, houvesse percebido, «raciocinando, como o fez, desde fontes de segunda mão», a «unidade» das quatro ciências lógicas (7). Em suma: pensarAristóteles, compreender inclusivamente os quatro graus da lógica, requer, como condição indispensável, o «acto de captar a unidade do pensamento de um homem desde as suas próprias intenções e valores em vez de julgá-lo de fora; acto que implica respeitar cuidadosamente o inexpressivo e o subentendido em vez de sufocá-lo na idolatria do “texto” coisificado, túmulo do pensamento».

Por outras palavras, uma coisa é a rememoração, em que um assunto se torna presente por força de motivos exteriores, outra coisa é a memória tal como, no caso do aristotelismo dominante na Península Ibérica, mais particularmente na Andaluzia e no Califado de Córdova, fora realmente possível dinamizar por via da tradição oral. Referimo-nos, pois, ao «discurso vivo e animado do sábio», até porque, consoante a gnose platónica, o ensino por rememoração é apenas e tão-só uma aparência de sabedoria. Posto isto, se alguém questionar que, neste aspecto, tudo devemos ao conhecimento que hoje, positivamente falando, temos dos diálogos platónicos, nomeadamente do Fedro, é porque estamos perante a ignorância de quem desconhece a vida anímica espiritual sem a qual qualquer escrito de ordem lógica, poética ou filosófica se resume, pura e simplesmente, a um escrito e nada mais.

Sabendo, com Platão, que o discurso oral é uma espécie de discurso superior ao discurso escrito, é também natural que a tradição portuguesa, caracterizada pela sua fidelidade ao "platónico Aristóteles", outra não seja senão a que o espírito pensa, pesa e grava. Ora, se «tal acontece quando a tradição está viva, maior é a nossa indolência perante um texto de língua morta». E neste ponto prossegue Álvaro Ribeiro:

«Ante uma tradição perdida, inteiramente perdida, não há outro recurso senão adivinhá-la. Infelizmente, se os homens vulgares não são educados para o dinamismo mental, muito menos os filólogos têm sido agraciados pela inteligência que permite a adivinhação».

Não só n'A Razão Animada o filósofo portuense lavra esta afirmação sobre o estado lastimável a que chegaram os estudos filológicos. Vemo-la também presente em «Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»: «Aristotelismo puro nunca o tivemos entre nós, e ainda hoje os recursos da exegese filológica e da hermenêutica filosófica se mostram insuficientes para interpretar nos manuscritos dos discípulos e copistas o pensamento autêntico do maior filósofo da antiguidade». Tal explica, aliás, a razão por que Álvaro Ribeiro gostava de salientar, entre seus epígonos, o facto de nunca podermos vir a saber quem foi, na realidade, o autor do Organon.






Contudo, podemos e devemos saber o que ainda representa, para nós, portugueses, o aristotelismo integral da neo-escolástica conimbricense. E quanto mais não seja porque «o aristotelismo dos primeiros séculos medievais está longe de atingir o brilho, a força e a extensão que verificamos na obra de Santo Alberto Magno, na de Pedro da Fonseca e na de Francisco Suarez» (8). É, portanto, com os Conimbricenses que um «Aristóteles original e, se possível, total» (9), surge na ordem do que, superando o carácter parcelar e logicista da escolástica medieval, bem como o aristotelismo averroísta da Renascença, se traduz nos termos de uma visão sistemática do Corpus aristotelicum.

Ao todo, são oito os Comentários relativos ao aristotelismo conimbricense, cujo influxo doutrinal fez escola em Portugal e no resto do mundo. Assim, partindo do Colégio das Artes, os Comentários não só foram seguidos nos Colégios de Évora, Braga e Porto, como também, em virtude da expansão missionária da Companhia de Jesus, foram incluídos nos cursos de Colégios fundados no Brasil, nomeadamente na Baía, onde «os Commentarii eram seguidíssimos» (10). Porém, não obstante a primeira escolástica brasileira ter como «predominante factor de influência os Conimbricenses», outros casos existem tais como o Colégio de S. Paulo de Luanda (Angola), ou até mesmo, no que à China se reporta, as casas de estudo dos jesuítas onde «os conimbricenses foram lidos e respeitados, como mensageiros da filosofia ocidental». E de tal modo assim foi «que o Padre Francisco Furtado (fal. 1653) os traduziu para chinês, em dez volumes, com o título Meng-Li-Tan, tal como traduziu o De Coelo et Mundo, de Aristóteles, em seis volumes, com o título Wan Yan-Chuen» (11).

Por aqui se vê, pois, como a cultura do pensamento português foi constantemente inspirada no aristotelismo. E além de inspirada, fortemente estruturada até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra, a qual, para todos os efeitos, obrigou os nossos melhores jesuítas a ir ensinar nos institutos filosóficos de Itália. Por conseguinte, quebrando o elo de continuidade de uma obra de cunho colegial, tal reforma tornou doravante impossível que os portugueses tomassem consciência do sucesso que o nosso aristotelismo alcançara no mundo inteiro, sobretudo na Europa.

Deste modo, no que aos Commentarii respeita, o «total computado de edições europeias, incluindo as primeiras portuguesas atinge as 112 edições». Mais: «O prestígio destes livros também se consolidou pelas edições de Pedro da Fonseca, assumido como Conimbricense. A Isagoge Philosophica teve doze edições na Alemanha e na Bélgica; o Institutionum Dialecticarum atingiu as trinta e seis edições, até ao primeiro quartel do século XVII, em Itália, Alemanha e França; dos Commentariorum Metaphysicorum conhecem-se trinta e uma edições, algumas delas parciais, em Itália, França e Alemanha». Em suma: «Estes livros foram os de origem portuguesa mais lidos na época, por professores, e seguidos por estudantes» (12).

O influxo dos Conimbricenses no pensamento de Leibnitz, Malebranche, Wolf e Descartes, foram igualmente atendidos por Pinharanda Gomes. É o caso do inatismo augustiniano que, por via dos Conimbres, influiu no Cartésio a par do conceito de substantia«que lhe evitou cometer o sofisma de panteísmo, como sucedeu a Espinosa» (13). Com este exemplo, entre outros, se mostra como o pensamento moderno muito deve à neo-escolástica conimbricense, que conseguira um feito notável que a escolástica medieval não lograra alcançar: «a obra de sistematização lógica, semântica e gnoseológica dos conceitos de Aristóteles, finalmente vazados em latim, por forma que as dúvidas medievais quanto ao rigor da transladação dos conceitos gregos para o vocabulário latino fenecem no quadro filológico e filosófico elaborado pelos Conimbricenses que, afinal, estabelecem o modo de ler, traduzir e de interpretar o pensamento de Aristóteles em latim» (14).

Com os Conimbricenses dá-se, então, uma verdadeira recuperação de Aristóteles, dado ademais a conhecer à Europa pela Hispânia árabe e cristã. Quanto à sua predominância na tradição portuguesa, bastante curiosa é a alegada origem lusitana do organizador da lógica. Referimo-nos, mais propriamente, a Lucas de Tuy, que o deu como «natural do Ocidente hispânico, e registou haver quem afirmasse ser ele oriundo “de tierra de Portugal, saindo moço para a Grécia (General Estoria, parte IV)”» (15).

Seja como for, o que importa é a real importância do pensamento aristotélico na tradição atlântica portuguesa. OsDescobrimentos dão disso admirável testemunho, a começar pelo Infante D. Henrique, que mandou «reservar uma sala do Estudo Geral de Lisboa, para aí ser pintado o retrato de Aristóteles» (16). Logo, por contraste com o empirismo da Bretanha, mais facilmente se compreende no que realmente consistiu a «revolução da experiência» segundo o gesto cosmológico do Infante D. Henrique (17).






No caso do aristotelismo conimbricense, «um dos grandes descobrimentos dos portugueses» (18), cabe notar o primeiro modelo de ecletismo organizado em sistema septivial. Trata-se, na sua melhor forma, de uma síncrese escolástica que soube reunir todos os comentadores, seguidores e opositores de Aristóteles. Mas, se bem que de um sistema enciclopédico se tratasse, longe permaneceu do ecletismo moderno e utilitarista que mais tarde faria escola com a proliferação de compêndios de filosofia (19).

É hoje sabido como a actualização do Curso Conimbricense ficou por fazer, mesmo quando, «em virtude dos missionários astrónomos, se criaram favoráveis condições para uma excelente modernização, porventura mais ampla do que a dos físicos, a quem só era dado observar o céu europeu» (20). Não faltou, porém, quem achasse necessário proceder à restauração do Curso, se atendermos sobretudo aos esforços de Cristovão Borri ou aos trabalhos de António Cordeiro e de Gregório Barreto, que foram os últimos representantes da tradição conimbricense. Aliás, com eles se prova ser «falsa a opinião de que o aristotelismo conimbricense se ancilosara e de que vivia na ignorância da filosofia moderna» (21).

Consequentemente, significativo é o facto daquilo que António Cordeiro chegou a designar por «recentiores Galli», entre os quais incluía Descartes, Pedro Ramo e Gassendi (22). É com ele, portanto, que a tentativa para conciliar tradição e inovação tem efectivamente lugar no âmbito da filosofia conimbricense, já que, aberto à novidade, não deixou de permanecer fiel a Aristóteles. Deste modo, António Cordeiro, manifestando o intuito de integrar o corpus conimbricensis no desejado processo de renovação, ao mesmo tempo que se precavia do que aos olhos de alguns parecia ser a sua filiação na física moderna, incluindo a cartesiana, foi quem, na realidade, ficou para a história pátria como o último Conimbricense.

A ocultação da filosofia conimbricense, no dizer de Pinharanda Gomes, deve-se sobretudo ao «conjunto de causas que determinou o fenómeno de estatização pombalina» (23). No entanto, outras causas, endógenas à filosofia, impediram que o aristotelismo dos coimbrões viesse a ser devidamente renovado segundo um sistema filosófico de origem revelada e sobrenatural. Assim, não obstante a Companhia de Jesus ter fundado, em Braga (1934), o Instituto Miguel de Carvalho, posteriormente transformado em Pontifícia Faculdade de Filosofia (1947), e integrada, um vinténio depois, na Universidade Católica, a verdade é que tudo não passou, ao ritmo extemporâneo da modernidade, de uma tentativa de revisão histórica da neo-escolástica conimbricense (24).

Entretanto, importa aqui salientar o testemunho de Álvaro Ribeiro:

«Nas suas publicações de carácter histórico, aquele instituto procede a uma revisão e a uma revalorização dos escolásticos portugueses, o que virá a contribuir para anular o espírito de subserviência perante os escritores estrangeiros, quer dizer, o espírito da geração negativista de 1870. Conseguiram desse modo os padres jesuítas pôr termo à desconfiança que os católicos portugueses, eivados de positivismo, opunham à filosofia, apodando-a de filosofismo» (25).

Conservando um repositório de historiografia filosófica, esteve igualmente o Centro de Estudos Escolásticos, fundado por jovens universitários em Lisboa, corria o ano de 1950. De assinalar fica também o facto de este Centro não admitir o ideário da filosofia portuguesa, tal como Álvaro Ribeiro o propusera segundo as três tradições escolásticas hispânicas (hebraica, cristã e árabe). E mais ainda por Álvaro Ribeiro não só referir Sampaio Bruno como o fundador da filosofia portuguesa, mas também por considerar Leonardo Coimbra como a sua respectiva fonte de inspiração.

Ora, imediatamente se vê como Álvaro Ribeiro, na sequência de Bruno e Leonardo, transcendia espiritualmente o neotomismo de vários e ilustres historiadores, entre os quais sobressai António Alberto Banha de Andrade, autor de A Sorte de S. Tomás de Aquino na Filosofia Portuguesa (1956), e de S. Tomás de Aquino no Período Áureo da Filosofia Portuguesa (1959). Consequentemente, dada a divisão entre tomistas de direita e tomistas de esquerda, ou entre integristas e progressistas, Álvaro Ribeiro foi, de facto, quem nos abriu uma via que poderá prevalecer como herança de uma tradição espiritual que transcende o saber filosófico e teológico próprio do Instituto, da Ordem e do Seminário. E a razão, antes de mais, passa pela crise vocacional que, desde 1950, atinge os estudos internos das Dioceses e das Ordens Religiosas, ao ponto de Pinharanda Gomes, perante a Universidade Católica Portuguesa, reconhecer «um empobrecimento do pluralismo das religiões católicas, que só pode ser garantido, ou através da complementar existência da formação dentro das próprias Ordens, ou através da renovação dos estudos dentro delas, com abandono do recurso achado na Universidade» (26).


Podemos agora concluir que a Escolástica, genuinamente portuguesa, não corresponde a uma idade histórica, mas a uma filologia e a uma filosofia cuja dupla realização não dispensa o saber profético e escatológico da teologia revelada. Por aqui, pois, estaremos aptos a transitar da História para a Eternidade, ou, se quisermos, melhor e profundamente aptos a compreender que só a filosofia contém a mais alta significação do Quinto Império.



Notas:

(1) Álvaro Ribeiro, Memórias de Um Letrado, I, Guimarães Editores, p. 69.

(2) Álvaro Ribeiro, «Aristóteles e a Tradição Portuguesa», in As Portas do Conhecimento, IAC, 1987, pp. 145-146.

(3) As Categorias de Aristóteles, traduzidas por Silvestre Pinheiro Ferreira, foram por sinal a primeira tradução que se fez em Portugal depois da Contra-Reforma.

(4) Neste aspecto, também Álvaro Ribeiro, distinguindo a essência da substância, procurara averiguar o porquê dos equívocos do realismo ontológico: «Difícil é designar o que confere ou dá o ser, determinar a essência e o essente. Assim se explica que o problema da essência seja muitas vezes transferido e substituído pelo problema da substância, porque a transição do adjectivo para o substantivo é facilitada por analogia com as coisas sensíveis». Logo, dada a designação, por via latina, de substância primeira e substância segunda, resulta ser ela também susceptível de se ontologizar por equívoco (cf. Álvaro Ribeiro, Uma coisa que Pensa, Braga, Editora Pax, 1975, p. 104).

(5) Cf. Álvaro Ribeiro, «Aristóteles e a Tradição Portuguesa», p. 139.

(6) Cf. Pedro Hispano Obras Filosóficas (III), Madrid, 1952, p. 7.

(7) Cf. a Teoria dos Quatro Discursos em Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva, Topbooks, pp. 27-28.

(8) Álvaro Ribeiro, «Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica», p. 239.

(9) Pinharanda Gomes, Os Conimbricenses, ICALP, 1992, p. 82.

(10) Ibidem, p. 111.

(11) Ibidem, pp. 112-113.

(12) Ibidem, pp. 115-116.

(13) Ibidem, p. 119.

(14) P. Gomes, «Aristotelismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, p. 32.

(15) Cf. P. Gomes, «Aristotelismo», p. 27.

(16) Ibidem, p. 30.

(17) Entre os mestres de Oxford, verdadeiros precursores da experimentação mecânica, note-se este trecho de Roberto Grossetesta: «É de uma utilidade soberana considerar as linhas, os ângulos e as figuras; sem isso é impossível conhecer a filosofia da natureza» (cf. Édouard Jeauneau, A Filosofia Medieval, Edições 70, 1986, p. 70). Segue-se, entretanto, este trecho contrastante de Pinharanda Gomes: «A perspectiva aristotélica da física dava (…) uma consistência teológica aos Descobrimentos, já que, não sendo uma física mecanicista, mas uma física dinâmica, transfere da cinemática para a estática e, na escala ascendente, da física para a ontologia, da ciência do sensível para a ciência do ideável» («Aristotelismo», p. 30).

(18) P. Gomes, Os Conimbricenses, p. 123.

(19) Com a reforma pombalina, transitou-se do texto magistral para o texto compendial. Daí que, sob a influência de Verney, o diploma pombalino ordenasse como «livro único» as Lições de Lógica e Metafísica, do italiano António Genovèsi. Ora, só por volta de 1830, terminada a imposição escolar do Genuense, dar-se-ia então, mais propriamente a partir de 1840, o recurso a uma solução pedagógica que passava, da parte de cada professor, pela liberdade de escolha do livro a adoptar. Dir-se-ia, pois, estarmos perante uma escola eclética, à qual Teixeira Bastos, discípulo de Teófilo Braga, iria dar combate para pôr fim ao que dizia ser «uma cobertura moderna dada à escolástica, para continuar a dominação cultural» (cf. P. Gomes, «Ecletismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa, p. 75).

(20) Cf. P. Gomes, Os Conimbricenses, pp. 121 e 125. Registe-se ainda o exemplo de Manuel Dias, que «imprimiu um Tratado da Esfera (1614) na China, onde construiu um telescópio galileico».



Infante D. Henrique (quadro de Malhoa).



Promontório de Sagres



(21) Idem, «Aristotelismo», p. 32. Por realçar estão igualmente os contributos cosmológicos que aos Conimbricenses foram trazidos pelos geógrafos dos Descobrimentos. Daí que, embora «os princípios não sejam alterados, (…) é verdade que, no De Coelo, se introduzem correcções à geografia antiga, correcções essas devidas aos descobrimentos náuticos» (idem, «Conimbricenses», in Dicionário de Filosofia Portuguesa, p. 63). Depois, é preciso não esquecer que entre 1745 e 1760 houve, de facto, um assinalável desenvolvimento científico em Portugal, a começar pelo Gabinete de Física Experimental dos Oratorianos, existente na Casa das Necessidades. A par deste Gabinete, patrocinado por D. João V, encontrava-se igualmente o Observatório Astronómico existente no Colégio dos Oratorianos. No entanto, com a perseguição a que foram sujeitos os membros da Congregação do Oratório, foi extinto o Colégio da Casa das Necessidades em 1760.

Curiosamente, uma tal extinção coincidiu com a criação do Colégio dos Nobres por carta régia de 7 de Março de 1961. Mas o Colégio dos Nobres foi um fracasso a ponto de o ensino das ciências físico-matemáticas ficar muito aquém do praticado no Colégio da Casa das Necessidades. De resto, todo o equipamento do Gabinete de Física do Colégio dos Nobres fora transferido em 1772 para Coimbra, nomeadamente para a Faculdade de Philosophia. Por conseguinte, poucas ou nenhumas foram as alterações pombalinas no ensino científico em Portugal, a avaliar pelo seguinte trecho:

«O Physices Elementa, da autoria de Dalla Bella, foi a primeira obra literária de carácter científico e didáctico, no âmbito da Física Experimental, resultante do projecto pedagógico iniciado com a Reforma Pombalina da Universidade. As referências bibliográficas mais importantes que Dalla Bella utilizou já tinham sido objecto de estudo e de debate ainda na primeira metade do século XVIII, em diversos cursos das escolas portuguesas. Este compêndio, destinado ao ensino, foi publicado aproximadamente quarenta anos depois de Teodoro de Almeida ter publicado os primeiros volumes da Recreasão Filozofica, e de Inácio Monteiro ter publicado, no Colégio da Artes em Coimbra, o Compendio dos Elementos de Mathematica. Tendo como referência os anos da publicação das primeiras edições da Recreasão Filozofica, da autoria de Teodoro de Almeida, e do Compendio dos Elementos de Mathematica, de Inácio Monteiro, bem como do Physices Elementa, de Dalla Bella, conclui-se que terão sido pouco produtivos e marcados pela ausência de inovação os anos conturbados que se seguiram à extinção dos Colégios das Artes, de Santo Antão, e do Colégio dos oratorianos instalado na Casa das Necessidades. Na realidade, decorreram quase quarenta anos entre as publicações das primeiras edições da obra de Teodoro de Almeida, e da publicação da obra de Inácio Monteiro, até que o livro de Dalla Bella surgisse como o produto do projecto pedagógico iniciado em 1772. Por sua vez, Teodoro de Almeida manteve uma actividade editorial notável. Entre os anos de 1751 e 1800 apenas não publicou obras de relevo durante o exílio.

Quanto aos assuntos de natureza científica, bem como às referências bibliográficas dos autores europeus consagrados, verifica-se que pouca ou nenhuma inovação foi introduzida por Dalla Bella através do compêndio que deixou publicado em 1789/1790. A lista de autores clássicos e modernos que poderia ser elaborada a partir das referências bibliográficas contidas na obra de Teodoro de Almeida, publicada entre 1751 e 1768, e de Inácio Monteiro, publicada em 1754 e 1756, era equiparável à registada no compêndio de Dalla Bella, publicado quase quarenta anos depois. Todos os grandes autores da primeira metade do século XVIII, referidos por Dalla Bella, já há algumas décadas antes eram do conhecimento do oratoriano Teodoro de Almeida e do jesuíta Inácio Monteiro. Com efeito, os compêndios destinados aos cursos de Física Experimental utilizados nas mais importantes universidades europeias na época, da autoria de Jean Teophilus Desaguliers em Inglaterra, Petrus van Musschenbroek e Willem Jacob s’Gravesand em Leyden, na Holanda, bem como de Noel Regnault e Jean Antoine Nollet em França, fizeram parte de uma numerosa e extraordinária lista de obras de literatura científica que também foram importantes referências bibliográficas para o desenvolvimento do ensino em Portugal, algumas décadas antes de 1772. As mais importantes obras destes autores também foram utilizadas como referências bibliográficas por Teodoro de Almeida e Inácio Monteiro nas suas lições» (Décio Ruivo Martins, «A reforma pombalina: que inovação no ensino das Ciências Físico-Matemáticas?», in Actas do Congresso O Marquês de Pombal e a Sua Época, 10-12 Novembro 1999, Auditório Municipal de Pombal, e do Colóquio O Século XVIII e o Marquês de Pombal, 17-20 Novembro 1999, Auditório da Biblioteca Municipal de Oeiras, pp. 337-338).

(22) Pinharanda Gomes, Os Conimbricenses, p. 144.

(23) Cf. ibidem, p. 149.

(24) Nesta tentativa, convém deixar claro que a escola dos Jesuítas, na obediência ao Ratio Studiorum e às teses da tradição, «tem seguido o método de abertura a todos os fenómenos da filosofia moderna, ou para os confutar, ou para os refutar, ou para os converter, no que hajam de convertível, à doutrina da escola» (cf. P. Gomes, «A renascença católica e a renovação escolástica», in História do Pensamento Filosófico Português, Editorial Caminho, 2004, Vol. IV, tomo 1, p. 478). É o caso, por exemplo, de Cassiano Abranches, que travou diálogo com o existencialismo, ou até mesmo o de Júlio Fragata, «que seguiu uma orientação fenomenologista, à Husserl». Num outro plano, temos ainda o caso de António Dias de Magalhães, «lugar selecto de uma afectiva e efectiva relação entre os Jesuítas e a escola leonardina, pela sua devoção ao pensamento de Leonardo Coimbra e de Teixeira de Pascoaes».

(25) Cf. Álvaro Ribeiro, «Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica», pp. 253-254.

(26) Pinharanda Gomes, «A renascença católica e a renovação escolástica», p. 562.




Santo Inácio de Loyola



A Filosofia Portuguesa em foco!

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Alocução de Álvaro Ribeiro seguida de entrevista à «Flama»









«Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas; e a metafísica à nossa gente pareceu sempre ludíbrio fátuo de cerebrações senão já de raiz mórbidas, perturbadas, contudo, na normalidade clara duma pachorrenta irrigação sadia. Não impediu esta originária indisposição, estrutural, de natureza e essência, que, à laia do demais, como dever de ofício e encargo de profissão, nas aulas públicas, de todo o tempo, se lesse, entre nós, de filosofia e que até pretendesse o engenho pátrio, de onde a onde, aqui ou ali, alçapremar-se à região vaga das cogitações metafísicas, que, em regra, uma invencível, preguiçosa antipatia formalmente sentenciara e categoricamente condenara. Os mestres e pedagogos, desvairados do engano subjectivo da semi-reflexão que empresta confiança à sua vítima e lhe dá uma característica suficiência, pavonearam-se de seus supostos méritos e foi-lhes, nas crises da irrespeitosa dúvida das intermitentes dissidências, motivo de inexplicável assombro e de tão sincera quão cândida indignação o facto inverosímil de que surgissem autónomos reparos contra a decadência da mente culta lusitana, a qual em filosofia, então, se asseverava de rastejar prostrada.

(...) Não lograra Jacob de Castro Sarmento seu propósito; e baldas foram suas admoestações a seus surdos e obcecados conterrâneos. Infrutuosamente, aos portugueses, Jacob de Castro Sarmento bradara: "No sistema Aristotélico (fundado na imaginação, em lugar da Natureza) se não acha outra coisa que palavras vãs e vazias; e, depois das suas doutrinas, todas, muito bem estudadas, e de examinadas tão renhidas e perpétuas disputas, se pode dizer com certeza delas:


Dico ego, tu dicis, sed denique dixit et ille;
Dictaque post toties, nil nisi dicta vides".


Infrutuosamente. Os portugueses não se resignavam a abandonar o seu aristotelismo arábico; e do grande observador e experimentalista grego, por uma das mais incongruentas aberrações do espírito humano, obstinavam-se em cata do patrocínio para os delírios verbais da sua mania raciocinante. A Escolástica era, nesta terra sáfara, a irmã bem-amada do jesuitismo e da inquisição. Coimbra perpetuava o comentário aristotélico para ufano louvor e o jesuíta Pedro da Fonseca, da Cortiçada, resultava cognominado o "Aristóteles conimbricense".

Apesar das mitigações que, a todo o instante do comento dos estrangeiros juízos acerca dos nossos nacionais, um zeloso amor-pátrio insinua ao Sr. Lopes Praça, este distinto escritor não pode menos de convir em que nos fastos da filosofia racional o nosso país ocupa um lugar muito secundário».

Sampaio Bruno («A Ideia de Deus»).


«Filosofia sem metafísica, - tal fora, tal era, para Sampaio Bruno, a filosofia portuguesa. Torna-se claro o que não poderia ser esclarecido por apontamentos de história cultural: o secular repúdio por filosofias como a de Descartes, a recente aceitação do positivismo, a simpatia pelos empiristas ingleses, e, até, a superior interpretação empirista do sistema de Aristóteles. Quanto aos portugueses, - escreve Sampaio Bruno em A Ideia de Deus, - "não quiseram saber da metafísica na filosofia; mas da metafísica os portugueses quiseram saber na matemática e na poesia".

(...) No decurso do livro, vai Sampaio Bruno pouco a pouco eliminando as pretensões temerárias dos matemáticos, dos metafísicos, dos racionalistas, e, ao mesmo ritmo, intercalando notas que valorizam a indução, a revelação e a oração. Condenar a metafísica, os seus paradigmas clássicos e as suas construções verbalistas, era tarefa relativamente fácil numa época em que o kantismo e o positivismo predominavam sobre as outras correntes da filosofia europeia. Mas Sampaio Bruno foi mais longe: criticou também a doutrina das ideias inatas e o apriorismo kantista, manifestou sérias dúvidas sobre as garantias gnoseológicas dos conceitos universais e das relações necessárias, enfim, discutiu o valor de verdade que não costuma ser negado à matemática, à física e à metafísica.

A verdade era, para Sampaio Bruno, de ordem transcendente, e o conhecimento humano apenas progredia pela revelação. As ciências, sem excepção das mais puras, permaneciam relacionadas com as condições da nossa subjectividade. O tempo mantinha, porém, a sua prioridade sobre o espaço.

Teólogo heterodoxo, Sampaio Bruno considerava como objecto primeiro do seu estudo a maneira por que os atributos de Deus se espelham nas ciências humanas. Examinou, para isso, a validade das provas da existência do Ser Supremo, em luta contra as pretensões da metafísica. Foi assim levado para o campo em que a metafísica interfere com a matemática, para aí discutir as ideias de infinito e de zero.

(...) Opõe-se Sampaio Bruno à utilização do infinito matemático na demonstração da essência de Deus, porque se lhe afigura ser tal predicado de infinidade, impróprio para caracterizar o puro Espírito, e porque não admite na alta teologia a predicação analógica. Analisa, portanto, os argumentos pelos quais os apologetas afirmam o trânsito das especulações matemáticas para os postulados ontológicos, e com vagar desnuda os recônditos paralogismos. A ideia de Deus, é, para Sampaio Bruno, transcendente ao mundo das oposições matemáticas, ou seja, da oposição entre o aritmético e o geométrico, o descontínuo e o contínuo, o tempo e o espaço.

A experiência condicionada pela nossa sensibilidade, apresenta-nos seres múltiplos, descontínuos, espaciais. A matemática não poderá, portanto, desligar-se dos números, das figuras e dos corpos, ainda quando por simulação ou abstracção convenientes para aceleração dos cálculos, indispensáveis ao progresso científico, pareça dominar altivamente a realidade sensível.







Construindo desta feita a sua noção de infinito, que distingue do número possível e do número actual que para nosso conhecimento determinam a pluralidade, Sampaio Bruno afirma que infinita é a matéria e que perfeito é Deus. A certeza de ser finito - (porque infinitas só as séries) - o número das estrelas, dos homens, em suma, de todos os entes, não é premissa fecunda para o silogismo concluir pelo aparecimento, no espaço ou no tempo, da primeira estrela, do primeiro homem ou do primeiro ente. Sampaio Bruno impugna os apologetas que, opondo o infinito ao finito, conciliam a transcendência com a criação.

No mesmo capítulo de A Ideia de Deus se encontram, portanto, unidas a crítica ao pensamento de padre Gratry, apologeta famoso que ousara falar de uma "prova matemática da existência de Deus" e a crítica ao argumento ontológico de Santo Anselmo, retocado por Descartes, mas refutado por Kant. Ao nosso filósofo tanto repugnava o ontologismo escolástico como qualquer expressão moderna e contemporânea de ontologismo. Conhecemos o seu juízo acerca de Descartes, de Hegel e de Wronski, conhecemos também as suas restrições a todas as formas de racionalismo.

Não foi, portanto, por motivo fortuito redigida a obra que, depois, intitulou A Ideia de Deus, em torno de outro livro célebre, Defesa do racionalismo e análise da fé, do matemático Pedro Amorim Viana. Ao discutir o racionalismo de Leibnitz a propósito do português leibnitziano, Sampaio Bruno demonstrou não haver razão suficiente que dê solução satisfatória ao problema do mal, e ao problema do erro, por que os dois problemas não sejam claramente filosóficos, mas obscuramente religiosos. Com o respeito devido ao génio do filósofo alemão, em cautas, meditadas e sinceras palavras, Sampaio Bruno acentua as características profanas, iluministas e ímpias, da teodiceia, da monadologia e do criacionismo.

Ao nome de Leibnitz associa os de Newton e de Clarke para, no conjunto, condenar as consequências metafísicas da excessiva matematização das ciências, ou seja, de reforma epistemológica que caracteriza os tempos "modernos". Nada se lhe afigura digno de justificar a superioridade das ciências dedutivas sobre as ciências de observação e de experimentação, e, muito menos, a separação vulgar entre certezas contingentes e verdades necessárias. "Não. A ciência matemática não é alguma coisa de enigmático e sobrenatural".

Insiste nas relações da matemática com o espaço e o tempo, nega a possibilidade de a ciência transcender da perpetuidade para a eternidade. Firma-se na doutrina dos empiristas ingleses, e explica a crítica de Locke aos axiomas e a de John Stuart Mill às definições. Aos argumentos dos epistemólogos franceses responde na crítica a Luís Liard.

Os matemáticos pecam, segundo Sampaio Bruno, em impelirem a razão para a metafísica. Esta é uma impiedade, e todos os sistemas metafísicos degeneram, por isso, em ridículos verbalismos. A ciência humana não pode ir além da experiência, a não ser por divina revelação.

Tornam-se cada vez mais curiosas as páginas de A Ideia de Deus em que o filósofo messianista critica a interpretação corrente entre os matemáticos acerca da utilidade, da significação e do valor zero. A questão teria de ser levantada por quem havia já dedicado três páginas a negar a validade do conceito de nada, pela qual os apologetas do criacionismo embargavam a construção de uma teologia emanatista. Sampaio Bruno sorri, com bonomia cruel, dos matemáticos que julgam que o "zero do cálculo lhes fornece a correspondência exacta do nada especulativo".



Sampaio Bruno




Isoladamente, a curva fechada que representa o zero, pode não ter significado para quem for destituído de mentalidade contemplativa. No resultado de uma operação aritmética, ou num membro de uma equação algébrica, o zero possui um significado que depende dos termos em que o problema fora enunciado; alude à ausência de uma determinada qualidade, aquela que fora previamente quantificada. No conjunto da numeração, porém, o zero, além de possuir um significado, exerce uma função que a aritmologia não pode desconhecer.

Sampaio Bruno, que faz referência aos compêndios de autores portugueses como Azevedo de Albuquerque e Mota Pegado, persegue na elucidação deste assunto os estudos do inglês Janes J. O. Dea, do francês Eduardo Lucas e do alemão Moritz Cantor, através de uma recensão feita por Augusto Laugel ao Mathematische Beiträge zum Kulturleben der Völker. A numeração desenvolve-se no espaço, mas também no tempo e, com tais pressupostos, é já possível chegar à "determinação do valor de zero, considerando-o como uma reprodução de algarismo preexistente, a qual transforma a aritmética de ajustamento numa, derivada e superior de posição". O valor de zero depende da base de cada sistema de numeração, tornando possível pelo movimento em espiral, o desenho de períodos e, portanto, de ciclos, com os quais o número pode medir concretamente o tempo.

Sampaio Bruno não "clarifez" o seu pensamento, deixou notadas as observações suficientes para que o leitor esclarecido vencesse as dificuldades desta zona obscura da matemática especulativa. Entre o infinito e o zero, com seus abismos de sombras, progride e regride a noção de número que resolve a oposição do múltiplo e do uno. Mas Sampaio Bruno, em vez de ascender da matemática moderna para a matemática helénica, que contém os segredos do pitagorismo, deixava-se atrair pelo fascínio oriental das Índias que os portugueses persistem em descobrir».

Álvaro Ribeiro («As Portas do Conhecimento. Matemática e Metafísica»).


«Se Aristóteles ressuscitasse e aparecesse a flanar no boulevard dos Italianos, saberia mais, sobre o asfalto de Paris, da essência da luz, do calor, do som do que da essência da luz, do calor, do som sabia nos jardins atenienses: e, se fosse o pedagogo do filho do Sr. Loubet, de Montélimart, ensinar-lhe-ia uma melhor mecânica, uma melhor física e uma melhor astronomia do que as que ensinou ao filho do Sr. Filipe, da Macedónia. Mas, infelizmente, hoje como então, em metafísica Aristóteles quadraria na mesma e, se o filho do Sr. Loubet, de Montélimart, lhe perguntasse, indiscreto: - Mestre, há Deus; não há Deus? Depois desta vida, há outra vida? A virtude é preferível ao vício? A vida vale a pena ser vivida?; - ainda e sempre Aristóteles haveria de repetir, como para o filho do Sr. Filipe, da Macedónia: - Discípulo, nada sabemos. Parece que há Deus. Parece que não há Deus. Depois desta vida, o crime triunfante exige outra vida; mas eu não sei, de seguro, que outra vida haja para a virtude menoscabada. A vida é um bem, meus colegas em filosofia, da escola optimista, com júbilo o dizem; e cuido que não dizem, de todo, mal. Mas um mal é a vida, simultaneamente o escrevem, com rezinga, os meus confrades, em filosofia, da escola pessimista; e manda a justiça que confesse que têm um lindo talho de letra.

Há quem congemine que estou amenizando, faceciando? Facto é que estas são as insanáveis dificuldades do debate. E o que queda como irrefutável é que seria excelente tomar o avance do modo de enunciar das questões metafísicas como progresso sendo da mesma metafísica. Em sua maioria, são meros progressos de forma; mas, como quer que sejam, o certo é que encontram sua explicação histórica no independente caminhar da ciência positiva, que à metafísica há imprimido, de seu bom grado, mau grado seu, um empurrão para diante. Exemplifique-se. Temos aí a doutrina darwiniana. Não a discutemos, que a pelo não vem. Mas, de ora em diante, quem, após a doutrina darwiniana irá esgrimir entre a ideologia de Kant e a de Hegel ou a de Schelling?

Conclusão geral: - não mais curaremos dos problemas formulados pela metafísica...

É isto? As primeiras e imediatas linhas deste capítulo [FILOSOFIA E METAFÍSICA], desde logo, anunciariam que não é isto. Seria irrisório que eu estranhasse, com toada de censura, que os portugueses se não ocupassem, em filosofia, da metafísica e que acabasse por desejar que aos cães, como osso esburgado, a metafísica se arremessasse. Quanto aos portugueses, não quiseram saber da metafísica na filosofia; mas da metafísica os portugueses quiseram saber na matemática e na poesia».

Sampaio Bruno («A Ideia de Deus»).




Álvaro Ribeiro




«Entre os acontecimentos mais relevantes da cultura portuguesa na primeira metade do século XX figura certamente a luta contra o positivismo. A restauração do perene significado da filosofia foi obra de vários escritores que, por modos correspondentes, denunciaram os malefícios da sistematização errada no ensino público. Concluída a fase crítica e polémica, efectuou-se a demonstração de que existe uma filosofia portuguesa, caracterizada por teses próprias e, mais ainda, de que existe um modo português de filosofar.

A razão especulativa, ultrapassando a razão positiva e a razão dialéctica, abriu por fim novos caminhos ao progresso da cultura nacional. Em lugar de um pensamento português, inqualificado e informe, que permanecera latente, obscuro e oculto na História de Portugal, deveria ser reconhecido e revisto aquele pensamento filosófico, suficientemente caracterizado e determinado, que nos guiara outrora para mais alta verdade transcendente. Após vários decénios de derrotismo baseado em meras opiniões privadas, particulares ou partidárias, que não em demorada hermenêutica de documentos e monumentos, voltou a ser descoberta a rota iluminada pela estrela da esperança.

Em 1932 comemorava todo o mundo culto o centenário da morte de Jorge Guilherme Frederico Hegel. Tornava a ser actual a doutrina do mais alto, puro e subtil filósofo alemão, o qual havia afirmado sem dúvida os génios das nações, em palavras frequentemente repetidas e diversamente comentadas: "Um povo culto, mas destituído de metafísica, é como um templo luxuosamente adornado mas, afinal, privado de santuário". A atenção dos nossos estudiosos dirigia-se, porém, de preferência para a magistral Filosofia do Direito, em que o lúcido pensador, depois de anular o valor doutrinal de utopias várias, definia a constituição política em termos compatíveis com a tradição singular de cada povo.

Em 1940 celebrava Portugal o oitavo centenário da sua independência política e da sua autonomia cultural. As comemorações efectuadas de século a século significam, ainda mais do que as que se repetem de ano a ano, um ritual propício ao culto da Pátria, actuam para despertar as consciências adormecidas pela rotina do calendário burocrático e administrativo, valem de acesso às fontes remotas das energias espirituais. Melhor oportunidade do que a redacção das teses e comunicações a apresentar ao Congresso do Mundo Português não haveria para restabelecer a ligação entre a memória individual e a memória colectiva, ou memória étnica, ligação que se afigura a quem meditar sobre os segredos da hereditariedade e do instinto.

Aos novos investigadores competiria rever e discutir a tese, muitas vezes repetida, de que, ao longo de oito séculos de cultura, os pensadores portugueses não haviam sido mais do que felizes ou infelizes divulgadores das filosofias estrangeiras. Estava escrito que Pedro Hispano havia sido um tomista, estava escrito que Leonardo Coimbra havia sido um bergsonista. Estas e outras falsidades eram então admitidas sem dúvida, apenas porque confirmavam o pessimismo dos doutrinadores do século passado, segundo o qual o homem português seria incapaz de livre pensamento.

Conviria restabelecer, quanto antes, a verdade, e corrigir a narrativa proposta pelos autores de compêndios de História da Filosofia Universal. A verdade a restabelecer é a de que nenhum pensador se limita a apresentar, expor ou divulgar um sistema filosófico elaborado por outrem; o pensador utiliza a matéria alheia para lhe imprimir uma forma própria. O inventário dos sistemas filosóficos ensinados em Portugal dá-nos apenas possibilidade de subordinar, às nomenclaturas provenientes da ortodoxia estrangeira, os axiomas secretos dos pensadores que entre nós escreveram obras de filosofia.

Que três tradições concorrem para a formação da filosofia portuguesa, tradições convergentes para a mesma doutrina acerca do pecado original de desumanização da Natureza, havia sido já demonstrado por Sampaio Bruno; mas estranho parecia que em 1940 estivesse esquecida a tese de que a disciplina de Aristóteles entre nós se compatibiliza e compõe com a meditação constante sobre as virtudes teologais. A temática das relações da fé com a razão, da esperança com o movimento, e da caridade com a justiça, aparece e reaparece em centenas de escritos afirmativos e negativos, como em dezenas de obras de artes plásticas. Não saber ler, não saber ver o que está em evidência, não reconhecer as características da filosofia portuguesa, representaria um atraso cultural e um desmentido solene às expectativas dos patriotas.
















Portugal, 1940: Comemoração do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). Ver aqui



Bandeira da Exposição



























D. Manuel, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral (gesso, por Canto da Maia, 1940).












Panorâmica das aldeias portuguesas


















Pavilhão de Honra e de Lisboa



Pavilhão de Macau



Rua de Macau



Pavilhão do Oriente































As memórias e comunicações apresentadas ao Congresso do Mundo Português não revelaram espírito reflexivo, porque o mérito de reflectir está em comparar o real com o ideal, e, consequentemente, não explicaram a independência política, de que Portugal dava um admirável exemplo em 1940, pela superior e verdadeira razão da autonomia cultural. A decepção foi seguida de depressão, a que reagiram breves meditações singulares sobre a crise do espírito português, sobre as relações do espírito com o pensamento, e sobre a ausência de filosofia na escola nacional. Verificada a falência do positivismo de Saint-Simon a Emílio Durkheim e a Leão Duguit, ressurgiu então o problema de escolher a doutrina filosófica mais conveniente para disciplinar a cultura portuguesa, e respondiam os estudiosos de sistemas estrangeiros com propor a Portugal neutro os modelos adoptados pelos povos beligerentes.

A hora era propícia à divulgação do existencialismo, apresentado em termos dialécticos na qualidade de sistema que opõe, ou antepõe, a existência à essência, o existente ao essente. A existência ou posição do homem no mundo, que o positivismo definira antes da primeira guerra mundial, transformara-se de certeza em incerteza aos olhos dos pensadores que não compreendiam já as virtudes teologais. O estudo dos sentimentos, outrora transferido da filosofia para a psicologia, obtinha agora prioridade sobre o estudo dos pensamentos.

Evocar a posição do homem perante a morte, e, consequentemente, descrever a angústia, o medo e o terror, era um exercício preparatório de dilucidação pessimista de situações mais comuns, como o tédio, o aborrecimento e a fadiga, perante outra espécie de morte que é a banalidade quotidiana. A filosofia existencial iria encontrar na literatura não só um campo de investigação, mas também um meio de expressão. Desdenhando das certezas técnicas, científicas e metafísicas, que o ontologismo sem crítica havia afirmado essentes, os existencialistas de vários cambiantes proclamavam insoluto o problema das relações do tempo com a eternidade.

A temática existencialista ou, pelo menos, aquela que obtém projecção literária é, afinal, a temática do pecado. As chamadas descrições fenomenológicas dos sentimentos pecaminosos não alteram, mas apenas completam, as descrições positivistas das situações pecaminosas, pelo que devem ser consideradas como pertencentes ao mesmo ciclo da história da literatura. Desde que a literatura deixou de ser o modo indirecto, e até impessoal, de o escritor dar expressão à consciência que adquire da liberdade, da graça e do milagre, enfim, do sobrenatural, o humanismo declinou pelo agnosticismo de Kant e recaiu no pessimismo desolador dos sistemas de tragédia.

Se o existencialismo de Kierkegaard representa reacção contra o sistema de Hegel, e se abandonar o hegelismo equivale a considerar a razão especulativa incapaz de alcançar a verdade absoluta, teremos de estudar o novo agnosticismo nas suas relações com os Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência. O célebre professor da Universidade de Koenigsberg era um crente, cria como um publicista dogmático e não como ocultista céptico, acreditava firmemente nos valores jurídicos de garantia moral. Era um dogmático, e se por norma entendermos uma barreira oposta ao conhecimento humano, um marco natural ou um termo artificial, não poderemos deixar de nos intimidar com as palavras e as fórmulas rigoristas que se encontram nas obras de Kant.

Sabem as pessoas medianamente instruídas que Manuel Kant foi autor de uma obra intitulada Crítica da Razão Pura (1781), mas poucas observam que aos nossos ouvidos aquele título ressoa como agnosticismo impiedoso e pecaminoso contra a doutrina do Espírito Santo, contra a terceira pessoa da Santíssima Trindade. Todo o anticristianismo pretérito, como o de Espinosa, ou retardatário, como o de Niezsche, parece jogo inocente ao lado da arte nociva do célebre eremita que residiu na Prússia Oriental. Sempre que, em períodos de crise ou de indeterminação, a filosofia regressa a Kant, como Anteu, o pensamento humano recai naquele círculo doloroso que não comporta a palavra esperança.






A fidelidade à base, ao solo, e ao sólido é efectivamente característica do pensamento alemão. Vemos que os equivalentes alemães das nossas palavras fundo, fundar e fundamento obsidiam a mentalidade desse povo mineiro, engenheiro e industrioso. Há uma religião da dor contrária à religião do amor, mas o heroísmo que se caracterize apenas pela aceitação da dor não faz a felicidade de um povo, e provoca até a infelicidade dos outros povos.

A circunscrição do pensamento filosófico pelos dogmas kantistas necessariamente estimula o vício da crítica e transforma a crítica em polémica. A nova lógica será já uma lógica da discussão, e não uma lógica de invenção, conforme o ensino clássico. É notável que a palavra dialéctica, designativa de uma disciplina do trivium, haja depois de Kant passado a significar uma parte de objecção e de refutação.

A política que daquela filosofia alemã deriva é, essencialmente, uma expressão e uma expansão da vontade. A vontade tende a ser considerada a primeira faculdade humana, por que o seu poder de decisão, muito útil na ordem prática, corta o nó de problemas que permaneceriam insolutos se fossem confiados apenas à razão estética e à razão teórica. A vontade tende também a comportar-se com as pessoas do mesmo modo que se comporta com as coisas, a não distinguir entre pessoa e coisa, enfim, a "cousificar".

A vontade costuma ser equiparada a uma força, e há quem fale em força de vontade. Não é bem assim, A vontade é a aptidão para "fazer das fraquezas forças", para realizar uma economia que torne valente o que há-de por fim ser valioso.

A profunda filosofia alemã, na sua profundidade integra a antropologia na biologia, e restaura desse modo a mitologia dos povos germânicos. Assim a palavra Wille, que traduzimos por vontade, segundo os dicionários, e que os filósofos alemães equiparam a Der Mann e a Die Welt, desce ao plano semântico do que em bom português diríamos vida profunda. Explicável será, por boa filologia, que o título da obra-prima de Artur Schopenhauer Die Welt als Wille und Vorstellung (1819), geralmente traduzido por O Mundo como Vontade e Representação, seja o manifesto amargo de que o paganismo é fundamentalmente a religião da dor.

A formação do pessimismo claramente manifestado por Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, em obras de tão fácil influência como a expansão do mal, teve origem na cosmologia da violência, proposta por Galileu, em oposição à cosmologia da naturalidade, doutrinada por Aristóteles. Tudo quanto equivalha a tirar os seres dos seus lugares naturais, por transporte violento em vez de morosa evolução, desenhará uma queda que tem correspondência científica na noção de gravidade. Ora ninguém desconhece que por muitos séculos o pensamento português ficou fiel, por três tradições fiel, à cosmologia de Aristóteles».

Álvaro Ribeiro (Introdução in «A Razão Animada»).


«Um só momento, a meio caminho do tempo que fica entre nós e Santo Agostinho, o destino do mundo moderno se viu ameaçado. Foi quando, no século XIII, o sistema da filosofia grega irrompeu, graças ao reaparecimento dos livros de Aristóteles, entre os muçulmanos da península ibérica e as escolas conventuais da península itálica. A obra de Averrois - com as recensões dos livros aristotélicos repetidas em três versões de gradual compreensão e iniciático entendimento - foi um fecundo medianeiro que vinha repor o primado do intelecto sobre a vontade, que vinha restituir ao conhecimento o primado sobre a crença, que vinha condicionar, única via de o tornar manifesto e real, o princípio da liberdade à sua adunação com o princípio da verdade, que vinha reafirmar a eternidade e a correlata realidade do mundo sensível, travando o impulso que o primado da vontade estava dando ao aparecimento da ciência moderna destinada, como veremos, a sujeitar e até a destruir a natureza.

Ao lado de expressões extremas de indisciplina e heresia, o averroísmo provocou em grande parte da Europa movimentos populares e juvenis análogos aos que, nestes últimos anos, têm surgido em todo o mundo com a reivindicação ostensiva de modos de viver sociais mais coadunados à existência natural e a contestação das formas de cultura dominantes. Como talvez virá a acontecer aos de hoje, esses movimentos medievais são registados como meras erupções colectivas de libertinagem pelos historiadores sempre pouco atentos ao significado profundo dos fenómenos patentes.

O que mais importa, porém, é a aristotelização que o averroísmo veio incutir no pensamento da época. Dela transmite a história mais académica e corrente, composta segundo os interesses da dominante filosofia nórdica, uma imagem deformada e falsa.



Estátua de Averroes em Córdova




A aristotelização começou por provocar uma crise na tranquila, e então já quase milenária, ortodoxia agostiniana. Manifestou-se a crise, por um lado, na majestosa tentativa tomista de uma nova interpretação do cristianismo ou, com mais rigor, do pensamento do homem transmutado pelo cristianismo. Por outro lado, os próprios pensadores mais fielmente agostinianos, ao abandonarem a remota inspiração platónica para adoptarem, deslumbrados, os métodos aristotélicos, puseram em crise o seu intrínseco agostinianismo. Estes dois aspectos da crise projectaram-se na polémica que imediatamente suscitou a tentativa tomista.

O pensamento de Duns Escoto, franciscano escocês que semeou o seu magistério pelas principais cidades do norte da Europa - Oxford, Paris, Colónia - foi o que, nessa polémica, houve de tão significativo que, com fundas razões, nele se pode situar o decisivo impulso da filosofia triunfante. Ao mesmo tempo que refutava as teses aristotélicas que São Tomás tentava cristianizar, Duns Escoto depurava o agostianismo e levava-o às teses extremas que nele via implícitas. "A filosofia escotista - diz um dos seus mais completos expositores - não é senão um esforço para oferecer soluções mais exactas, mais críticas e mais científicas aos problemas apresentados pelo agostinianismo". É entre tais soluções que se encontra a teoria do conhecimento, com a correlata doutrina moral, que proclama o primado absoluto da vontade sobre o intelecto (ou sobre a razão, como preferiram dizer os filósofos modernos). Nesta, e nas outras "soluções" escotistas, se contêm as teses fundamentais ao desenvolvimento e triunfo da filosofia nórdica. Aí se pode, por exemplo, ver como o materialismo moderno se contém, no que lhe é essencial, na concepção escotista de que a matéria possui uma realidade e uma existência independentes da forma que lhe é dada e a determina, individualiza ou entifica; como, a partir da doutrina, remotamente platónica, da univocidade do ser, a "solução" escotista estabelece que só o ser - e não Deus ou o que nele se significa - é objecto do conhecimento ou está, conforme pensa hoje Heidegger, na origem de todo o conhecimento; como o conhecimento não esbarra apenas, consoante dizia Santo Agostinho, no incompreensível mas tem em suas mesmas condições, por efeito da queda, da cisão ou do pecado, aqueles intransponíveis limites que virão a ser o objecto da crítica kantiana e constituem, na linguagem de Escoto, "as condições actuais" do intelecto que, conformado para tudo abranger sem restrições, está no entanto condenado pelo pecado original a só conhecer a quidditas rei sensibilis, ou seja, na linguagem kantiana, só os fenómenos que cabem nas formas da sensitividade.

Na articulação das teses escotistas, a do primado da vontade é talvez a de mais fundas raízes antropológicas e a de mais caracterizantes determinações sociais, culturais e civilizacionais. Ligada, na origem, à condição do homem como ser criado e separado do criador num mundo proveniente da cisão, com a consequente sujeição da natureza ao mal, desenvolve-se ela, sobretudo, na religião e na política, para daí se projectar na moral e no direito. Suas expressões mais veementes vão aparecer nas formas morais e religiosas do protestantismo cujos representantes, desde Jansenius até Lutero, nunca deixaram de aludir, admirar e até reivindicar a tradição agostiniana à qual a filosofia nórdica os prendia através de "soluções" escotistas.

Nos povos meridionais, entre os quais nunca se anulou completamente um certo atavismo clássico com a permanente disposição para uma harmonia natural e cósmica onde o mal não possui realidade ôntica, onde a cisão e o pecado dificilmente se reconhecem como inatos ao mundo e ao homem e antes facilmente se aceitam como imagens e mitos, nos povos meridionais o catolicismo conseguiu resistir à obsessão do pecado própria das interpretações agostinianas e protestantes do cristianismo e pode dizer-se que nunca entre eles o primado da vontade foi tomado a sério ou recebido sem suspeita. Embora absorvidos e esmagados nos modos de civilização e cultura nórdicos, dominados pela técnica e pela indústria resultantes da ciência moderna, regidos pela política e pelo direito inerentes ao "dogma da vontade", sempre lhes resistiram ou menos passiva ou mais tacitamente. Tal resistência se reflecte, muitas vezes se tornando manifesta e hostil, no pensamento filosófico onde se liga ao reaparecimento medieval de Aristóteles, à sistematização tomista de modelo aristotélico, à renascença da cultura antiga que os povos nórdicos imediatamente traduziram num estreito humanismo, e à permanente suspeição perante os sistemas que a filosofia nórdica, através das instituições colegiais ou universitárias, teima em lhes impor.

Consideremos apenas o significativo exemplo de um desses povos, aquele precisamente a que mais se tem recusado o reconhecimento de um pensamento original, o menor entre os poderosos do mundo, e que no entanto viu adoptado por toda a cultura europeia, ininterruptamente desde o século XIII até ao XVIII, desde Duns Escoto até Kant, o seu ensino aristotélico da lógica, primeiro através da Suma de Pedro Hispano, depois através das Instituições Dialécticas de Pedro da Fonseca: o ensino da lógica, repare-se, que é, segundo Hegel, "o reino do pensamento puro, o reino da verdade tal como existe em si e para si, cujo conteúdo é a representação de Deus antes da criação da natureza e de qualquer espírito finito" e que, sempre segundo Hegel, "desde Aristóteles não sofreu qualquer alteração". Pois nesse povo, Aristóteles é "o filósofo sempre presente ao longo da sua história"; seu primeiro pensador em língua nacional, D. Duarte, insiste, quanto ao essencial da filosofia, no primado do intelecto sobre a vontade, e um dos seus últimos pensadores tem do cristianismo uma visão em que o saber e a verdade prevalecem tão absolutamente sobre a vontade e a acção que apela para "um novo Cristo cujos milagres sejam argumentos".



Pedro Hispano



O primado absoluto da vontade estabelecido por Duns Escoto conduziu a uma interpretação do cristianismo que dispensa o espírito que há no homem daquele saber e daquela verdade que era, para os gregos, saber que infindavelmente se adquire e verdade que, sempre talvez se velando, sempre no entanto se procura. Imperfeito o saber, a imperfeição é sua mesma condição de autêntica sofia cujo amor não cansa e se não esgota. Inatingível a verdade, lá no termo daquela "distância sempre impossível de percorrer", o saber que ela suscita é uma sede que se não sacia. Mas com o primado da vontade sobre o intelecto, o saber apresenta-se como feito e dado. São, aliás, correlatos, saber feito e primado da vontade, saber dado ao mundo e a remissão para a vontade de tudo o que ao homem mais importa.

Sem a dispensa da busca incessante da verdade, seria absurdo proclamar o primado da vontade; e sem este, seria vão e inconsequente afirmar o saber como dado ao homem e no mundo. Assim se abandonou a finalidade principial da filosofia, se sacrificou a expressão mais alta do saber sófico numa estranha abdicação de procurar a verdade, e se deu o homem como sábio quer na relatividade do saber que lhe é acessível quer na absoluteidade de uma verdade que lhe foi revelada. A filosofia limitou-se a investigar as condições, como em Kant, ou os processos, como em Hegel, que permitem ao homem conhecer o saber que está feito e perdurar na passiva e contente ignorância do que sempre lhe será vedado conhecer.

Desenvolvendo-se a partir do seu primado sobre o intelecto, a vontade vai apresentar-se como garantia da liberdade no homem e imagem da liberdade divina. Nesta imagem, resultante da projecção no absoluto, entificado ou não, divinizado ou não, de formas conceptuais abstractas, a liberdade e a vontade imediatamente aparecem identificadas. No homem, porém, a vontade não aparece logo como idêntica à liberdade, mas apenas como a garantia real da liberdade possível, como o que torna real a liberdade, e a identificação só se estabelece entre a liberdade real e a vontade manifesta.

É-nos difícil discernir nestas relações, e em qualquer dos graus em que elas se apresentam, seja uma dedução racional ou lógica, seja uma ligação intuitiva ou poética. E mais justificadas se tornam nossas dificuldades quando, em filósofos modernos mais recentes do que os medievais mas não menos significativos, elas se nos deparam expostas em termos de evidente e suspeito compromisso. Quando, por exemplo, Kant nos diz que "o conhecimento é tema e interesse de poucos ao passo que os benefícios da vontade são negócio de todos" e ligamos esta afirmação com o famoso apotegma de Hegel de que no remotíssimo mundo oriental só um era livre, no remoto mundo antigo só alguns eram livres e no mundo cristão todos são livres.

Foi Hegel para a filosofia nórdica o sistematizador enciclopédico que Aristóteles terá sido para a filosofia grega. Foi também o seu derradeiro pensador optimista, o último em quem não aflorou a suspeita sequer de que o mundo espiritual a que pertencia ia entrar em crise. Não só o via aberto a todo o futuro como nele encerrava todo o passado, para lá da modernidade, de romanos e gregos, do remotíssimo oriente até antes da criação do mundo. Concebeu de tal modo, e com tal génio, a ideia, que a ideia pensada constituía todo o pensamento, era o pensamento de Deus antes da criação do mundo e dizia que o pensamento de qualquer singular filósofo continha, já pensado, o pensamento de todos os homens que o precederam.

Todavia, Martinho Heidegger diz-nos que Hegel, "com a sua determinação especulativa e dialéctica da história", se viu inibido de considerar "a verdade e o seu reino" como sendo a finalidade da filosofia e, muito embora, "tenha fixado o reino da pura verdade como o fim da filosofia", atribui-lhe por objecto ou por essência "a actividade da vontade absoluta". Todavia, repetimos, Heidegger diz-nos que o pensamento de Hegel, com justa razão considerado a sistematização da filosofia nórdica, é um sistema da vontade, inibido de ter a verdade por sua finalidade ou seu princípio.

Dizia também Hegel que "a filosofia é filha do tempo", mas com a condição de ultrapassar os limites do seu tempo ou de neles encerrar todos os tempos passados e futuros. O que Heidegger nos afirma é, porém, que, sistema da vontade, o hegelianismo é bem a filosofia de um tempo que não ultrapassou e nele encontra seus bem demarcados limites. E propõe que o filósofo, em vez de hegelianamente assumir todo o pensamento até ele pelos homens pensado, antes se despoje de tudo o que foi pensado ao longo dos tempos e reverta àquela origem - de que parece ver mais próximos os pré-socráticos - onde o saber da verdade, ou a mesma verdade, terá tido porventura uma expressão imediata.



Martinho Heidegger






Há nesta proposta de Heidegger uma espécie de má consciência ou de dramática visão da crise, se não da nulidade, de toda a filosofia nórdica. Significativamente, é hoje Heidegger o mais qualificado representante dessa filosofia e embora, na proposta reversão do pensamento ao saber original, todos os seus sentidos se abram aos filósofos gregos, os pensadores que mais demorada e atentamente parece ter estudado foram Duns Escoto e Frederico Nietzsche, a ambos dedicando volumosos escritos: Escoto, como temos visto, representa o decisivo impulso da filosofia nórdica; e Nietzsche é quem vislumbra e primeiro o proclama, num sentido o fim dessa filosofia, noutro sentido a inferioridade dela perante o pensamento dos povos meridionais, não só o dos antigos gregos mas também o dos católicos da renascença e das lutas luteranas e o dos seus contemporâneos itálicos e franceses. Na sua visão perturbada, não consegue porém desprender-se da filosofia que, em sua exaltação genial, repudia e condena, e paradoxalmente atribui à vontade aquele primado que constitui a substância dessa filosofia.

Com Nietzsche e até Heidegger, define-se o século da crise e porventura encerramento da filosofia moderna, cuja perduração já parece apenas institucional. Um discípulo de Heidegger, Herbert Marcuse, vai já ao ponto de dar tal encerramento por concluído, afirmando que Hegel é o derradeiro dos filósofos e, com ele, a filosofia transita à sociologia ou teoria social.

Marcuse vê bem que uma filosofia que fez da vontade seu fundamento, apenas se pode apresentar como filosofia enquanto elabore o processo que, abdicando da soberania da verdade e sacrificando o amor ao saber, conduz ao predomínio da acção em que a vontade se manifesta. A missão da filosofia moderna terá sido portanto a de negar o princípio da verdade. Derradeira e mais perfeita sistematização dessa filosofia, o pensamento de Hegel, concebendo o espírito como "o negativo que qualifica a razão e o intelecto" será o pensamento da negação incessante, factor dinâmico da dialéctica e da história.

Estaremos pois a assistir ao anoitecer da filosofia nórdica, estaremos talvez no crepúsculo de uma civilização. Não vamos agora lembrar a antiga sabedoria mítica com a imagem, tão grata a Hegel, do pássaro de Minerva que levanta voo ao anoitecer. Uma funda decepção paira neste fim do dia que na liberdade julgou ter a sua luz solar mas que, ao desligá-la da verdade e fazer dela assunto da vontade, essa mesma liberdade comprometeu».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


Foi a noção de Firmamento, e não a de Fundamento, aquela que motivou o Elemento implícito na História de Portugal. Aristóteles garantiu-a pelo conceito do motor imóvel, aliás compatível com o mundo infinito, criado por Deus. Os progressos da geografia e da astronomia, realizados nos três séculos modernos, não revogaram, antes aperfeiçoaram, da imagem para o conceito, o que religiosamente se deve entender por Céu.

A filosofia alemã, dominante nos séculos XIX e XX, pretende ser a filosofia universal. Lembremo-nos sempre de que universal não significa mais do que adunante, mas se reflectirmos bem em que pluralidade não equivale a parcialidade, veremos também que o real não corresponde ao ideal. Ilusório é esperar que uma actividade meramente terrestre efective entre as raças, os povos e as nações aquela adunação que tem por arquétipo o amor.

A divulgação da cultura alemã durante a segunda guerra mundial não beneficiava, aliás, as condições favoráveis para influir na filosofia portuguesa. Em 1940 reagia Portugal contra as doutrinas sociológicas de sofismação dialéctica, pelo que seria inconsequente rejeitar em política e admitir em filosofia o agnosticismo de Kant e seus discípulos. Nem o positivismo de Husserl nem o ateísmo de Heidegger foram sequer traduzidos de modo a conseguir a perfeita aceitação dos intelectuais portugueses.

Dez anos haviam sido comsumidos na divulgação de uma antropologia da insinceridade, segundo a qual o homem esconde, disfarça ou cifra motivos da sua acção pessoal e social. Nesse decénio atingiram inesperada mas explicável popularidade o freudismo e o marxismo. Vários escritores aplicaram o seu engenho a interpretar a cultura portuguesa pelos motivos dominantes naquelas doutrinas dogmáticas, convencidos de que tais permutações chegariam a valer de provas, porque convencidos também de que o positivismo havia para sempre refutado a antropologia filosófica.






A segunda guerra mundial obrigou os povos europeus a reflectirem sobre a tese ateísta segundo a qual a infelicidade humana provém da má organização da sociedade. Opostos sistemas políticos na sua oposição anulavam o positivismo que não havia sido mais do que doutrina de compromisso e de transição. A pouco e pouco desapareceu a crença de que a felicidade do povo está dependente de qualquer sistema de sociologia, e recomeçaram os estudos sobre a evolução da personalidade humana.

O existencialismo de Karl Jaspers, proveniente de um psiquiatra estudioso dos fenómenos de frustração e agressividade, teve o mérito de demonstrar que sempre hão-de as relações definir situações de inferioridade e de superioridade, sem alteração visível das virtudes e dos vícios dos homens. Modificou-se o significado da questão social e da luta de classes quando foi visto que a dissociação levada a efeito pela indústria moderna, entre a pessoa que manda, e a pessoa que paga, teve por consequência submeter o valor do trabalho humano a um critério impessoalista, cousista e materialista, incompatível com a doutrina da justiça. A noção de trabalho, relacionando o homem com a matéria, o utensílio e a máquina, projectou para fora do domínio científico os postulados naturais da sociologia.

Já antes do existencialismo havia sido visto, à luz de uma epistemologia exigente e coerente, que a chamada sociologia não pode servir de base a uma técnica política, porque é uma falsa ciência. Ela não obedece à lei do número, posto que as diversas sociedades de que se ocupa não são caracterizadas pela quantidade de seres humanos que as compõem, e na indeterminação numérica permite que os mesmos termos designem realidades muito heterogéneas. Ela não contém um princípio de movimento, ou de mediação entre noções contrárias, pelo que há-de recorrer à história, à biologia ou à geologia sempre que for obrigada a dar satisfação suficiente às exigências explicativas da ciência humana.

A sociologia, de inspiração alemã, é uma tecnologia da densificação dos impedimentos às relações humanas, explicável pela inteligência do mal. Assim, o preceito formulado por Emílio Durkheim, de considerar a sociedade como uma coisa, não basta para garantir um método científico. As relações humanas são de pessoa a pessoa, e contra esta verdade de pouco valem os intermediários cousistas que ficticiamente representam as instituições ou a sociedade.

A sociologia materialista exige uma consequente definição de política. A política será a técnica de administrar as coisas, em vez da arte de governar os povos. Aparentemente anarquista, esta substituição anuncia e aconselha que se proceda para com os homens como habitualmente se procede para com as coisas.

(...) Em 1940 estava por quase toda a gente verificado que a sociologia idealista, positivista ou materialista não poderia servir de doutrina explicativa da História de Portugal. Haveria, porém, que descobrir o motivo complexo (quer dizer, oculto) que inibia naquela data a opinião pública de comparar a nacionalidade com a sua filosofia, e a essa investigação se dedicaram os estudiosos que haviam ficado descontentes com os resultados do Congresso do Mundo Português. Datam, pois, de 1940 o desenvolvimento da filosofia portuguesa e a consciência de que existe um modo português de filosofar.

Quem souber ler a nossa História da Literatura, e também a nossa História do Direito, não terá dificuldade em reconhecer que um espírito superior conferiu autonomia ao pensamento português. Os estudos positivos de Teófilo Braga, Fidelino de Figueiredo e Hernâni Cidade, no domínio da História da Literatura, como os de Paulo Merêa, Cabral Moncada e Marcelo Caetano, no domínio da História do Direito, comprovam que o modo português de filosofar não recebeu adequada expressão didáctica nas escolas instituídas por imitação da cultura europeia. Quem pensar no silogismo da árvore, constituída por um tronco mediador da raiz com a copa, quem souber ler o simbolismo do barco, do vaso e da nave nas obras das nossas artes plásticas, quem tiver leitura do que não está na escritura, facilmente entenderá que é destino do espírito português flutuar sobre as águas.










A Casa de Portugal, no extremo da Europa, talvez a muitos pareça ser a Pequena Casa Lusitana, de que falou Camões. Esta expressão significa, porém, que Portugal é a metrópole de um país ultramarino, que o pensamento português é um pensamento atlântico. Estando acima do elemento líquido, que a tinta representa na arte de escrever, o pensamento inefável torna-se incomensurável com as vulgares expressões de cultura.

Portugal não é uma província, uma terra vencida, e portanto servil, da mentalidade dominante na Europa Central. Portugal é uma nação tão culta, e criadora de cultura, como aquelas que lutam pela supremacia internacional. Esta verdade tem de ser afirmada sem receio de que os comparativistas a contradigam pelos sinais que denunciam um complexo de inferioridade.

Razão há, pois, de acusar de provincianismo todos quantos, entre 1870 e 1940, defenderam o estulto programa de europeizar Portugal pela adopção de uma cultura estrangeira, talvez já ultrapassada. Quem for ler as obras de Cunha Seixas, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra facilmente descobrirá e descreverá o modo português de filosofar. Depois, pelo estudo comparativo da filosofia portuguesa com as filosofias estrangeiras, verificará que teria sido um erro provinciano aceitar sem crítica a tese dos que nos recusam autonomia cultural.

(...) Filosofar é desenvolver a aptidão humana para o conhecimento supranormal. Tal aptidão adquire-se pela oração, tanto pela oração mental como pela oração verbal. Seria fácil extrair dos livros de Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra as frases confirmativas de que na prece está o primeiro acto da arte de filosofar.

Esta noção de filosofia tem por imagem o acto de abrir os olhos para outra realidade, e na procura do saber teórico, ou propriamente do resultado do conhecimento que é a teoria, alguns escritores confundem filosofia com metafísica. Garantida está aquela noção pela prova de que, ao longo da história cultural, nenhum sistema filosófico pode deixar de admitir a gradação do conhecimento humano, metodologicamente afirmado ou por uma tábua das categorias, ou por uma classificação das ciências, ou por determinação das regiões da realidade. Aqui se nota quão enganosa, falsa e absurda é a expressão teoria do conhecimento, usada nas escolas, mas adoptada por vício de imitar a nomenclatura estrangeira.

Inútil seria um modo de cultura que não facultasse àqueles que estudam um saber de ordem superior. Explica-se que a palavra pensamento tenha menor dignidade do que a palavra filosofia, exactamente porque pensar é próprio de todos os homens e filosofar só é dado aos homens superiores. Assim vemos que os últimos positivistas preferem falar de pensamento português, que dividem em pensamento moral, político e religioso, a adoptar claramente a expressão de filosofia portuguesa.

Se a filosofia fosse realmente o acesso à metafísica por intermédio da lógica, e se a lógica fosse como que uma gramática geral, válida para todos os idiomas, e portanto universal - conforme foi outrora ensinado nos liceus -, todos os sistemas gnosiológicos haveriam de ser reduzidos a uma só forma de racionalismo. Durante muitos séculos esteve a razão filosófica mais ou menos subordinada à lógica de Porfírio e de Boécio, erradamente confundida com a lógica de Aristóteles. À medida, porém, que o experiencialismo aristotélico foi sendo combinado com os métodos apropriados às ciências físicas tornou-se cada vez mais difícil aceitar a palavrosa metafísica.

O racionalismo agnóstico, que atingiu a perfeição na obra de Kant, preparou o intelecto humano a não admitir qualquer ciência de verdades consideradas superiores à razão. Esta incompatibilidade do racional com o irracional obrigaria o filósofo a acreditar mais na palavra alheia do que no pensamento próprio, sempre que as condições sociais da actividade humana aconselhassem tal obediência. O racionalismo agnóstico precede e prepara a demissão do livre pensamento perante o voluntarismo prático.

Nada custa tanto a um homem livre como ter de mentir, ou, o que é o mesmo, ser forçado a dizer que acredita no que lhe repugna à razão. A firmeza no agnosticismo impede-o de, como dissemos, abrir os olhos para a realidade. Contra o racionalismo agnóstico de Kant só há o recurso de demonstrar que a razão é flexível, ou animada, o que equivale a reproduzir a crítica de Hegel ou a restaurar a lógica de Aristóteles.




A doutrina da razão, que está implícita na filosofia portuguesa, desenvolve-se em direcção contrária à do limitado racionalismo. Tal acontece devido a multissecular fidelidade à lógica de Aristóteles. Notadas foram já, porque notáveis, as semelhanças entre a filosofia inglesa e a filosofia portuguesa, entretecidas de névoa, bruma e sonho.

A gnosiologia dos pensadores britânicos subordina a razão humana a uma espécie de percepção transcendental. Assim é na antropologia, na cosmologia e na teologia. Esta tendência induz os comentadores superficiais no erro de confundir a pluralidade com a parcialidade, a multiplicação com a divisão, e a situar entre as linhas do empirismo, do cepticismo e do pragmatismo, as obras-primas da filosofia inglesa.

O modo português de filosofar, isto é, o modo português de atingir o conhecimento supranormal de uma realidade sobrenatural, é perfeitamente aristotélico porque está relacionado com as artes da palavra. O modo português de filosofar consiste em erguer a palavra libertada à altura do pensamento, e procurar depois atingir a mais pura região do espírito. Tal é o que aparece, ainda que transfigurado, nas obras de jurisprudência, de literatura e na tradição oral.

A palavra livre dissocia-se dos sentidos e dos conceitos a que tem estado associada, conserva a nobreza do seu significado étimo, para depois se referir a novas realidades. Esta faculdade de dissociação e de associação, exercitada pelas disciplinas do trivium, garante mais do que qualquer outra a fecundida da ciência humana. As palavras não são imortais, mas por muito tempo sobrevivem aos sentidos, aos conceitos e às imagens.

A arte de filosofar tem seu princípio na liberdade de atribuir a qualquer palavra uma significação propícia ao pensamento subjectivo, porque só a partir dessa liberdade parece inteligível a fecundidade do método socrático. A cada palavra corresponde um sentido ou um conceito, sentido que a imaginação altera ou conceito que a inteligência rectifica, sempre que o pensador ouse evadir-se das condições estreitas da linguagem comum. Só exigindo a todos os homens o juramento de usarem as palavras vulgares na significação prescrita pelo dicionário contemporâneo, seria possível contrariar a evolução normal das línguas vivas, pela flutuação semântica.

(...) Quem pensar que o advérbio imediatamente significa sem mediação, e portanto um modo, tenderá a esquecer que para muita gente aquela palavra equivale a . Bem sabemos que o tempo se mete de permeio, mas o tempo condiciona em vez de interpretar. Se considerássemos com maior rigor as distinções de tempo e de espaço, seríamos mais prudentes, como os Ingleses e os Alemães, não confundiríamos numa só palavra diferentes conceitos de Céu.

A escada, ou ponte, da Terra para o Céu, que nos é dada pela palavra metafísica, sofre uma mutação semântica ao passar da nomenclatura da filosofia para a nomenclatura da ciência. Quando os positivistas franceses negavam à noção de metafísica o direito de cientificidade, alguns pensadores mais esclarecidos procuraram demonstrar que não pode haver ciência sem metafísica, porque o cientista recebe, compõe ou elabora hipóteses, já que à ciência não bastam os métodos de observação e experimentação. Exemplo histórico é o da hipótese atómica, transpondo da ciência para a metafísica a estabilidade da matéria, até que a energética anulou por fim toda e qualquer representação cousista de secreta materialização.

É certo que, para muitos pensadores católicos, se torna cada vez mais difícil a distinção entre metafísica e teologia, entre o que compete à razão e o que pertence ao domínio da fé. O critério metodológico das vinte e quatro teses tomistas - obrigatório apenas para o clero - está longe de satisfazer as aspirações dos pensadores leigos que pretendem relacionar a filosofia com a religião, ou elaborar uma filosofia religiosa. Assim vemos, por exemplo, na cultura francesa um positivismo católico, como o de Duhem, Le Roy ou Maritain, servir de réplica ao positivismo agnóstico de Comte, Spencer e Mill.




Cada pensador pode escolher livremente a hipótese metafísica que mais lhe convier, sob a condição de aceitar consequentemente os respectivos corolários e as respectivas conclusões. Só há duas hipóteses metafísicas, a hipótese monádica e a hipótese atómica, complicadas por vezes com a noção intermediária de substância, que pode ser pensante ou extensa; e porque é limitado o número de sistemas filosóficos que dependem da metafísica, verificamos que a chamada História da Filosofia Universal se resume na mera substituição de nomenclaturas, para conservação das mesmas posições polémicas e das mesmas tentativas de refutação. Esta classificação didáctica dos sistemas filosóficos, assente sobre arbitrária esquematização da lógica de Aristóteles, deixou de ser legítima no plano da cultura, depois de publicada a obra de Hegel.

Sabemos que Henrique Poincaré intitulou de La Science et l'Hypothèse (1902) um livro célebre que também poderia ter sido intitulado de La Science et la Métaphysique, visto que hipótese e metafísica se encontram no mesmo plano mental, mas Henrique Bergson foi muito mais audaz. A sua obra contém, ao longo de várias páginas, uma admirável tentativa de refutação da metafísica para fora da filosofia, por lhe parecer radicalmente falsa essa doutrina fundada por Zenão de Eleia, na qual as palavras não correspondem a sentidos, a imagens ou a conceitos. Só quem ler superficialmente, muito superficialmente, as frases subtilíssimas do celebrado escritor francês, estranhará tão singular concordância com o verdadeiro pensamento de Aristóteles.

(...) A filosofia é pensamento sem ostentação. O pensador talvez seja livre, todas as vezes que adquira consciência da liberdade, mas o escritor é sempre motivado, se não necessitado. Há que discernir, porém, se a motivação é interior ou exterior.

(...) Quem escreve sem artifício, preferindo ser sincero com os leitores a ser dissimulado perante críticos, nos seus ensaios deixa ver a espontaneidade do seu pensamento. Nas minhas frases de ordem natural e de preceito aristotélico estão representados actos de proposição, começando precisamente pela designação do objecto material ou mental que excita o meu dizer, envolvendo depois o substantivo com predicados, epítetos e atributos. Afirmo o que vejo firme, sem que a tal firmeza queira dar o meu assentimento.

Afasto-me depois do objecto com a mobilidade que o verbo permite e com a liberdade a que cheguei por evolução, procedo com movimentos descontínuos como os do remador, comparo-me com o navegante que deixa a terra a perder de vista. Ao contrário daqueles escritores que defendem o fixismo dos princípios, metas e fins, não creio que a ordem das coisas tenha uma sequência que corresponda à ordem das ideias, acredito que depois do método a pessoa escolhe a aventura, mas evito também ser iludido pela narrativa das imagens que os efeitos da luz conseguem desprender dos entes finitos. A palavra que flutua sobre a tinta, conforme o simbolismo do barco, nem sempre pode ser animada de movimento uniforme, sofre as oscilações que resultam das marés e das correntes dos ventos.

Não sei como possam julgar bruno, escuro ou escoto o meu difícil trabalho de silogizar. Admito que os leitores requeiram palavras mais adequadas ao pensamento, concedo que apontem interrupções e elipses no discorrer, compreendo que solicitem provas do que ainda está por explicar. Anima-me, porém, o amor da luz e do ar livre, procuro aperfeiçoar quanto possível a compostura dos meus livros, mas ninguém me convence de que a demonstração deva preceder a invenção.

Considero os meus compatriotas superiormente dotados de bom entendimento para as actividades espirituais, o que me permite confiar em que o nosso povo venha a ser gratificado com o sistema de ensino, a organização da imprensa, e o movimento literário que o ajudem a realizar no domínio do invisível tudo quanto pelos maiores poetas foi já previsto. Nunca me tentou o pensamento de negar aos Portugueses nobre aptidão para as actividades artísticas, filosóficas e religiosas, nem alinho junto daqueles que pretendem distinguir-se pela qualidade de vencidos ou de vencedores, porque me repugna esse modo de no insulto aos compatriotas tirar vingança de qualquer ressentimento. Confesso, porém, quanto me desgosta saber que gozam de favor, pelo menos em cenáculos e tertúlias, muitos dos que dizem e escrevem palavras deprimentes para este povo, este país, esta Pátria.


Bem sei que defeitos e vícios dos Portugueses poderiam ser atenuados por um sistema de educação, mas sei também que devemos comparar os defeitos com os efeitos, e os vícios com as virtudes, antes de procedermos a um juízo ético ou a uma condenação moral. Da minha propensão para descobrir, defender e exaltar as qualidades do nosso povo, inferiram alguns críticos ser eu muito mais um escritor nacionalista do que um pensador universalista, mas concluíram escudados por equívocos e ambiguidades. A relação entre o individual, o nacional e o universal não é de parte ao todo, e quem pensar por partes, por partidos e por divisões jamais entenderá a relação verídica entre a imanência e a transcendência.

Prezo-me de bem situar na escala dos valores os povos europeus que mais admiro, mas da admiração distingo a imitação, pelo que justifico desconfiar sempre de todos os movimentos culturais destituídos de base nacional e popular. A muitos escritores que se notabilizaram pela divulgação das estéticas estrangeiras, signifiquei a minha distância pelo meu silêncio, não lhes dei a minha colaboração, mas também não lhes discuto a liberdade. Considerei falacioso o classicismo dos artistas que pretendiam ser herdeiros dos Gregos e dos Latinos, na certeza de que não é portuguesa a tradição pitagórica, mas também não pude concordar com a presença negativista, derrotista e individualista de meros esboços de arte que não anunciavam verbo, não formavam escola, não construíam futuro.

Li, forçado pelas circunstâncias, as famosas obras literárias que mais impressionaram os adolescentes do meu tempo, ansiosos de proclamarem o seu modernismo. Não me era lícito ignorar, nem me era lícito condenar, o que merecia louvor de pessoas bem qualificadas, mas sofri a humilhação de não saber escrever as palavras do meu gosto e do meu desgosto, se bem que me guiasse luminosa intuição de que as doutrinas exóticas produzem efeitos tóxicos. Só mais tarde fui agraciado com o júbilo de ver que a minha inconfessada repugnância pela literatura sincera mas inteiramente livre dos valores, das normas e das formas - triste mistura da sensibilidade eslava com a cultura germânica -, não era mera reacção sentimental de um espírito lusíada, mas pressentimento motivado para a arte de uma antropologia superior.

Habituado, desde a primeira leitura da Cartilha Maternal, aos ritmos populares dos poemas de João de Deus, fui formando a minha cultura literária em direcção oposta à da ocidentalização modernista. A exigência de pensamento levou-me gradualmente a preferir as obras poéticas de António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira e Teixeira de Pascoaes. Não me envergonho de confessar que me faltou simpatia bastante para enaltecer os movimentos literários que surgiram depois da Renascença Portuguesa.

Nunca me entendi com os críticos, professores e historiadores da nossa literatura, que, volvendo os olhos para a Europa e para o Oriente, não sabem, não podem ou não querem valorizar os livros anunciadores ou promotores da cultura atlântica, exceptuando talvez a Pátria de Guerra Junqueiro, o Regresso ao Paraíso de Teixeira de Pascoais ou a Mensagem de Fernando Pessoa. Nao requeiro o encómio dos professores portugueses de filosofia estrangeira, nem espero já que os meus livros mereçam recensões favoráveis das revistas que dizem obedecer a directrizes universalistas. Quem não escrever em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não estiver inscrito numa congregação de elogio-mútuo, sujeita-se até a passar pelo desgosto de ver contestada a sua liberdade de publicar».

Álvaro Ribeiro (Introdução in «A Razão Animada»).


«Quem quiser descobrir as verdadeiras causas da nossa inferioridade mental e a decadência moral que nos avassala, deve ir procurá-las à universidade».

A. Lobo Vilela («A Crise da Universidade»).


«A política socialista, ininterruptamente prosseguida desde o veiga-simonismo, deixou pois ficar incólume o ensino superior, ou a universidade. Mas já ele havia ficado incólume durante todo o salazarismo. E, antes do salazarismo, durante o republicanismo. E, ainda antes, durante todo o liberalismo da monarquia. De modo que o nosso ensino superior é, substancialmente, o que dele fez o Marquês de Pombal, orientado pelo pensamento iluminista da época, cujos principais representantes - Verney, R. Sanches, Castro Sarmento - são ainda hoje enaltecidos, através dos panegíricos de A. Sérgio e semelhantes, por epígonos de menor saber que se denominam de progressistas. Ao mesmo tempo, ignora-se, ou faz-se ignorar a linha mais sábia e mais original do pensamento pedagógico e didáctico português, aquela que preconizando que a organização do ensino se deduz da filosofia que Pombal e os pombalinos de ontem e de hoje decretaram ser "abominável", culminou em Leonardo Coimbra e se prolonga até aos nossos dias nas obras de Delfim Santos, Santana Dionísio, José Marinho e Álvaro Ribeiro».

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).


«O socialismo pode, e deve, ser interpretado como a aplicação das categorias do pensamento militar à organização da sociedade. Tal se prova nos raciocínios comparativos de destruição com a construção, a qual obedecerá muito mais aos artifícios da indústria e do tráfego do que ao naturalismo da agricultura e do comércio. Os impostos e as imposições, as expropriações e as nacionalizações, o planeamento e a estratégia de uma economia sem lucro nem liberdade, incluem imagens próprias da violência totalitária e da utopia indiscutível».

Álvaro Ribeiro («Pela República, contra o Socialismo. Teses e antíteses», in revista Escola Formal, n.º 6, Junho de 1979).











«Ignorando a tradição portuguesa, os políticos, militares e historiadores do nosso tempo continuam a não saber e a não querer atender às consequências que, a partir de 1772 até à actualidade, viriam a decorrer da reforma pombalina da Universidade de Coimbra, a mais importante das quais foi a proscrição do ensino de Aristóteles. Quer isto dizer que o Marquês de Pombal, tendo por base a Dedução Cronológica e Analítica (1767), bem como o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra (1772), consolidou todas as estruturas tendentes a impedir, no âmbito do ensino público, a realização autêntica e original do pensamento filosófico. Assim, não obstante sabermos que o verdadeiro intuito do Marquês estava na eliminação da política dos jesuítas, o que aqui nos importa assinalar é que, de então para cá, o ensino universitário não mais se constituiu como um ensino superior, porquanto sem filosofia a razão humana decai no vício positivista para, finalmente, sucumbir perante as destruições morais, políticas e económicas do socialismo».

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa»).


«Alheia às vicissitudes da cultura universitária, onde se deforma quando se reflecte, tem sido quase sempre inspirada por um espírito subtil e desconhecido a filosofia portuguesa».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).






A Filosofia Portuguesa em foco!


A alocução do Dr. Álvaro Ribeiro sobre o apaixonante tema



Minhas senhoras, 
Meus senhores:


Data de 1940 o problema que nos preocupa. Durante a II Guerra Mundial os principais beligerantes justificavam a sua política em nome da sua filosofia. Portugal mantinha-se neutro e realizava pacificamente as chamadas comemorações centenárias. A neutralidade, que era naquele tempo uma prova de independência, deveria ser doutrinalmente justificada no Congresso do Mundo Português. Efectivamente, não há independência política sem autonomia cultural. Ao percorrermos, porém, as páginas dos dezanove volumes das teses apresentadas no Congresso do Mundo Português, nós, estudiosos e estudantes de filosofia, notamos com desgosto a mínima atribuída aos problemas do pensamento livre e especulativo, a quase omissão!... Não estava oficialmente reconhecida a filosofia portuguesa. Porquê?

O problema começou a ser discutido em conversas de tertúlias várias, timidamente, sem critério nem método. Dois escritos, notáveis pela intenção, merecem ser lembrados: os artigos de Eudoro de Sousa no «Diário Popular», e um opúsculo de Sant'Anna Dionísio publicado pela «Seara Nova». Descontente com as afirmações desses dois amigos, e discordante, redigi um trabalho intitulado «O Problema da Filosofia Portuguesa», propus o manuscrito ao negócio de vários editores, e consegui, por fim, vê-lo publicado pela «Editorial Inquérito» em 1943. Devo notar que intencionalmente dediquei esse modesto trabalho àquele dos meus amigos que mais acreditava no porvir da filosofia lusíada, ao Dr. José Marinho. Quero assim lembrar que sem a solidariedade deste meu contemporâneo, conterrâneo e compatriota talvez não me tivesse sido possível escrever uma série de livros directa ou indirectamente relacionados com o problema da filosofia portuguesa, série que dei por concluída com a publicação de «A Razão Animada». Hoje, quando o meu espírito se desinteressou já de uma questão debatida na imprensa durante quatorze anos, questão, quanto a mim, já suficientemente esclarecida perante as pessoas de boa vontade e de boa fé, volto ao tema, a convite do Centro Contemporâneo de Cultura, apenas para estimular a eloquência de quantos desejarem levar o mesmo facho para mais além...

Reconhecida pelas novas gerações a existência da nossa filosofia nacional, cumpre-nos progredir em três ordens de investigação, e nesse sentido me permito apresentar um programa de estudo para o nosso colóquio.

1º. - Determinar as características da filosofia portuguesa na sua evolução histórica, de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra.

2.º - Caracterizar o modo português de filosofar da actualidade, observando para tal fim as suas reacções perante as correntes filosóficas nossas contemporâneas, nomeadamente aquelas que derivam da Alemanha.

3º. - Estudar o problema português da apologética católica, no aspecto restrito das relações da razão com a fé, da filosofia com a teologia.

Ao submeter à inteligência de V. Ex.ª, Senhor Presidente, esta proposta de ordem de trabalhos, apresso-me a declarar que ela não implica a unanimidade dos escritores que defendem teses ou teoremas favoráveis à filosofia portuguesa. Falo apenas em meu próprio nome, ciente das concordâncias e das discordâncias que dinamizam, animam e fecundam este movimento cultural.






Quanto a mim, várias vezes o tenho dito, a filosofia portuguesa é o modo mais subtil e sublime de amor à Pátria. É um amor consciente, um amor que conhece os seus motivos, quase diria os seus motores, se tivesse tempo para me explicar. Sem pretender dar lições de patriotismo, - o que seria estulto, - peço licença de afirmar que creio na superioridade deste povo triste, sério e sábio que é o povo português sobre todos os outros povos de raça branca, superioridade espiritual, se quiserdes, mas dizendo isso está dito tudo. Não posso desenvolver razões. Todos os credos se provam por símbolos e por actos; provas do meu credo tenho-as dado suficientemente na vida e na acção de escritor. Eu não posso estudar o mínimo problema filosófico sem que na minha alma uma voz mais íntima proclame a superioridade do génio português!

Na hierarquia histórico-teológica dos povos, ou teodiceica, ainda vejo infinita, não acabada, a missão inconfundível da História de Portugal. Eis porque deveras me preocupa o problema apologético de relacionar a filosofia portuguesa com a religião absoluta. Conheço vários sistemas de apologética, principalmente franceses, e não desconheço a crise intelectual, ou cultural, do catolicismo no nosso país. O problema é grave, na opinião de crentes e descrentes, leigos e clérigos, - mas, quanto a mim, só poderá ser resolvido pela filosofia portuguesa.

Em abono desta afirmação poderia dizer algo da minha vida interior, porque devo aos esquemas lógicos e às categorias intelectivas da filosofia portuguesa a possibilidade de reinterpretar e reassimilar a teologia católica, sem dificuldade perante os dogmas e os mistérios. Pelo contrário, na medida em que os autores dos compêndios ou dos tratados de teologia dogmática postulam ou exigem o afastamento daqueles esquemas e daquelas categorias, logo ressurgem as aporias, as antíteses e as antinomias que atormentam os mais sinceros pensadores portugueses. A meu favor direi apenas que uma filosofia tal como a nossa, cujos representantes, de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra foram homens de educação católica, - é mais conveniente para a estruturação de uma apologética do que o abstracto e falso universalismo de várias doutrinas provenientes do estrangeiro. Seja-me permitido dizer que um debate sobre o problema da filosofia portuguesa conduz necessariamente ao debate sobre o problema da filosofia cristã.

Estes tópicos, - lealmente o declaro, - caracterizam a minha filosofia, não caracterizam a filosofia de todos os portugueses. Estou só quando afirmo a superioridade do génio português; estou só, ao dizer que a filosofia portuguesa é superior à filosofia alemã; estou só quando proclamo que a filosofia portuguesa se articulará muito com a futura sistematização da teologia católica. As diferenças, ou divergências, que existem na minoria dos escritores convidados a colaborar nestas sessões de estudo, hão-de surgir no decurso dos debates. Não formarão, com certeza, impedimento ao êxito deste colóquio, cuja ordem, unidade e eficiência foram superiormente confiadas a V. Ex.ª, Senhor Presidente.



Estou convencido da compatibilidade entre a Filosofia Portuguesa e a Filosofia Católica - disse à «FLAMA» o Dr. Álvaro Ribeiro


Raras vezes a discussão de temas filosóficos terá despertado interesse público como aquele que se verificou e está a verificar em torno da série de «colóquios» organizados pelo Centro Contemporâneo de Cultura, no Largo do Mitelo, 1, todas as 6.as feiras à noite. Por isso a «Flama» esteve na sessão inaugural e quis ouvir, para os leitores interessados nestes problemas, uma das mais altas figuras do pensamento português contemporâneo, o dr. Álvaro Ribeiro. Antes, porém, acompanhámos com viva atenção e profundo agrado a forma elevada como decorreu a troca de ideias e opiniões num debate pleno de seriedade e brilho, em que intervieram os revs. Padres dr. António de Magalhães e João Ferreira, e os drs. Álvaro Ribeiro, António Quadros, Orlando Vitorino e Luís Zuzarte, entre outros.








Findo o «colóquio», fomos direitos ao fundo do problema, perguntando ao dr. Álvaro Ribeiro:

- A quem se deve, senhor Dr., esta iniciativa?

- A iniciativa pertenceu à Direcção do Centro Contemporâneo de Cultura que me convidou não só a colaborar neste colóquio mas também a apresentar os problemas da filosofia portuguesa.

Ao propor esta ordem de trabalhos, a Direcção do Centro Contemporâneo de Cultura implicitamente reconhece a existência da filosofia portuguesa. Está, portanto, prejudicada a questão da existência ou não existência de filosofias nacionais. Aliás, eu não daria a minha colaboração em termos contrários a uma doutrina evidente.

- Como explica V. Ex.ª que até há bem pouco tempo tenha havido dúvidas sobre a existência da filosofia portuguesa?

- Pelo prestígio dos escritores que constituíam o grupo dos «Vencidos da Vida», pela divulgação do positivismo, pela errada orientação do ensino público. Durante algumas dezenas de anos foi moda desvalorizar tudo quanto é português. Negou-se a aptidão dos portugueses para a especulação filosófica. Nos liceus não se lia uma página de um filósofo português, e os estudantes que entravam nas escolas universitárias ficavam para sempre a ignorar a longa galeria dos nossos pensadores, que vai de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. No entanto, é prova de incultura desconhecer os nomes dos poetas líricos... Por isso se diz que Portugal é um país de poetas, que não de filósofos.

- Está hoje reconhecida a verdade de que em todos os séculos houve escritores portugueses de filosofia. Vão sendo publicadas muitas bibliografias sobre o assunto. Isso não prova, porém, que tenhamos um pensamento original, diferenciado e característico. Haverá, pois, uma filosofia portuguesa? Verdadeiramente?

- Tanto como há uma filosofia espanhola, ou uma filosofia francesa, ou uma filosofia alemã. A dificuldade da resposta está em caracterizar a nossa filosofia; mas é esse, exactamente, o objectivo do colóquio.

Depois de uma pausa:

- Bem sei que nos liceus e nas universidades de além-fronteiras o ensino da filosofia não se apresenta como nacional. Duas razões explicam essa atitude: evitar o pleonasmo e proclamar a universalidade.

- Quer V. Ex.ª dizer que todas as filosofias são nacionais, embora não o confessem, e que todas aspiram à universalidade por imperialismo cultural?

- Exactamente; mas no estrangeiro há a astuciosa consciência dessa atitude, enquanto em Portugal existe ainda um complexo de inferioridade.

- Tem V. Ex.ª afirmado, segundo cremos, a superioridade da filosofia portuguesa sobre as outras filosofias nacionais. Essa afirmação tem causado escândalo, por não vir acompanhada de provas.

- De certo que, não me sendo possível dar provas de tal afirmação, o assunto participa já da ordem da crença. Eu não me envergonho de acreditar na superioridade do povo português. Por contraprova direi que tal superioridade não está ainda operante e evidente, porque contra ela obsta o sistema do nosso ensino público. (Em voz alta) Não temos a pedagogia que corresponde à nossa filosofia.

- Compreendo perfeitamente o alcance das palavras de V. Ex.ª e vejo agora melhor a utilidade do colóquio.

Efectivamente, se bem caracterizarmos a filosofia portuguesa da actualidade, muito melhor entenderemos qual deva ser a pedagogia do futuro.

Como reagem no nosso tempo os pensadores portugueses perante as filosofias estrangeiras mais divulgadas no nosso país?

- As doutrinas filosóficas de maior divulgação entre nós são o materialismo e o existencialismo, ambas de origem alemã. O pensamento português reage contra elas de modo singular, assimilando as teses aceitáveis para com elas compor novos sistemas. Assim, o existencialismo, que é um positivismo do sentimento, tornou possível a fenomenologia da saudade. Há hoje um saudosismo filosófico. Seus notáveis representantes são o Padre António de Magalhães. S.J., o Dr. Afonso Botelho e o Padre João Ferreira, O.F.M.




- Quanto ao materialismo dialéctico?... Toda a gente sabe que a obra de V. Ex.ª constitui a única refutação do materialismo dialéctico que do ponto de vista filosófico, se realizou entre nós. A obra de V. Ex.ª continua e esclarece «A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre» de Leonardo Coimbra.

- O materialismo dialéctico é um sistema de base científica, pelo que obtém entre os estudiosos muito explicável prestígio. Mas como na sua expressão autêntica, germano-eslava, o materialismo dialéctico não é assimilável pelos nossos intelectuais, divulgou-se nos nossos meios universitários a interpretação cartesiana ou positivista do materialismo dialéctico, com as respectivas cartilhas.

- Quer V. Ex.ª desenvolver um pouco mais este tópico, para esclarecimento dos leitores da Flama?

- Com todo o gosto. O materialismo dialéctico exige certo aprofundamento dos problemas da física, e portanto um pensamento sério que ascenda à categoria intelectual do tempo. O cartesianismo e o positivismo não vão além da categoria do espaço, das associações por contiguidade, próprias do pensamento matemático e do pensamento lógico. Ora a verdade é que a filosofia portuguesa é mais uma filosofia do tempo do que uma filosofia do espaço, e uma filosofia do espírito muito mais do que uma filosofia do tempo.

- Espaço, tempo, espírito... - repete o jornalista para fixar ideias.

- Sim. É essa exactamente a problemática de Sampaio Bruno, adversário do materialismo e adversário da dialéctica de Fichte e de Feuerbach.

- Entende então V. Ex.ª que a filosofia portuguesa é essencialmente uma filosofia do espírito e da sua manifestação no tempo e no espaço? Essa interpretação é inteiramente concordante com o pensamento católico... ( - replicou o jornalista, ao lembrar-se da Revelação Cristã, de toda a História de Portugal, e, finalmente, das Aparições de Fátima).

O Dr. Álvaro Ribeiro, com a sua habitual prudência, foi divagando:

- Será esse um dos tópicos mais interessantes a esclarecer no colóquio, se tudo decorrer com a inteligência desejável. Uma coisa é a filosofia portuguesa, outra coisa é a minha própria filosofia; não posso confundir uma com a outra em juízos prematuros.

- Mas quanto à filosofia de V. Ex.ª?

- A minha filosofia é intinerante. Só Deus sabe onde irei parar... Bem procuro orientação nas revistas católicas, que muito prezo, mas até agora não vi uma recensão ou uma crítica em termos de esclarecimento simpático...

- ...

- Nem sempre a luz nos vem de onde a esperamos. Só em alguns notabilíssimos sermões e discursos do actual Bispo do Porto. Sr. Dr. António Ferreira Gomes, tenho encontrado conceitos filosófico-teológicos de perfeita compatibilidade com algumas teses defendidas nos meus livros.

O nosso entrevistado demora-se a fazer o elogio da personalidade intelectual do Senhor Bispo do Porto, mencionando alguns discursos e sermões que leu na Lumen e em as Novidades. Depois, voltando ao assunto, conclui:

- Estou plenamente convencido da compatibilidade entre a filosofia portuguesa e a filosofia católica. Até ao século XIX não há dúvidas. Depois, teremos de interpretar segundo os processos da crítica actual alguns livros que, por contaminação de preconceitos políticos, parecem hostis à ortodoxia católica. Aconteceu, aliás, em Portugal o mesmo que se verificou em outros países. Eu não tenho dificuldade de ver, apesar de tudo, o catolicismo de Sampaio Bruno, de Guerra Junqueiro e de Leonardo Coimbra. Depois de 1940, porém, tudo se tem modificado para melhor.

- É o ano da Concordata, replicou o jornalista, que assim pôs ponto final à conversa com o entrevistado. Já algumas pessoas chamavam o Dr. Álvaro Ribeiro a comparecer no salão de conferências...

ROLO DUARTE


(in Flama, ano XIV, n.º 509, Lisboa, 6 Dez., 1957, pp. 5 e 7).




O Infante Santo









Lágrimas de Heraclito defendidas em Roma pelo Padre António Vieira contra o riso de Demócrito

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Diálogo realizado pelo Padre António Vieira










«Que significa o riso? O que há no fundo do risível? O que haverá de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um quiprocó de vaudeville, uma cena de fina comédia? Que destilação nos dará a essência, sempre a mesma, da qual tantos produtos diversos tiram o seu indiscreto aroma ou o seu delicado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristóteles, se têm preocupado com este pequeno problema que sempre se subtrai ao esforço, escorrega, se escapa e torna a reviver, como impertinente desafio à especulação filosófica».

Henrique Bergson («O Riso. Ensaio sobre o significado do cómico»).


«(...) A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse então uma voz atrás de nós.

Era Jorge. Uma vez mais me espantei (mas muito havia ainda de me espantar nos dias seguintes) pelo modo inopinado como aquele velho aparecia de improviso, como se nós não o víssemos e ele nos visse a nós. Perguntei-me ainda que coisa andaria a fazer um cego no scriptorium, mas dei-me conta em seguida que Jorge era omnipresente em todos os lugares da abadia. E frequentemente estava no scriptorium, sentado num escano junto à lareira, e parecia que seguia tudo aquilo que acontecia na sala. Uma vez ouvi-o do seu lugar perguntar em voz alta: "Quem sobe?", e dirigia-se a Malaquias, que, em passos abafados pela palha, se encaminhava para a biblioteca. Todos os monges o tinham em grande estima e dirigiam-se frequentemente a ele lendo-lhe textos de difícil compreensão, consultando-o para um escólio ou pedindo-lhe luzes sobre o modo de representar um animal ou um santo. E ele olhava para o vácuo com os seus olhos extintos, como se fixasse páginas que tinha vívidas na memória, e respondia que os falsos profetas estão vestidos como bispos e que da sua boca saem rãs, ou quais eram as pedras que deviam adornar os muros da Jerusalém celeste, ou que os arimaspos devem ser representados nos mapas junto da terra do Preste João - recomendando que não exagerassem ao torná-los sedutores na sua monstruosidade, que bastava que fossem representados de modo emblemático, reconhecíveis mas não concupiscíveis ou repelentes até ao riso.

Uma vez ouvi-o aconselhar um escoliasta sobre o modo de interpretar a recapitulatio nos textos de Ticónio segundo o espírito de Santo Agostinho, para que se evitasse a heresia donatista. Doutra vez ouvi-o dar conselhos sobre o modo de, comentando, distinguir os hereges dos cismáticos. Ou ainda dizer a um estudioso perplexo que livro deveria procurar no catálogo da biblioteca, e quase em que folha encontraria a referência, assegurando-lhe que o bibliotecário decerto lho entregaria, porque se tratava de obra inspirada por Deus. Enfim, uma outra vez ouvi-o dizer que um certo livro não era procurado, porque existia, é verdade, no catálogo, mas tinha sido arruinado pelos ratos cinquenta anos antes e pulverizava-se sob os dedos de quem agora lhe tocasse. Ele era, em suma, a própria memória da biblioteca e a alma do scriptorium. Às vezes repreendia os monges que ouvia conversar entre si: "Apressai-vos em deixar testemunho da verdade, que o tempo está próximo!", e aludia à vinda do Anticristo.

- A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse portanto Jorge.

- Decerto, Apuleio e Luciano eram culpados de muitos erros - disse Guilherme. - Mas esta fábula contém sob o véu das suas próprias ficções também uma boa moral, porque ensina como se paga caro os próprios erros, e além disso creio que a história do homem transformado em burro alude à metamorfose da alma que cai no pecado.

- Pode ser - disse Jorge.

- Porém, agora compreendo porque é que Venâncio, durante aquela conversa de que me falou ontem, estava tão interessado nos problemas da comédia; de facto também as fábulas deste tipo podem ser comparadas às comédias dos antigos. Nenhuma delas narra a história de homens que tenham existido verdadeiramente, como as tragédias, mas, diz Isidoro, são ficções: "Fabulae poetae a fando nominaverunt quia non sunt res factae sed tantum loquendo fictae..."

À primeira não compreendi porque é que Guilherme se tinha entranhado naquela douta discussão, e precisamente com um homem que parecia não amar semelhantes assuntos, mas a resposta de Jorge disse-me como o meu mestre tinha sido subtil.

- Naquele dia não se discutia de comédias, mas apenas da legitimidade do riso - disse Jorge, sombrio.




Arimaspo







E eu recordava-me muito bem que quando Venâncio se tinha referido àquela discussão, precisamente no dia anterior, Jorge tinha afirmado que não se recordava.

- Ah - disse Guilherme com negligência -, julgava que tivésseis falado das mentiras dos poetas e dos enigmas argutos...

- Falava-se do riso - disse secamente Jorge. - As comédias eram escritas pelos pagãos para mover os espectadores ao riso, e faziam mal. Jesus Nosso Senhor nunca contou comédias nem fábulas, mas apenas límpidas parábolas que alegoricamente nos instruem sobre o modo de ganhar o paraíso, e assim seja.

- Pergunto-me - disse Guilherme - porque sois tão contrário à ideia de que Jesus tenha proventura rido. Eu creio que o riso é um bom remédio, como os banhos, para curar os humores e as outras afecções do corpo, em particular a melancolia.

- Os banhos são uma coisa boa - disse Jorge -, e o próprio Aquinate os aconselha para remover a tristeza, que pode ser paixão nociva quando não se dirige a um mal que possa ser removido através da audácia. Os banhos restituem o equilíbrio dos humores. O riso sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco.

- Os macacos não riem, o riso é próprio do homem, é sinal da sua racionalidade - disse Guilherme.

- Também a palavra é sinal da racionalidade humana e com a palavra pode-se blasfemar contra Deus. Nem tudo o que é próprio do homem é necessariamente bom. O riso é sinal de estultícia. Quem ri não crê naquilo de que se ri, mas também não o odeia. E portanto rir do mal significa não se dipor a combatê-lo, e rir do bem significa desconhecer a força pela qual o bem se difunde por si. Por isto a regra diz: "Decimus humilitatis gradus est si non sit facilis ac promptus in risu, quia scriptum est: stultus in risu exaltat vocem suam."

- Quintiliano - interrompeu o meu mestre - diz que o riso é de reprimir no panegírico, por dignidade, mas é de encorajar em muitos outros casos. Tácito louva a ironia de Calpúrnio Pisão, Plínio o jovem escreveu: "Aliquando praeterea rideo, jocor, ludo, homo sum."

- Eram pagãos - replicou Jorge. - A regra diz: "Scurrilitates vero vel verba otiosa et risum moventia aeterna clausura in omnibus locis damnamus, et ad talia eloquia discipulum aperire os non permittitur."

- Porém, quando o verbo de Cristo já tinha triunfado sobre a terra, Sinésio de Cirene diz que a divindade soube combinar harmoniosamente o cómico e o trágico, e Élio Spaziano diz do imperador Adriano, homem de elevados costumes e de ânimo naturaliter cristão, que ele soube misturar momentos de alegria e momentos de gravidade. E, enfim, Ausónio recomenda que se deve dosear com moderação o sério e o jocoso.

- Mas Paulino de Nola e Clemente de Alexandria puseram-nos em guarda contra estas estultícias, e Sulpício Severo diz que São Martinho nunca foi visto por ninguém nem presa da ira nem presa da hilaridade.

- Porém recorda o santo algumas respostas spiritualiter salsa - disse Guilherme.

- Eram prontas e sapientes, não ridículas. São Efraim escreveu uma parénese contra o riso dos monges, e no De habitu et conversatione monachorum recomenda-se que se evitem obscenidades e facécias como se fossem o veneno das áspides!


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- Mas Ildeberto disse: "Admittendo tibi joca sunt post seria quaedam, sed tamen et dignis et ipsa gerenda modis". E João de Salisbury autorizou uma modesta hilaridade. E, enfim, o Eclesiastes, de onde citastes o passo a que se refere a vossa regra, onde se diz que o riso é próprio do estulto, admite pelo menos um riso silencioso, o do ânimo sereno.

- O ânimo é sereno apenas quando contempla a verdade e quando se deleita com o bem cumprido, e da verdade e do bem não se ri. Eis porque Cristo não ria. O riso é fonte de dúvida.

- Mas às vezes é justo duvidar.

- Não vejo a razão. Quando se duvida é preciso dirigir-se a uma autoridade, às palavras de um padre ou de um doutor, e cessa qualquer razão de dúvida. Pareceis-me embebido de doutrinas discutíveis, como as dos lógicos de Paris. Mas São Bernardo soube intervir bem contra o castrado Abelardo, que queria submeter todos os problemas ao exame frio e sem vida de uma razão não iluminada pelas escrituras, pronunciando o seu é assim e não é assim. Decerto que aquele que aceitar estas ideias perigosíssimas pode também apreciar o jogo do insipiente que ri daquilo de que só se deve saber a única verdade, que já foi dita uma vez por todas. Assim, rindo, o insipiente diz implicitamente: "Deus non est."

- Venerável Jorge, pareceis-me injusto quando tratais Abelardo de castrado, porque sabeis que incorreu em tão triste condição pela nequícia de outrem...

- Pelos seus pecados. Pela altivez da sua confiança na razão do homem. Assim, a fé dos simples foi escarnecida, os mistérios de Deus foram desentranhados (ou tentou-se, estultos aqueles que o tentaram), questões que se relacionavam com as coisas altíssimas foram tratadas temerariamente, escarneceu-se dos padres porque tinham considerado que tais questões estavam mais sopitas do que expostas.

- Não estou de acordo, venerável Jorge. Deus quer de nós que exercitemos a nossa razão sobre muitas coisas obscuras sobre os quais a escritura nos deixou livres de decidir. E, quando alguém vos propõe acreditar numa proposição, vós deveis primeiro examinar se ela é aceitável, porque a nossa razão foi criada por Deus, e aquilo que agrada à nossa razão não pode deixar de agradar à razão divina, sobre a qual, por outro lado, sabemos só aquilo que, por analogia e frequentemente por negação, inferimos dos procedimentos da nossa razão. E então vedes que, por vezes, para minar a falsa autoridade de uma proposição absurda que repugna à razão, também o riso pode ser um instrumento justo. Frequentemente, o riso serve também para confundir os malvados e para fazer refulgir a sua estultícia. Conta-se de São Mauro que os pagãos o puseram em água a ferver e ele se lamentou que o banho estava demasiado frio; o governador pagão meteu estupidamente a mão na água, para verificar, e queimou-se. Bela acção daquele santo mártir que ridicularizou os inimigos da fé.

Jorge escarneceu:

- Mesmo nos episódios que contam os pregadores se encontram muitas petas. Um santo imerso em água a ferver sofre por Cristo e retém os seus gritos, não prega partidas de crianças aos pagãos!

- Vedes? - disse Guilherme -, esta história parece-vos que repugna à razão, e acusai-la de ser ridícula! Seja embora tacitamente e controlando os vossos lábios, vós estais rindo de alguma coisa e quereis que eu também não a tome a sério. Rides do riso, mas rides.

Jorge teve um gesto de enfado:

- Jogando com o riso arrastais-me para discursos vãos. Mas vós sabeis que Cristo não ria.







- Não tenho a certeza disso. Quando convida os fariseus a atirar a primeira pedra, quando pergunta de quem é a efígie da moeda a pagar em tributo, quando joga com as palavras e diz: "Tu es petrus", eu creio que Ele dizia coisas argutas, para confundir os pecadores, para sustentar o ânimo dos seus. Também fala com argúcia quando diz a Caifás: "Tu o disseste." E Jerónimo quando comenta Jeremias, onde Deus diz a Jerusalém: "Nudavi femora contra faciem tuam", explica: "Sive nudabo et relevabo femora et posteriora tua." Até Deus se exprime por argúcias para confundir aqueles que quer punir. E sabeis muito bem que no momento mais aceso da luta entre clunicenses e cistercienses os primeiros acusaram os segundos, para os tornar ridículos, de não usarem bragas. E no Speculum Stultorum conta-se do burro Brunello que se pergunta o que aconteceria se de noite o vento levantasse os cobertores e o monge visse as suas pudenda...

Os monges em volta riram, e Jorge enfureceu-se:

- Estais-me arrastando estes irmãos para uma festa de doidos. Sei que é uso entre os franciscanos cativar as simpatias do povo com estultícias deste género, mas destes jogos vos direi aquilo que diz um verso que ouvi a um dos vossos pregadores: "Tum podex carmen extulit horridulum."

A reprimenda era um pouco forte de mais; Guilherme tinha sido impertinente, mas agora Jorge acusava-o de emitir peidos pela boca. Perguntei-me se esta resposta severa não devia significar um convite, por parte do monge ancião, a sair do scriptorium. Mas vi Guilherme, tão combativo pouco antes, tornar-se manso como um cordeiro.

- Peço-vos perdão, venerável Jorge - disse. - A minha boca traiu os meus pensamentos, não queria faltar-vos ao respeito. Talvez aquilo que dizeis seja justo, e eu me enganasse.

Jorge, diante deste acto de delicada humildade, emitiu um grunhido que tanto podia exprimir satisfação como perdão, e não pôde fazer outra coisa senão voltar ao seu lugar, enquanto os monges, que durante a discussão se tinham aproximado pouco a pouco, refluíam às suas mesas de trabalho. Guilherme ajoelhou-se de novo diante da mesa de Venâncio e recomeçou a buscar entre os papéis. Com a sua resposta humilíssima, Guilherme tinha ganho alguns segundos de tranquilidade. E aquilo que viu naqueles poucos segundos inspirou as suas investigações da noite que estava para vir».

Humberto Eco («O Nome da Rosa»).


«O próprio divide-se em quatro acepções. A primeira é quando se predica por acidente de uma única espécie: quanto a homem, por exemplo, exercer a medicina, ou fazer geometria. A segunda é quando se predica por acidente a toda a espécie, mesmo que não se prejudique só dela, como ao dizermos o homem é um bípede. A terceira é, ainda, quando se predica a uma só espécie, a toda esta espécie e somente num determinado momento, por exemplo; embranquecer na velhice é próprio de todo o homem. A quarta é quando se verifica o concurso simultâneo de todas as referidas condições - predicar-se de uma só espécie, a toda a espécie, e sempre, como relativamente a homem se predica a faculdade do riso. De facto, mesmo que ele não se ria sempre, o homem é, no mínimo, capaz de rir, não por estar sempre a rir, mas porque naturalmente é capaz de rir; é um predicado que faz sempre parte da sua natureza, tanto como do cavalo faz parte a capacidade de relinchar. Estas últimas qualidades também se denominam, por direito, próprios, porque delas são recíprocas com o sujeito: se há cavalo, há faculdade de relinchar, e havendo faculdade de relinchar, há cavalo».

Porfírio («Isagoge. Introdução às Categorias de Aristóteles»).


«Heraclito de Éfeso, filho de Blóson (ou, no dizer de alguns, de Héracon). Atingiu a sua plenitude na 69.ª Olimpíada. Foi excepcionalmente altivo e arrogante, como claramente se vê também pelo seu livro, onde diz: "O muito aprender não ensina a ter inteligência; se assim fosse, teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, e ainda Xenófanes e Hecateu"... Acabou por se converter num misantropo, retirou-se do mundo e foi viver para as montanhas, e aí se alimentava de ervas e plantas. Contudo, tendo por este modo adoecido de hidropisia, desceu à cidade e perguntou aos médicos, por forma enigmática, se eram capazes de converter em estiagem o tempo chuvoso. Como eles não entendessem, enterrou-se num estábulo de bois, na esperança de que a hidropisia se evaporasse com o calor do estrume; mas nem assim ele conseguiu alguma coisa, e findou os seus dias com a idade de sessenta anos».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).



Heraclito de Éfeso



«Segundo Heraclito, tornamo-nos inteligentes por inalação desta razão divina [logos] através da respiração, e esquecidos, quando a dormir, mas recuperamos os sentidos, ao acordar de novo. É que, durante o sono, quando os canais da percepção estão fechados, o nosso espírito separa-se do seu parentesco com o circundante, e a respiração é o único ponto de ligação que se conserva, como uma espécie de raiz; ao ser separado, o nosso espírito abandona a sua anterior capacidade de memória. Mas, no estado de vigília, assoma de novo através dos canais de percepção, como através de uma espécie de janela, e, ao deparar-se com o circundante, reveste-se do seu poder de raciocínio...».

Sexto (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito, filho de Hegesístrato (ou, segundo outras versões, de Atenócrito ou Damasipo) era natural de Abdera ou, como dizem alguns, de Mileto... Mais tarde, encontrou-se com Leucipo e, segundo alguns, também com Anaxágoras, em relação ao qual era mais novo uns quarenta anos... Conforme ele próprio diz no Pequeno Sistema do Mundo, era um jovem na velhice de Anaxágoras, pois era quarenta anos mais novo. Diz ele que o Pequeno Sistema do Mundo foi composto 730 anos após a tomada de Tróia. Demócrito teria nascido, segundo declara Apolodoro nas Crónicas, na octogésima Olimpíada; segundo Trasilo, no seu livro intitulado Introdução à leitura das obras de Demócrito, no terceiro ano da septuagésima, sendo (conforme as suas próprias palavras) um ano mais velho do que Sócrates».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Por vezes, Demócrito nega aquilo que parece aos sentidos, e diz que nada disso parece concordar com a verdade, mas apenas concordar com a opinião: a verdade nas coisas reais é que há átomos e vazio. "Por convenção doce", diz ele, "por convenção amargo, por convenção quente, por convenção frio, por convenção cor: mas na realidade, átomos e vácuo"».

Demócrito fr. 9, Sexto adv. math. VII, 136 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Trasilo ordenou os livros de Demócrito em tetralogias, precisamente como havia feito com os livros de Platão. As obras de ética compreendiam as seguintes... Os livros de física eram: o Grande Sistema do Mundo (que os seguidores de Teofrasto atribuem a Leucipo), o Pequeno Sistema do Mundo, a Cosmografia e Sobre os Planetas...».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«E afirma ele uma vez mais (fr. 10): "Ora ficou de muitas maneiras claro que, na realidade, não compreendemos o que é ou não é cada coisa". E, em Sobre as Formas (fr. 6): "Uma pessoa deve conhecer, segundo esta regra, que está afastada da realidade". E uma vez mais (fr. 7): "Este argumento mostra também, que, na realidade, nada sabemos acerca do que quer que seja; mas para cada um de nós há um rearranjo - uma opinião". E ainda (fr. 8): "Contudo, evidente será que conhecer na verdade a natureza das coisas é tarefa desconcertante"».

Demócrito fr. 10 e 6-8, Sexto adv. math. VII, 136 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Leucipo e seu companheiro Demócrito sustentam que os elementos são o cheio e o vazio, aos quais dão o nome de o que é e o que não é, respectivamente. O que é é cheio e sólido, o que não é é vazio e subtil. Visto o vazio existir em não menor grau que o corpo, segue-se que o que não é não existe menos do que o que é. Os dois juntos constituem as causas materiais das coisas existentes. E tal como aqueles que fazem uma só da substância fundamental, geram as outras coisas por intermédio das suas modificações e postulam a rarefacção e a condensação como origem dessas modificações, assim também estes homens dizem que as diferenças [sc. entre os seus elementos] são as causas das outras coisas. Segundo eles, estas diferenças são três - forma, ordem e posição; o ser, dizem eles, difere apenas no "ritmo, contacto, e revolução"; o "ritmo"é a forma, o "contacto", a ordem, e a "revolução", a posição; é que A difere de N na forma, AN de NA na disposição, e Z de N na posição».

Aristóteles Met. A 4, 985 b 4 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).









«Diziam eles [sc. Leucipo, Demócrito, Epicuro] que os primeiros princípios eram infinitos em número e pensavam que tais princípios eram átomos indivisíveis e impassíveis devido à sua natureza compacta e sem qualquer vazio no seu interior; é que a divisibilidade, segundo eles, surge em virtude do vazio existente nos corpos compostos...».

Simplício, de caelo, 242, 18 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito... designa o espaço pelos seguintes nomes: "o vazio", "o nada" e "o infinito", ao passo que a cada substância individual ele chama "coisa" [i.e."nenhuma coisa"sem o adjectivo "nenhuma"], "compacto" e "ser". Pensa ele que as substâncias são tão pequenas, que escapam aos nossos sentidos, se bem que possuam toda a espécie de formas, de feitios e diferenças de tamanho. Deste modo, consegue ele, a partir delas, como a partir dos elementos, criar, por agregação, massas perceptíveis à vista e aos demais sentidos».

Aristóteles Sobre Demócrito ap. Simplicium de caelo 295, 1 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Leucipo, Demócrito e Epicuro dizem que a percepção e o pensamento surgem, quando entram imagens do exterior; pois nenhum deles ocorre a quem quer que seja sem a colisão de uma imagem».

Écio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito explica a vista pela imagem visual, que ele descreve de uma maneira particular; a imagem visual não surge directamente na pupila, mas é o ar existente entre o olho e o objecto da visão que, ao ser contraído, é marcado pelo objecto visto e pelo observador; pois todas as coisas estão sempre a emitir uma espécie de eflúvios. Por isso, este ar, que é sólido e de cores variegadas, aparece nos olhos que são húmidos (?); os olhos não admitem a parte densa, mas a húmida passa através deles...»

Teofrasto de sensu 50 (DK 68 A 135) (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito e a maioria dos filósofos da natureza, que se ocupam da percepção, são culpados de um grande absurdo; pois reduzem ao tacto toda a percepção».

Aristóteles de sensu 4, 442 a 29 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Eles atribuíram vista a certas imagens do mesmo formato que o objecto, que estavam continuamente a fluir dos objectos da visão e a colidir com os olhos. Esta era a opinião da escola de Leucipo e Demócrito...».

Alexandre de sensu 56, 12 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).






LÁGRIMAS DE HERALITO DEFENDIDAS EM ROMA PELO PADRE ANTÓNIO VIEIRA CONTRA O RISO DE DEMÓCRITO


Diálogo realizado em Roma, no palácio da Rainha Cristina Alexandra, em 1674. Presentes Cardeais e Monsenhores. Problema proposto: se o mundo era mais digno de riso ou de lágrimas, e qual dos dois «gentios» fora mais prudente: se Demócrito, que ria sempre, ou Heraclito, que sempre chorava. Jerónimo Cataneo defendeu o riso de Demócrito; António Vieira as lágrimas de Heraclito. Ambos eram jesuítas. Texto em italiano, traduzido a espanhol e depois a português. Parte deste texto, em italiano, encontra-se registado no filme de Manoel de Oliveira Palavra e Utopia (2001).


Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e vem depois do riso. Se fosse o riso como Jano, Qui sua terga videt, (1) choraria o mesmo riso. Não desconfia o pranto, não, da sua causa, inveja só ao riso a sua fortuna. Se o pranto e o riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade (sempre nua), sem dúvida seria a vitória do pranto. Mas vestido, ornado e armado de uma tão superior eloquência, que o riso se ria do pranto, não é merecimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido, ornado e armado o riso: riem-se os prados, e saiu vestido de flores: ri-se a aurora, e saiu ornado de luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a Antiguidade Risus Vestae, et Vulcani, (2) entre tantos relâmpagos, trovões e raios de eloquência, quem não julgará ao miserável pranto cego, atónito e fulminado? Tal é a fortuna, ou a natureza destes dous contrários.








Virgens Vestais, por Jean Raoux (1727).




Por isso nasce o riso na boca, como eloquente, e o pranto nos olhos, como mudo. Mas se Interdum lacrimae pondera vocis habent; (3) assim mudo, e com lágrimas, assim triste, e vestido de luto (como costumavam os réus no senado da antiga Roma) se apresenta hoje o pranto diante da majestade do sólio real, e tribunal rectíssimo dos seus eminentíssimos juízes; não presumindo que há-de alcançar vitória ou aplauso, mas esperando a piedade e comiseração, que nunca negaram, ao miseráveis e aflitos, os espíritos generosos e magnânimos.

Entrando pois na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto; e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heraclito: eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma cousa e direi outra. Confesso, que a primeira propriedade do racional é o risível: e digo, que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há-de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.

Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada Sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios; que homem haverá (se acaso é homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras.

Mas se Demócrito era um homem tão grande entre os homens e um filósofo tão sábio e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria, não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos.

E com razão; porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo e que se ria deste mundo. Como pois se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas cousas, que via e chorava Heraclito? A mim, Senhores, me parece, que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada um ao seu modo.

Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre: logo nunca ria. A consequência parece difícil e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração e cessando a novidade ou a admiração, cessa também o riso; como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário e se vê sempre não pode causar admiração nem novidade; segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não havia matéria que motivasse o riso.

Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma cousa que visse ou encontrasse de novo; porque sempre e em todo o lugar ria, e quando saía de casa já saía rindo; logo ria do que já sabia, logo ria sem novidade nem admiração; logo o que nele parecia riso não era riso.

Confirma-se mais esta verdade com o motivo e a intenção de Demócrito; porque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: tudo o que de Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo não se ria; e se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam o riso? Já disse que era pranto e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora vede.

Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova da primeira e segunda diferença de chorar com lágrimas, ou sem elas, é notável o exemplo, que refere Heródoto de Psamnito, rei do Egipto.


























Perdendo Psamnito o reino, viu em primeiro lugar suas filhas vestidas como escravas e não chorou, viu depois seu filho primogénito descalço e carregado de ferros com as mãos atadas e um freio na boca e não chorou; e vendo este mesmo Psamnito e com o mesmo coração, que um seu antigo criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas. Oh grande rei e intérprete da natureza! Chora com lágrimas a miséria do criado e sem lágrimas a desgraça dos filhos; assim respondeu ele à pergunta de Cambises: Domestica mala graviora sunt, quam ut lacrimas recipiant (4). Com o mesmo pensamento, não menos régio, nem menos varonil, Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada, proibiu as lágrimas às damas de Tróia, dizendo-lhes assim:


Quid effuso genas fletu rigatis?
Levita perpessae sumus, si flenda patimur. (5)


A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos, não é grande dor; por isso não chorava Demócrito; e como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.

Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofia e da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva faz cegar; a dor, que não é escessiva, rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte a tristeza, se é moderada faz chorar; se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre do cativeiro, apareceu ao seu exxército, que era o romano: In laetitiam tota castra effusa sunt, ut praegaudio militibus omnibus lacrimae manarent, (6) diz Plutarco. Pois se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza porque não será causa do riso? A ironia tem contrária significação do que soa; o riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido de tristeza, e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas, como aquele de quem disse Estácio:


Lacrimosos impia risus audiit. (7)


Na guerra morrem muitos soldados rindo; e a razão é, diz Aristóteles, porque são feridos no diafragma. Não ria Demócrito como contente, ria como ferido: recebia dentro do peito todos os golpes do mundo e tão malferido ria.

Os olhos com injustiça se poderão queixar desta minha filosofia: o pranto chamava-se assim, porque se batiam as mãos uma com a outra, quando se chorava; porque para chorar não são precisos os olhos, e não seria próvida a natureza se, havendo sido a origem de tantos pesares, lhes desse um só desafogo; e se choram as mãos, a boca porque não há-de chorar? Heraclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz; e este era o pranto de Demócrito. De sorte, que na minha consideração, não só Heraclito, mas Demócrito chorava, só com a diferença, de que o pranto de Heraclito era mais natural, o pranto de Demócrito mais esquisito; tudo merece este mundo, digno de novos e esquisitos prantos, para ser bastantemente chorado. Mas porque esta minha suposição me separa do problema e pode parecer que, como muitas vezes sucede, me aparte da opinião comum para fugir da dificuldade: seja embora o riso de Demócrito verdadeiro e próprio riso, apareçam em juízo um e outro filósofo, para que ouvidos ambos, se veja claramente a razão de cada um, e confio do merecimento da causa que será tão justa a sentença, que Demócrito saia chorando, e Heraclito rindo.

Séneca, no livro De Tranquillitate, (8) falando destes dous filósofos, dá a razão por que sempre ria um e chorava outro, com estas judiciosas palavras: Hic, quoties in publicam processerat, flebat, ille ridebat: huic omnia, quae agimus, miseriae, illi ineptiae videbantur. (9). Demócrito ria porque todas as cousas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.

As misérias e os trabalhos que padecem os mortais, ou por obrigação da natureza, ou por remédio da fortuna, ou por sustento da vida, ou por conservação do estado particular e público, são misérias, mas não são ignorâncias, porque as governa a prudência, por necessidade, por conveniência, por honras e por decoro.

Pelo contrário, todas as ignorâncias que se cometem no mundo, as que se fazem, as que se dizem, as que se cuidam, todas são misérias, porque todas se cometem, ou por erro do entendimento, ou por desordem da vontade; e este erro e esta desordem, não só é miséria, mas a maior miséria, porque direitamente se opõem à luz e ao império da razão, na qual consiste toda a nobreza e felicidade do homem. Aquelas misérias causam ao homem dores e trabalhos, estas o fazem verdadeiramente miserável e infelice; e suposto que umas e outras sejam dignas de lágrimas, e as lágrimas das ignorâncias são lágrimas de pior cor; estas fazem corar o rosto, aquelas não. Foi esta distinção achada com alta filosofia pelo engenho de Ovídio nas lágrimas de Penteu.


Essemus miseri sine crimine, sorsque querenda,
Non celanda foret: lacrimaeque pudore carerent. (10)





E como nem todas as misérias são ignorâncias, e todas as ignorâncias são misérias, e as maiores misérias, muito maior matéria e muito maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; antes digo, que só Heraclito tinha toda a razão e Demócrito nenhuma. Todas as misérias humanas eram o assunto de Heraclito, e o de Demócrito só uma parte delas; e como toda a miséria é causa de dor, e nenhuma dor pode ser causa do riso, o riso de Demócrito não tinha causa nem motivo algum que o justificasse.

Pode ser que me responda algum metafísico que Demócrito distinguia nas ignorâncias, aquilo que é ignorância, daquilo que é miséria; e que se ria das misérias, não como misérias, mas como ignorâncias. Porém esta distinção, demais de ser indigna de um filósofo moral, é falsa e impossível, por ser contra a natureza e essência do riso. O ridículo, ou o objecto do riso, como define Aristóteles: Est turpe sine dolore, (11) é uma deformidade, que exclui todo o motivo de dor; e como a ignorância precisamente está sempre unida com o motivo da dor, que é a miséria, por isso nem é, nem pode ser matéria do riso.

Esta é a verdadeira e sólida razão, por que no juízo de todos os filósofos se inventou a comédia. Viram os sábios das repúblicas, que para desafogo, divertimento e alegria dos povos, era necessária alguma matéria de riso; e porque o riso não podia nascer da deformidade, ou vício verdadeiro, pela união natural que tem com a dor; que fizeram? Inventaram sabiamente as ficções da comédia, para que o ridículo da imitação, como suposto e não verdadeiro, ficasse separado da dor. Um aleijado com um pé de pau, uma velha decrépita e trémula, um pobre remendado e enfermo, um cego e um frenético, um insensato, no teatro fazem rir; e porquê? Porque aqueles defeitos são supostos e não verdadeiros; que fossem verdadeiros, seria motivo de comiseração e não de riso; e como os defeitos e vícios de que ria Demócrito, eram verdadeiros defeitos e verdadeiros vícios, não tinha o seu riso algum motivo; mas se não tinha motivo, como ria? Ria-se por abuso intolerável do motivo oposto, colocando o riso sobre o motivo do pranto; ria-se das verdadeiras misérias e do verdadeiro motivo da dor; filosofia inumana e contrária a toda a razão e praticada unicamente na escola da inveja, da qual diz o poeta:


Risus abest, nisi quem visi movere dolores. (12)


E se o fim destes dous filósofos (como verdadeiramente era) foi manifestar ao mundo o desconcerto do seu estado e persuadir aos homens o erro dos seus juízos, a desordem dos seus desejos e a vaidade das suas fadigas, também para este fim tinha muito maior razão Heraclito de chorar, que Demócrito de rir.

A primeira introdução e disposição de quem quer persuadir, ensinada e usada de todos os oradores, é conciliar a benevolência do teatro: esta conciliava Heraclito e não Demócrito; porque quem chora, lastima; e quem ri, despreza; e a compaixão concilia amor, o desprezo ódio e aborrecimento; quem ri, exaspera; quem chora, enternece; e quem quer imprimir os seus afectos e a sua doutrina nos corações, não deve endurecê-los, deve abrandá-los. O agricultor, para colher os frutos, rega as plantas: o impressor, para imprimir as letras, molha o papel; e assim o deve fazer com as lágrimas, quem quer imprimir os seus afectos e colher o fruto das suas persuasões.

Ulisses, naquela sua famosa oração contra Aiace na contenda das armas de Ulisses, podendo fiar-se tanto da sua copiosa eloquência, adornou o seu exórdio com lágrimas; e porque não as tinha verdadeiras, chorava-as fingidas.


Manuque simul veluti lacrimantia tersit
Lumina. (13)


Não de outra sorte devia fazer Demócrito, ainda que fosse contra o jocoso do seu génio. Devia aproveitar-se da boca, não para rir, mas para humedecer os olhos e fingir as lágrimas; assim o ensina com a sua natural agudeza aquele mestre que professou em Roma a arte de conciliar o amor e de abrandar os corações:


Si lacrimae (neque enim veniunt in tempore semper)
Deficiant, uncta lumina tinge manu. (14)



Vaticano (Roma)


Quanto à força e eficácia de persuadir, muito mais fortemente apertava e persuadia Heraclito chorando, que Demócrito rindo; porque quem ri, atenua e alivia os males; quem chora, os acrescenta e faz mais sensíveis e pesados; quem ri, mostra que são dignos de zombaria; quem chora, prova que são dignos de lástima; quem ri por exemplo e por simpatia, move a rir; quem chora por exemplo e com razão, ensina a chorar; porque se os meus males são tais, que movem a contínuas lágrimas nos outros, quanto mais os devo eu chorar, pois os padeço?

Finalmente Demócrito ria sempre; e Heraclito sempre chorava; e este sempre também era por parte de Heraclito e contra Demócrito: por parte de Heraclito, porque ser o seu pranto contínuo o fazia mais eficaz: contra Demócrito, porque ser o seu riso contínuo o fazia ridículo. Não é minha a censura, nem é nova, mas apotegma antiquíssimo do filósofo Plutarco: O riso, dizia ele, se é pouco passa; se é muito, ofende. Cícero, como se vê nas suas Orações, respondia muitas vezes rindo aos argumentos da parte contrária; que é solução muito fácil, quando os argumentos são difíceis; mas que louvores deram a Cícero deste seu riso? Disse-o Plutarco. Sendo Cícero cônsul e defendendo Murena, ria muito, como costumava, da doutrina dos Estóicos e não podendo sofrê-lo Catão, lhe disse publicamente: Dii boni, quam ridiculum habemus consulem! (15) Com muita mais causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridículo, e zombando do juízo dos outros, expunha o seu à zombaria.

Os meninos riem-se muito facilmente e os doudos sempre se riem: e diz Aristóteles, que os meninos se riem porque têm pouco siso, e os loucos, porque de todo o não têm; e eu creio verdadeiramente que não faço grande ofensa a Demócrito, porque um homem, que de um mundo via muitos mundos, era sinal que tinha perturbadas as espécies e enferma a fantasia; e quem se havia de mover a um tal riso?

Não assim o pranto de Heraclito, que por ser contínuo, se fazia mais forte e eficaz: Lacrima cito siccatur, praesertim in alienis malis, (16), diz Túlio. E sendo o pranto de Heraclito pelos males alheios, sem que nunca se secassem as suas lágrimas; que coração haveria tão duro e obstinado, que se não abrandasse e rendesse a um tal pranto? Eram as lágrimas de Heraclito, como a água, que caindo pouco a pouco, vai limando suavemente os mármores e enfim os rompe. Não digo eu somente os mármores:


Lacrimis adamanta movebis, (17)


diz atrevida, mas verdadeiramente, Ovídio. As lágrimas, como lhe chamou o melhor filósofo da Grécia, são sangue da alma; e este (não o outro fabuloso) é o que lavra os diamantes. O coração mais diamantino, como tantas vezes se queixava Agamémnon, foi o de Aquiles; e contudo confiava e presumia Briscidi, que sem dizer uma só palavra (como fazia Heraclito) com as suas lágrimas somente o despedaçaria e os desfaria em pó; assim o diz ela na discreta carta escrita ao mesmo Aquiles:


Sis licet, immitis, marisque ferocior undis,
Ut taceam lacrimis, comminuere meis. (18)


Tal era a eficácia invencível do pranto de Heraclito e tal a debilidade ridícula do riso de Demócrito.

Não quero contudo que seja minha a sentença entre estes dous filósofos, seja de outro filósofo que os iguale em autoridade e ciência. O grande filósofo Díon, como refere Estobeu, falando do pranto e do riso, conclui assim: Mihi sane facies magis videtur ornari lacrimis, quam risu: lacrimis enim ut plurimum bona aliqua doctrina conjungitur; risui vero lascivia, et flendo quidem nemo sibi conciliavit auctorem contumeliae, ridendo autem spem dedecoris auxit. (19). Esta é a sentença.

Mas deixando já o riso de Demócrito afogado no pranto de Heraclito, para acabar o meu primeiro argumento, busco outra vez a prova universal do mundo. Que esperança, que lugar pode ter neste mundo o riso, se todo o mundo chora e ensina a chorar? Choram os homens como racionais e sensitivos, e ainda as cousas sem razão e sem sentido choram; estas são as lágrimas que o príncipe dos poetas chamou profundamente lágrimas de todas as cousas:


Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt. (20)






Não residem as lágrimas só nos olhos, que vêem os objectos, mas nos mesmos objectos, que são vistos; ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm; e se as mesmas cousas que não vêem, choram, quanto mais razão tem o homem que vê e se vê! Não quero o testemunho dos miseráveis, não, só quero o dos mais ditosos.

Quem há neste mundo tão favorecido, ou tão divinizado pela sua fortuna, que possa presumir de não ter que chorar? Aqueles mesmos, que mais se riem por fora, mais choram por dentro. Aqui tínhamos antigamente em Roma um cortesão chamado Heros, o qual chorava sempre, não tanto os males próprios, quanto os bens alheios; e diz assim Marcial:


Quam multi faciunt, quod Heros, sed lumine sicco!
Pars maior lacrimas videt, et intus habet. (21)


Oh se este intus se visse! São as lágrimas como as águas do rio Alfeu; este rio, umas vezes caminha descoberto, outras se oculta por debaixo da terra, mas sempre corre: as lágrimas plebeias deixam-se ver; as lágrimas equestres, senatoriais e consulares, são invisíveis, mas lágrimas. Das lágrimas que se derramaram nas exéquias de Germânico, dizia Tácito: Periisse Germanicum nulli jactantius moerent, quam qui maxime laetantur. (22) O contrário é mais comum e mais verdadeiro: Qui jactantius laetantur, maxime moerent. (23) Mas quando ninguém chorasse, nem por fora, nem por dentro; quando este mundo e todos os homens rissem, então todo o mundo e todos os homens seriam mais dignos de comiseração e de lágrimas: Quid enim miserius misero, non miserent seipsum? (24).

E se tudo isto não basta, senhores, para que a causa do pranto tenha merecido a seu favor os vossos votos, em nome do mesmo pranto apelarei eu da sentença para aquele justíssimo tribunal, para quem apelou Apeles. Vencido Apeles em um concurso de pintores: Appello (disse) ad tribunal naturae. (25).

E porque os animais vivos se enganavam com os que ele havia pintado e as aves com os frutos, a natureza fez a Apeles a justiça que lhe tinham negado os homens; assim o faço eu, senão venceu o pranto. Appello ad tribunal naturae. Seja meu intérprete o historiador da mesma natureza. Flens animal caeteris imperaturum a suppliciis vitam auspicatur, unam ob culpam, quia natus est. (26) Nasce o homem, diz Plínio, já chorando, e sem outra culpa mais que haver nascido, fica condenado a perpétuo pranto, começa a vida e o pranto juntamente; para que saiba, que se vem a este mundo vem para chorar. O mais aprenderá depois, porque é arte; para o pranto nasce já ensinado, porque é natureza: Non aliud naturae sponte, quam flere. (27). Esta é a sentença irrefragável da natureza, e esta a natureza dos mortais: é o homem risível, mas nascido para chorar; porque se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional e o uso da razão é o pranto.

E se alguém me replicar, que se o homem não risse, ficaria ociosa a potência do rir contra o fim da mesma natureza; a uma instância tão forte não posso responder só como filósofo natural (como observei em todo este discurso), mas responderei como filósofo cristão. Respondo, e pergunto: Se o homem, pela transgressão, não tivesse perdido a felicidade em que foi criado, choraria, ou não? É certo, que nunca chorariam os homens, se fossem conservados naquele estado, e as lágrimas, que agora há, não as haveria então: logo, se na felicidade daquele tempo estaria ociosa a potência do chorar, na miséria deste tempo esteja ociosa a potência do rir, etc." (28)


(in Sermões de Roma e Outros Textos, MEL Editores, 2009, pp. 501-513).



Notas:

(1) Que consegue ver as próprias costas.

(2) O riso de Vesta e de Vulcano.

(3) Às vezes, as lágrimas são tão eloquentes como as palavras.

(4) As desgraças domésticas são suficientemente graves para merecerem lágrimas.

(5) Senec. in Troad. (Porque regais as faces com as lágrimas derramadas? / Se consentimos as lágrimas [se choramos] é porque o sofrimento foi ligeiro.)

(6) Plutarch. in Fab. (Todo o acampamento entrou em tal alegria, a ponto de todos os soldados se banharem em lágrimas de satisfação.)

(7) E ela, a cruel, pôde ouvir risos chorosos.







(8) Sobre a Tranquilidade.

(9) Sempre que apareciam em público, um chorava e o outro ria: ao que chorava, todas as coisas humanas lhe pareciam misérias, e ao que se ria tudo parecia ignorância.

(10) Ovid. Metamorf., Livr. 3.º. (Seríamos infelizes sem culpa; haveríamos de lamentar, não de esconder a nossa sorte, e as lágrimas não nos envergonhariam.)

(11) [O ridículo] é o desonesto sem dor.

(12) Ovid. Metamorf. (Ausente está o riso, salvo para quem vê a dor atingir alguém.)

(13) Ibid., L. xv. (E com as mãos enxugou os olhos que fingiam chorar.)

(14) Se faltarem as lágrimas - e as lágrimas não chegam sempre a tempo -, esfrega os olhos com a mão molhada.

(15) Cícer. de Partit. 31. (Pelos bons deuses, quão ridículo que é o cônsul que temos.)

(16) Secam depressa as lágrimas perante a desgraça alheia.

(17) As lágrimas até os diamantes conseguem despedaçar.

(18) Ovid. Ep. Briscil. ad Achil. (Sê cruel, sê mais feroz que as ondas do mar, a ver se consegues calar-me: / Serás vencido pelas minhas lágrimas.)

(19) Stob. Ser. 72. (A mim parece mais acertado que a face se enfeite de lágrimas do que se desfaça em risadas: as lágrimas sugerem a presença de alguma doutrina boa, o riso denuncia alguma inconveniência. E a chorar, ninguém provoca novo insulto; a rir-se, aumenta a probabilidade de afronta renovada.)

(20) Eneida, I. (Há lágrimas para todo o infortúnio e o destino dos mortais comove os corações.)

(21) Quantos não fazem o mesmo que Heros, mas sempre com os olhos enxutos! / A maioria não vê as lágrimas, mas o que vai por dentro...

(22) Annal. Lib. (Ninguém chorou mais a morte de Germânico do que aqueles que se alegraram ostensivamente.)

(23) Quem se alegra com mais exuberância é quase sempre quem se entristece mais profundamente.

(24) Para um miserável, a maior miséria é ninguém ter compaixão de si.

(25) Apelo para o tribunal da Natureza.

(26) Plin. in Praes. Libr. 7.º. (O animal destinado a dominar os outros enfrenta uma vida de sofrimento somente por uma culpa: a culpa de ter nascido.)

(27) Nada há mais conforme à natureza do que o chorar.

(28) Vê-se que não se concluiu o discurso, ou a tradução do mesmo.






Padrão

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Escrito por Fernando Pessoa




Réplica do Padrão colocado por Diogo Cão no Cabo da Cruz, actual Namíbia.



O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

Mensagem













A situação cultural e política do Teatro ou situação teatral da cultura e da política

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Entrevista a Orlando Vitorino







«A direcção desta revista, tendo-me inicialmente solicitado um artigo sobre o teatro a publicar em cada um dos seus números, imprimiu, ao fim dos três primeiros artigos, uma maior ênfase directiva (o que é próprio de toda a direcção digna desse nome) à solicitação que me fizera. Solicita-me agora que os meus artigos, depois de terem tratado daquilo que o teatro não é, passassem a tratar daquilo que o teatro é. Pretende ela, deste modo, que eu abandone o raciocínio bastardo que tenho adoptado e seguido. Raciocínio bastardoé uma classificação lógica de Platão. Entendia ele que há dois grandes modos de pensar e dizer o que as coisas são. Um modo de afirmar os atributos que lhes convém. Por exemplo: Deus é omnisciente. Outro é negar os atributos que não lhes convém. Por exemplo: Deus não é finito ou, como geralmente se diz, Deus é infinito, Deus é não-finito. A este segundo modo de pensar é que Platão chamou raciocínio bastardo.

Por vezes, o raciocínio bastardoé o único possível, até em questões principais, como as do segundo exemplo teológico a que aludimos. Outras vezes, é não só o único possível, como se torna imperativo utilizá-lo. Seja, por exemplo, a democracia que é, com a monarquia e a aristocracia, um dos três únicos regimes políticos possíveis, mas irrealizáveis em sua plenitude. Esta impossibilidade de o realizar, obriga a recorrer ao raciocínio bastardo sempre que um regime se apresenta como democrático. Dir-se-á então: a democracia não é socialismo, a democracia não é regime partidário (entendido este, à maneira do que acontece hoje em Portugal, como o monopólio da representação popular), a democracia não é economia estatizada e planificada, a democracia não é sindicalismo centralizado, a democracia não é eleitoralismo (no sentido constitucionalmente estabelecido entre nós segundo o qual os partidos elegem - quer dizer: escolhem ou nomeiam - os indivíduos que hão-de ser membros dos orgãos de soberania, limitando-se os chamados eleitores, não a elegê-los, mas a votar os já eleitos pelas organizações partidárias).

O teatro não está nestas condições. Pode pensar-se o que o teatro é sem recorrer necessariamente ao raciocínio bastardo. Pode dizer-se o que o teatro não é e pode dizer-se o que o teatro é. A expressão lapidar e definitiva daquilo que o teatro é, devemo-la a Ernesto Palma. Lançou-a ele numa conversa de tertúlia, à mesa de um restaurante do Parque Mayer, entre alguns cómicos, uma vedeta e duas coristas. A definição foi depois publicada e comentada num suplemento cultural de estudantes que, com o título "A Ilha", o "Jornal da Madeira" editava há uns dez anos. A definição de Ernesto Palmaé esta:


O teatro é o que faz o actor


Este conceito provocou natural resistência. Começou por não ser correctamente entendido na sua mesma sintaxe. Afigurou-se a alguns que Ernesto Palma afirmava que o actor é que faz o teatro, afirmação que seria, evidentemente, uma estultícia. O teatro é, com efeito, o resultado de numerosos e diversos factores. O actor é um desses factores. Além dele há o autor e o altor (designação que também Ernesto Palma gosta de dar ao encenador, pois é ele quem faz levantar nas figuras, movimento e cenários verticais da cena o que está jacente na horizontalidade da escrita dos textos). Há, depois, a cenografia, as luzes, a música e há, sobretudo, o espectador. Há, por fim, os deuses, anjos e demónios ou o que com esses e outros nomes se designa, poderes inomináveis que estão na origem do mundo. E o teatro é sempre, como disse Calderon com mais profundidade mas menos ofício do que Ernesto Palma, "o grande teatro do mundo".

Estas observações nos bastam, hoje, a mim e ao leitor, para satisfazermos preliminarmente a directiva que recebemos da direcção de Ensaio. Poderemos, no próximo número, atravessar o limiar do templo».

Orlando Vitorino («O teatro é o que o actor faz», in «Ensaio», n.º 4, Set-Novembro de 1981).


«A transição para o teatro, de ordem espectacular, caracteriza a última fase da teoria da literatura na obra de Bergson, mais directamente preocupado com os problemas de moral e da religião. No teatro a acção realiza-se plenamente, com seus conflitos visíveis, ou realiza-se simbolicamente, por meio de dizeres mais ou menos alegóricos, mas é próprio do autor dramático possuir essencialmente os dons de esquematização e de dedução lógica. A própria limitação no espaço e no tempo, a que a técnica não dá solução senão imaginável ou imaginária, obriga todas as personagens a viverem com sentimentos cristalizados perante as leis morais e sociais, em seus conflitos autónomos e heterónomos.




Henrique Bergson





(...) No teatro, dadas as restrições de espaço e de tempo, as acções visíveis são geralmente as que mútua e reciprocamente praticam duas pessoas, em diálogo que pode ir sendo alterado por quem mais estiver ou entrar em cena. No palco, visíveis, significativos e decisivos são os actos representivos do mal, desde o crime bárbaro e violento até à mais refinada e subtil injúria. O espectador assíduo a representações teatrais convencer-se-á de que os actos são sempre três, fáceis de prever, e pouco variáveis, afinal.

A mesma sobriedade de actos tem seu paralelo também nas palavras. Em Matière et Mémoire já Bergson havia dito: "Conforme for a natureza da peça que se representa, os movimentos dos actores serão mais ou menos extensos: quase tudo, se for uma pantomina; quase nada, se for uma delicada comédia". Em La Pensée et le Mouvant esclarece melhor: "No teatro, cada actor diz só o que é preciso dizer, e só faz o que é preciso fazer; as cenas são muito bem recortadas; a peça tem um começo, um meio e um fim; e tudo está disposto do modo mais parcimonioso possível em vista a um desenlace, que será feliz ou trágico".

A tendência romântica para confundir a arte com a vida levou a misturar os processos destes três géneros de literatura. Bastará citar os nomes de três dramaturgos, Shakespeare, Victor-Hugo e Maeterlinck, para exemplificar os casos mais notáveis de interferências do romance e da poesia no drama. Todavia ao crítico subtil será possível distinguir o que a cada obra de arte é essencial e clássico.

Acerta Bergson ao mostrar que o teatro não tem por fim descrever estados de alma, como a poesia, nem progressos de sentimento, como o romance, mas conflitos entre o ser natural do homem e a sua condição social. Assim descreve em Le Rire"O drama dá à natureza a sua vingança sobre a sociedade. Ora irá direito ao fim; então chamará, do fundo para a superfície, as paixões que fazem saltar tudo. Ora obliquará, como faz mais vezes o drama contemporâneo; então nos revelará, com uma habilidade por vezes sofística, as contradições da sociedade consigo própria; exagerará o que pode haver de artificial na lei social; e assim, por um meio desviado, dissolvendo desta vez o envólucro, far-nos-á também atingir o fundo. Mas nos dois casos, quer enfraqueça a sociedade quer reforce a natureza, persegue o mesmo objecto, que é descobrir-nos o elemento trágico da nossa personalidade".

Num passo célebre do mesmo livro, mostra Bergson o carácter das personagens, no declive da tragédia para a comédia, como da individualidade para o tipo, para o género, para a multidão. Isso observa-se até nos títulos. Assim na tragédia mais própria de elementos psicológicos e sentimentais, figura geralmente como título um nome próprio, significativo da individualidade superior do herói ou da heroína, enquanto os nomes comuns ou colectivos servem de título às comédias, mais próximas do entendimento do vulgo, mas já distantes da subtilieza da análise psicológica. Bergson atribui, porém, maior efeito sugestivo à tragédia do que à comédia, porque "a sinceridade é mais comunicativa".

O carácter social do teatro aparece não tanto na condição de ser um espectáculo, e portanto público, como na sua temática ética, moral e política, a qual dá motivo a que os legisladores prevejam e limitem a acção sugestiva dos autores sobre proletários e pequenos burgueses. O teatro tem sido utilizado para simbolizar os conflitos religiosos e os conflitos políticos, por quantos lhe atribuem uma função social. Com efeito, muitos dramaturgos utilizam o palco para defenderem a utopia segundo a qual será um dia instaurado um regime político que ponha fim a todas as injustiças sociais, tanto as silenciadas como as clamantes, em toda a face da Terra.

Há, no entanto, uma lição que o teatro concede a toda a gente, mas de que só tiram proveito os espectadores inteligentes. Essa lição é a de que o verdadeiro progresso da humanidade não é ético, moral ou político. Essa lição é dada pela inevitável presença do mal, - da maldade ou da malícia, no dizer de Bergson, - razão ou causa dos conflitos representados no protagonista ou no antagonista, quer estes se apresentem com nomes próprios e vestes figurativas, quer se apresentem em alegorias que se esfumam na abstracção intelectual».

Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).









«O que primeiro faz é a personagem. Como se se fizesse a si próprio pois sem personagem não há actor.

A matéria de que o actor dispõe para fazer a personagem são a máscara e as palavras. São elas, máscara e palavras, ou assim se tornam no movimento que precede o teatro, absolutamente indissolúvel. O que lhes falta, para que a personagem se faça, é a imagem que reside na presença sensível, isto é, audível e visível. É com o seu corpo, com os seus gestos e com a sua voz que o actor faz a imagem da personagem.

Feita a imagem, a personagem torna-se um ser vivo. Nunca a personagem se poderá confundir com uma figura simbólica ou alegórica ou emblemática que está ali para significar o que ali não está, pois um ser vivo não é símbolo nem alegoria nem emblema e, ao chegar a hora da morte, conclui, como disse Shakespeare, que "nada significa". No teatro didáctico dos jesuítas, extinto há três séculos mas continuando a arrastar pelo mundo seu nauseabundo cheiro e obsceno impudor nas récitas colegiais das criancinhas vestidas de fadas e de anjos, no exibicionismo dos grupos de estudantes universitários e de trabalhadores sindicalizados muito culturalmente subsidiados pelo Ministério da Cultura e no marxismo aos quadradinhos fornecido pela didáctica das variedades teatrais brechtianas, aí é que só há, em vez de personagens, figuras simbólicas, alegóricas e emblemáticas.

No sentido rigorosamente inverso dos seres vivos reais – cuja existência começa na presença do corpo e se completa quando a voz adquire a forma das palavras –, os seres vivos teatrais começam a existir nas palavras ainda sem voz, que é o que faz o autor, e completam-se quando o actor lhes acrescenta a voz e a presença do corpo. Coisas como a mímica, a pantomima e a "expressão corporal" não são mais do que exercícios, e os mais elementares entre muitos outros, de aprendizagem da arte de representar. São coisas que, ao chegar a hora de vir para o palco, o actor tem de deixar fechadas em casa, na gaveta onde se guardam os brinquedos de infância.

Como os seres vivos reais, também os seres vivos teatrais têm maior ou menor profundidade. Mas acontece que no teatro, ao contrário do que acontece no mundo, não dá lugar para os seres vivos de pouca ou nenhuma profundidade, equivalentes daqueles seres vivos reais que, como dizia Leonardo, são apenas "esboços de alma". A arte do actor reside na dimensão da profundidade que há nos seres vivos teatrais e patenteia-se no modo como faz, do corpo e dos gestos, prolongamentos das palavras.

As palavras dos seres vivos teatrais exprimem-se de modos muito diferentes daqueles em que se exprimem as dos seres reais. A regra, donde derivam todas as regras do teatro, é dar o actor ao que diz o estilo de quem cita ou repete uma frase. Em vez do carácter espontâneo, directo e imediato que têm as palavras ditas pelos seres vivos reais, as palavras teatrais exigem uma suspensão, um intervalo, uma mediação, uma pausa que limpa o teatro de tudo o que é sincero, espontâneo, imediato. A naturalidade é da natureza.

O teatro é o outro da natureza. No mesmo sentido e pelas mesmas razões, a presença que o actor dá à personagem também não é imediata e directa. Tão pouco o é que chega a não ser presença mas uma duplicação da presença, uma re-presença, uma representação. É aqui que o actor fica nas mãos do espectador ou passa para ele o sentido da teatralidade, consoante lhe dá, ou não dá, a sensação de que o que faz o está a fazer outra vez. O facto de o espectador saber que o espectáculo está sendo em cada noite (só à noite é que se faz teatro) uma repetição do que foi nas noites anteriores, mas nada assegurando que não deixe de o ser, imediatamente lhe afeiçoa a alma para receber essa sensação.

Aqui se abre o abismo que separa o teatro de todas as artes do espectáculo, desde a naturalidade do circo até à mecanização do cinema: desde o circo que, percorrendo a distância que vai de palhaço caído em terra à trapezista voando no céu, tem por conteúdo sublimar a natureza e por ideal copiar a religião, até ao cinema que, condicionando a expressão pela nadificante mecânica, «socorro do nada», tem por conteúdo a vulgarização e por ideal a vulgaridade.







Só a tauromaquia se ergue em face do teatro, apesar do envilecimento a que a têm querido dobrar o plebeísmo do "toureio a pé" e a grosseria da "pega de forcados". Só, desde a comum origem de ambos, a tauromaquia fica em face do teatro como o dia em face da noite, como o luminoso sol dardejando seus raios, setas ou ferros de anjo montado sobre o animal Funerário que é o cavalo, em face da negridão das trevas subterrâneas onde habitam as Erínias, as Euménides e as Fúrias das tragédias gregas e donde emerge o representativo touro cujo sacrifício é o equivalente tauromáquico do sacrifício teatral do bode mitológico».

Orlando Vitorino («O que o actor faz», in «Ensaio», n.º 5, Primavera de 1982).






A situação cultural e política do Teatro ou situação teatral da cultura e da política 


Foram apenas oito dias. Uma companhia de teatro – a sério – no Funchal. E apenas oito dias. A companhia era a do «Teatro d’Arte de Lisboa». O seu director, nosso visitante já habitual, Orlando Vitorino. Aqui estaremos à frente dele.

- Vamos falar de teatro? 

- Só de teatro?

Outra vez de teatro? 

- Ou do que quiser. Quer uma sugestão?

- Diga.


Onde se começa por falar de cultura e de política 


- A política pode ser útil à cultura, ou mais especificamente, à cultura teatral? 

- A política só pode ser útil à cultura, ou ao teatro, quando os políticos (que no nosso país são toda a gente) se convencerem desta verdade muito simples: a política nada tem com o teatro. E, sempre que os políticos intervenham, a política só pode ser nefanda para a cultura.

- Não vamos tão depressa. Procuremos entender-nos. Diga: não há um teatro político? 

- É evidente que não há. O Teatro não é adjectivável. É só teatro. Dizer teatro político tem tanto sentido como dizer teatro infantil.

- Mas fala-se em teatro infantil... 

- Claro. É o teatro para as crianças. Ora para quem seria, para quais crianças seria, o teatro político!

- Não consigo entender. 

- É que o teatro para crianças não tem nada a ver com o teatro. As crianças não têm a possibilidade de ser espectadores de teatro. Para ser espectador de teatro é imprescindível ter já passado pelo mal, conhecer a existência do mal no mundo.

- Insisto, todavia faz-se um teatro expressamente destinado às crianças...

- É uma infantilidade. Não pode ser teatro.

- Quer então dizer que os políticos são como as crianças? 

- Num sentido, se considerarmos a maioria das pessoas que a injustiça e o ressentimento atiram para as mãos dos políticos, poderemos dizer que os políticos são mais infantis, mais ingénuos e mais desprotegidos do que as crianças. Noutro sentido, se considerarmos os que aliciam as vítimas da injustiça e do ressentimento, diremos que os políticos são o contrário das crianças, isto é, são aqueles que só conhecem do mundo o mal que há nele.

Orlando Vitorino



- Mas a política não condiciona a cultura? 

- A política, se for alguma coisa, é o mais pobre e o mais baixo ramo da cultura. Não pode portanto, a não ser em períodos de subversão cultural, como o que estamos vivendo, condicionar o que está acima dela, seja a literatura, seja a filosofia, seja a religião.

- Você põe em dúvida que a política seja alguma coisa!? 

- Como receio que tal assunto ultrapasse a medida de uma entrevista, permito-me o abuso de dizer que já o tratei em livro. Com efeito, a política é apenas um nome que herdámos dos gregos e que designa aquela realidade que, em rigor, é para nós homens de hoje, o direito.

- Se acaso estamos, como você diz, num período de subversão cultural, então sempre há um condicionalismo da cultura pela política, seja embora negativo! 

- Decerto que há. E havendo, de certo que é negativo.

- Como se manifesta ele? 

- De muitos modos. Uns provêm daqueles que se julgam ou gostam de se apresentar como vítimas de uma política dominante. Outros, provêm efectivamente da política dominante. Outros, enfim, e são os mais graves, do conúbio mais ou menos tácito entre dominantes e dominados.

Ao fim de dois anos de acção de um novo governo em Portugal, já estão à vista os resultados que são mais divertidos que interessantes. Aliás, o actual Chefe do Governo, quando foi ministro da Presidência, já tinha revelado o seu interesse em desfazer as confusões que, sobretudo nos domínios literários, plásticos e jornalísticos, tinham criado ao abrigo da política muitas vazias celebridades.

- A que se refere? 

- Às manifestações que receberam o nome «trinta anos de política do espírito». Consistiram elas numa grande exposição de escritores e artistas premiados pelo S. N. I., em concursos a que eles próprios livremente concorreram, isto é, premiados por terem solicitado, ao S. N. I., que os consagrasse dando-lhes um prémio. Verificou-se então como grande parte dos mais ferozes e íntegros oposicionistas tinham solicitado e recebido essa consagração. Juntamente com essa exposição, o actual Chefe do Governo, então ministro da Presidência, promoveu um festival de teatro que mostrou como muitos dos dramaturgos que se apresentavam como mais integradamente oposicionistas eram beneficiários das disponibilidades que o Estado dá às empresas teatrais da sua maior confiança como seja a do Teatro Nacional.


O que veio a acontecer a certos dramaturgos 


- Isso aconteceu há cerca de 14 anos. É essa ainda hoje a situação! Os escritores e artistas em geral, continuam a beneficiar de uma situação a que dizem opor-se? Faço esta pergunta na medida em que, por um lado, escritores e artistas que dizem ou que se dizem proibidos e até malditos, são, por outro lado, os escritores que precisamente desfrutam de maiores possibilidades e gozam de maior propaganda. 

- Foi isso o que com algumas medidas muito simples e fáceis, o actual Chefe do Governo veio esclarecer. Bastou por exemplo uma certa abertura da censura teatral para imediatamente se verem representados os dramaturgos que mais perseguidos se diziam. As consequências dessa representação foram em dois sentidos: num sentido verificou-se que tais autores não tinham o valor que lhes era atribuído como autores de peças «malditas»; foi o que aconteceu a Luís Stau Monteiro, Bernardo Santareno e Alves Redol. Noutro sentido, pôde verificar-se como esses e outros dramaturgos têm gozado das possibilidades dadas pelo Estado às empresas que o Estado reconhece como mais importantes. Assim, têm sido representados pela poderosa Companhia do Teatro Nacional, nas condições de maior carinho recusadas a dramaturgos mais significativos e mais categorizados, peças de Bernardo Santareno, Luís Francisco Rebelo e outros. A quem essas condições, ou essa representação foram, e continuam a ser recusadas, é a dramaturgos como José Régio ou, para dar um exemplo que a Imprensa não quis transformar em escândalo, como Afonso Botelho.








- Não se importa de novamente analisarmos devagar as suas declarações? 

- Com certeza.

- Em primeiro lugar: Alves Redol, se é a peça a «Forja» que está em causa, nunca tinha sido antes representada. E agora não é no Teatro Nacional que está em cena. 

- Sem dúvida. Alves Redol (aliás uma personalidade de muita simpatia e autor de um ou dois romances com inegáveis qualidades) tinha entregue a sua peça ao «Teatro da Estufa Fria» que a apresentou à censura e obteve a aprovação dela. De posse dessa aprovação o autor preferiu retirar a peça daquele teatro, que é um teatro popular, social, e com entradas gratuitas para espectadores, e entregá-la à empresa de Vasco Morgado que é, por excelência, a empresa do teatro burguês.

- Em segundo lugar: você disse que José Régio não tinha representado no Teatro Nacional. Ora pelo menos a peça «Benilde» foi lá representada. 

- Sem dúvida. Mas só essa. E essa mesma, quando eu a quis representar, há cerca de sete anos, foi proibida pela censura apesar de ela se encontrar já em ensaios gerais. A mesma proibição caíu sobre o «Don Sebastião». E «Jacob e o Anjo» só subiu à cena há dois anos, no «Teatro da Estufa Fria», depois de, em duas tentativas frustradas, a empresa do Nacional a não ter conseguido representar.

- Em terceiro lugar: ignoro qual seja o caso de uma peça de Afonso Botelho a que você se referiu. 

- Além de profundo e sério ensaísta filosófico, Afonso Botelho é autor da novela «O toiro celeste passou» que é a mais original, actualizada e inspirada obra de ficção da literatura portuguesa posterior à guerra. Mas Afonso Botelho, não sendo um político, dá sempre a sua adesão intelectual às modernas gerações monarquistas. É portanto um escritor segregado. Também escreveu uma peça de teatro, considerada notável, não só por mim mas por autoridades como José Marinho, Álvaro Ribeiro e José Régio. Não sendo um político, Afonso Botelho utilizou o direito para fazer representar a sua peça e apresentou-a ao concurso, instituído mas raras vezes efectivado, pelo Teatro Nacional. Aconteceu-lhe ter sido a sua peça, «O hábito de morrer», aprovada neste concurso e a companhia concessionária não teve outro caminho senão representá-la. As condições em que tal representação foi feita obrigaram o autor a recorrer ao Ministério que chegou a multar aquela companhia. Como o tempo era de chuva até os bengaleiros foram fechados ao público.

- Considera então que as medidas do actual Governo são favoráveis à cultura? E até onde pode ir esse favor? 

- Continuamos em plena subversão cultural. As medidas do Governo foram, até agora, as mais fáceis, singelas e imediatas. Continua tudo por fazer e o mais importante é, desde já, despoliticizar a cultura. Não apenas nas instituições oficiais mas também nas opiniões dominantes (que se apresentam quase todas com a máscara oposicionista; agora até nos salões plutocratas está na moda mostrar-se da oposição e bradar em defesa das vítimas da plutocracia), e sobretudo nas mentalidades. É bom, todavia, que se faça o mais singelo e imediato: limpar as instituições, não só as do Estado mas também as particulares (por exemplo, essa temerosa Sociedade de Autores Teatrais) e aprovar uma lei do teatro e do cinema que está a ser elaborada há longos anos e que o actual Governo prometeu que começaria a ser executada no mês de Setembro.


Uma reforma de mentalidade 


- Para cá dessas medidas singelas e imediatas, há um problema de mentalidade, de informação e de cultura, não é verdade? Nós estranhamos, muitas vezes, uma perseverante preocupação em rotular os escritores e em julgá-los, depois, por esses rótulos. 

- Tenho por vezes a impressão de que as nossos homens de letras, todos muito empenhados em afirmarem um certo progressismo outrora exclusivo das esquerdas anticlericais, carecem de figuras que se possam apresentar como o oposto deles. Qualquer coisa de análogo ao que os homens da direita fazem para manter as figuras dos políticos de oposição, segundo um processo que se tornou mais patente depois das últimas eleições, quando vemos serem tomados e reconhecidos como forças políticas homens que apenas obtiveram um ridículo número de votos. Adoptando um processo análogo, para reforçarem as suas veleidades progressistas, os homens de letras vão escolher ou denunciar adversários onde eles não existem e, até em personalidades e em livros onde se encontram verdadeiramente as doutrinas, as imagens e as ideias que contribuem para a evolução e o progresso da humanidade. Claro está que estas personalidades, dotadas de um amor de verdade que a generalidade dos homens de letras infelizmente não possui, e tranquilos pela sua obra onde livremente disseram aquilo que pensam, não se preocupam em refutar, com documentos iniludíveis, as estultas acusações que lhes são feitas, de um modo mais cauteloso, irresponsável e anónimo na imprensa e nas tertúlias de Lisboa, de um modo mais claro e ostensivo nos jornais de que dispõem nas cidades de província. Acontece assim podermos ver atribuir a homens com a nobreza, rectidão de atitudes e actos e clareza de afirmações designações estultas como o estafado e antiquado rótulo de reaccionários ou extremistas de direita. Tal designação já vimos serem atribuídas, com uma espantosa ignorância e infantil atrevimento, a personalidades como Domingos Monteiro, Álvaro Ribeiro, Natália Correia ou José Régio.

Natália Correia com Dominique de Roux. Ver aqui



 Da crise do romance à crise da civilização 


- Referiu-se V. a Afonso Botelho como um original e singular novelista e falou de Alves Redol como um novelista de alguma qualidade mas sem relevo. A opinião dominante no entanto ignora as novelas de Afonso Botelho e celebra as de Alves Redol. Como se explica tal contradição? 

- Em primeiro lugar, as coisas são o que são e o que se diz delas é o que se diz delas. Por motivos políticos, Afonso Botelho (como alguns outros) é um escritor segregado e Alves Redol um escritor celebrado. O que é certo é que o talento, a imaginação e a arte de Afonso Botelho situam-se para aquém da reconhecida crise e falência do romance como género literário que teve a sua época, a época do predomínio triunfante da burguesia novecentista. Alves Redol como todos os celebrados romancistas portugueses seus epígonos têm ainda do romance a concepção anterior ao reconhecimento da sua falência, isto é, têm uma concepção burguesa do romance e de toda a literatura. É isto que explica em grande parte a contradição a que você se refere e é também o que explica uma contradição mais diversa que reside nisto de a cultura socialista ou socializante estar a recorrer aos bons serviços da literatura burguesa.

- Esta sua observação está de acordo com o que você escreve no seu último livro, «A Idade do Corpo», quanto à identidade entre o socialismo e o capitalismo, não é verdade? 

- É verdade. Esta observação é apenas a verificação de uma pequena consequência local dessa identidade que constitui a grande hipocrisia política do nosso tempo. Contra ela, a denunciá-la, talvez só a denunciá-la, apenas se erguem as vozes da contestação estudantil. Os estudantes, aqueles estudantes que se não têm deixado iludir pelas aliciações dos políticos, revelam uma originalidade de pensamento virtual que, infelizmente, nenhum pensador do nosso tempo, e muito menos nenhum literato do nosso país, conseguiu assumir. Repare que a contestação estudantil pôs de lado todas as formas de arregimentação política - «aí vêm os crápulas dos comunistas» gritaram os estudantes franceses em revolta para os chefes do P. C. F. – como atirou para trás pensadores de actualidade até então inegável: Sartre ou Luckacs. De hoje em diante deixou de ter sentido a simplista distinção das ideologias políticas e das estruturas sociais. A juventude estudantil mostra, com um vigor que ninguém consegue vencer, que do que se trata agora é de transformar a nossa civilização.

- Que se deve entender por essa transformação? 

- Fundamentalmente, de atribuir ao mundo do espírito aquela realidade que imediatamente se atribui ao mundo sensível. Ficamos assim muito distantes dos mesquinhos problemas «artesanais e domésticos» dos políticos e dos literatos que desfrutam a efémera glória do mando ou das calúnias dos jornais. As portas do mundo do espírito têm sido, nesta nossa multissecular civilização, guardadas pelas instituições universitárias. Aí portanto teria de se travar a disputa a que se deu o nome da contestação.

- Você dê-me licença. Vamos fazer um intervalo. Os assuntos de que acabámos por falar são demasiado graves para continuarmos a conduzi-los à maneira de uma conversa de café. Se não se importa continuaremos depois esta entrevista. Orlando Vitorino concordou e o mais que nos disse será o que publicaremos oportunamente.

Continuamos hoje a conversa com Orlando Vitorino. A parte que publicámos na edição do último domingo foi conversada horas antes da estreia do «Teatro d’Arte de Lisboa» no Funchal. Entretanto, os espectáculos realizaram-se e provocaram as mais diversas e perturbantes reacções. Vimos por exemplo na estreia de «Amantes e Triunfantes» alguns espectadores ofendidos com as referências que uma das personagens fazia à personalidade educativa das freiras, mas pudemos assistir, numa repetição da mesma peça, à simpatia e até concordância que algumas freiras, assistindo ao espectáculo, manifestaram por essas referências. Este exemplo é um entre muitos dos que aconteceram durante a espectação das peças do «Teatro d’Arte». 

Ao mesmo tempo, é conveniente assinalar que estas peças não tiveram o condão de despertar o interesse do numeroso público que costuma assistir a outro género de espectáculos como os de uma companhia de comédia que há alguns meses nos visitou e teve sempre as salas cheias e os bilhetes disputados até no mercado negro pelo«exigente» público do Funchal. Todavia, esses espectáculos morrem e são esquecidos por toda a gente logo que cai o pano, ao passo que os do «Teatro d’Arte» ainda não deixaram de ser motivo de discussão e sobretudo de esclarecimento cultural e artístico.






Deve notar-se ainda que Orlando Vitorino soube acompanhá-los, espectáculos de arte que eram, de uma espécie de campanha cultural: ofereceu sessões a estudantes, realizou colóquios e deu até aulas em colégios. Alguns de nós – de certo modo é o que estamos a fazer neste momento – não tivemos a ousadia de lhe negar a colaboração. 

De tudo isto resulta que esta brevíssima temporada foi um acontecimento cultural na nossa ilha. Ao mesmo tempo uma prospecção do estado de receptividade cultural em que nos encontramos. 


Fala-se do público de «A Ilha» e da ilha 


- Decepcionado, Orlando Vitorino, com as reacções do nosso público? 

- De modo nenhum. De há cinco anos para cá, todos os anos tenho vindo à Madeira sempre por motivos culturais e artísticos: três vezes com teatro, uma vez a acompanhar o «Grupo Gulbenkian de Bailado». De cada vez fico sempre mais interessado em voltar.

- Mas não reconhece que há uma certa resistência, seja embora de alguns sectores, a estas suas iniciativas? 

- Com certeza. Mas tal resistência estava por um lado prevista e, por outro lado, é o sinal daquilo que deu o título a uma peça de teatro: «Hopláhá! Estamos Vivos!» Além disso há as características de uma população que vive há cinco séculos na mais vegetal de todas as ilhas.

- Que tem isso a ver...? (nós estamos sempre em guarda com o nosso entrevistado que, até nos assuntos mais versados, tem uma maneira irónica de falar). 

- A natureza vegetal é a mais parada, quieta e tranquila de todas as naturezas. É também a mais edénica. E sobretudo a que mais solicita, alicia e seduz o corpo, a que mais nos impele a darmos ao corpo o predomínio da nossa existência. Dois dos nossos actores entretinham-se a brincar com os outros dizendo-lhes que estavam a criar raízes à flor da pele. Ora o corpo é quase sempre adversário do espírito e o teatro é um dos templos do espírito. Os madeirenses resistem até à vida social: são fechados e importantes. Como é que não hão-de oferecer ao teatro uma resistência tanto mais forte quanto ela é a salvaguarda da sua natureza de ilhéus a viverem numa ilha vegetal e paradisíaca?

- Mas não observou essa resistência da parte dos jovens que aderiram imediatamente aos espectáculos? 

- Pois não.

- E, então?!

- É que os jovens ainda é no corpo que têm o seu lugar natural. Sabem portanto que não devem resistir à presença do espírito.

- Que está a ser: confuso ou demasiado filosófico? 

- Talvez as duas coisas.

- Continuamos? 

- Estou às suas ordens.

- Posso então assumir uma atitude crítica? 

- Com certeza. Já me viu alguma vez recusar ou fugir às críticas que me podem ser feitas? Já me viu alguma vez zangado, magoado ou ofendido por alguma crítica, até a mais infundada?

- É talvez porque é o primeiro a criticar-se a si próprio.

- Talvez.






 Um pouco de autocrítica 


- Quer fazer alguma autocrítica? 

- Uma autocrítica ou uma confissão?

- O que lhe queira chamar. 

- Primeira confissão: sou um preguiçoso e antes dos espectáculos havia defeitos resultantes dessa preguiça.

- Por exemplo? 

- As «pernas» das bambolinas foram colocadas demasiado dentro do palco. Eu tive preguiça de emendar essa colocação.

- Quer-me parecer também que o tratamento da luz de cena era demasiado rudimentar e empobrecido por isso o espectáculo. O motivo foi o mesmo? 

- Não. A luz da cena deve fazer-se com muitos projectores e um aparelho a que se chama «orgão das luzes». Trata-se de instrumentos que devem existir em todos os palcos. O seu custo é da ordem das centenas de contos e o transporte, por incómodo. Não pode ser feito numa digressão como a nossa. O vosso teatro Municipal, que é duma bela e funcional arquitectura, não tem qualquer apetrechamento luminotécnico. As obras realizadas há três anos só atenderam à comodidade dos espectadores e não tocaram numa tábua do palco. Inexplicavelmente aconteceu isso no vosso teatro como acontece na maior parte dos teatros onde as Câmaras Municipais mandam fazer obras. Tudo indica que é o contrário o que se deve fazer: primeiro, apetrechar o palco e depois tratar dos assentos dos espectadores que afinal se vão assentar neles para verem o que se passa no palco. Sem projectores, e só com as lâmpadas da ribalta e das gambiarras (quase como há cem anos) nada se pode fazer. Lembro-lhe que a Fundação Gulbenkian está a atender todos os pedidos de sociedades recreativas e grupos de amadores para serem apetrechados com uma instalação luminotécnica. Em breve, todos os grupos de amadores poderão dispor de recursos de iluminação que os profissionais não possuem. É uma situação paradoxal, mas é isso que acontece.

- Outra pergunta crítica: A peça «A Curva» tinha um cenário que se me afigurou... como hei-de dizer... descuidado. Como se justifica? 

- Em primeiro lugar, devo reconhecer que V. tem razão. Depois deste reconhecimento, posso justificar-me dizendo que a peça inicialmente designada para esse espectáculo não era «A Curva» mas sim o «Verão de Romain Weingarten». Esta peça só se pode representar com cenário complexo. Ensaiamo-la durante dois meses mas os apuros que exigia não nos permitiram tê-la pronta ao iniciarmos esta digressão. Por isso a substituímos por «A Curva» de que só havíamos feito os ensaios da representação destinados a espectáculos que se realizariam depois de regressarmos a Lisboa. Esta substituição obrigou-nos a um cenário de recurso, que foi o que você viu e agora critica com razão. Do ponto de vista puramente teatral, e dado o carácter puramente teatral do espectáculo onde «A Curva» foi incluída, os cenários, embora assim descuidados, não prejudicavam o que o espectador poderia ver na peça.

- Agora uma observação regionalista: é convicção entre o nosso público que as companhias em digressão apresentam as peças de modo diferente daquele em que as apresentam em Lisboa. É isso o que vai acontecer convosco? 

- De modo nenhum. Como sabe, esta digressão tem a singularidade de ser realizada antes dos espectáculos serem estreados em Lisboa. Você que assistiu à última reunião da Companhia verificou como tudo está previsto para a apresentação em Lisboa. E posso assegurar-lhe que os lisboetas verão os espectáculos tal como foram vistos no Funchal.

- Não haverá alterações nos cenários? 

- Em princípio, nenhuma alteração estava prevista. Verificámos, no entanto, que se podia melhorar, mas num sentido ainda mais simples o cenário de «O Carrasco...». A simplicidade que tanto parece ter chocado certos espectadores do Funchal (com excepção do meu amigo Aragão que entre outras coisas é também pintor e que me observou como o cenário da peça «Amantes e Triunfantes» teria em demasia a única árvore que a constitui) será ainda mais acentuada nos espectáculos em Lisboa. Como creio que V. sabe, eu entendo que a cenografia deve ser tão simples que o espectador não dê sequer pela sua existência. Tão simples que possamos até aboli-la definitivamente. O Teatro Grego não tinha cenários. O teatro de Shakespeare limitava-se a uma legenda para determinar o lugar da cena. O grande teatro espanhol do «siglo de oro» também não tinha cenários. A cenografia é uma invasão do teatro pela arte burguesa dos renascentistas e sobretudo dos novecentistas, isto é, uma imposição das épocas que menos teatro tiveram.






 Fala-se outra vez do público 


- Ponho-lhe agora uma questão em que, o que ela tem de crítico é a seu favor. A peça «O Carrasco...» foi alvo dos comentários mais «desconcertantes» por parte do público. As pessoas, parece-me, que não a compreenderam a julgar pela forma como se escandalizaram. O que já me parece estranho é que estas mesmas pessoas vêem efectivamente no cinema isso que, escandalizadas, quiseram ver naquela peça e nada se impressionaram. Como explica o fenómeno? 

- Em boa justiça, deve dizer-se que foi só o público da estreia e não o do segundo espectáculo que assim se escandalizou. Era o público mais formal, quer dizer, aquele conjunto de espectadores constituído numa parte, pelos que gostam de conservar os costumes e, noutra parte, pelos que dizem querer transformar os costumes. O que os escandalizou não foi o motivo superficial de a peça abrir com a entrada de uma prostituta na cela de um condenado à morte para passar com ele as últimas horas. O motivo do escândalo foi sim, representar-se nessa introdução o requinte da crueldade mortífera dos homens (de todos os homens?). Como sabe, o assassínio não é exclusivo dos criminosos juridicamente determinados. O requinte da crueldade dos homens, em geral, era representado nessa cena inicial da cena. Há um livro inglês famoso, embora hoje muito esquecido, que se intitula «O assassínio como obra de arte» e se ocupa da arte cada vez mais generalizada de assassinar homens sem o risco das sanções legais. Ora os espectadores da estreia, de todas as nossas estreias, sentaram-se na sala demasiado solenes e hirtos para poderem sair de dentro de si.

- E como explica a atitude contrária perante os filmes? 

- Em primeiro lugar, porque o espectador de cinema é um espectador puramente receptivo, passivo e adormecido. Observa as imagens do filme como se estivesse mergulhado num sonho sem pesadelo. Em segundo lugar, porque o teatro tem uma força de choque e de impressividade que inquieta e perturba o público mais solene e mais cheio de si mesmo. Veja como a censura oficial, ou as censuras particulares, não raramente autorizam e até festejam publicado em livro ou projectado em cinema aquilo que proíbem quando representado em teatro. Apesar de o teatro ter uma audiência muito mais reduzida do que aquela que o livro pode ter e que o cinema tem efectivamente.

- A Secretaria de Estado vai enviar-nos dois espectáculos da Casa da Comédia. Teremos de novo teatro no Funchal com a representação das peças: «A Dança da Morte» de Strindberg e «Os Dias Felizes» de Samuel Beckett. A primeira que vi em Lisboa e considerei depois nas colunas deste jornal como o melhor espectáculo teatral do Outono, é uma obra consagrada desde os fins do século passado. Quanto à segunda, que pensa dessa peça? 

- Os nossos mesmos espectadores terão a oportunidade de ver uma peça que, estando na mesma linha dos nossos espectáculos, trás, no entanto, a autoria do último escritor laureado com o prémio Nobel, um prémio destinado a impor-se não só aos suecos e seus serventuários, mas também às pessoas solenes e hirtas que se escandalizaram com a modesta peça de Jack Richardson. Isto não significa que Beckett seja menos do que é. E o que é constitui algo do que de mais importante e original produziu a literatura dos nossos dias. A sua contribuição ao teatro moderno consiste, sobretudo senão exclusivamente, na obra-prima «À espera de Godot», obra admirável que um público politiqueiro de direitas pateou no espectáculo de estreia em Lisboa e que os articulistas arregimentados na esquerda patearam o ano passado em todos os jornais «bem pensantes» portugueses.


A opinião «bem-pensante» 


- Desconcertante é, sem dúvida, o que se lê por vezes e se ouve dizer acerca do teatro em Portugal. Críticos e ensaístas que são tidos por competentes e considerados, dizem, não poucas vezes, não haver teatro no nosso País, visto o que se faz ser mau. Todavia, é também frequente assistir-se ao «encantamento» dessas mesmas pessoas por esta ou aquela realização teatral. Em que se fica, afinal? 

- A sua observação imediatamente nos situa perante uma consequência da mentalidade «bem-pensante» a que nos estávamos a referir. Para ela, pensar é sempre «pensar bem», e pensar bem é sempre pensar de acordo com o que toda a gente pensa. Forma-se assim uma opinião original e singular. Dizer o que toda a gente diz é assegurar imediatamente os aplausos, os êxitos e até as benesses e os lucros. Como vimos no início desta entrevista, até nos salões plutocratas é de bom tom defender as vítimas das hierarquias triunfantes. A nossa imprensa, os nossos articulistas, os nossos críticos e escritores, até os sacerdotes no púlpito, estão sempre prontos a rectificar, a corrigir os juízos que anteriormente fizeram. Há carreiras literárias e políticas que começam na Mocidade Portuguesa e acabam no neo-realismo, sempre com a bandeja estendida a receber benesses e aplausos. Fatalmente, esta mentalidade cria as suas vítimas, geralmente escolhidas precisamente entre aqueles que alguma vez se distinguiram por lhe serem mais servis. Acontece assim a todos os encenadores que, sem talento próprio, até sem gosto e sem opiniões próprias, ganharam certa celebridade reproduzindo nos palcos de Lisboa o último êxito dos palcos de Paris ou de Londres. E o mesmo se dirá dos dramaturgos que reproduzem os processos efémeros das peças de literatura mais fácil. Os críticos que na ocasião, obedecendo à ditadura dos «bem-pensantes», elogiaram essas obras e essas realizações efémeras, vêem-se dentro em pouco tempo a ensacá-las numa totalidade, que será o teatro português em geral, para assim as poderem condenar em nome das novas formas de opinião «bem-pensante». Tudo isto é o resultado da ausência de amor pela verdade e da incapacidade, em que a maior parte dos nossos contemporâneos se encontram, de pensarem por si próprios. Sartre disse um dia que os homens estavam condenados à liberdade. É certo que hoje, mais do que nunca, os homens se recusam à liberdade porque, mais do que nunca, se recusam a pensar por si próprios.






- No decorrer desta nossa conversa, V. falou no Teatro da Estufa Fria. Ora o que acontece é que o ambiente que rodeia a acção desta companhia, nos jornais e nas tertúlias artísticas, não é dos mais favoráveis. Em seu entender a que se deve isto? 

- O Teatro da Estufa Fria é uma realização destinada a oferecer teatro gratuitamente, às classes populares de Lisboa. Oferecer assim teatro ao povo, é uma das reivindicações, um «nariz de cera» da mentalidade chamada progressista. Ora assistindo essa realização promovida e mantida por uma instituição oficial como é a Câmara Municipal de Lisboa, aquele «nariz de cera» deixa de ser utilizável. Há tempos, uma senhora brasileira de política confessadamente comunista falou comigo da exigência e da vantagem de se oferecer teatro gratuito ao povo e ficou deveras surpreendida, até pasmada, ao saber que existia em Lisboa um teatro permanente com essa finalidade. O seu pasmo foi tão grande que, dir-se-ia, tal facto modificou a opinião feita sobre o carácter da política cultural portuguesa. Claro que são discutíveis os modos e processos como funciona o Teatro da Estufa Fria. É, desde logo, inadequado o processo de uma companhia se ver obrigada a ensaiar e apresentar um espectáculo por mês, o que só tem sido material e fisiologicamente possível graças ao empenho e ao «ofício» do director dessa companhia que é o grande actor Augusto de Figueiredo. Também é discutível – ponto mais sensível e subtil – o repertório que é seleccionado directamente pelos serviços camarários. Com efeito, esse repertório tem uma maioria esmagadora de peças do velho e gasto teatro burguês de finais do século passado e princípios deste século. Paradoxalmente entremeiam-se em tal repertório obras modernas que, acusadas de um difícil entendimento para o público burguês dos outros teatros, as respectivas empresas se não atrevem, por falta de coragem ou de talento, a levar à cena; é o caso de peças como «Jacob e o Anjo» de José Régio, «O Indiferente» de Agustina Bessa-Luís e «O Irmão» de David Mourão Ferreira. Também é paradoxal que certos autores progressistas e populistas tenham recusado ao Teatro da Estufa Fria a estreia de peças originais ao mesmo tempo que autorizam reposições de peças já estreadas nos teatros para burgueses!

- Então porque é que o mesmo ambiente não tem rodeado o Teatro Nacional? 

- Em primeiro lugar porque o Teatro Nacional goza do prestígio das grandes instituições oficiais a que são especialmente sensíveis os dramaturgos e articulistas que se querem dar por mais ostensivamente revolucionários. A maior parte deste género de escritores procura, por todos os meios até aos mais humildes obter a representação das suas peças no prestigioso teatro do Estado Novo. É o caso de Ramada Curto e Carlos Selvagem, na geração mais velha, ou de Luís-Francisco Rebello, Bernardo Santareno e Romeu Correia nas gerações mais medianas. Em segundo lugar, é preciso ter em conta a extrema habilidade com que Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro sempre souberam tratar este aspecto das fraquezas humanas. Foi um dia publicada uma crítica a um espectáculo do Nacional que começava por mostrar que, nessa temporada, a empresa tinha encomendado a tradução das peças a um jornalista de cada redacção de todos os jornais de Lisboa. Finalmente, é preciso ter em conta o enorme prestígio, entre as gerações mais velhas do público, portanto as gerações dominantes hoje na vida política e na vida burguesa, da actriz Amélia Rey Colaço. Para essas gerações ela representa a lembrança da juventude perdida. Por todos estes motivos, a opinião «bem-pensante» só nos últimos anos ousou diminuir a «dignidade» do Teatro Nacional.

- Do Funchal V. vai para Lisboa. Vai apresentar os espectáculos que nós vimos aqui. É-lhe possível a reacção do público? 

- Completamente impossível.

- E a reacção da crítica? 

- Essa é tão previsível como prever a noite a seguir ao dia. No entanto eu não quero tirar a ninguém a oportunidade de se exprimir livremente, de mostrar que é capaz de pensar por si próprio. Por isso, meu caro António Jorge, não lhe passo para as mãos os textos, que lhe poderia escrever, dos diversos artigos que, porventura, virão a ser publicados.

- Vamos terminar?

- Vamos terminar!

- Posso ainda fazer-lhe umas perguntas, talvez inconvenientes? 

- Mas decerto que pode!

- V. é socialista

- Não.






- V. é capitalista? 

- Não. Nem sequer, à maneira de muitos socialistas, por ter rendimentos próprios.

- V. é fascista? 

- Nada disso. Nem socialista, seja à maneira russa ou à maneira sueca, nem capitalista, seja por convicção própria ou por conveniência de ocultos interesses, nem fascista, seja pelo passado seja pelo presente.

- Não lhe posso pôr então nenhum rótulo?

- «Eu sou – diz uma personagem de Shakespeare – um verdadeiro trabalhador: ganho o pão de cada dia com o trabalho de cada dia» – e um personagem de Pirandello acrescenta: «Fora da lei e de certas minúcias de que a vida é feita, não há felicidade possível».


(in Jornal da Madeira, ano XXXIX, números 12069 e 12072, II série, Funchal, 7 e 10 de Junho de 1970, pp. 1 e 9, e 1 e 4. Entrevista de António Jorge Andrade).


ONU: o supergoverno mundial (i)

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Escrito por Miguel Bruno Duarte










Ver 12, 34 e 5



Desfile em Luanda de tropas portuguesas chegadas de Lisboa.







Ver 1, 23, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12




«Alguns dos oradores da ONU, sem bem cuidarem dos termos da Carta, deram a entender não desejar outra coisa senão que as populações exprimam claramente a sua opção por Portugal, embora esta esteja feita desde recuados tempos, e constitucionalmente admitida e consolidada. Isso se chama a autodeterminação, princípio genial de caos nas sociedades humanas».

Oliveira Salazar («O Ultramar Português e a ONU»).



Visando a sistematização de princípios, intuições e noemas radicados no mundo do espírito, e, portanto, aptos a transcenderem a perfídia, a cobardia e a ignorância preponderantes nas instituições universitárias, por, de facto, se encontrarem espiritualmente vazias, censoriamente activas e culturalmente mortas, dividiremos por partes, com os devidos subtítulos, o escrito que agora se segue.


A teia anglo-americana 


Antes de mais, o termo “Nações Unidas” fora inicialmente empregue por Franklin D. Roosevelt para descrever não só o Ocidente mas também os Aliados do Leste. Oficialmente, o referido termo impor-se-ia a 1 de Janeiro de 1942 aquando da assinatura da Carta do Atlântico por 26 governos, no intuito de assim assegurarem o seu compromisso na prossecução do esforço de guerra contra as Potências do Eixo. De resto, a futura organização que, no fundo, estaria já prevista, resultava de um plano referente à criação de uma nova ordem internacional, originariamente delineada, em 1939, pelo Departamento de Estado norte-americano (1).

Deste modo, terminada a Segunda Guerra Mundial, a ONU passaria então a ser apresentada como uma entidade supranacional cuja finalidade seria determinar, implementar e garantir uma cultura unificada, bem como a desejada felicidade económica dos povos, a paz e a segurança internacionais num derradeiro esforço de universalismo unido em torno de um governo planetário comum. Porém, convém realçar que, no âmbito do já referido Departamento de Estado norte-americano, tais desígnios teriam sido particularmente elaborados pela Divisão de Planeamento da Política Externa do Pós-Guerra, dirigida por Alger Hiss, que era, nem mais nem menos, um espião soviético (2). Por conseguinte, seria ainda Hiss quem, a 25 de Abril de 1945, daria a conhecer na cidade californiana de São Francisco o novo documento da Carta das Nações Unidas durante a conferência fundadora da organização mundial, de que, aliás, viria a ser o primeiro secretário-geral, embora a título temporário.

Entretanto, também a cargo do espião soviético estaria o Departamento de Assuntos de Política e Segurança, incumbido da jurisdição das futuras operações militares da ONU. Contudo, é de notar que Alger Hiss, ao mesmo tempo que operava na esfera da espionagem soviética, actuava igualmente no âmbito da agenda da Sociedade Fabiana (3), pelo que assim se explica ter sido ora conselheiro do Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, ora presidente do Carnegie Endowment Fund. Logo, eis a razão por que a ONU tenha, desde a primeira hora, procurado prosseguir e redireccionar a estratégia global colectivista já de alguma forma subjacente ao anterior projecto da Liga das Nações, projecto esse delineado pelo marxista Edward Mandell House (4), um dos fundadores do Council on Foreign Relations (CFR) (5), em 1921 (6), além de principal conselheiro do Presidente Woodrow Wilson, de 1913 a 1921.

Fora, aliás, uma delegação composta por 74 membros (7) do CFR que estivera na base fundacional da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional. Ora, a missão daqueles 74 membros torna-se, pois, compreensível face ao desígnio supremo do que, para todos os efeitos, representa o CFR nos Estados Unidos: a constituição do governo mundial. Daí que essa organização, mormente constituída por inúmeros membros da maçonaria, seja financiada pelas fundações Ford, Carnegie e Rockefeller, ou ainda por trusts de renome internacional, tais como a IBM, a ITT ou a Exxon, que proviera, em 1972, da Standard Oil Company of New Jersey.

Variadíssimas têm sido, no decorrer dos últimos oitenta anos, as personalidades que nos EUA fizeram ou fazem parte do CFR, nomeadamente secretários de Estado, generais e almirantes, chefes de Estado-Maior e oficiais da Marinha, além de conselheiros para a Segurança Nacional, candidatos presidenciais e directores da CIA. Consequentemente, a coordenação destas forças tem sido, a todos os títulos, poderosíssima, se, de um modo geral, atendermos ao controlo comportamental resultante de operações psico-políticas destinadas à aceitação, por parte do público ignaro, de campanhas, programas e propaganda insidiosa provenientes do CFR. No fundo, essas operações processam-se nos Estados Unidos e, por extensão, em todo o mundo, a partir de uma rede complexa de instituições e organizações financiadas pelo dinheiro dos contribuintes, de que se destacam, a título de exemplo, as seguintes: RAND Corporation, Planning Research Corporation, Hudson Institute, International Institute for Applied Behavioral Sciences, Heritage Foundation e Brookings Institution – todas ademais supervisionadas e geridas pelo Stanford Research Institute (SRI), sedeado na Califórnia.




Elihu Root



Quartel General do Council on Foreign Relations (CFR), em Nova Iorque.





O estratagema das operações psico-políticas exige, simultaneamente, o esforço propagandístico veiculado por diversos grupos de especialistas académicos, que vão, por seu turno, influenciar a opinião pública por via dos meios de comunicação de massas, designadamente jornais, rádio, televisão, think tanks, indústria do entretenimento, etc. Ora, um tal esforço propagandístico à escala mundial pode, por exemplo, ser revelado mediante o apurado entendimento do que, na realidade, foram as exigências e as condições específicas geralmente ocultas do Plano Marshall, visto que, muito para além do preconizado auxílio à reconstrução económica da Europa devastada pela guerra, um tal plano fora, na sua essência, um instrumento exclusivamente elaborado para a americanização do Ocidente europeu (8). Deste modo, a par das exigências de liberalização do comércio e incremento da produtividade, chegara a subsistir toda uma actividade de bastidores em que se puderam articular as elites político-económicas europeias com as elites homólogas americanas, de que, aliás, resultariam grandes lucros e fundos consideráveis que permitiriam à Agência Central de Inteligência (CIA) financiar, entre outras actividades ilícitas, as de carácter político-partidário em países europeus, mais propriamente em França e na Itália (9).

Consequentemente, as origens do Plano Marshall encontram-se profundamente ligadas à política prosseguida e instituída pelo CFR, a começar nas reuniões que, em 1939 e à porta fechada, teriam tido lugar através de figuras-chave no Departamento de Estado, mormente as de William L. Clayton e George F. Kennan. Nisto, o objectivo, a curto prazo, seria a concertada substituição do Império Britânico pela hegemonia política e económico-financeira dos Estados Unidos no hemisfério ocidental. Daí que o plano do General Marshall, justamente aquando do seu discurso na Universidade de Harvard (10), em Junho de 1947, tivesse integrado as propostas de um estudo do CFR, intitulado Reconstruction on Western Europe (11).


 Os Estados Unidos da Europa 


No seguimento do Plano Marshall viria a Declaração Schuman de 9 de Maio de 1950, no âmbito da qual o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Robert Schuman, proporia a criação de um organismo supranacional - a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) – que seria a primeira de uma série de instituições europeias transnacionais com vista a implementar um mercado comum do carvão e do aço entre os países fundadores – França, República Federal da Alemanha, Itália, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo. A Declaração Schuman estaria, portanto, na origem da primeira pedra que levaria à construção de um Super-Estado Europeu, pedra essa que, por seu turno, redundaria, em 25 de Março de 1957, ora na Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom), ora no Tratado de Roma, ou Comunidade Económica Europeia (CEE). E eis, assim, a unificação política não declarada, se bem que profundamente implícita na política económica comum consagrada ao futuro governo mundial.

Note-se, bem a propósito, que fora o internacionalista Jean Monnet, um dos “pais fundadores dos Estados Unidos da Europa”, quem efectivamente inspirara o Plano Shuman (12). Outrossim designado por “Pai da Europa”, o arquitecto francês do mercado comum principiara o seu percurso económico e diplomático dentro de altos círculos de poder britânicos, tornando-se, concomitantemente, numa figura grada e protegida dos internacionalistas anglo-americanos. Não admira, pois, que já na Conferência de Paz de Paris, Jean Monnet, na qualidade de assistente do ministro francês do Comércio e da Indústria, Etienne Clémentel, houvesse proposto uma nova ordem económica baseada na integração europeia, porém oficialmente rejeitada pelos Aliados em Abril de 1919.

Rigorosamente, três foram os homens que estiveram na origem da Comunidade Económica Europeia (CEE): Jean Monnet, o Conde Richard Nicolaus Coudenhove-Kalergi da Áustria e Józef Retinger. Por consequência, a CEE, entendida como o primeiro passo para a consecução de um Super-Estado Europeu, começara por ser cuidadosamente planeada nas reuniões do Grupo Bilderberg, cuja primeira reunião teria tido lugar em 1954, no Hotel de Bilderberg, perto de Arnhem, na parte oriental dos Países Baixos. De resto, as futuras reuniões entre ministros dos Negócios Estrangeiros da Europa teriam sido particularmente propostas por Józef Retinger (13) e o presidente do Grupo Bilderberg, o Príncipe Bernardo da Holanda.

Curiosamente, Jean Monnet fora filho de um comerciante francês de brandy. Mudou-se para o Canadá em 1910 em busca de novos mercados para o negócio de família, tornou-se confidente de presidentes e primeiros-ministros, foi Secretário-Geral da Liga das Nações, vice-presidente da empresa TransAmerica, conseguindo assim conquistar uma posição perfeita que lhe permitiria jogar em ambos os lados do Atlântico para a criação da Comunidade Económica Europeia (14). Entretanto, é também de assinalar que o Conde N. Coudenhove-Kalergi não só dera à estampa, em 1923, um livro intitulado Pan Europa, em que propunha a formação dos Estados Unidos da Europa (15), como propusera ainda que o Hino da Alegria de Beethoven fosse adoptado como Hino representativo da federação europeia.








Jean Monnet (1888-1979).







Joseph Retinger à direita.




Richard von Coudenhove-Kalergi










Exército Europeu Único. Ver aqui


Se bem que a formação de um Super-Estado Europeu não tivesse sido mencionada aquando das negociações para os Tratados de Roma (Tratado Constitutivo da Comunidade Económica Europeia e Tratado Constitutivo da Comunidade Europeia da Energia Atómica), a verdade é que foram sendo gradualmente abatidas, em nome de uma "zona de comércio livre", todas as fronteiras que configuravam uma Europa política, económica e culturalmente diversificada. E, nisto, não faltaria ainda o pretexto relativo às calamitosas consequências do último conflito mundial para acelerar o processo de unificação europeia, desde logo consubstanciado na transição do plano estritamente económico para o plano político a partir do Tratado de Maastricht (1992), que, desse modo, instituiria a União Europeia e a correspondente centralização do poder de decisão mediante a criação de um Banco Central Europeu (1998) e de uma moeda única (1999), bem como através da administração regional e de políticas comuns de trabalho, agricultura, indústria, saúde, educação, transportes (16), etc.

Consequentemente, a criação de um Super-Estado Europeu implica necessariamente o fim das soberanias nacionais, especialmente patente nas leis que os burocratas não-eleitos de Bruxelas ditam e impõem aos Governos e Parlamentos nacionais. Aliás, não foi por acaso que alguns desertores do KGB, como Anatoly Golitsyn e Vladimir Bukovsky, se deram ao trabalho de mostrar a semelhança existente entre o sistema de corrupção inerente aos burocratas do Politburo da União Soviética e o sistema não menos corrupto que actualmente envolve os burocratas do europeísmo invasor. Bukovsky dissera, inclusive, que em 1992 tivera acesso aos documentos do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, que confirmavam o intento de transformar a Europa num Estado totalitário.

Em termos estratégicos globais, a criação de um Super-Estado Europeu integra-se numa Nova Ordem Mundial que inclui outros Super-Estados a serem criados em zonas específicas do planeta. Assim, teremos, a par da União Europeia, a União Americana, a União Africana (17) e a União Ásia-Pacífico. Ou seja: têm sido criadas novas "zonas de comércio livre" com vista a procurar fundir diferentes países ou plataformas regionais, pelo que têm surgido tratados como o North America Free Trade Agreement (NAFTA), que envolve os Estados Unidos, o Canadá e o México, ou fóruns como o Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC), constituído por 21 países localizados no Círculo do Pacífico, ou ainda organizações como a Comunidade Económica Africana (CEA), que estipula a criação, entre Estados africanos, de uniões aduaneiras, um banco central, uma moeda comum, etc. Por outras palavras, a centralização do poder de decisão na Europa, nas Américas, África e Ásia-Pacífico processa-se em nome da "coordenação", da "cooperação" e da "associação" de múltiplos interesses, forças e actividades em jogo, mas que posteriormente evoluem para "uniões" ou "entidades" que possam garantir o objectivo final: a consolidação de um Governo Mundial com um Exército Único, um Banco Único e uma Moeda Única (electrónica, não em dinheiro). Em suma, o Reino do Anticristo.

O caso da União Europeia é, portanto, um caso paradigmático do que temos vindo a descrever, na medida em que já está praticamente consumada uma repartição da Europa em regiões administrativas controladas por comissários europeus não-eleitos, mais os seis membros do Quadro Executivo do Banco Central Europeu que controlam a moeda única e as reservas monetárias de cada "Estado". E, Portugal, como é óbvio, permanece actualmente subjugado à mega-estrutura tecnocrática da União Europeia, visto não haver governo em Terra de Santa Maria que não tenha cumprido, ao longo dos últimos trinta anos, as inúmeras ordens, normas e directrizes europeias que visam o completo desaparecimento da realidade histórica e espiritual que é Portugal. Aliás, um sinal significativo desta inversão civilizacional encontra-se na forma como os nossos maiores Monumentos Nacionais – Mosteiro dos Jerónimos, Torre de Belém, Mosteiro da Batalha e outras maravilhas de Portugal – passaram a ser classificados como Património Mundial da UNESCO, que é, como se sabe, uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura.


A “cultura unificada” da UNESCO e os “direitos humanos” 


No livro que demos à estampa com o título deNoemas de Filosofia Portuguesa, notadamente consagrado a Um estudo revelador de como a universidade é o maior inimigo da cultura lusíada, já procurámos demonstrar qual o nexo existente entre a agenda internacionalista da UNESCO e o programa da “Disciplina de Filosofia” ensinado em Portugal. Assim, desde a vertente moralista, sociológica e não menos ideológica (18) decorrente desse programa, até à técnica predominantemente socialista inerente à “cultura unificada” da UNESCO, eis como, num capítulo designado por «A filosofia não é uma disciplina», delineámos as consequências contraproducentes de um ensino inteiramente subordinado aos ditames económicos, sociais e políticos de um sistema totalitário mundial. No entanto, abordemos agora o que, no quadro do mesmo programa, reforça e institui, em termos hegemónicos, a internacionalização do ensino tal como “sugerido” ou “recomendado” pela UNESCO.










Comecemos então por dar uma sinopse relativa ao que, em termos de «valores, diversidade e diálogo de culturas», os professores da “Disciplina de Filosofia” ensinam aos adolescentes para, em função de objectivos estritamente programáticos, proporcionarem o «desenvolvimento de um pensamento ético-político crítico, responsável e socialmente comprometido» (19). Em primeiro lugar, preconiza-se o multiculturalismo, entendido, por um lado, enquanto «descrição e análise das diferenças culturais entre povos que habitam regiões distintas do globo» e, por outro, firmado no pressuposto de, «num mesmo espaço social, pessoas com culturas diferentes terem de lidar umas com as outras» (20). Seguem-se, posteriormente, as várias atitudes face ao multiculturalismo ou diversidade cultural, a saber:

a) etnocentrismo, no qual subsiste a superioridade de uma cultura em relação às demais, daí resultando a xenofobia (ódio aos estrangeiros), o racismo (repúdio violento de determinados grupos étnicos) e o chauvinismo (patriotismo fanático);

b) relativismo cultural (21), no qual se advoga a «tolerância face às diferentes expressões culturais das outras comunidades», pese embora encerrando aspectos negativos como o isolamento ou a separação entre culturas, eventualmente expressa na proibição da entrada de imigrantes, e, portanto, na consequente estagnação ou visão estática de culturas tradicionalmente enraizadas;

c) interculturalismo, em que finalmente triunfa o diálogo entre culturas, além do indispensável compromisso na solução global dos problemas sociais, económico-políticos e ecológicos (22).

Posto isto, avancemos agora para a preconizada natureza universal dos “direitos humanos”, tal como genericamente postulada nos manuais da «Disciplina de Filosofia». Nesta matéria, vejamos, pois, o que nos têm para dizer David Stewart e Gene Blocker, em Fundamentals of Philosophy (Prentice Hall, 4.ª edição, 1966):

«Todos sabemos que há muitas maneiras de entender o que são direitos e vemos que variam de país para país e de cultura para cultura, Assim, propor direitos “humanos”, “universais” ou “morais” não é fácil. No entanto, foi o que a Assembleia-Geral da ONU propôs em 1948: estabelecer direitos aceitáveis e obrigatórios em todos os países, qualquer que seja a sua história, orientação religiosa e filosófica e quaisquer que sejam as circunstâncias políticas e económicas. Uma vez que pretendem ser independentes das tradições e das práticas culturais particulares, estão, por isso, acima do que cada país possa estabelecer sobre eles. É nesse sentido que se dizem universais e inalienáveis. Isto quer dizer que nenhum ser humano pode ser “expropriado” destes direitos porque, se assim fosse, ficaria privado do que a Assembleia da ONU definiu que todos os seres humanos possuem igualmente: dignidade» (23).

Ora bem: o que daqui prontamente resulta, tal como descrito nos manuais supracitados, é que a diferente noção sobre direitos legais ou morais decorrente de sistemas políticos, económicos, sociais e morais vigentes em cada cultura em particular, pode entrar em permanente conflito com uma outra noção consagrada à dignidade absoluta ou ao valor intrínseco do ser humano como fonte de todos os direitos humanos. Uma coisa são, portanto, direitos que resultam moral ou legalmente legitimados por uma determinada cultura, mesmo estando em causa a vida ou a liberdade da pessoa humana, e outra coisa são os direitos inalienáveis, invioláveis e imperecíveis atribuíveis a qualquer ser humano, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Daí que surja automaticamente justificada a Declaração Universal dos Direitos do Homem (24), adoptada pela Organização das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, na continuidade de outras grandes declarações que marcaram a cultura jurídica do Ocidente (25), nomeadamente a Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776 (26), a Constituição dos Estados Unidos de 1787, ou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em França.

Porém, é de notar que a concepção dos “direitos humanos” proclamados pela ONU, consagrada no princípio de que todos os homens são livres e iguais entre si (27), e, nessa medida, usufruem da mesma dignidade, remonta ao espírito iluminista firmado numa antropologia predominantemente naturalista, posto que liberta da concepção teocêntrica aristotélico-escolástica. Nisso, destituída a razão e a vontade divinas por conta da razão humana, eis que assim surge a respectiva fonte do Direito Natural, pretensamente universal e imutável, a cujo conhecimento todo o homem poderá ascender e extrair, por via puramente dedutiva, o conjunto ou sistema das suas leis. Aliás, com o aparecimento de um tal jusracionalismo resultaria ainda que, na negação, ausência ou privação de Deus, o Direito Natural existiria por decorrência directa, imediata e exclusiva da natureza puramente racional do homem (28).








Robert Muller



Robert Muller










De inspiração directamente kantiana tem sido, de facto, toda a legislação uniformizante que a ONU, desde a sua primeira hora, vem progressivamente instituindo e impondo ao mundo. E a complementar essa inspiração de ordem iluminista tem estado igualmente o positivismo jurídico de Hans Kelsen, para quem a teoria pura do direito corresponde a uma hierarquia piramidal de normas em que a primeira e fundamental de todas reside na primazia do direito internacional, no qual apenas subsiste a positividade dos ordenamentos jurídicos impostos por orgãos, poderes e instâncias que, sem nenhuma referência aos príncipios de verdade, justiça e liberdade, detêm o poder efectivo de lavrar códigos que reflictam, na esfera nacional, o que rigorosamente se estipula na ordem internacional. Noutras palavras, aqueles orgãos, poderes e instâncias traduzem-se sobretudo nas diversas agências que constituem a Organização das Nações Unidas, ou, se quisermos, na superpotência global e transnacional implícita nas concepções dogmáticas já teoricamente adoptadas por Manuel Kant e Hans Kelsen.

A «Disciplina de Filosofia» é, nessa matéria, bem explícita ao considerar que a simples existência de Estados que, à partida, se permitam não acatar, adoptar ou respeitar as normas e os direitos consagrados pela ONU, sujeitam-se imediatamente a serem acusados de violadores dos “direitos humanos” (29) e, por consequência, a serem prontamente julgados por tribunais internacionais cuja finalidade é, para todos os efeitos, perseguir todos aqueles que não adiram aos ditames da nova sociedade global (30). De modo afim, encontram-se os parlamentos nacionais submetidos à trama das vontades que se aglomeram em torno das organizações supranacionais, a começar pelos 28 comissários não-eleitos do orgão executivo da União Europeia, e a culminar nos burocratas das Nações Unidas e numerosas ONGs envolvidas na teia opressora da “lei internacional”. Entretanto, há até quem se tenha referido à face oculta da ONU (31), conforme nos informa Olavo de Carvalho (32), a quem, por seu turno, invocaremos com vista a uma melhor compreensão do que, visando a radical transformação da humanidade, significa a hodierna concentração do poder à escala mundial:

«Com grande freqüencia vejo liberais e conservadores repetindo os slogans mais estúpidos do globalismo, como por exemplo o de que certos problemas – narcotráfico, pedofilia, etc. – não podem ser enfrentados em escala local, requerendo antes a intervenção de uma autoridade global. O contransenso dessa afirmativa é tão patente que só um estado geral de sonsice hipnótica pode explicar que ela desfrute de alguma credibilidade. Aristóteles, Descartes e Leibniz ensinavam que, quando você tem um problema grande, a melhor maneira de resolvê-lo é subdividi-lo em unidades menores. A retórica globalista nada pode contra essa regra de método. Ampliar a escala de um problema jamais pode ser um bom meio de enfrentá-la. A experiência de certas cidades americanas, que praticamente eliminaram a criminalidade de seus territórios usando apenas seus recursos locais, é a melhor prova de que, em vez de ampliar, é preciso diminuir a escala, subdividir o poder, e enfrentar os males na dimensão do contato direto e local em vez de deixar-se embriagar pela grandeza das ambições globais» (33).

Na verdade, para que ocorra, no limite do possível, a concentração do poder mundial, torna-se indispensável a internacionalização do ensino. E quem melhor dá conta desse mesmo processo é, sem dúvida, Álvaro Ribeiro, sobretudo quando alude ao carácter predominantemente positivista e sociológico das publicações da UNESCO:

«A proliferação de estudos sociais e de estudos sociológicos, em todo o hemisfério designado por ocidental, com a multiplicação de gabinetes, centros, institutos, faculdades e outras escolas, acusa uma tendência doutrinária que me parece perigosa na medida em que tende a minimizar, ou a minorar, os estudos de psicologia. A sociologia sem psicologia conduz à inversão, e portanto à falsificação, dos métodos explicativos e racionais. Ora a UNESCO está impregnada deste sociologismo tão internacionalista como abstracto, contra o qual não podem deixar de opor-se todos os intelectuais religiosos e todos os intelectuais espiritualistas que meditem sobre o destino transcendente da Humanidade» (34).

Ora, retomando a pertinente questão dos “direitos humanos”, digamos, pois, que o referido «sociologismo tão internacionalista como abstracto» é, de facto, uma constante quando nos predispomos a percorrer a complexidade de estudos, comissões, projectos, sessões e grupos de trabalho destinados a formular, estabelecer e documentar os direitos e liberdades fundamentais do homem tal como ideologicamente estipulados pela Organização das Nações Unidas. E assim é porque, se numa primeira instância se nos afigura perfeitamente legítimo o reconhecimento, no homem, de certos direitos naturais cuja perpetuidade e inviolabilidade não têm um fundamento positivo (35), e, desse modo, não assentam numa ideologia com origem determinada num pernicioso instrumento de dominação internacional – como é o caso da ONU –, numa segunda instância parece-nos incrivelmente abusiva a tipologia infindável de direitos cujo imperativo categórico na ordem do direito internacional significa, acima de tudo, a imposição a todos os indivíduos e a todos os povos de uma nova e proclamada administração política, social e económica mundial. Dito de outra forma, estamos perante um falso e abstracto universalismo com origem determinada no mundo, por contraposição ao universalismo garantido na ordem da transcendência divina, e, por conseguinte, jamais subordinado a um certo instante do tempo e a um certo ponto do espaço (36).












A presumível universalidade subjacente aos direitos cívicos, políticos e económicos de que devem gozar, com base na organização jurídica prevista, todos os membros da sociedade global unificada, são, para darmos alguns exemplos, o direito de salário igual por trabalho igual, o direito ao repouso e aos lazeres, o direito à segurança social, o direito ao bem-estar numa sociedade democrática, o direito ao protesto pacífico e assim por diante. Aliás, a ficção jurídica decorrente dessa aparente e abstracta universalidade manifesta-se logo na evidente limitação, ausência ou inexistência do “gozo dos direitos” pressupostos nessa mesma universalidade, uma vez sabido que a sua virtualidade depende inteiramente dos recursos que, não obstante os apregoados mecanismos de cooperação internacional, cada Estado tem efectivamente ao seu dispor. Por isso, uma vez escassos ou insuficientes esses recursos (37), queda apenas um enunciado internacional dos "eternos princípios", em função do qual emerge, em claro sinal de regressão civilizacional, a eliminação já antevista de entidades reais intermediárias até há pouco tempo denominadas nações e pátrias.

«Nenhum povo – diz-nos ainda Álvaro Ribeiro – toma consciência de que está inferiorizado, de que se aceita como inferior, quando lhe dizem que ele será igual aos outros no dia em que deixar de seguir pelos caminhos que foram tradicionalmente os seus.

Abrindo as suas fronteiras a todas as influências doutrinárias, o povo inferiorizado acolhe de braços leais os estrangeiros, disposto a ouvir com séria reverência todas as lições dos conferencistas, as comunicações dos congressistas, as observações dos turistas, para concordar que, relativamente ao pormenor discutido ou discutível, está atrasado e precisa de convergir para o ideal universalista e uniformista. Em casos de maior hospitalidade, o povo disposto a aperfeiçoar-se convida o estrangeiro a exercer funções docentes no país, e mostra-se muito grato por tal favor. Eis que logo os estrangeiros se apressam a propor, e a impor, os seus sistemas de ensino, com métodos especiais para fins especiais, quer apresentando paradigmas que as novas escolas imitam, a fim de que os respectivos diplomas tenham validade internacional, quer organizando internatos e externatos pelos quais afastam os alunos das doutrinas tradicionalmente ensinadas pelos pais e pelos avós. Este processo de assimilação intoxica os povos que se consideram inferiores.

Estrangeiro, imigrante ou turista é quem não nos entende, embora possa chegar a falar e a escrever perfeitamente o português, como se fosse um nacional. Assim procede até a maioria daqueles que a crítica literária designa com o nome fugidio de ensaístas, porque, portadores de uma mentalidade exótica, são pródigos em tentativas de exprimir, comunicar e persuadir.

Depois das escolas, também as profissões hão-de ser submetidas à uniformização técnica já considerada de valor internacional, mas quantas vezes sem respeito pelo estilo e pela arte que deram grandeza ao povo, em obras que os mesmos estrangeiros adquirem para guardarem nos museus dos seus países. Desenhadores e pintores, que não estudaram os princípios tradicionais, permutam a subjectividade do estilo com a objectividade da técnica, e propõem à indústria os modelos mais feios, mais contrários às elementares condições do comércio.

Esta organização internacional dos mesteres, dos ofícios e das artes, com seus congressos legislativos e executivos, aparece maculada por um espírito de classe que em tudo se opõe à alma nacional. Na convicção que do estrangeiro surgem os produtos industriais de maior perfeição técnica, entram por cima das alfândegas e das fronteiras, em franco trânsito liberal, milhares de coisas portadoras de sinais opostos e de valores contrários tanto à cultura tradicional do país como ao estilo próprio do povo. Não observam os ingénuos que no comércio internacional se opera uma das formas mais subtis de incursão e de invasão por denominador comum, e só ficam alarmados quando comparam os números da importação e da exportação, ou traduzem esses números para valores da moeda nacional» (38).

Por estrangeiro subentenda-se, na propriedade terminológica alvarina, o que é estranho à cultura e às virtudes do povo português. E já, agora, não se aponte, nas sobreditas palavras de Álvaro Ribeiro, para o contexto temporal em que foram patrioticamente escritas, uma vez que a argumentação tradicional que por elas espiritualmente perpassa supera a fundamentação histórico-geográfica, porque justamente conferida pela significação filosófica realizada em nome de Portugal. E assim sendo, também em nome do mundo em forma armilar.




Todavia, eis que, a par da implantação de uma arquitectura mundial regida por uma gama infindável de declarações, “sugestões” e medidas draconianas proferidas e implementadas por grupos de peritos internacionais, temos já perante nós aquele arrepiante cenário forjado no plano descendente dos “novos direitos humanos”, frequentemente discutidos e, alfim, aprovados na sede nova-iorquina das Nações Unidas. Referimo-nos, como é óbvio, ao aborto, à eutanásia e à panóplia de pseudo-definições contidas na vulgarmente denominada “identidade ou ideologia de género” (39). Consequentemente, estes “novos direitos humanos” já constituem, de per si, uma cabal distorção da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, visto comprometerem o sentido ético e antropológico dos direitos naturais do homem ainda formalmente presentes naquela mesma Declaração.

Ora, uma vez delineada como «ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações», uma tal Declaração, a partir do momento em que, absurda e inusitadamente, inclua aqueles “novos direitos humanos” que nunca couberam ou poderiam caber na noção formalmente racional dos direitos naturais do homem, limita-se apenas a ser um documento de direito positivo arbitrariamente inventado. Depois, nessa condição pouco ou nada atendida por quem de direito, eis que surge mais uma nova versão de “direitos humanos” que, no que imoralmente implicam, exigem e proclamam, subvertem os mais altos princípios éticos e espirituais dos diferentes povos, nações e culturas em vias de extinção. Entretanto, toda a nação que doravante se atreva a recusar os “novos direitos” da humanidade dolorida, terá, pois, que se haver com uma jurisdição permanente universal cujo móbil seja, em termos sobejamente exemplares, condenar e punir as supostas “infracções” à emergente “cultura da morte”.



A Igreja Católica e a nova arquitectura mundial 


Infelizmente, a Igreja Católica tem-se mostrado, em várias e determinadas ocasiões, incapaz de lidar convenientemente com a transgressão maligna dos direitos naturais do homem. Logo, se, por um lado, atendermos à eleição do Patriarca de Veneza, Albino Luciani – o “Papa do Sorriso”, também conhecido por João Paulo I (40) –, que estaria, possivelmente, na base de uma abertura da política do Vaticano ao controlo da natalidade (41) conforme prescrito pelo Fundo Populacional das Nações Unidas (42), e, por outro lado, transitarmos à exortação feita pelo Papa Bento XVI no sentido de ver reconhecida «uma verdadeira Autoridade política mundial, delineada já pelo [seu] predecessor, o beato João XXIII» (43), é então caso para afirmar que estamos, de facto, perante uma convergência multilateral de esforços com vista a uma interdependência global inédita na história da humanidade. E inédita porque inevitavelmente totalitária, não obstante ser-nos frequentemente apresentada em nome do bem comum decorrente da estrita observância dos princípios de subsidiariedade e solidariedade.

Com isto, não queremos, de modo algum, dizer que existe duplicidade ou má-fé por parte da Igreja Católica, embora já o mesmo não possamos admitir, por tudo o que temos visto até aqui, quanto às forças, poderes e entidades que estão na origem e no ulterior desenvolvimento da ONU. No caso de Bento XVI, «a urgência de uma reforma, quer da Organização das Nações Unidas, quer da arquitectura económica e financeira internacional», significa o seguinte: num primeiro plano, que diríamos puramente académico, Bento XVI limita-se a tecer puras considerações abstractas sobre um hipotético mundo que não existe nem jamais existirá no contexto da globalização em curso, principalmente ao apelar «para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações»; num segundo plano, Bento XVI, por mais incrível que pareça, mostra ignorar que a arquitectura mundial hodierna, nas suas mais complexas e fundas conexões, busca precisamente a eliminação de toda e qualquer nação enquanto elemento naturalista que apela para a vinculação espiritual à Pátria. Por outras palavras, a sua não inteira compreensão de como efectivamente actuam, na ordem terrena, os poderes das trevas, revela uma profunda ironia relativamente a quem, questionado sobre a obra da Igreja na sua relação com o destino de Cristo, invocara as inquietantes palavras do Filho de Deus: «Envio-vos como ovelhas para o meio dos lobos», e «sereis perseguidos» (44).

Neste ponto, ficamos até com a impressão de que a Igreja Católica está, infelizmente, condenada a prosseguir por aquela linha de transformação revolucionária que, na senda do Vaticano II, alterou, decerto, a substância dos seus ritos, da sua liturgia e do seu património doutrinal. No fundo, é a concomitante convicção de que a reforma das verdades da fé e, por consequência, a da sociedade temporal, colocará a Igreja na vanguarda das grandes transformações políticas, económicas e culturais, para assim poder, em espírito de contradição com a Doutrina Católica e a Revelação Divina, adaptar-se às vicissitudes incertas, fugazes e caducas da presente temporalidade. Numa palavra, é o aggionarmento enquanto objectivo central do Vaticano II, que consiste na “actualização” ou “modernização” da Igreja Católica em vista de um preconizado ecumenismo (45) que, no seu decurso, tem já procedido à dessacralização do sacerdócio, bem como à crença de que mundanas formas da democracia parlamentar são adequadas para a participação alargada na vida eclesiástica, na Igreja universal, nas dioceses e nas paróquias.




Paulo VI nas Nações Unidas










Apesar de tudo, seria o Papa Paulo VI quem praticamente consolidaria esta etapa evolutiva e transformativa da Igreja Católica Romana, para o que não fora certamente alheio o seu percurso enquanto substituto da Secretaria de Estado do Vaticano. Aliás, quando ainda jovem, teria sido «chamado à Secretaria de Estado e nomeado assistente eclesiástico da FUCI (Federação Universitária dos Católicos Italianos), uma actividade que o ocupou intensamente, mas da qual foi afastado pela orientação que deu à formação dos jovens, em especial pela sua concepção litúrgica “inovadora” e por uma acentuada tendência para a “politização” dos jovens» (46). Seja como for, tratemos de ver, ainda nas palavras de Roberto de Mattei, quais foram as notadas suspeitas que rodearam a sinistra figura de Giovanni Battista Montini, uma vez nomeado, em 1954, arcebispo de Milão, «embora sem o chapéu cardinalício»:

«A promoção foi, na realidade, uma “despromoção”, cujos motivos ainda hoje não são claros. Segundo alguns, Mons. Montini esteve envolvido na traição do Padre Alighiero Tondi (47); de acordo com o Cardeal Siri, foi enviado para Milão na sequência do juízo negativo de uma comisão secreta criada por Pio XII que tinha perdido a confiança no substituto pelo facto de este proteger o presidente da Acção Católica, Mario Rossi, que se batia por uma Igreja empenhada à esquerda; por sua vez, o Cardeal Casaroli confiou a Andrea Tornielli que as relações do Papa com o seu principal colaborador “começaram a deteriorar-se substancialmente devido aos contactos de Montini com os ambientes da esquerda da política italiana, estabelecidos sem o conhecimento de Pio XII”. Do epistolário de Mons. Montini com o Padre Giuseppe de Luca pode concluir-se que, através do sacerdote romano, o substituto mantinha contactos com os católicos comunistas e com alguns sectores do PCI. Por sua vez, Andrea Riccardi recorda que algumas nomeações de bispos da Lituânia, feitas de maneira “senão misteriosa, pelo menos nebulosa”, tinham dado lugar a boatos sobre infidelidades de Montini nas questões soviéticas, boatos que remontam a um “relatório secreto” de Claude Arnould, coronel francês católico e anticomunista, que tinha sido encarregado de investigar a passagem de informações reservadas da Secretaria de Estado aos governos comunistas do Leste. Arnould tinha atribuído a origem das fugas a Mons. Montini e à sua entourage, lançando o alarme no Vaticano. Andrea Tornielli trouxe à luz alguns documentos que parecem provar a credibilidade de Arnould, o qual gozava da total amizade e confiança do Cardeal Tisserant e circulava nos níveis mais elevados do Estado e da Igreja em França» (48).

É sabido que Paulo VI, referindo-se à crise espiritual da Igreja, descrevera a existência de «dúvidas, incertezas, problemáticas, inquietações, insatisfações e confrontos» mediante a «sensação de que o fumo de Satanás entrou dentro do templo de Deus por alguma fissura». Porém, se atendermos ao discurso que Paulo VI proferira, a 5 de Outubro de 1965, na Organização das Nações Unidas, no decorrer do qual elogiou a instituição globalista como o «ideal com que a humanidade sonha através da sua peregrinação no tempo», ele próprio daria, sem dúvida, um excelente acólito de Satanás. Além disso, Paulo VI diria ainda que a ONU era parte do «desígnio de Deus», o que não seria de estranhar numa criatura para quem entregar museus e palácios do Vaticano à UNESCO significava um preconizado afastamento em relação às riquezas deste mundo.

Curiosamente, costuma dizer-se que os Cavaleiros da Ordem do Templo teriam acumulado uma grande riqueza cobiçada pela ambição de Filipe, o Belo, o qual, conjugado com o Papa Clemente V, ter-se-ia apropriado dessa riqueza mediante a condenação dos Templários. Todavia, a questão parece não ser simplesmente de ordem material, mas antes e, acima de tudo, de natureza profundamente espiritual, se, no presente caso, atendermos ao projecto fundamental da Ordem do Templo, que seria a constituição de um império universal teocrático justamente assente na transformação secreta das principais estruturas históricas do seu tempo. É, de resto, interessante a forma como Juan G. Atienza, sondando a história oculta do templo na Idade Média Peninsular, reconhece como um tal projecto acabaria por implicar, da parte dos poderes então constituídos – reinos, monarquias e Igreja Católica –, a condenação e abolição da Ordem Templária que, no fundo, mais não seria do que a condenação e abolição de um poder universal realizável a longo prazo. Eis as suas palavras:

«Poderíamos, por acaso, imaginar, aqui e agora, as intenções reais de organizações como a CIA, de certas seitas integralistas ou de algumas empresas multinacionais, sem despertar um sentimento generalizado de protesto e recusa perante o que poderia determinar o fim definitivo e irreversível de estruturas que cremos que nos regem? Não existe a menor dúvida, e hoje mesmo estamos a vivê-lo na nossa história próxima, de que o mundo subsiste imerso em corporativismos de todo o tipo, através dos quais as diversas classes sociais se imaginam protagonistas do seu próprio devir. Se estas classes, aparentemente autóctones, forem ameaçadas com a aniquilação em nome de uma suposta ordem universal, que necessariamente anularia de raiz os pequenos poderes nacionais, gremiais, institucionais e políticos, sobre os quais se estruturam os nossos projectos existenciais e políticos, podemos estar seguros de que todas, ou a maior parte delas, se uniriam para que tal eventualidade nunca se tornasse possível» (49).

Sé Catedral de Silves







Castelo de Silves. Ver aqui e aqui




Cruz de Portugal. Ver aqui




Entretanto, ocorre aqui sublinhar o seguinte: nos dias de hoje, o nacionalismo surge praticamente condenado pelos poderes locais, regionais e mundiais, apostados em substituí-lo por um universalismo assente na gestão tecnocrática do planeta; depois, a noção de um império medievo espiritual, quer fosse de natureza teocrática ou predominantemente hierocrática, estava igualmente presente na arquitectura edificante da Igreja, porquanto dotada de um travejamento teórico meditado e diversamente interpretado no século de Álvaro Pais, o bispo aristotélico (50) de Silves que lograra, afinal, converter a dignidade moral do Papado numa superioridade política, jurídica e espiritual (51) face ao poder temporal do imperador.

É, todavia, um facto que deparamos, na actualidade, com uma realidade profundamente hostil ao firmamento espiritual da Cristandade, ademais operativa nalguns círculos da Santa Sé, como, aliás, convém ao globalismo invasor. Nesta base, comecemos, pois, por referir o rol de figuras que começaram a frequentar a Casina Pio IV (52), entre as quais surgem líderes de organizações não governamentais, especialistas universitários, economistas, sociólogos, informáticos, consultores políticos e tutti quanti. E, na sequência disso, ponhamos, por alguns momentos, toda a nossa atenção na organização de um worshop no Vaticano intitulado O Tráfico de seres humanos: uma escravatura moderna, realizado a 2 e 3 de Novembro de 2013, em colaboração com a Academia Pontifícia das Ciências e a Academia Pontifícia das Ciências Sociais.

Em primeiro lugar, ficámos a saber, através de Nello Scavo, que o Papa Bergoglio, por ocasião do citado workshop, estaria particularmente a par dos conteúdos e da finalidade do que ali fora debatido e declarado, sendo até, «segundo se confirma da Casina Pio IV, “o elemento principal”» (53). Em segundo lugar, ficámos também a saber que a necessidade de suprimir o tráfico de seres humanos em todas as suas formas, nomeadamente o tráfico para fins de exploração sexual e de prostituição, constitui um objectivo a ser essencialmente perseguido na ordem do direito internacional, a que estarão submetidos todos os líderes do mundo. Em terceiro lugar, foi-nos, entretanto, dado a conhecer, com base num documento final aprovado pelos estudiosos convocados pela Academia Pontifícia das Ciências Sociais, um primeiro elenco de “sugestões” expressamente dirigidas ao Vaticano para que assumisse como imperativo moral «tornar a nossa geração na última que tenha de combater o comércio de vidas humanas». Vale, pois, a pena transcrevê-las aqui, para melhor intuirmos como a Santa Sé se está a deixar comprometer numa rede infindável de convenções, tratados e protocolos internacionais que, para todos os efeitos, já concentram, de facto, a multiplicidade de poderes nacionais e locais num poder mundial iminente:

«1. Que [a Santa Sé] assine e ratifique a Convenção da ONU de 1949 para a repressão do tráfico de seres humanos e da exploração da prostituição;

2. Que assine e ratifique o Protocolo da ONU de 2000 sobre a prevenção, supressão e perseguição do tráfico de seres humanos, particularmente de mulheres e crianças (“Protocolo de Palermo”);

3. Que ratifique a Convenção do Conselho da Europa de 2005 sobre a luta contra o tráfico de seres humanos;

4. Que se empenhe para que as Missões permanentes da Santa Sé junto das organizações internacionais insistam na urgência de uma estratégia global contra o tráfico de seres humanos [o negrito é de nossa autoria];

5. Que encoraje a ratificação da Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes (18 de Dezembro de 1990) e a Convenção sobre o Trabalho Digno para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos da OIT (16 de Junho de 2011) e recomende a inclusão dos trabalhadores domésticos e agrícolas nas normas sobre o trabalho a nível nacional;

6. Que promova um movimento que assegure o empenho da Igreja Católica e de todos os homens e mulheres de boa vontade em deter o tráfico de seres humanos e a prostituição; isto deve ser afirmado nos termos mais claros e decisivos que lhe seja possível;

7. Que encoraje as ordens religiosas masculinas a colaborar com as ordens religiosas femininas para aliviarem imediatamente o sofrimento das vítimas de tráfico e, a longo prazo, a sua exclusão social» (54).






Casina Pio IV




Em último lugar, foi-nos igualmente dado a conhecer um segundo elenco de “sugestões” prontamente dirigido às organizações internacionais, que passam então a ser «convidadas a sublinhar “com ênfase que o tráfico de seres humanos é fundamentalmente um crime contra a humanidade” e a inserir “o fim do tráfico de seres humanos como ponto específico nos objectivos do desenvolvimento global desde 2015 [o negrito é de nossa autoria]». Ora, neste patamar, coragem e franqueza «estão entre as unidades de medida do pontificado», porém insuficientes «sem boa vontade e criatividade». E, assim sendo, o que virá a seguir? Ora bem: virá «uma proposta que os grandes meios de comunicação descuraram, mas que já está a ter um impacto concreto no debate entre governos, organizações não governamentais, agências da ONU e redes de investigação como a Interpol: o pedido de introduzir no registo de nascimento “a obrigação de incluir a identificação através do ADN em caso de risco de necessidade”. Por outras palavras, um banco mundial de dados com o perfil genético de milhões de pessoas» (55).

Aqui, o ponto essencial não é, como afirma Nello Scavo, tratar-se de uma simples «proposta que fará torcer o nariz aos liturgistas do dogma da privacidade». É, antes de mais, a criação de uma base mundial de dados genéticos a partir da qual decorre o controlo de elementos ou “núcleos da personalidade” equiparados a tantos outros dados de origem biológica. Esta questão ultrapassa, portanto, o mero debate académico sobre a necessidade de se proteger todos os princípios éticos e jurídicos relativos à privacidade das pessoas, uma vez que, face à unificação tecnológica dos vários e infindáveis aspectos da vida humana à escala mundial, tudo será disposto para monitorar e identificar pessoas na base de outros fins que não os previamente estabelecidos, venham eles sob a designação do combate ao tráfico de seres humanos, à criminalidade e ao “terrorismo” (56). Apesar disso, combater tais males na esfera da cooperação internacional poderá ser naturalmente legítimo, desde que estejam preservadas as esferas de autonomia e autoridade nacionais que estão na base da independência e da soberania dos povos.



Notas:

(1) É neste âmbito que assume particular relevância o projecto estritamente confidencial denominado War and Peace Studies, financiado pela Fundação Rockefeller.

(2) Alger Hiss foi acusado de ser um espião soviético a 3 de Agosto de 1948, e condenado, por perjúrio, a 5 anos de prisão, a 25 de Janeiro de 1950. Ainda antes da condenação de Alger Hiss, o Presidente Harry Truman chegara a receber informação fidedigna de que a sua Administração estaria infiltrada de agentes soviéticos. Aliás, em 1945, já J. Edgar Hoover avisara o Presidente de que Harry Dexter White, um alto funcionário do Departamento do Tesouro, passara segredos de Estado para a União Soviética durante a II Guerra Mundial.

Por sua vez, a Administração de Franklin D. Roosevelt estava tão minada de agentes soviéticos que Duncan Lee, o assistante pessoal do director do Office of Strategic Services (OSS), William J. Donovan, espiava igualmente para o maior inimigo dos Estados Unidos. E, no lance, FDR ordenara que se entregasse à embaixada soviética um manual de código da polícia secreta da URSS (NKVD), obtido pelo Office of Strategic Services (OSS). Não é, pois, de admirar que persistissem centenas de espiões soviéticos no governo americano e nem um único agente da OSS em Moscovo.

Todavia, estes factos continuam, especialmente dentro mas também fora dos Estados Unidos, a serem escamoteados pelo establishment universitário e mediático. E, em contrapartida, patriotas como Whitaker Chambers, o senador Joseph McCarthy e J. Edgar Hoover permanecem alvo de chacota e fundo desprezo em virtude de terem procedido contra a penetração comunista soviética em toda a sociedade norte-americana e seu respectivo governo.

(3) A Sociedade Fabiana, fundada a 4 de Janeiro de 1884, deve o seu nome ao cônsul romano Quinto Fábio Máximo, o Cunctator, que significa “Lento”, “Precavido” ou “Retardador”. Assim, nas palavras de F. Podmore: «É preciso saber esperar pelo momento oportuno, como Fábio pacientemente fez na sua luta contra Aníbal, apesar das críticas que recebeu pela sua lentidão. Quando chegar o momento, será necessário atacar como fez Fábio».

Quanto ao objectivo desta sociedade, cujas bases teóricas foram definidas nos Fabian Essays in Socialism (1889) por George Bernard Shaw, Sydney Webb e Annie Besant, entre outros, consiste ele no triunfo do socialismo internacional mediante a dominação dos meios de comunicação globalmente influentes, assim como na formação de quadros e criação de centros em múltiplas universidades de prestígio mundial, entre as quais se destacam as de Oxford, Cambridge, Harvard, Princeton e Columbia. Além disso, entre as suas criações mais representativas estão, por um lado, a célebre e influente London School of Economics, fundada em 1895, e, por outro, o Partido Trabalhista, fundado em 1906, devido ao fracasso resultante da tentativa de alcançar o socialismo dentro dos partidos até então tradicionais na Grã-Bretanha. No mais, a táctica gradual e subversiva da Sociedade Fabiana nos domínios da legislação e da propaganda política não fora impeditiva das boas relações com Lenine e Trotsky, bem como no apoio à Frente Popular durante a Guerra Civil de Espanha.






















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Curiosamente, chegaram a ser membros da Sociedade Fabiana figuras do Terceiro Mundo, como Pandita Nehru, o que explica o seu procedimento quanto à nacionalização de sectores vitais da indústria, dos transportes, das telecomunicações, entre outros mais. E não por acaso fora ainda Annie Besant sua mentora, igualmente filiada na Sociedade Fabiana, e ademais figura de proa do Congresso Nacional Indiano. Em suma: o socialismo fabiano alargou de tal forma os seus tentáculos pelos quatro cantos do mundo, que não é de estranhar ter efectivamente estado quer na origem do socialismo árabe no Iraque e na Síria, quer do projecto de socialização da economia de Benito Mussolini, a que se junta ainda o caso paradigmático do Welfare state enquanto forma progressiva de ataque à propriedade e à consequente panóplia de alternativas socializantes balizadas no sistema público de saúde, no “ensino gratuito”, nos subsídios de desemprego e em tantas outras medidas apregoadas em nome da justiça social.

(4) O texto ou documento subjacente a este projecto fora apresentado algumas semanas depois da abertura da Conferência de Paz de Paris, que se prolongara de 18 de Janeiro de 1919 a 20 de Janeiro de 1920. Esta Conferência contara com a presença de 70 delegados representando 25 países, pelo que o principal documento produzido fora efectivamente o Tratado de Versalhes, assinado a 28 de Junho de 1919, no qual constavam os termos da paz impostos às nações derrotadas.

(5) O CFR, cujo quartel-general encontra-se sedeado em Nova Iorque, é uma “ramificação” do Royal Institute of International Affairs (RIIA), instituído em Londres, em 1919, e também designado por Chatham House. A organização do RIIA, realizada no contexto da Conferência de Paz de Paris, principalmente aquando de um jantar no Hotel Majestic, no qual participaram poderosos grupos da finança, da indústria e do establishment universitário, esteve a cargo de uma delegação de peritos ingleses e americanos liderada por Lionel George Curtis, um dos arquitectos, com Alfred Milner, de uma rede de organizações – o Round Table movement (1909) - apostada numa estreita união entre a Inglaterra e suas possessões ultramarinas. No seu livro de 1938, The Commomwealth of God, Curtis advogara a criação de uma federação imperial britânica propensa a anexar os Estados Unidos, e, nessa medida, convenientemente apresentada às igrejas protestantes do Novo Mundo como fazendo parte de um desígnio da obra de Deus. Segundo Curtis, esta federação imperial britânica seria a estrutura de base para a implementação de um governo mundial.

De resto, The Round Table: The Commonwealth Journal of International Affairs, inicialmente subintitulado A Quarterly Review of the Politics of the British Empire, fora especialmente fundado, em 1910, pelo então ex-Alto-Comissário da África do Sul, Lord Milner, e seus associados: Lionel Curtis, Philip Kerr e Geoffrey Dawson. Aliás, a superioridade que Lord Milner imputava à raça anglo-saxónica supunha, antes de mais, uma aristocracia convicta da sua inteligência e poder criador quanto ao desenvolvimento dos assuntos da humanidade, e, portanto, inteiramente devotada à salvaguarda de princípios e valores profundamente estranhos a classes e populações analfabetas, quando não mesmo à democracia que lhes estaria eventualmente subjacente. Logo, assim se explica que Milner, Primeiro Vigilante da Grande Loja Unida de Inglaterra e membro de uma ordem de cavalaria bretã – a Nobilíssima Ordem da Jarreteira -, se apresentasse como um nacionalista apostado na posição insular britânica fortemente imperialista.

Convém relembrar que também John Ruskin, um crítico de arte inglês que exercera profunda influência em Cecil John Rhodes na Universidade de Oxford, advogara a necessidade de existirem alguns homens cuja superioridade se impunha em relação aos demais. Daí o seu ideário relativo a uma elite ou classe dirigente apta a governar sob os auspícios de um socialismo autocrático inspirado na República de Platão e nos escritos de Marx, Engels, Proudhon e Saint-Simon. E daí igualmente o projecto não menos autocrático do seu discípulo, Cecil Rhodes, que consistira na subordinação de todos os povos do mundo a uma federação dos povos de língua inglesa.

Compreende-se assim que o magnata, colonizador e homem de negócios britânico – além do mais um dos principais fundadores da companhia envolvida na mineração e comércio de diamantes, a célebre De Beers, originalmente financiada por Lord Rothschild e Alfred Beit –, deixasse uma parte considerável da sua fortuna para a realização daquele projecto que pressupunha, inclusive, a construção do caminho-de-ferro que ligaria o Cairo, no Egipto, ao Cabo, na África do Sul. Por conseguinte, a Rhodes Scholarship é precisamente a designação da bolsa de estudo que, no fundo, permitiria, na visão do seu patrocinador, salvaguardar a classe dirigente inglesa na sua passagem de testemunho a todos os povos do mundo. Por outro lado, tendo ainda sido membro de uma loja maçónica integrada na Universidade de Oxford – a Apollo University Lodge N.º 357 –, Cecil Rhodes aproveitaria esta sua experiência para superar ou colmatar as insuficiências da maçonaria inglesa mediante a criação, em 1891, de uma sociedade secreta destinada a fazer prevalecer o domínio britânico sobre o resto do mundo – a mesma que estaria na base do já referido Round Table movement, arquitectado por Lionel Curtis e Alfred Milner.






(6) O CFR começou por estar intimamente ligado aos Rockefeller, Morgan, Aldrich, Baruch, Warburg e Lippmann, a principal elite de banqueiros internacionais que estivera na origem, em 1913, do estabelecimento da Reserva Federal dos Estados Unidos. Quanto aos propósitos dessa elite na intrumentalização de guerras com vista a um governo totalitário mundial, aconselha-se vivamente a leitura do livro de G. Edward Griffin, The Creature from Jekyll Island, publicado em 1994. Aliás, um outro factor que, a seu modo, estaria ainda na origem do CFR, perfilar-se-ia, em 1917, num grupo de académicos de Nova Iorque ao qual fora especialmente solicitado, pelo Presidente W. Wilson, um variado leque de opções para a política externa estadunidense. Assim, originalmente aberto a estudiosos e diplomatas anglo-americanos, alguns dos quais pertencentes ao Movimento da Távola Redonda, aquele grupo de académicos daria lugar, em Junho de 1918 e por intermédio do secretário de Estado americano Elihu Root, a um aglomerado internacionalista constituído por 108 industriais, advogados e homens da banca que, por fim, culminaria, em 1921, no CFR.

(7) Entre estes membros contavam-se, por exemplo, Harold Strassen, Nelson Rockefeller, John Foster Dulles, Dean Acheson e o futuro arquitecto do Fundo Monetário Internacional (FMI), Harry Dexter White.

(8) Uma das críticas inicialmente feitas ao Plano Marshall, especialmente da parte do senador Robert Taft do Ohio, entre outras personalidades ligadas à ciência económica não-intervencionista, era a de que um tal plano iria necessariamente forçar os contribuintes americanos a pagar e subsidiar as políticas socialistas levadas a cabo por governos europeus, tais como a nacionalização de indústrias, o planeamento central, o controlo de preços e salários, restrições comerciais, excesso de regulação, desvalorização monetária, enfim, tudo o que a Europa jamais precisava a fim de poder recuperar de uma guerra devastadora.

Pese embora bem orquestrado nos termos de uma operação humanitária destinada a aliviar a fome, o sofrimento e a devastação causadas pela guerra, o Plano Marshall, também conhecido como Programa de Recuperação Europeia, acabaria assim por suscitar enormes obstáculos no Congresso dos Estados Unidos, em razão do ónus atribuído aos contribuintes americanos. Não obstante, um expediente fora oportunamente encontrado para levar avante um tal Programa de Recuperação Económica: a imperiosa necessidade de proteger a Europa Ocidental da ameaça comunista. E eis que, no lance, nascia a Doutrina Truman, apostada em defender o mundo livre da expansão do comunismo.

Como tal, o expediente surtiu grande efeito, permitindo que fossem aprovados pelo Congresso cerca de 13 biliões de dólares para o Plano Marshall, complementado por outras dezenas de milhares de milhões para inúmeros programas de reconstrução económica na Europa. Só entre 1945 e 1953, estiveram em jogo mais de 43 biliões de dólares que o Governo dos Estados Unidos canalizou para o Velho Continente, onde vingou o socialismo mediante inúmeros programas governamentais e monopólios estatais que assim engoliram os fundos astronómicos disponíveis.

(9) Os serviços secretos dos EUA foram, em grande medida, responsáveis pela usurpação da autonomia económico-política das soberanias nacionais da Europa. O respectivo intuito estivera, portanto, na criação de uma “União Atlântica” resultante de uma fusão entre a Europa e os Estados Unidos, mais recentemente impulsionada aquando das negociações, em Julho de 2013, referentes ao Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Como tal, foi Washington que sempre estivera na base da integração europeia desde finais de 1940, dado tê-la secretamente financiado sob as Administrações de Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson e Nixon.

Os “Estados Unidos da Europa” foi também um projecto da Agência Central de Inteligência (CIA), embora já anteriormente preconizado pelo Office of Strategic Studies (OSS), que fora, de sua banda, o serviço de inteligência precursor do Central Intelligence Group (CIG), estabelecido pelo presidente Truman, a 22 de Fevereiro de 1946, e finalmente convertido na CIA vinte meses depois. Aliás, não fora por acaso que o antigo responsável do OSS, o General William J. Donovan, tenha, de facto, assinado um memorando que seria desclassificado em 1950, onde se detalham as instruções para a criação de um “Parlamento Europeu” a impor aos povos e nações da Europa. Além disso, os serviços secretos americanos, em estreita colaboração com o Departamento de Estado, também se articulariam e trabalhariam intensamente para que a Inglaterra, desde sempre orgulhosa da sua independência nacional, se tornasse parte da futura confederação europeia.









A 4 de Julho de 1962, o Presidente Kennedy, retomando e prosseguindo a agenda globalista, referir-se-ia à projectada “União Atlântica” nos termos que se seguem: «Direi aqui e agora, em pleno Dia da Independência, que os Estados Unidos estarão prontos para a Declaração da Interdependência, e que nós estaremos preparados para discutir com a Europa unida os meios e caminhos aptos a formar uma Aliança Atlântica efectiva, mutuamente benéfica para a nova união agora emergente na Europa e a velha União Americana». E mais adianta: «O Acordo Atlântico de que falo não se configura apenas a si próprio, à sua acção social e progresso. Deverá antes projectar-se em cooperação com todas as nações que partilham preocupações em comum. Deverá assim tornar-se num núcleo para a eventual união de todos os homens livres – dos que já o são e de todos aqueles que esperam vir a sê-lo».

(10) Ainda antes de ter proferido o seu discurso na Universidade de Harvard, o General Marshall enviara os seus assistentes W. L. Clayton e George F. Kennan (CFR) para acertar linhas de rumo com Jean Monnet.

(11) Líderes desse estudo, datado de 1946, são o advogado Charles M. Spofford e David Rockefeller.

(12) O Plano Shuman deu imediatamente lugar ao elogio dos internacionalistas americanos. “Brilhantemente criativo”, assim o designara John Foster Dulles.

(13) Retinger possuía o Grau 33 na maçonaria sueca.

(14) Jean Monnet chegara a ter uma relação próxima com Harry Hopkins, o braço direito do presidente americano F. D. Roosevelt. Admirador do comunismo, Hopkins desempenhara um papel crucial na formulação da política pró-soviética na Administração Roosevelt, que tão desastrosa se tornara para os Estados Unidos e o Ocidente. Tendo jamais sido um crítico do comunismo, Jean Monnet conjugara esforços com Harry Hopkins para, nos bastidores, proceder às negociações do programa americano lend-lease, uma operação que consistira na canalização de dinheiro e material de guerra para a URSS, além do nuclear que doravante permitiria aos soviéticos o desenvolvimento da bomba atómica.

(15) O plano do Conde N. Coudenhove-Kalergi consistira num esquema destinado ao triunfo do socialismo na Europa. Para o efeito, o Conde austríaco fundara, em 1923, a União Pan-Europeia para assim lançar o movimento de unificação europeia. Entre os seus membros, destacar-se-iam Albert Einstein, Thomas Mann, Konrad Adenauer, Charlles de Gaule, Sigmund Freud, Benedetto Croce, Léon Blum e Georges Pompidou.

Já no final dos anos 20, eram várias as ramificações da União Pan-Europeia a operar através de Inglaterra e do Continente europeu. E tudo decorria com o apoio de vários líderes e estadistas europeus, bem como mediante o patrocínio do establishment anglo-americano. Nisto, até Winston Churchill, um apologista da Pan Europa de Coudenhove-Kalergi, escrevera, a 15 de Fevereiro de 1930, no Saturday Evening Post, um ensaio intitulado The United States of Europe, para, desse modo, suscitar o apoio do público americano quanto à ideia-motriz da unificação europeia.

As origens do Movimento Europeu Internacional datam de Julho de 1947, quando a causa da Europa Unida estava sendo promovida por Duncan Sandys, o genro de Winston Churchill. Este movimento – que seria oficialmente criado a 25 de Outubro de 1948 e prontamente financiado pela CIA através do American Commitee on United Europe – convocaria, de 7 a 11 de Maio de 1948, em Haia, o Congresso da Europa, consolidando assim a primeira etapa imprescindível à construção do federalismo europeu. Embora reunindo figuras importantes do espectro político mundial, tais como Winston Churchill, Konrad Adenauer, Harold Macmillan, Bertrand Russel, Paul Henri-Spaak, Alcide De Gasperi e François Mitterrand, quem, na verdade, geria o processo nos bastidores era basicamente Jean Monnet, acompanhado do misterioso polaco socialista, Joseph Retinger. Ora, das sete resoluções de política comum adoptadas no Congresso da Europa, a última declarava o seguinte: «A construção de uma Europa Unida deverá ser considerada como um passo essencial à formação de um Mundo Unido».

Seria ainda durante o Congresso da Europa que diversas personalidades, entre as quais Salvador de Madariaga, Winston Churchill, Paul Henri-Spaak e Alcide De Gasperi, proporiam a criação de um Colégio da Europa, especialmente destinado à formação de uma elite de eurocratas. Este instituto universitário, sedeado em Bruges, na Bélgica, passaria então a representar na elite política europeia o que a Harvard Business School representa entre as grandes corporações americanas. E, nesta senda, surgiria posteriormente o Centro Europeu de Cultura, inaugurado em Genebra, a 7 de Outubro de 1950.






Denis de Rougemont






Inteiramente consagrado ao Centro Europeu de Cultura, esteve o escritor suíço Denis de Rougemont, cujo pensamento traçara, sob o influxo do movimento personalista, as grandes linhas-mestras de uma cultura europeia comum centrada na singularidade da pessoa humana. Adepto do federalismo europeu – numa perspectiva de diálogo e compreensão intercultural –, o autor de O Amor e o Ocidente não só originara, por intermédio do Centro Europeu de Cultura e da Associação Europeia dos Professores, uma campanha em prol da cidadania europeia visando essencialmente os educadores, como também suscitara a criação da Fundação Europeia da Cultura, presidida pelo luxemburguês Robert Schuman. No fundo, é a supremacia de uma ideia genesicamente europeia sobre a formação e constituição das soberanias nacionais no Velho Continente.

(16) Por unificação monetária e política entenda-se, numa palavra, a transferência acelerada de poderes nacionais para instituições do mercado comum sediadas em Bruxelas, Luxemburgo e Estrasburgo. Estas instituições são, a rigor, controladas por socialistas e internacionalistas versados em políticas keynesianas.

(17) Baseado no esquema pró-mundialista do Parlamento Europeu, foi inaugurado, em 18 de Março de 2004, o Parlamento Panafricano, em Adis Abeba, na Etiópia. Trata-se, mais particularmente, do orgão legislativo da União Africana, actualmente sedeado em Midrand, África do Sul. Entretanto, também existem outras organizações regionais com fins e objectivos idênticos, como é o caso do Parlamento Latino-Americano (Parlatino), criado a 7 de Dezembro de 1964, em Lima, no Peru, com vista a integrar os parlamentos nacionais da América Latina. Por último, têm até sido feitas algumas “recomendações”, por parte da União Europeia, para o estabelecimento de uma Assembleia Parlamentar das Nações Unidas – Ban Ki-moon, o ex-secretário da ONU, costumava referir-se à Organização como o “Parlamento da Humanidade” –, cujo fim estaria necessariamente na prossecução de soluções globais, como a paz, a segurança, a democracia, os “direitos humanos” e, last but not least, o “Estado de Direito” expressamente configurado pela nova ordem internacional.

(18) Por ideologia entenda-se, no presente contexto, a instrumentalização da cultura canalizada para a planeada organização do pensamento e do comportamento humanos. Os elementos desta instrumentalização são, em termos gerais, apresentados sob a forma de preceitos éticos e morais, direitos humanos, cidadania, democracia, diálogo-inter-religioso, paz mundial, globalização, problemas sociais e políticos, etc. Acrescidos surgem ainda outros elementos respeitantes à alimentação, vestuário, habitação, segurança, meios de transporte, bem como aos múltiplos entes, formas e substâncias da natureza. Consequentemente, a combinação destes “elementos culturais” perfazem, no fundo, a matéria-prima instrumental por via da qual professores e alunos estarão não apenas aptos a assimilar o novo modelo de gestão e organização da sociedade global, mas também a perfilharem o papel de agentes promotores da nova mentalidade ideológica extremista e radical.

(19) Cf. Ministério da Educação, Programa de Filosofia, 10º e 11º Anos, Departamento do Ensino Secundário, homologado em 22/02/2001, p. 8.

(20) Cf. Maria Antónia Abrunhosa e Miguel Leitão, Um Outro Olhar Sobre o Mundo, Disciplina de Filosofia, Edições ASA, 2006, p. 122.

(21) Oportuno seja, porém, verificar o que nos diz Daniel Estulin sobre o antropólogo americano Melville Jean Herskovits: «Em Man and His World, um manual didáctico geral publicado em 1948, Herskovits cunhou o termo “relativismo cultural” para descrever a indiferença moral e a maneira de retratar a população que caracteriza a abordagem social manipuladora da aristocracia, desde o tempo de Aristóteles. Herskovits desenvolveu a tese de que todos os padrões universais devem ser postos de lado nos estudos antropológicos das diferentes sociedades e culturas; pelo contrário, “as interpretações devem ser relativas ao contexto cultural de onde emergem”.

Esta era, claro, precisamente a mesma perspectiva da British East India Company relativamente às populações das suas colónias africanas e a mesma perspectiva que motivara a apreciação de Jefferson sobre o potencial cultural da população negra da América. Popularizado e defendido por [Margaret] Mead, o relativismo cultural tornou-se a base explícita de toda a “ciência da antropologia”.

A música desempenhou um papel-chave na formulação da doutrina do relativismo cultural de Herskovits. Em Man and His World, Herskovits sublinhava que a falta de uniformidade nas escalas musicais entre os povos primitivos era uma prova maior da sua tese, declarando, em directa oposição com o seu próprio conhecimento musical e com a história da música, que “as progressões padronizadas em que as escalas típicas e as orientações modais das convenções musicais são estabelecidas, o número de sistemas, cada um dos quais é consistente dentro dos seus próprios limites, é infinito”.






Entre 1939 e 1947, Herskovits estudou a música daquelas partes de África de onde era oriunda a maioria dos escravos americanos e delineou um conjunto de características que ele propôs provarem que a origem da música negra – jazz, gospels, espirituais, ragtime, etc. – estava nos ritos vudu. Essas características incluíam a tendência para introduzir polirrítimicos e escalas, típicos da música africana.

Estes estudos constituíram de imediato o trampolim de Herskovits para anunciar, em 1948, a doutrina do relativismo cultural em antropologia. Ao mesmo tempo, as características traçadas posteriormente por Herskovits tornaram-se a base para toda a etnomusicologia da música afro-americana e a musicologia do jazz e blues baseiam a sua perspectiva na tese de Herskovits, incluindo o princípio do rito vudu, citando-o como a sua fonte definitiva» (in O Instituto Tavistock, Publicações Europa-América, 2012, pp. 260-261).

(22) Tem até sido advogada, com base nos “mínimos morais” exigíveis a toda a humanidade do nosso tempo, a construção da “civilização mundial” proposta pelo poeta e socialista senegalês, Léopold Senghor (cf. Maria Antónia Abrunhosa e Miguel Leitão, Um Outro Olhar Sobre o Mundo, Disciplina de Filosofia, p. 125). E, assim, estamos perante o apelo para a edificação de uma civilização que se revela obra de todas as culturas e raças, não obstante a exaltação de quem, a par do poeta, dramaturgo e ideólogo Aimé Césaire, desenvolvera a bandeira da Negritude enquanto movimento político-literário oposto ao denominado impacto negativo da cultura europeia sobre a cultura africana. Igualmente vítima do socialismo, Aimé Césaire chegou mesmo a identificar a colonização europeia com o nazismo.

(23) Repare-se que, segundo este trecho, a suposta “universalidade” dos “direitos humanos”, preconizada pela ONU, não deixa lugar para que os mais variados povos, pátrias e nações possam sequer adaptar os mesmos direitos fundamentaisà situação única e espiritualmente singular que os caracteriza. Por outras palavras, estamos, pura e simplesmente, perante a mais vil imposição do universal abstracto, tão caro, aliás, ao globalismo invasor.

(24) Esta Declaração, expressamente elaborada para a definição das “liberdades fundamentais” e dos “direitos humanos” constantes na Carta das Nações Unidas, começara por ser inicialmente esboçada por John Peters Humphrey e depois desenvolvida por uma comissão dos direitos humanos da ONU, de que fizeram parte, entre outros, Jacques Maritain e Eleonor Roosevelt, a esposa de FDR. Mais tarde, surgiu ainda a Carta Internacional dos Direitos do Homem, constituída pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos facultativos. Os dois pactos acima referidos foram adoptados pela Assembleia Geral através da sua resolução 2200 A (XXI), de 16 de Dezembro de 1966.

Inspirado no ternário da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), Karel Vasak, um checo de naturalidade francesa que chegou a ser director da Divisão de Direitos Humanos e Paz da UNESCO, propôs, curiosamente, uma divisão dos direitos humanos em “três gerações”, sendo a primeira constituída por direitos civis e políticos, a segunda por direitos sociais, económicos e culturais, e a terceira por “direitos de fraternidade”, por estreitamente ligados à paz, ao ambiente e à autodeterminação dos povos. A UNESCO viria, posteriormente, a estabelecer a “quarta geração” de “direitos tecnológicos”, referentes ao direito de informação e ao que, em termos académicos, se designa por biodireito.

(25) É ponto assente, na generalidade dos manuais da “Disciplina de Filosofia” o “argumento relativista” segundo o qual o conceito de “direitos humanos” representa uma forma de imperialismo do Ocidente na tentativa de universalizar as suas próprias crenças. Contudo, como veremos adiante, a questão dos “direitos humanos”, tal como estipulada originalmente pela ONU, não é uma questão compreensível sob o ponto de vista da diversidade cultural, mas sim do ponto de vista de uma arquitectura jurídica antropocêntrica, eminentemente formal e racionalmente abstractizante.





(26) A Declaração de Direitos da Virgínia, datada de 12 de Junho de 1776, precedeu a Declaração de Independência dos Estados Unidos. De nítida inspiração iluminista e contratualista, a primeira destas declarações, escrita por George Mason, proclamava, por intermédio dos «representantes do bom povo da Virgínia, reunidos em plena e livre convenção», os direitos naturais inerentes ao ser humano.

(27) O artigo 1º, que expõe a concepção subjacente à Declaração Universal dos Direitos do Homem, afirma: «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade». E com isto, o artigo em questão define que o direito à liberdade e à igualdade consiste num direito inato que não pode ser alienado.

(28) Convém relembrar que toda a legislação pombalina também encontrara, por oposição à doutrina jusnaturalista aristotélico-escolástica, o seu fundamento no domínio racionalista do Direito Natural. É, de resto, no Compêndio Histórico do estado da Universidade de Coimbra, que se desenvolve e afirma o Direito Natural como «pura luz da Razão», de que as «Leis positivas» serão posteriormente deduzidas com vista aos «recíprocos Direitos, e Ofícios dos Soberanos, e dos Vassalos», ou aos direitos das «Nações livres, e independentes», de modo a singrar entre elas a paz e o sossego no decurso da regulação dos seus respectivos interesses, como da decisão de suas contendas.

(29) Convém observar que o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, criado em 2006, veio substituir a antiga Comissão de Direitos Humanos cujos 53 membros, na sua maioria caracterizados por um historial duvidoso na matéria, eram escolhidos longe do escrutínio público para, depois, serem finalmente eleitos por aclamação pelos respectivos grupos regionais. Sedeado em Genebra, o novo orgão foi supostamente criado para evitar as críticas que mancharam a reputação da anterior Comissão, apesar da oposição dos Estados Unidos, das Ilhas Marshall, Palau e Israel. No entanto, não obstante terem os membros do Conselho de competir entre si pelo lugar no novo orgão destinado a promover o respeito universal e a protecção dos “direitos humanos” e “liberdades fundamentais”, a verdade é que continuaram a ser eleitos, por voto secreto dos 191 membros da Assembleia Geral da ONU, países responsáveis por violações flagrantes e sistemáticas dos direitos do homem.

Ora, entre esses países contam-se a Argélia, Tunísia, Nigéria, Paquistão, Arábia Saudita, Rússia e Cuba, só para darmos alguns exemplos. A preconizada defesa dos “direitos humanos”, no caso da China, é de uma ironia macabra, visto tratar-se de uma ditadura comunista que já matou entre 60 a 100 milhões de seres humanos, fora as incontáveis vítimas produzidas pela política de aborto forçado. Junte-se a isto a extracção de orgãos de prisioneiros políticos e religiosos – como ainda de praticantes do Falun Gong –, a perseguição de cristãos e a censura da informação, para se ficar com um lindo quadro das atrocidades cometidas por um regime totalitário que não olha a meios para atingir os seus fins. No caso de Cuba, repare-se-na sua prática criminosa de perseguição brutal dos dissidentes, bem como a correlativa autocracia militar que não cessa de exportar tirania e terrorismo comunista para inúmeras partes do globo. Quanto aos demais regimes socialistas e comunistas representados no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, saliente-se os da Bolívia, Vietname, África do Sul, Equador, São Salvador e o da Venezuela de Nicolás Maduro, onde se definha e morre de fome, doença e perseguição política.

Um caso não menos emblemático, na “defesa e protecção” dos “direitos humanos” a cargo da ONU, é o da Arábia Saudita, também representada no Conselho de Direitos Humanos. Basta, aliás, ver, por um lado, como este regime islâmico decapita apóstatas, proíbe o cristianismo, decepa mãos, executa e flagela dissidentes através de cruéis e bárbaros castigos rejeitados pelo mundo civilizado, e, por outro, incita, subsidia e arma o islamismo radical. Nisto, a Arábia Saudita conseguiu ainda ver o seu nome retirado de uma lista das Nações Unidas referente ao morticínio de crianças, mesmo quando mundialmente se sabe que aquele reino islâmico continua a matar e a mutilar crianças nas escolas e hospitais do Iémen.

De resto, Jacob Zuma, o líder do regime comunista da África do Sul, tem sido apanhado na televisão, um pouco à semelhança de Nelson Mandela relativamente aos brancos, a cantar e a proclamar o genocídio de certas minorias. Entretanto, perante todos estes factos gravíssimos e altamente preocupantes, ressalta um “silêncio ensurdecedor” no seio de poderes, instituições e organizações europeias e mundiais. É a “conspiração do silêncio”, em que a defesa e protecção de direitos considerados inalienáveis são propositadamente entregues a flagrantes violadores dos mesmos, que, para o efeito, se arvoram em titulares, campeões e juízes supremos de um Conselho que mais parece evocar o caso das raposas a tomar conta do galinheiro.

(30) Cf. Luís Rodrigues, Filosofia 10.º, Consultor Científico: Álvaro Nunes, Plátano Editora, 2013, p. 95.

(31) Michel Shooyans, La face cachée de l’ONU, Paris, Ed. Sarment Fayard, 2000.








(32) Olavo de Carvalho, A Filosofia e seu Inverso, Vide Editorial, 2012, p. 257.

(33) Ibidem, pp. 222-223.

(34) Álvaro Ribeiro, «O Ideal Civilizador dos Portugueses é imensamente superior (incomparável superior) àquele que tem sido proclamado na ONU», in Diário da Manhã, ano XXXIII, n.º 11 675, Lisboa, 18 de Janeiro de 1964, pp. 3 e 6. Sobre o império cultural da sociologia, diz-nos ainda Álvaro Ribeiro: «O desenvolvimento dos estudos sociológicos, especialmente dos que são conduzidos segundo esquemas abstractos e gerais, produzidos por sábios que temerariamente se jactam de representar a universalidade, não pode deixar de chegar a provocar, por reacção inevitável, o correlato estudo das particularidades e das singularidades que se manifestam nos povos e nos homens. A uniformização sociológica da humanidade é uma utopia; poderemos imaginar que um movimento de política internacional elimine e anule, como superstições populares ou nacionais, as diferenças que restam do passado ou que se observam no presente; não é, porém, difícil conceber que novas alterações hão-de surgir, para desespero dos sociólogos, enquanto o espaço e o tempo forem meios heterogéneos e diferenciantes. O império cultural da sociologia há-de ser efémero, e depois desmembrado, para se concretizar em novas disciplinas de geografia, de história e de literatura, o que anuncia inevitável ressurgimento dos estudos filosóficos» (in Apologia e Filosofia, Guimarães Editores, 1953, pp. 89-90).

(35) É o caso do direito à vida, à liberdade e à propriedade.

(36) Cf. Os direitos concedidos por Deus estão exemplarmente consagrados e protegidos na Carta dos Direitos dos Estados Unidos (United States Bill of Rights), que é onde se encontram expostas as 10 primeiras emendas à Constituição americana. Por conseguinte, esta Carta representa o oposto do que a ONU entende por “direitos humanos e liberdades fundamentais”, visto que, segundo o artigo 29 da Declaração dos Direitos do Homem (1948), estes «não poderão ser exercidos contrariamente aos objectivos e aos princípios das Nações Unidas», pelo que assim resultam virtualmente revogáveis. De resto, a validar a perenidade de verdades auto-evidentes de que todos os homens são iguais e dotados pelo seu criador de certos direitos inalienáveis, está a Declaração de Independência dos Estados Unidos (4 de Julho de 1776), na qual se proclama que a legitimidade de todo o governo instituído consiste na protecção desses direitos – a vida, a liberdade e a busca da felicidade – e jamais na sua reformulação, interpretação ou supressão arbitrárias.

(37) Aqui incluímos a já mais que prevista quão inevitável insustentabilidade da segurança social enquanto consequência das políticas keynesianas adoptadas nos últimos 80 anos.

(38) Álvaro Ribeiro, Liceu Aristotélico, Sociedade de Expansão Cultural, 1962, pp. 196-198.

(39) Esta ideologia assenta no manifesto contra-senso de que os sexos masculino e feminino representam apenas “construções sociais e culturais” e, portanto, não encerram, para a sua respectiva determinação, nenhum dado biológico naturalmente adquirido – daí os denominados “transgéneros”, termo que designa os indivíduos cuja “identidade” não resulta do sexo biologicamente atribuído. Assim, qualquer indivíduo pode, em contexto predominantemente social, escolher e desempenhar o seu “papel de género”, ou até mesmo adoptar vários “géneros” em simultâneo, como, de resto, poderão confirmar os agitadores e activistas do movimento esquerdista internacional LGBT (lésbicas, gays, bissessuais, travestis, transexuais e transgéneros).

A escritora marxista e feminista Simone de Beauvoir deixou-nos, aliás, algumas notas que também estão na base, quase diríamos existencialista, desta “nova ideologia” destruidora da família e da sexualidade humana, nomeadamente a que considera a gravidez como “limitadora da autonomia feminina”, porque, alegadamente, “a gravidez cria laços biológicos entre as mulheres e as crianças, e por isso, cria um papel de género”. Ademais, tudo o que aqui se implica acabou por ser significativamente sintetizado pela católica e socióloga alemã Gabrielle Kuby, a saber: «A Ideologia de Género é a mais radical rebelião contra Deus que é possível: o ser humano não aceita que é criado homem e mulher, e por isso diz: “Eu decido! Esta é a minha liberdade!” — contra a experiência, contra a Natureza, contra a Razão, contra a ciência! É a perversão final do individualismo: rouba ao ser humano o que lhe resta da sua identidade, ou seja, o de ser homem ou mulher, depois de se ter perdido a fé, a família e a nação.

É uma ideologia diabólica: embora toda a gente tenha uma noção intuitiva de que se trata de uma mentira, a Ideologia de Género pode capturar o senso-comum e tornar-se numa ideologia dominante do nosso tempo».

A confusão perversa de presumíveis géneros pressuposta na não menos perversa “ideologia de género” tem, na verdade, sido progressiva e exponencialmente injectada na cabeça de crianças e adolescentes em idade escolar, produzindo, mediante a respectiva erotização, uma mentalidade acéfala e esquizóide posteriormente reflectida na vida psicológica dos adultos. É, na realidade, uma armadilha urdida em nome da “defesa das minorias” e dos “direitos humanos”, por ser especialmente destinada a “desconstruir” a relação amorosa entre o homem e a mulher, para, dessa forma, a apresentar como uma norma fortuitamente imposta a todos aqueles que já renunciaram à união genesíaca criada, perpetuada e agraciada por Deus. Entrementes, será oportuno dizer que a “ideologia de género” foi sendo introduzida, no último decénio do século XX, nas Conferências da Mulher realizadas na ONU contra a “discriminação de género” – uma expressão, aliás, vista pela Organização como “auto-evidente”, pese embora prossiga indefinível até hoje.

(40) A controvérsia à volta da morte do Papa Luciani levou a que Robert Hutchison considerasse a hipótese de que a ocultação da verdadeira causa de morte tivesse sido planeada por uma facção conservadora do Vaticano. Na base dessa ocultação estaria não só, devido à eleição do Papa Luciano, a suposta conciliação do Vaticano com o bloco comunista, mas também um afrouxamento da cidade-estado quanto ao controlo artificial da natalidade. Em paralelo, havia ainda o caso misterioso da lista dos 121 prelados maçons de que o Papa tomara conhecimento mediante o «último número da OP, o jornal dos escândalos em Roma, de Mino Pecorelli» (in Robert Hutchison, O Mundo Secreto do OPUS DEI, pp. 310-314).






(41) A expressão “direitos reprodutivos” mostra claramente como a ONU distorce e subverte a propriedade da linguagem para impor, à escala global, o planeamento familiar e, no lance, abrir as portas à contracepção e à interrupção da gravidez através do acesso legal ao aborto. Desta forma, a criança que não nasceu deixa de ser considerada como criatura de Deus, à imagem de Deus, com o seu próprio direito à vida consagrado por Deus e, portanto, subtraído a toda e qualquer arbitrariedade preconizada em nome da decisão alegadamente livre e autónoma da mulher, até porque irresponsável e subjectivamente egoísta, injusta e desumana.

(42) Cf. Robert Hutchison, O Mundo Secreto do OPUS DEI, pp.307-308.

(43) Caritas in Veritate, Carta Encíclica de S. S. Bento XVI, PAULUS, 2009, pp. 100-102.

(44) Cf. Cardeal Ratzinger, O Sal da Terra. O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milénio. Uma Entrevista com Peter Seewald, Multinova, 1997, p. 141.

(45) O Cardeal de Palermo, no contexto do Concílio Vaticano II, referiu-se ao termo “ecumenismo” como tendo sido introduzido na teologia pelos protestantes, e, no lance, caracterizou-o como um equívoco, «porque entendido de modo diverso por protestantes e católicos». Por outro lado, confrontado com «uma profunda reforma da atitude católica na sua relação com a verdade revelada», Mons. Corrado Mingo, arcebispo de Montréal, referira-se «à necessidade de conservar a fé íntegra, sem mutilações, porque o mal provém da recusa da verdade»: «[...] Falando claramente, restam ainda muitas e grandes dificuldades para se alcançar a unidade; por exemplo, entre irmãos protestantes, há ministros que não só negam o primado e a infalibilidade do Romano Pontífice e a presença real na Santíssima Eucaristia, como também negam outros preceitos naturais relativos ao matrimónio e não admitem a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo; e há mesmo alguns que se declaram indiferentes à existência de Deus como pessoa. Uma grande distância nos separa destes irmãos.

Mas lamento que, neste esquema, não se faça qualquer referência à Virgem Maria e à sua materna intercessão. A Mãe é sempre aquela que chama os filhos a regressarem a Casa do Pai. Maria é a Medianeira de todas as graças. Sei que muitos Padres Conciliares têm a mesma convicção relativamente a este tema. Veneráveis Padres, nós que somos membros do Corpo Místico de Cristo temos duas mães: a Igreja e a Bem-Aventurada Virgem Maria. São Cipriano, estrénuo defensor da unidade da Igreja, costumava dizer: não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por Mãe; mas nós, tendo diante dos olhos a tradição patrística e teológica e o sentir do povo cristão, tudo coisas que têm o seu fundamento na Sagrada Escritura, podemos dizer que não pode ter Deus por Pai quem não tem por Mães Maria e a Igreja. Saliento que, embora separadas, as veneráveis comunidades orientais conservam o próprio matrimónio de devoção a Maria Virgem, enquanto os irmãos protestantes perderam muita coisa porque se esqueceram da Bem-Aventurada Virgem Maria, ainda que, nos nossos tempos, alguns tenham retomado o culto da mesma Virgem. Veneráveis irmãos, o ardente desejo de Cristo, “que eles sejam um só”, não pode ser vão, porque Cristo é sempre ouvido pelo Pai; isto há-de acontecer no mundo, e há-de acontecer por intercessão de Maria; e, falando aos irmãos separados, podemos dizer, de novo com palavras de São Cipriano, “regressai à Mãe da qual partistes”. Então, haverá um só rebanho e um só pastor» (Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita, Caminhos Romanos, 2012, pp. 303-306).

(46) Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita, p. 255.

(47) Alighiero Tondi (1908-1984), jesuíta, abandonou a Companhia de Jesus em 1952 par aderir ao Partido Comunista. Casou-se civilmente com Carmen Zanti, dirigente comunista, e trabalhou na Alemanha comunista mas, após nova crise de consciência, na sequência da morte da mulher, em 1978, foi reintegrado no sacerdócio.

(48) Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita, pp. 256-257. Influenciado pelas correntes progressistas da cultura francesa, em particular pela obra de Jacques Maritain, Montini tornar-se-ia, no contexto da sua aproximação ao socialismo, em nada menos do que o “Arcebispo dos operários”. Não admira, pois, que, sob o nome pontifício de Paulo VI, saudara afectuosamente, quando da sua viagem a Hong Kong, a Grande Revolução Cultural Proletária, também conhecida por Revolução Cultural Chinesa – estima-se que tenham morrido, à conta deste sofrimento sem fim, uns largos milhões de seres humanos. No mais, este Papa deu ainda respaldo ao terrorismo na África portuguesa, assim como aos partidos da esquerda na América Latina, além de considerar particularmente benevolente a Cuba socialista do “El Comandante” Fidel Castro.

Para escândalo, grande injustiça e até funda humilhação de milhões de cátolicos espalhados pelo mundo inteiro, Paulo VI nunca chegara a denunciar o martírio da Igreja na Hungria, Roménia e Checoslováquia. Posto isto, compreende-se agora que a ascensão de Montini ao pontificado tenha não apenas sido «saudada com entusiasmo pelos comunistas italianos e europeus», como também sumamente desejada pelo Kremlin, que aguardara «com preocupação a escolha do sucessor de João XXIII» (in Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita, p. 254). Aliás, se não deixa de ser curiosa a eleição de Angelo Giuseppe Roncalli «para o sólio pontifício com o nome de João XXIII, um nome inesperado, que não era utilizado desde o longínquo ano de 1415, altura em que outro João XXIII fora deposto como antipapa», já pouco ou nada surpreende que, na «manhã do 1.º de Maio, terminado o inflamado Comício da Praça de São João de Latrão – no qual se tinha celebrado, a par da vitória eleitoral, a “festa do trabalho” -, algumas centenas de comunistas dirigiram-se à Praça de São Pedro agitando bandeiras vermelhas e erguendo os punhos fechados e, voltados para as janelas do Palácio Apostólico, gritaram: “Viva João XXIII! Viva o Papa da Paz!”».






Nisto, Roberto de Mattei passa a explicar: «Para os comunistas, o Papa João era o “Papa bom” e o Vaticano II, o “Concílio da paz”. Em 1960, o Kremlin tinha lançado a doutrina da “coexistência pacífica”, como plano estratégico para todo o período de transição, à escala mundial, do capitalismo para o socialismo. Na realidade, como afirmou Kruchshev num célebre discurso de 1 de Janeiro de 1961, em termos de conteúdo social, a política de coexistência pacífica era uma forma de intensa luta económica, política e ideológica do proletariado contra as forças agressivas do imperialismo internacional. O comunismo operava através do binómio medo-simpatia, apoiando-se na aspiração universal à paz. Assim, sem renunciar à sua acção intimidatória e ao proselitismo explícito, usava novas técnicas de persuasão implícita, através do uso de expressões como “paz”, “coexistência pacífica” e “diálogo”» (in O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita, p. 250).

(49) Juan G. Atienza, A Herança dos Templários, Editorial Estampa, 2005, p. 13.

(50) Dizemos aristotélico não obstante um professor catedrático ter peremptoriamente afirmado que «Aristóteles, apesar de bastante citado, teria sido conhecido por Pais em segunda mão». Ou até mesmo que a «autoridade vale para ele muito mais do que a reflexão filosófica. Seja a autoridade da Sagrada Escritura, seja a dos Padres da Igreja, seja a dos pensadores e cronistas, seja acima de tudo a do Direito Canónico. Ou até, se quisermos precisão, a autoridade dos próprios factos». E mais adianta nos termos de uma argumentação especiosa e manifestamente difícil de aceitar por iniciados na filosofia perene: «Uma tese vale se tiver a sustentá-la a auctoritas de um canonista, como igualmente vale se apoiada num facto histórico que a comprove: por exemplo, os príncipes temporais devem obediência à Igreja porque são ungidos pelos chefes espirituais. Trata-se de um tipo de argumentação difícil de aceitar por nós, homens da contemporaneidade, mas usual nos tempos de Álvaro: o nosso Autor prova uma tese a partir de um facto decorrente dessa mesma tese» (in Álvaro Pais, Editorial Verbo, Introdução e selecção de textos de João Morais Barbosa, 1992, pp. 16 e 18-19).

(51) Em última análise, o Papa, enquanto monarca do mundo, goza da plenitudo potestatis, o que significa que reúne superiormente o poder da Igreja e o poder do Império, de modo que a ele pertencem o gládio espiritual e o gládio temporal. Contudo, tal não implica que a supremacia espiritual do Vigário de Cristo seja simplesmente alheia ao reconhecimento da espiritualização ou da marca do sobrenatural na pessoa do rei, príncipe ou imperador. Dito de outra forma, o Sumo Pontífice, não obstante delegar o uso do gládio temporal no imperador, mantém o poder de o avocar a si em qualquer altura, pois é ele, de facto, que directamente recebe a investidura suprema espiritual de Deus. Por conseguinte, a incontestabilidade do poder régio, garantida por mediação papal, não poderá ser posta em causa pelos súbditos, já que do povo e da comunidade não procede qualquer legitimidade espiritual.

Daqui podemos então concluir que o Papa não detém dois poderes distintos entendidos como duas entidades políticas diversas, mas que nele preexistem duas dimensões indistintas de um poder pleno, originário e eminentemente espiritual. Daí o primado do uno sobre o múltiplo, ou do espírito sobre a matéria, a que subjaz a independência específica do príncipe na organização secular do Império, não em sua razão originária, mas em função da multiplicidade de interesses temporais, na qual as realidades se impõem e diversificam. Logo, só quando, por via ascensional, se procede à espiritualização da acção régia mediante a unificação da diversidade temporal na ordem espiritual, é então possível compreender a tese de que os dois gládios pertencem de pleno direito à Igreja.

(52) Trata-se de um edifício situado no interior da Cidade do Vaticano, onde se encontram sedeadas a Academia Pontifícia das Ciências, a Academia Pontifícia das Ciências Sociais e a Academia Pontifícia de Santo Tomás de Aquino.

(53) Nello Scavo, Os inimigos do Papa Francisco, A Esfera dos Livros, 2017, p. 175.

(54) Idem, ibidem, pp. 177-178.

(55) Ibidem, p. 178.

(56) A “Guerra ao Terror” tem sido uma falsa bandeira originada na sequência do Projecto para o Novo Século Americano, e, como tal, agitada até às suas últimas consequências após o 11 de Setembro. Aquele projecto, não obstante a vasta especulação a que deu lugar, foi, na verdade, o ponto de partida para o que ficou conhecido como “o novo Pearl Harbor”, que contou, aliás, com a activa participação da Agência Central de Inteligência. Refira-se, a propósito, o livro de David Ray Griffin, intitulado The New Pearl Harbor: Disturbing Questions About the Bush Administration and 9/11.





























































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Continua


ONU: o supergoverno mundial (ii)

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Escrito por Miguel Bruno Duarte













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O Sinal revelador da Besta


Por outro lado, não podemos e não devemos ignorar o facto de já existir, há pelo menos dois decénios, tecnologia especificamente projectada para rastrear, em tempo real, todos os movimentos de seres humanos cujo comportamento também já pode ser previsto mediante sistemas de activa e apurada vigilância. A intrusão do Big Brother pode dar-se, por exemplo, através de telemóveis aptos a denunciar cada movimento humano por via de GPS (57) ou por processo de triangulação, e, no lance, aptos a serem remotamente activados por sistemas de vigilância com acesso directo aos respectivos microfones e câmaras. Tenhamos, aliás, presente de que também já se começou a proceder, na Suécia e nos Estados Unidos, à implantação de circuitos integrados (microchips) nas mãos de seres humanos, mormente em funcionários de algumas empresas que podem assim abrir portas, imprimir documentos e tirar cafés com um simples acenar da mão (58).

Nos próximos decénios estaremos, com toda a probabilidade, aprisionados numa sociedade cibernética onde prevalecerá uma nova espécie de servidão digital, pronta e voluntariamente aceite por uma consciência cada vez menos individual (59), e, nessa medida, colectivamente fundida, modelada e uniformizada por uma tecnologia de comunicação plasmada nos computadores e nos média electrónicos. Teremos, então, a oportunidade de assistir a uma ilimitada expansão do ciberespaço enquanto plataforma virtual interdependente, pós-religiosa e transpessoal (60). Demais, não haverá compra ou venda que não venha a ser submetida ao escrutínio da identificação biométrica (61), um pouco à semelhança do que, em termos apocalípticos, fora já previamente anunciado como o sinal revelador da Besta (62).

A ligação do mundo em rede electrónica “invisível” tem sobretudo visado a infusão de um novo modo de cognição que permanece aquém das fronteiras quotidianas da realidade sentida, experienciada e naturalmente vivida. É como se de um culto secreto (63) se tratasse, atendendo às novas linguagens virtuais de programação da realidade simulada, paralela à amplificação exponencial do ADN no âmbito da “revolução biotecnológica”. Por conseguinte, a prospecta ilusão de uma humanidade totalmente fundida com a tecnologia, como se, desligada do corpo, pudesse conviver dentro de uma realidade gerada por um supercomputador, equivale, portanto, à possibilidade de se produzirem estímulos artificiais que, à margem dos orgãos sensitivos, induzem o sistema nervoso a identificar o estimulado com o verdadeiro.


O homem-máquina


Apagada a personalidade humana, prevalece, então, uma realidade alternativa em que a “inteligência artificial” se sobrepõe ao aprofundamento lógico do pensamento humano inteligente. Convergindo com esta realidade alternativa, surge igualmente a nanotecnologia enquanto actividade apta a elaborar, no domínio da matéria atómica e molecular, novas estruturas susceptíveis de reproduzir tecido orgânico com o que, inevitavelmente, prevalecerá uma artificial e desumanizada imagem do homem. E daí até à introdução de “organismos cibernéticos” (64) resultantes da fusão apocalítica entre o homem e a máquina, decorre efectivamente um processo já praticamente consubstanciado na emergente tecnologia dos neurochips.

Entretanto, não queremos, de maneira alguma, pôr em causa os eventuais benefícios extraídos de aplicações tecnológicas como, aliás acontece no campo da neurotecnologia especialmente dedicada à visualização do cérebro para fins terapêuticos no domínio da depressão, hiper-actividade, privação do sono, bem como na redução de ataques epilépticos, no “tratamento” da “dor fantasma” oriunda da amputação de orgãos e membros, no todo ou em parte, ou ainda na minimização de sintomas relativos a distúrbios neurológicos, entre os quais se incluem as doenças de Parkinson e de Huntigton. Encaramos até com particular interesse o percurso de Elon Musk na área da investigação tecnológica e espacial, como também no domínio dos sistemas de transporte a alta-velocidade preconizados pelo magnata, engenheiro e inventor americano de origem sul-africana. Logo, assim se explica que, no âmbito da sua projecção visionária, Musk tenha permanecido ligado à fundação e liderança de inúmeras empresas especializadas na sustentabilidade da produção e consumo de energia (65), com a perspectiva de se conseguir reduzir o apregoado“aquecimento global” e criar, inclusive, as condições tecnológicas necessárias para o desenvolvimento da vida multiplanetária que, numa primeira instância, tornará possível a colonização do planeta Marte.

Profundamente influenciado por Isac Asimov, Elon Musk tem amiúde dissertado sobre os potenciais perigos da inteligência artificial, a ponto de apelar para a necessidade de haver, a nível internacional, uma espécie de supervisão regulatória que permita, assim, a sobrevivência da humanidade perante o que, um tanto paradoxalmente ,(66) o próprio caracterizou como a “convocação do demónio” por entre os constantes desafios e aplicações da indústria tecnológica invasora (67). Outrotanto apelou quanto à necessidade de, na esfera de acção da Neuralink (68), se desenvolver uma interconexão entre o cérebro e o computador a fim de se poder, num futuro já relativamente presente, competir com os mecanismos cada vez mais avançados da inteligência artificial. Ora, as previsíveis consequências daqui decorrentes resultarão, como é óbvio, na progressiva indistinção entre a percepção da realidade experiencialmente vivida e a simulação a três dimensões de uma teia envolvendo milhões de pessoas numa realidade virtual inconcreta e inexistente.
































































Consideramos, da nossa parte, que todo este movimento virtual corresponde ao que se nos afigura ser a invasão do inorgânico. Entre as características próprias, se assim o podemos dizer, de um tal movimento obscuro e por demais infectado de manifestações hostis às ciências da vida, estão a uniformidade e os processos maquinais de redução ao mínimo das forças materiais por contrapartida ao nível mais alto da ciência humana. Por outras palavras, estamos perante um movimento de indiferença para com o real e para com a desprezada superioridade da lógica aristotélica na sua arte de tornar visível o ainda não visto mas previsível na ordem do espírito.

Entre a multidimensionalidade dos fenómenos paranormais ou meta-psíquicos, ocultos e evasivos por natureza, e a manipulação maquinal da matéria fraccionada e morta não existe, por assim dizer, um denominador comum. Por isso, quando Elon Musk admite que, com base nos objectivos altruístas da OpenAl, é possível contrariar o enorme poder que numerosas empresas obtêm mediante lucros resultantes da oferta de sistemas de super-inteligência artificial, é caso para perguntar porque e em que medida esse poder não será, em última instância, igualmente utilizado pela OpenAl em detrimento da natureza espiritual da pessoa humana. Até porque, invocar simplesmente a utilização da inteligência artificial para benefício da humanidade, implica necessariamente a concentração de um tal poder nas mãos de uma organização internacional, como, aliás, vimos já ser exactamente esse o propósito preconizado pelo visionário americano (69).

Particularmente atento ao caso emergente dos terminators– “ciborgues exterminadores” aparentemente humanos -, Musk conduz-nos assim àquilo que tem sido, nos últimos decénios, o desenvolvimento de protótipos cibernéticos destinados a fins predominantemente militares. Já, agora, considere-se também o caso da Sarcos, uma empresa (70) de pesquisa no ramo da bio-engenharia que, no ano 2000, passou a desenvolver um projecto (71) para a criação de um exoesqueleto energizado, também conhecido por armadura eléctrica, exoframe ou exosuit (72). Aliás, militarmente focada na utilização de “organismos sintéticos” de modo a obter vantagens tácticas, a agência DARPA tem, por seu lado, denunciado um interesse particular na produção de “insectos ciborgue” para, dessa forma, poderem transmitir os respectivos dados através de sensores implantados durante os primeiros estádios do seu desenvolvimento metamórfico. Estima-se, portanto, que o controlo dos mesmos quedará a cargo de uma tecnologia de dispositivos microscópicos, ou, se quisermos, micro-maquinais (73) capazes de sondar um determinado ambiente, quando não mesmo aptos a detectar gás e até explosivos.

Similarmente, a agência DARPA tem procurado ainda desenvolver um implante neural com o qual será possível determinar, por controlo remoto, o movimento dos tubarões, além de explorar as suas peculiaridades sensitivas – como a detecção de vibrações a longas distâncias – susceptíveis de providenciar informações relativas ao movimento de embarcações inimigas, ou, quando muito, detectar explosivos subaquáticos. Um sem-número de experiências, muitas delas coroadas com sucesso, têm vindo, por conseguinte, a ser testadas nalgumas universidades americanas (74) onde se procede ao uso de implantes neurais em besouros, libélulas, abelhas, mariposas, baratas, ratos e pombos. Nisto, é, pois, caso para perguntar se não estaremos, porventura, na iminência da transformação do homem em insecto? – tornando nossa uma expressão tão cara a Denis Saurat, o autor de A Religião dos Gigantes e a Civilização dos Insectos (75).


A agenda transhumanista 


Em consonância com este “admirável mundo novo”, concorre ainda a agenda planetária do transhumanismo enquanto movimento tendente a transformar a condição humana por intermédio de sofisticada tecnologia (76). Um tal movimento resume-se, portanto, a um projecto ultra-tecnológico levado a cabo por engenheiros, informáticos e neurocientistas cuja actividade se traduz no alegado aperfeiçoamento das capacidades físicas e mentais dos seres humanos, começando pelos aspectos bio-fisiológicos e acabando na supressão do pensamento singular mediante a transmutação do cérebro humano num supercomputador (77). Este movimento, fundamentalmente consagrado a uma futura “ordem mundial científica”, tem também recebido o nome de pós-humanismo (78) porque, em última análise, pressupõe que toda a experiência humana se deve encaminhar para a determinação pró-activa e superior da sua própria evolução.










Daqui resultará, necessariamente, um “ser híbrido” inédito que substituirá o “homem novo” dos movimentos distópicos e revolucionários de ontem, porque doravante destituído da adâmica génese fundadora da humanidade, interna ou externamente considerada. Nesta ordem de ideias, Deus não passará então de uma Super-Inteligência Artificial em que a Igualdade, invertendo a Ideia de Bem em Platão, será a palavra-chave da subcultura pós-religiosa e pós-humanizadora (79). E, assim, eis como o transhumanismo pouco ou nada tem a ver com o melhoramento da espécie humana, na exacta medida em que os seres humanos deixam de se ver e contemplar à imagem e semelhança de Deus para, então, se tornarem peças de uma matriz ou engrenagem tecnotrónica inimiga da humanidade (80).

Cindida, do ponto de vista espiritual, a relação profundamente íntima entre o homem e Deus, resta, inevitavelmente, a desumanização da espécie humana até ao ponto em que a robótica finalmente declara a criatura central do universo como a proclamada fonte de todo o mal (81). Obsoletos ficam, entretanto, termos como“higiene racial” e“darwinismo social” para darem lugar a novos termos consagrados na gíria da agenda globalista, tais como “controlo populacional”,“sustentabilidade”, “preservação da natureza”,“bioética” e “ambientalismo”. Quem, de resto, bem sustenta, detalhada e exaustivamente, no que consiste o movimento ambientalista, por interposta pessoa, é, antes de mais, Daniel Estulin:

«[...] Como explica o jornalista de investigação Rob Ainsworth, “o movimento ambientalista não é o movimento popular que diz ser. Os maiores e mais influentes grupos recebem dezenas de milhões de dólares todos os anos, e os seus conselhos de administradores e directores são o reflexo disso mesmo”. Do Survival International ao United Nations Environment Program, do Worldwatch Institute ao International Food Policy Research Institute, do World Resources Institute ao Greenpeace, da Nature Conservancy à International Union for the Conservation of Nature, com sede na Suíça, do programa de desenvolvimento da ONU ao Natural Resources Defense Council, e aos organismos de defesa do ambiente... tudo é gerido por banqueiros, gestores de fundos e grandes companhias petrolíferas. Tal como o Clube de Roma escreveu, na sua publicação de 1991, intitulada A Primeira Revolução Global: “O verdadeiro inimigo é a própria humanidade”» (82).

Na origem do transhumanismo encontra-se o eugenista britânico J. B. S. Haldane, sobretudo através do seu livro intitulado Daedalus: Science and the Future, publicado em Inglaterra, em 1924. O conteúdo deste livro, futurivelmente concebido na base da mutação e da ectogénese – inseminação artificial ou fertilização in vitro –, chegou, por sua vez, a influenciar o romance de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, escrito em 1931 e publicado em 1932. Além disso, também influenciou J. D. Bernal, um especialista em cristalografia da Universidade de Cambridge, e autor de um livro significativamente simbólico, intitulado The World, the Flesh and the Devil, de 1929 (83).

É, apesar de tudo, um facto que foi Julian Huxley, o biólogo evolucionista britânico, a figura que mais geralmente ficou associada ao aparecimento do ideário transhumanista. Se bem que as suas ideias fossem algo diferentes das ideias que, por definição, eram comuns aos adeptos do transhumanismo nos idos dos anos 60 e até 80 (84) do século passado – sendo esse o caso de Arthur C. Clarke com a sua célebre narrativa de ficção científica intitulada 2001: Odisseia no Espaço (1968) (85)  –, a verdade é que o internacionalismo de Huxley, na esfera política, bem como a sua demarcante oposição em relação à teleologia clássica aristotélica, no domínio do evolucionismo biológico, contribuiu sobremaneira para que fosse globalmente considerada a possibilidade de a espécie humana poder, efectivamente, transcender as suas limitações à margem do principío de individuação (86). No entanto, para uma melhor compreensão, basta simplesmente tomar nota de alguns traços biográficos do renomado irmão de Aldous Huxley, coligidos no livro já entretanto mencionado de Daniel Estulin:

« [...] no imediato pós-guerra, Sir Julian Huxley mudou o nome do seu programa de controlo compulsório da natalidade, crescimento económico zero e tecnologia de controlo mental das massas, e continuou a aplicar os princípios que criaram o homicídio em massa dos “racialmente inaptos” na Alemanha nazi. Em 1946, Huxley anunciou que “apesar de ser verdade que qualquer política eugénica radical será durante muitos anos política e psicologicamente impossível, é importante que a UNESCO garanta que o problema eugénico seja examinado com o maior cuidado, e que a opinião pública seja informada do que está em causa, para que muito do que agora é impensável possa pelo menos tornar-se pensável”. Em 1974, Henry Kissinger, discípulo intelectualmente sodomizado de Huxley, disse: “O despovoamento deve ser a prioridade da política externa em relação ao Terceiro Mundo”.






Julian e Aldous Huxley














































Huxley foi um dos fundadores da British Eugenics Society, primeiro director-geral da UNESCO, que advogou a redução populacional e aquilo a que Huxley chamou “uma cultura única para o mundo”; foi também membro importante da Federação [Mundial para a Saúde Mental], director da Abortion Law Reform Association e fundador do WWF [World Wildlife Fund], cujo primeiro presidente foi o príncipe Bernhard dos Países-Baixos, antigo inscrito no partido nazi e um dos organizadores das reuniões do Clube Bilderberg, desde o seu início em 1954» (87).

Actualmente, o espectro da coerção eugénica representa, pois, o sucedâneo, ainda que sob novas roupagens, das predominantes ideologias da raça suprema e do darwinismo social propagadas entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Assim, a forte probabilidade de nos virmos a encontrar, num futuro próximo, a braços com um cenário dantesco onde triunfará, por via do patrocínio estatal, a discriminação genética, a esterilização compulsória de pessoas com as mais inúmeras deficiências, bem como a segregação e genocídio de raças tidas por inferiores, é, na realidade, extrema e pungentemente alarmante. Como tal, não há nada como, em função da agenda transhumanista consagrada à criação de uma espécie superior pós-humana, ir ao encontro de extensos informes colhidos por Daniel Estulin no labirinto das organizações internacionais:

«Ao longo da História, sempre houve aqueles que, tendo em vista objectivos políticos específicos, usam o terror ou a ameaça de terror contra populações-alvo. A razão cientítica fudamental para a tirania sempre atraiu as elites, por lhes dar uma desculpa conveniente para tratarem outros homens “abaixo de cães”. A eugenia, noção descabelada de superioridade e inferioridade hereditárias, teve origem nos anos 80 e 90 [do século XIX]. Foi produzida por uma rede de famílias em que se incluíam um primo de Darwin, Sir Francis Galton, Thomas Huxley, Sir Arthur Balfour, e as famílias Cadbury e Wedgewood, assim como outros estrategas do império britânico do fim do século XIX ligados ao movimento da Távola Redonda, de Cecil Rhodes e Lord Alfred Milner. Viram uma oportunidade de fazer avançar a humanidade para uma nova Idade das Trevas ao pegar nas rédeas da teoria de Darwin, baseada na “sobrevivência dos mais fortes”, e aplicaram princípios sociais para desenvolverem um darwinismo social.

Nos Estados Unidos, a história da eugenia começa em 1904, quando o Laboratório de Cold Spring Harbor foi inaugurado pelo proeminente eugenista Charles Davenport. Este foi financiado pelos principais candidatos americanos a oligarcas: Rockefeller, Carnegie e Harriman. Até 1910, os britânicos criaram a primeira rede de assistentes sociais expressamente para servirem de espiões e imporem o culto racial eugénico, que estava rapidamente a dominar a sociedade ocidental. Os patrocinadores financeiros ingleses de Hitler não foram os únicos a financiar a investigação eugénica. Na década de 20, a família Rockefeller injectou dinheiro no Instituto do Imperador Guilherme para a Genealogia e a Demografia, o qual viria a constituir um pilar fundamental do Terceiro Reich.

No fim da guerra com cadáveres ainda a fumegar por toda a Europa, os aliados protegeram os cientistas nazis, como Joseph Mengele, que tinham torturado milhares de pessoas até à morte. A facção radical eugénica nazi causara embaraço aos controladores sociais anglo-americanos, tornando malditas as palavras “eugenia” e “higiene mental”. No entanto, os “controladores” não iriam ser dissuadidos. Em 1956, a British Eugenics Society decidiu numa resolução que “a sociedade devia prosseguir a eugenia por meios menos óbvios”. Isto corresponde a uma “paternidade planeada” e ao movimento ambientalista. Toda a política de controlo populacional sofreu simplesmente uma mudança de nome, e eles continuaram o seu trabalho sob a protecção das Nações Unidas e organizações suas associadas. As Sociedades de Eugenia, Eutanásia e Higiene Mental da América, da Grã-Bretanha e da restante Europa viram simplesmente os seus nomes mudados para outros, mais aceitáveis: a Mental Health Association, na Grã-Bretanha e a National Association of Mental Health, nos Estados Unidos, vindo mais tarde a ser chamada a World Federation of Mental Health.

[...] A Eugenics Quarterly Magazine passou a ser a Social Biology, e a American Birth Control League passou a Planned Parenthood, sendo hoje em dia o grande responsável pelo despovoamento em África. Não é um facto muito conhecido, mas algumas das maiores instituições de ajuda humanitária e grupos de cristãos fundamentalistas dos EUA têm actuado subrepticiamente em África, ao longo das últimas décadas. A sua bandeira é Planeamento Familiar, mas quando compreendemos as suas verdadeiras implicações e objectivos a longo prazo, percebemos que este conceito foi virado do avesso. Estas políticas de planeamento familiar são advogadas de forma vigorosa e consistente pelos mais importantes doadores bilaterais, como o Governo dos EUA, através do seu delegado, a USAID, e agências multilaterais, sendo as principais: a International Planned Parenthood Federation (IPPF), o Fundo das Nações Unidas para Actividades Populacionais (UNFPA) e o Banco Mundial em África.













































Lynda Carter e Gal Dadot na ONU. Ver aqui




A 'Mulher-Maravilha'. Ver aqui







O Banco Mundial tem sido, desde a década de 60, a entidade que mais financia o controlo populacional, com os seus gastos anuais a aumentarem vertiginosamente, de uns modestos 27 milhões de dólares entre 1969 e 1970 para mais de 4,5 mil milhões em 2006. Os Presidentes do Banco Mundial, Eugene Black e Robert MacNamara, foram a certa altura administradores da Fundação Ford, controlada por Rockefeller. “Mais significativamente, as políticas de controlo populacional são agora uma condição imperiosa, exigida pelo desembolso de empréstimos para ajustamento estrutural (os SAL) pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, no quadro dos seus Programas de Ajustamento Estrutural (os SAP).

Tipicamente, as condições dos SAP incluem políticas de controlo populacional, além da desvalorização, liberalização e privatização das economias nacionais e dos sectores da saúde e da educação. Assim, a preparação de uma Declaração de Política Populacional é uma condição fundamental para o desembolso de um SAP. Betsy Hartmann, directora do Programa de População e Desenvolvimento no Hampshire College, inventou uma expressão para tais políticas: Eco-Fascismo Malthusiano (MEF). Ela observa que a comunidade internacional que auxilia está agora a concentrar os seus esforços de controlo populacional na África subsaariana, e o planeamento familiar é a prioridade número um: “O imperativo primordial desses programas produzidos internacionalmente consiste em reduzir o crescimento populacional de maneira tão rápida e ‘lucrativa’ quanto possível”. Como ela bem salienta, em grande parte de África, onde a SIDA ameaça ter consequências humanas e demográficas trágicas, a actual ênfase no controlo populacional e na retirada de fundos aos sistemas de saúde corresponde a uma triagem indirecta.

Escusado será dizer que a África não é o único continente em que estas políticas brutais são postas em prática. Em 1972, num esforço para lidar com a chamada “urgência populacional” na Índia, o Banco Mundial financiou um projecto de 2 milhões de dólares que “resultou em milhões de esterilizações involuntárias e milhares de mortes”.

A confluência de eugenistas, nazis, ambientalistas e entusiastas do Estado mundial também se deveu ao restrito Clube 1001, constituído pelas mais antigas e poderosas famílias da Europa, que financia as operações malthusianas dissimuladas do WWF em África. Uma dessas operações do WWF chamou-se Operation Lock, cujo objectivo era salvar o rinoceronte negro na África do Sul. “John Hanks, director do WWF para África, financiou uma equipa de comandos SAS britânicos 'reformados' para se infiltrar e sabotar supostos círculos de caçadores furtivos. Recorreu a uma força exterior paramilitar para instigar a violência entre negros do Congresso Nacional Africano e do Partido da Liberdade Inkatha, praticando actos de violência localizados, como o massacre de Boipatong, a 18 de Julho de 1992”. Este massacre fez com que o Congresso Nacional Africano abandonasse as primeiras negociações formais para pôr termo ao apartheid, acusando o Partido Nacional no poder de cumplicidade nos ataques. O objectivo consistia em desencadear uma sangrenta guerra civil e impedir o fim do sistema de apartheid e a reintegração da África do Sul na comunidade mundial.

O WWF e o seu braço terrorista de acção directa, o Greenpeace, bem como outros grupos com ideias semelhantes, não são apenas uma minoria de lunáticos que possamos facilmente ignorar; são as tropas de choque da olirgaquia na sua luta contra a humanidade. A lei “malthusiana”, semelhante à que foi proposta na Conferências das NU no Cairo sobre População em 1994, é uma teoria demográfica quanto ao crescimento populacional e foi desenvolvida durante a revolução industrial, com base no que Thomas Malthus escreveu no seu famoso livro Sobre População, de 1798, e que mais não foi do que uma versão plagiada da publicação de 1790 do monge veneziano de Giammaria Ortes, Riflessioni sulla popolazione delle nazioni. Segundo a sua teoria, a população expande-se mais depressa do que os abastecimentos alimentares. Ortes é o autor intelectual em que se baseou o esboço genocida apresentado na Conferência das NU no Cairo sobre População, em 1994.

A maior parte das pessoas talvez ache tudo isto no mínimo espantoso, mas os heróis culturais da época passada, como Margaret Mead, os irmãos Huxley e o falecido Carl Jung (principal promotor do “inconsciente colectivo”), não só participaram ano após ano em conferências com o médico nazi responsável por alguns dos mais odiosos crimes contra a raça humana, como também apoiaram entusiasticamente todas as “teorias” que levaram ao holocausto nazi contra a humanidade. Por exemplo, nos anos anteriores à guerra, Jung foi um dos editores da Revista Alemã de Psicoterapia, juntamente com o Dr. M. H. Goering, primo de Hermann Goering e participante num projecto de eutanásia, o “T4”, que consistia na eliminação de quatrocentos mil doentes mentais internados em instituições alemãs» (88).


A cibernética e a contracultura das drogas

















Uma vez aqui chegados, podemos, agora, adiantar que um dos pilares do ataque à cultura do Ocidente começou, efectivamente, nos Estados Unidos, basicamente com a expansão da cibernética. O outro pilar não menos hostil e letal concernente a essa cultura de raiz judaico-cristã, foi o que já tem sido geralmente caracterizado como a contracultura das drogas, particularmente estudada, durante os anos 50 do século XX, pela CIA e os serviços de inteligência dos países aliados, com o objectivo de avaliar e tornar exequível o respectivo potencial em termos de controlo e engenharia social. Demais, seria no decurso dos anos 50 e 60 que a CIA, sob a égide do Projecto MK-ULTRA (89), levaria finalmente a cabo uma série de experiências visando o controlo mental para uso militar – experiências essas, de resto, também ampliadas a dezenas de cidades universitárias em que milhares de estudantes, pioneiros no consumo de LSD, seriam, sem disso saberem, usados como cobaias no âmbito da revolução psicadélica.

Para este efeito, concorrera igualmente o Instituto Tavistock (90) que, já no período imediato ao pós-guerra, enviou para os Estados Unidos os seus melhores especialistas para que pudessem participar nos programas e projectos secretos de controlo da mente da CIA e do Pentágono. Note-se, aliás, que a tentativa de alterar, por via clandestina, o comportamento humano através do uso de drogas como a mescalina, o LSD e a marijuana, estivera, de facto, na origem de transformações sociais, transtornos mentais e funda alucinação colectiva experienciados pelo movimento delirante e psicadélico dos yippies dos anos sessenta. Entretanto, atendendo mais particularmente às origens, componentes, efeitos e aplicações do uso de LSD, relata Daniel Estulin o seguinte:

«A dietilamida do ácido lisérgico ou LSD foi inventada em 1943 por Albert Hoffman, um químico da Sandoz A. B., uma farmacêutica suíça pertencente à S. G. Warburg. O principal componente do LSD é o tartarato de ergotamina, que Hoffman converteu em ergotamina sintética, uma potente substância que altera a mente e é altamente viciante. “Ainda que não se disponha de documentação precisa sobre os patrocinadores da investigação do LSD, podemos supor, sem medo de nos enganarmos, que nela participaram a Inteligência britânica e a sua filial, a norte-americana OSS. Allen Dulles, que era director da CIA quando esta iniciou o programa MK-ULTRA, foi o chefe de gabinete da OSS de Berna, na Suíça, enquanto decorria toda a investigação inicial da Sandoz. Um dos seus ajudantes era James Warburg, da mesma família Warburg que contribuiu decisivamente para fundar, em 1963, o Instituto de Estudos Policiais, e trabalhou tanto com Huxley como com Robert Hutchins”.

Foram 149 os subprojectos do programa MK-ULTRA, muitos deles relativos à investigação da modificação do comportamento, à hipnose, ao efeito das drogas, à psicoterapia, aos soros de verdade, aos germes patogénicos e às toxinas dos tecidos humanos.

Em relação à Inteligência, o programa MK-ULTRA tinha como propósito encontrar uma forma de manipular a memória. Dessa forma, tinha de se afastar daquilo que os freudianos chamam “superego” e permitir ao agente controlador o acesso directo à mente de um agente inimigo. Esse era o primeiro passo. O segundo, consistia em apagar informações específicas da memória do sujeito e substituí-las por recordações novas, o que permitiria à agência enviar o agente de volta ao seu território sem que soubesse que tinha sido interrogado e que tinha revelado informação sensível. O terceiro, ainda vai mais além: podia programar-se esse agente inimigo para realizar acções em nome da agência, sem saber quem tinha dado a ordem nem por que razão. Este era o tema do filme O Candidato da Manchúria. E continua a ser essencial no estudo daquilo que hoje conhecemos como hipnoterapia e psicanálise “profunda”, pois o psiquiatra tenta aceder às camadas do inconsciente; entre elas, de traumas sofridos na infância para neutralizar o efeito dos mesmos e, em alguns casos, para substituir certas regras de comportamento por outras novas e aprovadas» (91).

Além da Agência Central de Inteligência (CIA) comprometida neste processo, outros factores estiveram igualmente em causa. Entre eles, vejamos primeiramente o seguinte, no dizer de Estulin:

«A partir de 1962, o Instituto de Investigação para a Defesa Nacional da RAND Corporation de Santa Mónica, na Califórnia, iniciou também um estudo secreto de quatro anos sobre o efeito do LSD, do peiote e da marijuana, como ferramentas de avaliação psiquiátrica, nos casos de psicose. A RAND Corporation – que nasceu do Estudo do Bombardeamento Estratégico na época de guerra, uma “análise de custos” dos efeitos psicológicos sofridos pelos núcleos de população alemã após os bombardeamentos – é um centro de investigação que goza de financiamento federal e é patrocinado pelo Gabinete do secretário de Defesa e pelo Conselho para as Relações Externas. O estudo baseou-se no trabalho do psiquiatra W. H. McGlothlin, que levou a cabo investigações preliminares sobre Os efeitos duradouros do LSD em determinadas atitudes de pessoas normais: uma proposta experimental» (92).




















Por fim, vejamos mais um desses factores, presente na obra do autor:

«"A contracultura das drogas foi precisamente a arma que empregaram a Escola de Frankfurt e os seus companheiros de viagem durante os cinquenta anos seguintes para criar um paradigma cultural que se afastasse da denominada matriz 'autoritária' do homem feito à imagem e semelhança de Deus e da superioridade da forma republicana de Estado-nação sobre qualquer outra forma de organização política. Transformaram a cultura norte-americana e desviaram-na até uma matriz erótica e perversa, associada à actual tirania do 'politicamente correcto', da tolerância perante o abuso desumano de drogas, da perversão sexual e da glorificação da violência. Para os revolucionários marxistas/freudianos da Escola de Frankfurt, em última instância, o antídoto para a odiada civilização ocidental judaico-cristã consistia em derrubar essa civilização, a partir de dentro, produzindo gerações de necrófilos".

Se esta afirmação parece dura, fixe-se na que vem a seguir. Na sua obra de 1948, A Filosofia da Música Moderna, Theodore Adorno, líder da Escola de Frankfurt, disse que a finalidade da música moderna é literalmente pôr louco quem a ouve. “Justificou-o afirmando que a sociedade moderna era um ninho de maldade, autoritarismo e fascismo potencial, e que só destruindo a civilização por meio da difusão de todas as formas de pessimismo cultural e de perversidade, se podia chegar à libertação”.

[...] “Eric Fromm, outra figura proeminente da Escola de Frankfurt, dedicou uma boa parte da sua obra fundamental de 1972, A Anatomia da Destrutibilidade Humana, à análise da necrofilia, a qual, segundo diz, era a tendência dominante na sociedade moderna. Fromm definiu a necrofilia, dizendo que abarcava todas as formas de obsessão pela morte e a destruição, em particular as que tinham intensas conotações sexuais. Ironicamente, a 'cura' que propunha contra esta perversão social generalizada era a contracultura das drogas, do rock e do sexo, que apareceu no final dos anos 60”» (93).


O pesadelo orweliano


Sempre em nome do combate às injustiças do mundo, estão, neste preciso momento, a ser promovidas vastas estruturas de poder global para condicionar, coagir e redireccionar a percepção humana através de dominantes, poderosas e esmagadoras redes de comunicação social. A corrente censura no domínio da Internet, tornando cada vez mais presente o pesadelo orweliano, é apenas uma prova disso mesmo, tendo em conta as regulamentações traçadas entre os vários governos e os gigantes tecnológicos de Silicon Valey, tais como: Google (94), Apple, Facebook, Twitter, etc. (95). E uma vez anulada a possibilidade de cada pessoa exprimir, manifestar e, eventualmente, explanar a sua opinião, parecer ou pensamento, seguir-se-á o ataque directo e implacável a todos os direitos fundamentais que naturalmente enformam a natural tessitura das relações humanas.

Direitos terão só, então, e num sentido absoluto, os oligarcas do centralismo planetário, ou a tal elite mundial a que David Rockefeller (96), a dada altura, se predispôs a reconhecer como sendo uma cabala internacionalista movida por uma complexidade de interesses e propósitos profundamente interligados. Não se pense, no entanto, que esta articulação se reduza simplesmente a uma aliança estabelecida entre governos, instituições internacionais e o mundo dos negócios, pois ela é, antes de mais, a consequência directa de encontros discretos de periodicidade anual (97) onde, de modo informal mas ainda assim eficiente, se juntam grandes banqueiros e industriais, políticos, membros da realeza, funcionários governamentais, agentes dos Rothschild, directores da CIA e da NSA, além de líderes e altos representantes de grandes empresas tecnológicas, entre as quais se contam as da Microsoft, Google, Facebook, Twitter, LinkedIn e Amazon. É, aliás, sabido que quase todas estas empresas de tecnologia auxiliam, de uma forma ilícita, as autoridades dos Estados Unidos a espiar pessoas em todo o mundo, como é também perfeitamente sabido que, desde 2004, existe uma parceria entre a Agência Central de Informação e a empresa Google, sob a qual se esconde o complexo militar-industrial americano.

Muitas destas empresas de tecnologia têm, por sua vez, sido bloqueadas na China comunista, pese embora algumas delas tenham, um tanto ironicamente, vindo a apoiar, no que toca à navegação na Internet, as medidas e procedimentos de censura implementados por Pequim (98). E como se tudo isto já de si não fosse bastante, a ONU, também ela profundamente hostil à liberdade de opinião e pensamento, já colocou, no cargo de secretário-geral de uma das suas agências de controlo e dominação mundial – a União Internacional de Comunicações (99) –, um agente comunista chinês, de seu nome Houlin Zhao, para quem a censura apenas se encontra nos olhos de quem vê. Pois bem: o que daqui se infere não pode ser outra coisa senão o facto incontornável de que a ONU se está preparando para assumir, à escala mundial, o papel de agente censor e “regulador” da Internet.

É por demais óbvio que a supracitada agência tem também oferecido potenciais condições para a realização de actividades de espionagem por parte da República Popular da China. De resto, as recentes propostas da agência no sentido de “reformar” a Internet – “regulação” das redes sociais, limitações impostas à liberdade de expressão e até o pagamento de taxas à ONU para que os utilizadores possam usufruir dos habituais serviços de e-mail e Skype–, tudo isso caminha, a passos largos, para o estabelecimento de uma infra-estrutura tecnológica internacional dirigida por membros, agentes e operativos de regimes totalitários (100). E não esqueçamos ainda o facto de alguns destes agentes, provenientes da China, terem já ocupado cargos de relevo em outras agências especializadas da ONU, como é, por exemplo, o caso de Margaret Chan (101) na Organização Mundial de Saúde (OMS), ou o caso de Li Yong (102), na Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO).


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Margaret Chan


Li Yong







Sede das Nações Unidas em Nova Iorque.




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O “clube dos ditadores”, conforme tem sido justamente designado o supergoverno mundial, também procurou recentemente interferir, contra o estipulado na Carta das Nações Unidas, nos assuntos internos dos Estados Unidos no que particularmente toca à tentativa de restringir alguns dos direitos consagrados na sua Constituição, designadamente quanto à liberdade de expressão, de pensamento e de livre associação pacífica. A avalanche de avisos, declarações, comunicados de imprensa e sucessivas condenações chegou, pois, na sequência da violência ocorrida em Charlostteville (103), Virginia, no intuito de exigir ao Governo dos Estados Unidos que tomasse as devidas providências contra o “discurso de ódio” que fora, aliás, propositadamente instigado pelas “fake news” com vista a incendiar todo o país (104). Ora, esta ingerência, praticada no âmbito da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), constitui, sem dúvida, um abuso de autoridade ilegítima por parte da ONU, em primeiro lugar porque estamos perante um patenteado assalto dirigido à primeira emenda da Constituição americana, a qual, se proibe que o Congresso decrete qualquer lei inibitória da liberdade de religião, expressão, imprensa, associação pacífica e de petição ao governo contra eventuais agravos sofridos, muito menos admitirá a intromissão de terceiros num domínio para o qual não foram certamente chamados a pronunciar-se, quanto mais a exigirem a censura em nome da “lei internacional” dos “direitos humanos” (105); em segundo lugar, porque esses mesmos “direitos humanos” nem sequer são minimamente cumpridos, acatados e respeitados pela maior parte dos países-membros das Nações Unidas, onde a corrupção, o ódio, a violência, o racismo, a intolerância, a opressão e a tirania são a norma dominante (106); em terceiro e último lugar, porque as Nações Unidas estão, no fundo, a aproveitar-se da onda de violência, caos e arbitrariedade orquestrada contra a Administração de Donald Trump para avançar com a sua agenda supostamente promotora da “tolerância” e da “diversidade” atinente às minorias étnico-religiosas – termos que, de resto, não passam de truques insidiosamente fabricados pela gíria globalista para lançar como arma de arremesso a campanha das fronteiras abertas e da propaganda profundamente hostil aos princípios de liberdade, soberania e independência das nações.


O globalismo anti-humano e extremista das Nações Unidas


Outros termos abundam igualmente na gíria globalista usada e abusada pela Organização das Nações Unidas, sobretudo quando a referência aos“países em vias de desenvolvimento” quer apenas dizer os regimes autocráticos do terceiro mundo, ou quando a “governança global” significa apenas o “governo mundial”, ou mesmo quando o “desenvolvimento sustentável” equivale tão-só ao “controlo da população mundial”. Por outro lado, não deixa de ser altamente significativo o facto de António Guterres, o actual secretário-geral das Nações Unidas, ter andado a apelar, num tom marcadamente extremista, socialista e globalista, para a “liderança multilateral” ou para a“acção colectiva” que, na gíria da actual globocracia, subentende o“controlo governamental dirigido pela ONU”, ou ainda o“conjunto de organismos internacionais em estreita cooperação com os regimes regionais projectados em uniões transnacionais”. O que, aliás, não admira, se tivermos em conta que António Guterres foi eleito o nono secretário-geral das Nações Unidas por, em grande parte, ter sido, entre 1999 e 2005, o presidente da Internacional Socialista que, como se sabe, nunca deixou de exercer, mediante o controlo do poder de voto dos seus membros, uma poderosa influência sobre as instituições burocráticas da ONU.

Fundada a 3 de Junho de 1951, a Internacional Socialista, sedeada em Londres, sempre deu a entender que o seu principal objectivo é nada menos que o estabelecimento do governo mundial. Para que tal seja possível, esta organização internacional tem, de facto, exigido a submissão das nações ocidentais a sistemas burocráticos de planificação global a nível da recolocação de grandes fluxos migratórios adentro das suas fronteiras (107), e, nessa medida, sustentada pelos respectivos contribuintes. Trata-se, em poucas palavras, do socialismo à escala mundial, cuja agenda totalitária passa pela redistribuição da riqueza global em nome da redução das desigualdades e, portanto, do indispensável, justo e equilibrado controlo dos recursos planetários.

Ao contrário do que vem sendo ensinado nas instituições universitárias, o comunismo não está morto, estando até mais fortalecido do que nunca se nos dermos ao trabalho de verificar como os seus actuais proponentes, entre os quais se encontra António Guterres, persistem em perpetuar as estimadas “glórias” totalitárias do socialismo internacional com base em cargos de poder nas mais altas instituições de controlo e administração planetária. Não chegou ainda, de maneira nenhuma, a experiência quase apocalíptica de milhões de seres humanos mortos, atormentados e selvaticamente reduzidos à miséria, à fome e ao terror decorrente de práticas e ideologias de raiz predominantemente colectivista, extremista e desumana. Enfim, professamente católico, António Guterres já esteve assim, enquanto chefe para os refugiados das Nações Unidas, no centro de um processo inteiramente responsável pelo tsunami da migração islâmica que já invadiu e continua a invadir o Ocidente (108), e a que não faltou a sistemática discriminação contra os cristãos do Médio Oriente, os quais vêm brutalmente morrendo às mãos dos extremistas islâmicos – veja-se o caso da Síria (109), onde em 10% de cristãos apenas 1% tem sido recolocado no Ocidente no seguimento do programa de refugiados da ONU, ou veja-se ainda o caso da comunidade cristã no Iraque cuja ajuda se tem praticamente reduzido a um conjunto de tendas e lonas, para não falar nos campos de “refugiados” da ONU onde os cristãos são sistematicamente brutalizados, espancados e até assassinados por “refugiados” islâmicos.

Guterres, sempre pronto a reivindicar para as Nações Unidas o privilégio de ser a única instituição capaz de dar solução aos problemas globais da humanidade, não tem, felizmente, conseguido enganar toda a gente. Assim, não obstante a insidiosa campanha consagrada à suposta protecção humanitária dos “refugiados”, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, já veio igualmente denunciar a “conspiração criminosa” dos fanáticos internacionalistas instalados no quartel-general da União Europeia, em Bruxelas, já que a eles também se deve (110), a par da agenda externa dos EUA para o Médio Oriente, a política de portas abertas à “invasão islâmica” com vista a minar os alicerces da Cristandade e da Civilização Ocidental baseada nos Estados-nação. De modo que, um tal processo, já nem sequer esconde o seu verdadeiro rosto por entre as ostensivas e múltiplas declarações dos mais variados agentes internacionalistas, dentre os quais releva aquele que foi, entre Janeiro de 2005 e Março de 2017, o Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Migração Internacional.










Referimo-nos, obviamente, a Peter Sutherland, um irlandês que já chegou a desempenhar inúmeros papéis de ordem política e empresarial numa variedade de organizações internacionais, entre as quais estão a General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), de que foi director-geral fundador entre 1993 e 1995 (111), a Global Forum on Migration and Development (GFMD), a International Catholic Migration Commission (ICMC) e a Goldman Sachs International, da qual chegou a ser presidente entre 1995 e 2015. De resto, Sutherland fora ainda, entre 1985-89, o Comissário Europeu para a área dos assuntos económicos e empresariais, bem como, a partir de 5 de Dezembro de 2006, o conselheiro financeiro do Vaticano no âmbito da Administração do Património da Sé Apostólica – um dicastério da Cúria Romana que funciona como uma espécie de Banco Central do Vaticano. E, como não podia, de maneira alguma, faltar no seu currículo de insider, considere-se, em última instância, aquele que tem sido o seu papel activo no domínio da comissão directiva do Grupo Bilderberg, ou ainda o facto de já ter sido o presidente honorário da Comissão Trilateral, bem como o vice-presidente da European Round Table of Industrialists, entre 2006 e 2009.

Segundo Peter Sutherland, a soberania nacional, seja ela considerada do ponto de vista abstracto ou concreto, é uma ilusão absoluta que deve ser reconhecida por todos os “governos” do mundo de ora avante libertos de fronteiras geográficas, económicas e culturais. Resumindo, não existem mais nações, povos e pátrias a serem considerados na esfera do novo sistema mundial entendido como a realidade primeira e última a ser totalmente cumprida, empreendida e obedecida. A este perigoso quão alarmante extremismo, corresponde, pois, a “parlamentarização” do sistema político global, ou ainda o que, nas palavras do anterior secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, constitui o novo “Parlamento da Humanidade”, protagonizado pela ONU.

Advogando, propagando e impondo a agenda emergente do “cidadão global”, o socialista António Guterres foi, em estreita cumplicidade com os seus demais congéneres, o agente internacionalista que, no cargo de Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, possibilitou, com a política das fronteiras abertas a Ocidente, a morte de vítimas inocentes do jihadismo transnacional, a ponto, inclusive, de não se coibir de condenar os governos que, preocupados com a segurança dos seus cidadãos, viram-se na iminência de, por justa precaução, não acatar semelhante política. E não acatando, foram, cinicamente, rotulados de racistas e xenófobos por simplesmente não colaborarem na progressiva destruição dos seus países, entre os quais se incluem a Hungria, a República Checa e a Polónia, entre outros. Logo, se há quem, porventura, acalente ainda quaisquer dúvidas sobre o facto de a Organização das Nações Unidas representar, hoje mais do que nunca, um perigo de proporções incalculáveis para a coexistência pacífica da humanidade, só não deixa de as ter se não quiser atender, na sua justa e devida consideração, aos factos acima referidos.


Os tentáculos do Clube Bilderberg em Portugal


Aliás, como qualquer pessoa minimamente informada sabe, uma das condições indispensáveis para o desempenho de altos cargos na arena internacional tem sido, de uma forma geral, a participação nos encontros anuais do Clube Bilderberg. Ora, António Guterres foi tão-só uma das figuras que, levado pela sua ambição e sede de poder, se submeteu aos interesses, tendências e ditames provenientes de forças, entidades e personalidades extremamente poderosas ao longo das recentes décadas de progressivo domínio mundial. Daí que o próprio tenha, de facto, chegado a Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados depois de já haver participado, pela segunda vez, num dos encontros frequentados pelos poderosos do Clube Bilderberg, o qual tivera lugar na Alemanha, em 2005.

O seu caso não é o único no panorama deplorável da política vil praticada em Portugal, uma vez que as sucessivas figuras que, após a revolução comuno-socialista de 1974, mais sôfregas ambições têm manifestado no domínio daquela política, acabaram, mais cedo ou mais tarde, por agir em conformidade com as regras internacionalmente formuladas, sugeridas e, ao fim e ao cabo, impostas pela vontade de terceiros. Por consequência, a Pátria portuguesa não diz rigorosamente nada a estas malfadadas figuras, porque histórica e filosoficamente é-lhes, no fundo, indiferente o mistério e a razão de ser da Terra de Santa Maria. O espectro da ignorância é, portanto, transversal a todos os partidos, tendências políticas e perfídias jornalístico-litérárias, a avaliar pelos nomes das figuras que, depois da hedionda e trágica desgraça do 25 de Abril, têm, por ordem cronológica (112), participado no Clube Bilderberg (113): José Medeiros Ferreira (1977, Reino Unido; 1980, Alemanha); Vítor Constâncio (1978, EUA; 1979, Áustria; 1988, Áustria); Francisco Pinto Balsemão (1981, Suíça; 1983, Canadá) (114); José Luís Gomes (1981, Suíça; 1983, Canadá); Rogério Martins (1982, Noruega; 1983, Canadá); Alexandre Vaz Pinto (1982, Noruega); Bernardirno Gomes (1983, Canadá); André Gonçalves Pereira (1984, Suécia); Emílio Rui Vilar (1984, Suécia); José Manuel Torres Couto (1985, EUA); Ernâni Lopes (1985, EUA); Artur Santos Silva (1986, Reino Unido; 1999, Portugal); Leonardo Mathias (1986, Reino Unido); José Eduardo Moniz (1987, Itália); Fernando Faria Oliveira (1987, Itália; 1993, Grécia); Francisco Lucas Pires (1988, Áustria); Rui Machete (1989, Espanha); Jorge Sampaio (1989, Espanha; 1999, Portugal); António Guterres (1990, EUA; 2005, Alemanha); João de Deus Pinheiro (1990, EUA); Carlos Monjardino (1991, Alemanha); Carlos Pimenta (1991, Alemanha); António Barreto (1992, França); Roberto Carneiro (1992, França); Nuno Brederode dos Santos (1993, Grécia); José Manuel Durão Barroso (1994, Finlândia; 2003, França; 2005, Alemanha; 2013, Reino Unido; 2015, Áustria); Miguel Veiga (1994, Finlândia); José Cutileiro (1995, Suíça); Luís Mira Amaral (1995, Suíça); Maria Carrilho (1995, Suíça); António Vitorino (1996, Canadá; 2004, Itália; 2015, Áustria); Margarida Marante (1996, Canadá); Ricardo Espírito Santo Silva Salgado (1997, EUA; 1999, Portugal); António Borges (1997, EUA; 2002, EUA); José Manuel Galvão Teles (1997, EUA); Vasco Pereira Coutinho (1998, Reino Unido); Miguel Horta e Costa (1998, Reino Unido); Marcelo Rebelo de Sousa (1998, Reino Unido) (115); Joaquim Ferreira do Amaral (1999, Portugal); João Cravinho (1999, Portugal); Marçal Grilo (1999, Portugal); Vasco de Mello (1999, Portugal); Murteira Nabo (1999, Portugal); Nicolau Santos (1999, Portugal); Teresa Patrício Gouveia (2000, Bélgica); Guilherme de Oliveira Martins (2001, Suécia); Vasco Graça Moura (2001, Suécia); Elisa Ferreira (2002, EUA); Eduardo Ferro Rodrigues (2003, França); Pedro Santana Lopes (2004, Itália); José Sócrates (2004, Itália); Nuno Morais Sarmento (2005, Alemanha); José Pedro Branco (2006, Canadá); Augusto Santos Silva (2006, Canadá); Leonor Beleza (2007, Turquia); Rui Rio (2008, EUA); António Costa (2008, EUA); Manuela Ferreira Leite (2009, Grécia); Manuel Pinho (2009, Grécia); Teixeira dos Santos (2010, Espanha); Paulo Rangel (2010, Espanha); António Nogueira Leite (2011, Suíça); Clara Ferreira Alves (2011, Suíça); Luís Amado (2012, EUA); Jorge Moreira da Silva (2012, EUA); Paulo Portas (2013, Reino Unido); António José Seguro (2013, Reino Unido); Paulo Macedo (2014, Dinamarca); Inês de Medeiros (2014, Dinamarca); Maria Luís Albuquerque (2016, Alemanha) e Carlos Gomes da Silva (2016, Alemanha).
















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Pedofilia, genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade cometidos pela ONU


Posto isto, tudo se torna, enfim, mais claro, nítido e dir-se-ia até francamente expectável. Ou seja: transformar o planeta, torná-lo económica, política e culturalmente refém de um planeamento único a nível global, regional e local, eis o que toda aquela clique, em desleal e traiçoeira cumplicidade com os chamados “Donos do Mundo”, tem deveras patrocinado em nome de uma agenda supostamente universal e, por mais incrível que pareça, totalmente coincidente com o já renovado “Grande Salto em Frente” reivindicado pela Agenda 2030 das Nações Unidas (116). No mais, esta agenda promete ser, por entre avanços e recuos, o culminar de um conjunto de etapas estrategicamente premeditadas e, em grande medida, largamente atingidas por uma Organização que, desde 1945, tem não somente espalhado por todo o mundo a miséria, a fome e o terror, mas também perpetuado a pilhagem e a destruição de etnias, países e continentes apanhados na voragem insaciável do poder mundial emergente. Dos inúmeros actos, perfídias e ingerências que estão na origem de fenómenos cruéis e desumanos como a pedofilia (117), o genocídio, os crimes de guerra e contra a humanidade perpetrados pela ONU, desde que fora basicamente fundada pelo agente comunista Alger Hiss, contam-se, por exemplo, os seguintes:

a) Massacres e bombardeamentos cometidos, na sequência da “Independência do Congo” em 1960 (118), contra civis e elementos responsáveis pela ajuda humanitária na província do Katanga, onde foram, inclusivamente, mortas crianças a golpes de baioneta por “soldados de manutenção da paz” das Nações Unidas (119); na origem deste massacre esteve o facto de a República do Katanga, uma das mais ricas províncias do Congo Belga, ter declarado, a 11 de Julho de 1960, a sua independência da República do Congo, em razão da sua recusa em se submeter ao regime pró-comunista de Patrice Lumumba, além do mais manobrado pela União Soviética; os Belgas, cujo envolvimento se traduzira em ajuda técnica, financeira e militar a fim de salvaguardar a ordem pública, a segurança interna e a indústria do Katanga, bem avisaram que a intervenção de uma “força de manutenção da paz” das Nações Unidas (120) no Congo, estabelecida após a Resolução 143 do Conselho de Segurança a 14 de Julho de 1960, só poderia agravar, como de facto agravou, a confusão mediante o desenrolar da subsequente, desejada e premeditada chacina que culminaria na morte de milhares de civis;

b) Ataque directo a Portugal na sequência do artigo 73 da Carta das Nações Unidas, respeitante a territórios não-autónomos (121), no intuito de suscitar o separatismo entre a Metrópole e os territórios ultramarinos, sob pena de Portugal se tornar - imagine-se - numa ameaça à paz internacional (122); no fundo, estava-se perante um plano de guerra em sua fase embrionária, a qual rebentaria a 15 de Março de 1961 com o ataque terrorista da UPA às populações do Norte de Angola, e a que não fora estranho o auxílio de Washington e a estratégia global delineada em Nova Iorque pela Organização das Nações Unidas (123); enfim, tudo acabaria, com o desaparecimento de Salazar (124), numa indiscritível barbárie que os revolucionários de Lisboa, em conivência com os movimentos terroristas de filiação comunista, tratariam de enaltecer não obstante as centenas de milhares de mortos em Angola, Guiné e Moçambique (125);

c) Assassinatos, crimes e violações sistemáticas de abuso sexual, tráfico e exploração de seres humanos inocentes – na sua maioria crianças –, cometidos pelas tropas multinacionais que integram as “missões de paz” da ONU, especialmente na República Centro-Africana; nisto, graves denúncias de abuso sexual foram ainda reportadas na Alemanha, Eslováquia, Canadá, Haiti (126), Burundi, Gana, Senegal, Madagáscar, Ruanda (127), República Democrática do Congo, Burkina Faso, Camarões, Tanzânia, Níger, Moldávia, Togo, África do Sul, Benin, Nigéria e Gabão; entretanto, a ONU não só se demitiu da sua responsabilidade como também não tomou quaisquer providências perante o vastíssimo rol de denúncias contra soldados e funcionários da Organização, mesmo quando acusações de inércia chegaram à imprensa internacional depois das revelações feitas por um funcionário da mesma: Anders Kompass (128);

d) Campanhas e programas secretos eugénicos na forma de vacinas contendo agentes esterilizantes que são veiculados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), com vista ao controlo mundial da natalidade; estas vacinas visam predominantemente populações do Terceiro Mundo, como é o caso do Quénia, onde já ocorreu, entre Março e Outubro de 2014, a esterilização de ínúmeras mulheres ao abrigo de um programa de inoculação anti-tétano patrocinado pelo governo queniano; entretanto, tendo sido dado o alerta por bispos católicos no Quénia, foram enviadas amostras para laboratórios privados, alguns deles na África do Sul, cujos resultados deram positivo quanto à existência de um antígeno que está na origem dos abortos (129);
















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e) Milhares de inocentes cristãos brutalmente mortos, em 2011, na Costa do Marfim por acção directa ou indirecta das forças de intervenção das Nações Unidas (130), cuja principal operação consistira numa mudança de regime com vista a substituir o presidente cristão vitorioso, Laurent Koudou Gbagbo, pelo candidato islâmico perdedor, Alassane Dramane Ouattara (131); torna-se, aliás, evidente o porquê da ingerência da ONU na Costa do Marfim, tendo em vista o percurso e o perfil tecnocrático de Alassane Ouattara, particularmente manifesto no âmbito do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Central dos Estados da África Ocidental (BCEAO);

f) Treino e incitamento ao terrorismo jihadista em escolas localizadas em instalações próprias das Nações Unidas, especialmente destinadas aos palestinianos que, por esta forma, aprendem, desde a primeira classe, a odiar e a matar, através de esfaqueamentos, disparos e atropelamentos, judeus e americanos, os últimos dos quais têm, aliás, sobejamente contribuído com 400 milhões de dólares por ano para que a ONU promova currículos por via dos quais se ensina a guerra em vez da paz; logo, não é por acaso que, em 2014, foram descobertos, numa das escolas das Nações Unidas em Gaza, armas mortíferas que foram depois entregues por funcionários da ONU aos terroristas do Hamas sob o pretexto de se tratarem de “autoridades locais”.



Notas: 

(57) Trata-se, como é geralmente sabido, de uma tecnologia de localização por satélite, designada por Global Positioning System.

(58) Esta tecnologia tem sido sobretudo usada em animais de estimação ou, até mesmo, na entrega de encomendas a fim de determinar o seu paradeiro. De resto, parece que também já existem, embora num registo pouco comum, chips em peças de automóveis que poderão ser accionados por satélite para imobilizar o motor. E na Inglaterra já apareceram, inclusivamente, caixotes do lixo que contêm o registo electrónico sobre quem deita fora o quê.

(59) Já em 1960, o japonês Noboru Kawazoe chegara a prever o que poderia vir a ser, no campo da tecnologia da comunicação, a possibilidade de cada pessoa ter ao seu dispor um receptor de ondas cerebrais para, desse modo, poder saber o que outras pessoas estariam a pensar dela e vice-versa. Baseado na sua previsão, aquele diria ainda que, uma vez alcançada tal possibilidade, deixaria de haver consciência individual, para tão-só persistir a vontade da humanidade como um todo.

(60) Esta transpessoalidade encontrar-se-á, porém, nos antípodas do misticismo propriamente dito.

(61) Os sistemas de identificação biométrica, estreitamente associados às características físicas e comportamentais únicas dos indivíduos, podem, por exemplo, incidir na palma da mão, nas impressões digitais ou, ainda, na retina ou íris dos olhos. Uma outra variante da identificação biométrica pode também incidir no reconhecimento facial com o objectivo de capturar, armazenar, processar e analisar dados pessoais para fins tão díspares quantos os existentes numa sociedade orweliana. Daí a respectiva introdução de programas-piloto em alguns dos mais importantes aeroportos do mundo, onde já se encontram em fase de experimentação, em países como a Itália, Holanda, Reino Unido, Austrália, Estados Unidos, Japão, China, Singapura e Dubai, diversos esquemas de avançada tecnologia de reconhecimento facial que, em combinação com a “computação em nuvem” (cloud computing), permitem registar, detectar e ler o perfil emotivo, a disposição de humor e as prováveis intenções de um qualquer viajante que seja.

Consequentemente, é óbvio que a par desses dados venham os relativos à rigorosa identificação e propósitos de cada um desses viajantes: quem é, o que faz, o que irá ou não fazer, etc. Deste modo, detectar e prever o comportamento de toda e qualquer pessoa é o que mais propriamente caracteriza um estado policial que, no fundo, é a consequência gradual de uma engenharia social empenhada no controlo totalitário da sociedade. Numa palavra, é a tecnocracia levada ao limite da sua aplicação enquanto inimiga do homem e da liberdade principial.

Podemos, de resto, já antecipar que a identificação biométrica substituirá definitivamente o cartão de identificação até aqui usado pela generalidade das pessoas. A ONU, no âmbito da sua Agenda 2030, já propôs, inclusivamente, providenciar a todo o “cidadão do mundo” uma “identidade legal” ou um “registo de nascimento” biometricamente viável. E na sequência dessa “identidade puramente tecnológica” virá, seguramente, a supressão do dinheiro para que, no processo da sociedade global, não possa haver transacção alguma que não seja imediatamente detectável.













































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(62) «E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, lhes seja posto um sinal na sua mão direita, ou nas suas testas. Para que ninguém possa comprar, ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da Besta, ou o número do seu nome. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis» (Apocalipse 13:16-18).

(63) John Perry Barlow, letrista da banda psicadélica Grateful Dead e co-fundador da Electronic Frontier Foundation, exprimiu-se da seguinte forma: «É como se o futuro estivesse a ser criado por um culto secreto» (cf. prefácio de Luís Torres Fontes a Aldous Huxley, As Portas da Percepção, Via Óptima, 2005, p. 25).

(64) Este expressão foi cunhada, em 1960, por Manfred Clynes e Nathan S. Kline para designar um ser constituído de partes biomecânicas e electrónicas. A essa expressão corresponde, por abreviação, o que actualmente se designa por ciborgue.

(65) Além de fundador, director técnico e executivo da SpaceX, uma empresa construtora aeroespacial, sedeada em Hawthorne, Califórnia, Elon Musk é o actual director técnico da Tesla inc., uma empresa construtora de automóveis eléctricos e de painéis solares previamente designada por Tesla Motors. Musk é também o co-presidente da OpenAl, uma empresa votada à pesquisa no domínio da inteligência artificial, tendo já sido o co-fundador e presidente da Solar City, uma empresa especializada em energia solar.

(66) Empregamos aqui o termo paradoxalmente visto existirem algumas afirmações de Musk que apontam para a improbabilidade da co-existência entre ciência e religião.

(67) Nos últimos tempos, Musk tem insistido na possibilidade de que a corrida global em torno da inteligência artificial poderá, de alguma forma, dar início à III Guerra Mundial.

(68) Trata-se de mais uma das empresas co-fundadas por Elon Musk.

(69) Há, sem dúvida, em muitos aspectos da visão do mundo e do destino da humanidade em Elon Musk uma componente globalista, sobretudo quando defende a implementação de um sistema de carros auto-dirigidos, um “rendimento mínimo universal” ou mesmo até quando, num passado recente, passou a condenar a decisão de Donald Trump em abandonar um dos maiores embustes implementados pela Organização das Nações Unidas: o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, aprovado em 12 de Dezembro de 2015.

(70) Esta empresa foi fundada, em 1983, por Stephen Jacobsen. Em 1992, a Sarcos começou a dirigir a sua atenção para a criação de próteses e para a interconectividade entre o cérebro e o computador. A empresa encerra ainda divisões de robótica e engenharia biomédica. O seu quartel-general situa-se no Parque de Pesquisa da Universidade do Utah, em Salt Lake City, nos Estados Unidos.

(71) Este projecto resultou de uma subvenção concedida pela Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), a qual, totalmente independente de outras agências de pesquisa e desenvolvimento militar, reporta directamente os seus resultados ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Esta agência, originalmente designada por Advanced Research Projects Agency (ARPA), foi criada a 7 de Fevereiro de 1958 pelo Presidente Dwight D. Eisenhower, em resposta ao lançamento, por parte da União Soviética, do Sputnik 1, ocorrido a 4 de Outubro de 1957. Quanto ao seu principal objectivo, consiste na descoberta de todo o tipo de inovações técnicas para uso essencialmente militar.

(72) A principal função do exoesqueleto energizado é o de aumentar a força, a velocidade e a resistência do seu portador. É, além do mais, similar ao exoesqueleto de um insecto. Oportuno seja, porém, destacar que, paralelamente a isso, tem sido acelerada, sob o patrocínio do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a pesquisa relativa à criação de super-soldados capazes de combater durante 168 horas sem dormir.

(73) É assim que tais dispositivos são denominados no Japão.

(74) É o caso da Universidade da Califórnia, em Berkeley, pioneira, aliás, no âmbito de um projecto que, financiado pelo programa DARPA HI-MEMS (Hybrid Insect Micro Electromechanical Systems), viabilizou o controlo remoto de um besouro.























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(75) Citamos, a propósito, dois trechos deste livro, de modo a assinalarmos a pertinência da questão colocada: «A diferença consiste em o esqueleto do homem ser interno e coberto de carne, ao passo que o insecto tem o seu esqueleto à vista, servindo-se dele como duma couraça, duma armadura, duma ferramenta. Numa espécie de insectolatria levada ao absurdo, ou ao máximo da lógica, mas dentro da razão, o homem parece ter experimentado este método, ao passo que, vê-lo-emos ao longo do livro, a humanidade, a nossa, e mesmo a animalidade, são formas de libertação do mundo dos insectos»; «Citaremos mais adiante a opinião de Bergson sobre os caracteres da espiritualidade psíquica e intuitiva do insecto, que se apercebe da vida interior, ao passo que o intelecto humano se apercebe dos fenómenos exteriores. Foi para conquistar estas “perturbações” psíquicas, digamos, estas “faculdades” psíquicas, que os antigos habitantes da ilha da Páscoa se entregaram, voluntariamente, a estes regímenes devastadores da carne. Por esta mesma razão os Cátaros praticavam a castidade para obter insónias, visões, psiquismos. É ainda por razões semelhantes que, em todas as etnografias, os aprendizes mágicos praticavam assiduamente diversos ascetismos. Os Antigos sempre o disseram: os nossos clássicos estão cheios de descrições destes métodos e ainda hoje os feiticeiros selvagens usam os mesmos processos» (in Denis Saurat, A Religião dos Gigantes e a Civilização dos Insectos, Estúdios Cor, pp. 31 e 32).

(76) Um dos seus estandartes é, pois, com vista à longevidade ou à suposta extensão perdurável da vida, a crio-preservação de cadáveres para que, num período futuro, possam vir a ser restituídos à existência por meio de avançada tecnologia.

(77) O transhumanismo tem sido, por vezes, encarado como uma espécie de neo-gnosticismo por, na sua afrontosa crença, sobrepor ao corpo humano processos neuro-tecnológicos que o tornarão praticamente inútil ou simplesmente inexistente.

(78) Para muitos críticos, sejam eles de proveniência conservadora, cristã ou progressista, o transhumanismo é uma forma derivada do pós-humanismo, a par de outras formas dele igualmente derivadas, tais como o anti-humanismo ou a tomada de poder pela inteligência artificial, mediante a qual advirá, para usarmos o título de um livro de Raymond Kurzweil, A Era das Máquinas Espirituais (1999). Como tal, a possibilidade de perspectivas e sub-definições decorrentes do pós-humanismo, promete ser fastidiosa e assaz complexa. Nisto, há até uma versão do pós-humanismo entendido como o sucedâneo daquilo que os humanistas seculares chamam o movimento iluminista do livre-pensamento, já de si relegado para as trevas da inexistência pelo núcleo duro da “cultura transhumanista”, onde triunfa e predomina o tecnocentrismo.

(79) Tem sido aventada a hipótese de que a invenção da super-inteligência artificial pode, por meio de ciclos de auto-aperfeiçoamento, desencadear uma reacção desenfreada e incontrolável no âmbito do crescimento tecnológico ilimitado. Daí, segundo John von Neumann, o conceito de uma alegada “singularidade tecnológica” em que se estipula que a humanidade, tal como a conhecemos, jamais será a mesma devido ao predomínio de uma ultra-inteligência artificial em contínua e acelerada progressão. Entretanto, é Raymond Kurzweil – também conhecido por CyberNostradamus – quem, no seu livro de 2005, The Singularity is Near, nos traça, de facto, um cenário futurista em que ressalta a esperança de vida ilimitada em função do avanço tecnológico emergente, designadamente através da terapia genética, ou até mediante a substituição do ADN humano por genes sintéticos. Em suma: ao conceito de imortalidade corresponderá doravante o conceito de “ascensão digital”, o qual, a par da progressiva corrupção da carne, admite, todavia, a continuidade da consciência por via computacional.

(80) «Há numerosos exemplos dos ideais transhumanistas que estão a ser promovidos na indústria musical. Pense-se, por exemplo, na actuação ao vivo de Rihanna, durante o tema “Rude Boy”. Em palco, ela actua com verdadeiros robôs dançantes. Estes robôs não têm absolutamente nada a ver com a música. O objectivo da coreografia é fazer com os espectadores tenham a sensação de que os robôs são seres sensíveis. Tudo o que os transhumanistas pretendem é que os humanos encarem objectos inanimados, e a própria tecnologia, como se estivessem ao mesmo nível de um ser humano» (in Daniel Estulin, O Instituto Tavistock, p. 207).

(81) Face à emergência dos relativamente recentes e controversos movimentos pseudo-religiosos, geralmente inspirados nos princípios teosóficos da Nova Era (New Age), tem-se feito sentir a não menos emergente expansão de uma certa “espiritualidade” associada a uma preconizada neuro-teologia capaz de, perante uma eventual transferência mental de dados pessoais – emoções, memória, identidade, etc. – para um sistema de computação, controlar estados alterados de consciência, doravante interpretados como experiências de ordem suprafísica. E assim voltamos novamente à ideia de uma espécie de “divindade pós-humana”, que, de certo modo, é não só passível de ser explorada, em termos de realidade simulada, como uma “meditação” análoga ao estado búdico de “consciência plena” destinada à transcensão da humanidade, como também apta a ser, na esfera digital, equiparada a uma “consciência global” eventualmente inspirada nos escritos do teólogo e paleontólogo jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, no que especialmente se referem à esfera do pensamento humano ou noosfera.










(82) Daniel Estulin, O Instituto Tavistock, p. 202.

(83) Este livro contém perspectivas do autor inerentes a alterações radicais no corpo e na inteligência humana, nomeadamente através de implantes biónicos. Encerra, igualmente, a possibilidade da colonização do espaço.

(84) Note-se que, no princípio dos anos 80, a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, tornou-se no principal centro do movimento transhumanista.

(85) O respectivo filme, produzido e dirigido por Stanley Kubrick, apareceu na mesma data.

(86) É caso para relembrar que, no que concerne ao apagar da singularidade indivisa, uma das correntes contidas no transhumanismo é, curiosamente, o movimento do pós-género em que se advoga a supressão de todas as diferenças biológicas, psico-físicas, sociais e culturais tradicionalmente aceites na sociedade civilizada. Aliás, brotando de uma perversa mistura entre movimentos feministas e andróginos, aquele movimento preconiza ainda desumanas formas de reprodução na sociedade actual e do futuro, sem que para tal concorra a actividade sexual propriamente dita. Daí o seu enfoque nas vindouras aplicações da bio-neurotecnologia, assim como nas novas técnicas de assistência reprodutiva no sentido de tornar inúteis as naturais diferenças entre os consagrados géneros masculino e feminino.

Não é, pois, por acaso que a Planned Parenthood Federation of America tenha vindo a insistir, numa manifesta demonstração de loucura e depravação, na imperativa necessidade de ensinar às crianças do jardim de infância tudo o que promova a transsexualidade em termos tais que, as palavras “menino” e “menina”, ou “homem” e “mulher” sejam apenas vistas como meras ou eventuais descrições da “identidade de género”, pois doravante existem alguns meninos e homens que têm vulva, como ainda algumas meninas e mulheres que têm pénis. Por conseguinte, os pais não devem, em frente dos filhos, pressupor a simples quão natural possibilidade de uma filha, por exemplo, poder vir a ter, no futuro, namorados ou vir a casar-se com um homem, porque esta poderá escolher uma outra “orientação sexual” diferente que não esteja ainda definida nos primeiros anos de vida, e, por isso, quando chegada a altura, sentir-se profundamente inconfortável em função do que lhe foi dito ser o certo e o errado. Enfim, tudo isto já ultrapassa, em extensão e compreensão, o que António Telmo tivera para dizer, em Filosofia e Kabbalah, sobre a doutrina alvarina que preconiza a existência de duas almas distintas, e, portanto, de duas psicologias diversas que exigem, por sua vez, dois ensinos desiguais mas profundamente complementares. Eis, pois, segundo a hermenêutica do próprio: «O que distingue, do ponto de vista católico, o pensamento de Álvaro Ribeiro do daqueles que o precederam é a valorização do sacramento do Matrimónio sobre o sacramento da Ordenação. A reflexão sobre as diferenças no corpo, na alma e no espírito entre o homem e a mulher está sempre presente em tudo quanto escreveu. Haverá uma linguística para o dizer masculino e outra para o dizer feminino, duas psicologias, dois ensinos... É evidente que o leitor comum, nascido e criado numa época em que os homens já começam a reivindicar direitos iguais aos das mulheres, não pode deixar de considerar antipática esta doutrina. Álvaro Ribeiro aparece-lhe portador de um espírito retrógrado: esse leitor já não vê a diferença entre o macho e a fêmea; a distinção presente é entre homossexuais e heterossexuais; e, como qualquer dos dois sexos pode participar no homossexualismo ou no heterossexualismo, estes é que dividem, realmente, a humanidade em dois géneros. A fisiologia, que descobre a existência dos dois sexos no embrião, a psicanálise, que compõe o animus com a anima, a metafísica, que põe na origem e no fim o ser andrógino convergem para dar razão àqueles que interpretam o Génesis pelo Banquete de Platão: “Macho e fêmea os criou”» (in António Telmo, Filosofia e Kabbalah, Guimarães Editores, 1989, pp. 90-91).

(87) Daniel Estulin, O Instituto Tavistock, p. 201.

(88) Daniel Estulin, O Instituto Tavistock, pp. 196-199. Complementando ainda estas considerações, escreve Estulin: «Fundado em Abril de 1968 por Alexander King e Aurelio Peccei, entre outros, como uma organização malthusiana que tinha o genocídio na ordem do dia, o Clube de Roma, estabelecido numa reunião de trinta indivíduos de dez países, é composto pelos mais antigos membros da Aristocracia Negra Veneziana, descendentes das mais ricas e antigas famílias europeias, que dirigiam Génova e Veneza no século XII. Em 1972, publicaram o seu manifesto sobre “A Situação Difícil da Espécie Humana”, sob o título Limites no Crescimento, que mostrava que a Terra não pode aguentar a actual expansão da população, numa época em que os recursos naturais se esgotam. A conclusão a que se pretende chegar é a do colapso da economia mundial, mesmo com a sua versão de recursos “ilimitados”, o que abrange o fim do processo científico e do desenvolvimento de novas tecnologias revolucionárias. Se abrirmos caminho através da confusão verbal verdadeiramente babilónica, o relatório de 1992, A Revolução Global: Um Relatório do Conselho do Clube de Roma, deixa pouco espaço para dúvidas em relação ao seu verdadeiro programa: “Procurando um novo inimigo para nos unir, surgiu-nos a ideia de que a poluição, a ameaça do aquecimento global, a escassez de água, a fome e outras coisas afins desempenhariam esse papel”. E concluíam com a seguinte afirmação: “O verdadeiro inimigo é pois a própria humanidade”.

Mas o bizarro disto tudo não termina aqui.


Carl Sagan













Sagan foi um dos fundadores duma coisa chamada Sociedade Planetária. De acordo com a sua própria página Web, “A Sociedade Planetária, fundada em 1980 por Carl Sagan, Bruce Murray e Louis Friedman, inspira e envolve o público mundial na exploração do espaço através de discussão, projectos e actividades educativas. A Sociedade Planetária é hoje a organização pública dedicada ao espaço mais vasta e influente da Terra. Dedicada à exploração do sistema solar e procurando vida para além da Terra, a Sociedade Planetária é uma organização não governamental e sem fins lucrativos, financiada pelos seus membros”.

Isto soa maravilhosamente prometedor, apenas com o senão que, desde o início, o corpo de consultores incluía um grupo de eminentes porta-vozes das campanhas ambientalistas e desindustrializadoras da Conspiração do Aquário nos Estados Unidos. Entre eles, Isaac Asimov, o escritor de ficção científica malthusiano; Norman Cousins, editor da Saturday Review e membro do Clube de Roma; John Gardner, chefe da organização ambientalista Causa Comum e presidente da Carnegie Corporation, ligada à Fundação Rockefeller; Shirely Hufstedler, que fez parte do conselho de administração do Instituto Aspen; e Lewis Thomas, eminente defensor da eutanásia. Qual é o elemento em comum entre eles? O idealismo do crescimento zero e progresso zero dos seus mais destacados membros» (ibidem, pp. 222-223).

(89)As origens do Projecto MK-ULTRA podem ser encontradas na Operação Paperclip, um programa secreto que levou a cabo, em 1945, o recrutamento de 1600 técnicos, cientistas e engenheiros alemães com o objectivo de desenvolver o programa espacial americano a partir de projectos da Alemanha nazi relativos aos foguetes V-1 e V-2. Mas não só: essa Operação, determinada no âmbito da Joint Intelligence Objectives Agency (JIOA), recrutou igualmente especialistas nazis em guerra psicológica, bem como espiões, assassinos e sabotadores na sequência da criação, em Junho de 1946, da agência de inteligência Gehlen – nome proveniente do major-general Reinhard Gehlen da Wehrmacht e chefe da inteligência militar alemã da frente oriental durante a II Grande Guerra –, a qual consistira numa organização que, em estreita aliança com a CIA, virou-se exclusivamente para a espionagem técnica, política e económica dirigida às repúblicas do bloco de Leste.

O Projecto MK-ULTRA, dirigido por Sidney Gottlieb e iniciado por ordem do director da CIA Allen Welsh Dulles, foi oficialmente sancionado a 13 de Abril de 1953 e, ao cabo de vinte anos, considerado inactivo. O seu principal escopo consistira em actividades ilegais dirigidas à administração subreptícia de drogas visionárias e outros materiais químicos, biológicos e radiológicos a fim de obter o controlo e a modificação do comportamento humano, além da alteração de funções cerebrais resultantes de hipnose, privação sensorial, isolamento, abuso verbal e outras formas de tortura psicológica. Quem, no lance, reclamou ter sido vítima do programa de controlo mental da CIA, foi a sensual e deleitosa modelo americana Candy Jones, também conhecida por Jessica Arline Wilcox. Mais recentemente, Cathy O'Brien reivindicou o mesmo, atribuíndo o início da sua não desejada experiência à infância.

(90) O Instituto Tavistock para as Relações Humanas foi criado em 1947 mediante financiamento significativo da Fundação Rockefeller. Anterior a esse instituto propriamente dito, estava a Clínica Tavistock que chegara a colaborar, aquando da Segunda Guerra Mundial, com o Exército britânico no contexto da investigação psiquiátrica centrada nos efeitos da guerra psicológica. Porém, quando o quadro de pessoal da Clínica Tavistock, profundamente interessado no prosseguimento daquela investigação no período do pós-guerra, se tornou parte, em 1946, do Sistema Nacional de Saúde, foi entretanto obrigado a desistir da mesma, pelo menos no âmbito daquele mesmo Sistema.

O Instituto Tavistock tornou-se especialmente célebre na Inglaterra com a propagação das teorias psicanalíticas e psicodinâmicas de Sigmundo Freud e seus seguidores. Além disso, outros nomes ficaram igualmente ligados a esse Instituto, como, por exemplo, Melanie Klein, Carl Gustav Jung, J. A. Hadfield, Samuel Beckett, Charles Rycroft e R. D. Laing. E, nisto, não é por acaso que membros do Instituto Tavistock tenham podido desempenhar papéis de grande destaque em organizações internacionais, como é o caso de John Rawlings, o primeiro presidente da World Federation for Mental Health, ou ainda o caso de Jock Sutherland enquanto director da Clínica Tavistock no pós-guerra.

Por fim, note-se ainda que o Instituto Tavistock para as Relações Humanas tem levado avante a sua agenda no âmbito da Comissão Europeia e de entidades governamentais britânicas.

(91) Ibidem, pp. 94-95.

(92) Ibidem, p. 90

(93) Ibidem, pp. 91-92.




















































(94) Não constitui nenhum segredo o facto de haver entre os serviços Google e a esquerda americana uma aliança altamente duvidosa do ponto de vista da tão proclamada diversidade de opinião, o que, aliás, permite explicar a discriminação ideológica a que, no seio da própria empresa, têm sido submetidos todos aqueles que perfilhem os princípios e valores da direita conservadora, ou tenham até mesmo votado em Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016. Neste último aspecto, não fora, pois, em vão que a CNN, um canal norte-americano especializado em “notícias falsas” (“fake news”), tivesse admitido que o maior inimigo de Donald Trump fosse, nem mais nem menos, a Google. De resto, ficou bem demonstrado que quando os utilizadores, recorrendo aos serviços on-line desta empresa multinacional, buscavam informação sobre os candidatos presidenciais, surgiam milhares de resultados relativos a Hillary Clinton, Bernie Sanders e Jill Stein, ao passo que, no caso de Donald Trump, era como se simplesmente não existissem.

Por outro lado, o candidato do Partido Republicano chegara a ganhar as eleições presidenciais dos EUA quando, sondagem após sondagem, havia sido prematuramente anunciada a vitória esmagadora de Hilary Clinton. Porém, um mês depois da vitória daquele que se tornaria o quadragésimo quinto Presidente dos Estados Unidos, surgia o Projecto Coruja lançado pela Google, com o claro propósito de eliminar da circulação on-line tudo o que pudesse conter, implicar ou sugerir artigos classificados de falsos, ofensivos e enganadores. E assim estava lançada mais uma batalha pelo controlo da informação, doravante destinada a excluir tudo o que represente a mais pequena ameaça para o establishment mediático convencional.

(95) Estas mega-empresas de tecnologia estão já, na verdade, a concertar esforços transnacionais com os burocratas não-eleitos da União Europeia, com o objectivo de censurar a Web ou a rede mundial de computadores. Em 2016, apareceu, inclusive, um “Código de Conduta” que “regula” ou determina a remoção de conteúdos considerados “delitos de opinião”, nomeadamente os que directa ou indirectamente incidam, de modo crítico ou desfavorável, sobre o Islão ou sobre questões relativas ao fluxo de migrações incontroladas que actualmente assolam e ameaçam destruir de vez a fisionomia pluri-nacional, geográfica e espiritual da Europa. Deste modo, enquanto as cidades europeias vão sendo implacavelmente atingidas por ataques terroristas – Paris, Estocolmo, Bruxelas, Berlim, Manchester e Barcelona –, vai igualmente transparecendo o facto de que as novas regras de censura impostas pelos internacionalistas da União Europeia constituem, pelo seu carácter vago e impreciso, uma forma prepotente e, por conseguinte, totalitária de calar todos aqueles que simplesmente discordam do modo como tem sido gerida e explorada a referida “crise dos refugiados”, a qual, na sua essência, pouco ou nada tem a ver com questões humanitárias, porque, antes e acima de tudo, o que aqui está em causa é uma agenda global que pretende ver abolida, senão mesmo destruída toda e qualquer fronteira de âmbito nacional, para assim mais facilmente poder implementar a imigração ilegal e o tráfico interactivo de seres humanos daí resultante.

Entretanto, para que seja possível e realmente eficaz a suposta erradicação do “pensamento-crime” no seio da União Europeia, já existe, de facto, um sistema de sanções de ordem criminal para ser aplicado a todos aqueles que se atrevam a tomar posições incompatíveis com as novas regras do “políticamente correcto”. Para estes estará, então, particularmente reservado todo o tipo de acusações e inapeláveis condenações, desde a violência verbal e a discriminação racial, até aos apregoados crimes de intolerância e xenofobia que suscitarão, forte e feio, a aplicação de pesadas multas e penas de prisão. Destronada a velhilíngua, de modo a finalmente triunfarem os princípios da novilíngua, é, pois, caso para dizer que tudo se reduz ao seguinte: censura é liberdade de pensamento, caos e desordem é humanitarismo, terrorismo e imigração ilegal é segurança e preservação da vida.

(96) Dignas de nota são, a propósito, as seguintes considerações sobre a Grande Loja Rockefeller: «A esta [Loja] só podem pertencer pessoas de elevado nível social (político, económico, cultural) que estejam iniciadas nos graus superiores dos ritos maçónicos – por exemplo, nos graus 30 e 33 do Rito Escocês Antigo e Aceite. É uma ordem secreta iluminista, de carácter luciferino, com sede em Nova Iorque transferida há pouco para os arredores da cidade, segundo parece por razões práticas (ficava em Nova Iorque, muito perto do Rockefeller Center com a figura do mito Prometeu no chão numa atitude de rebeldia um tanto orgiástica contra Zeus, o deus supremo do panteão grego, e símbolo da irreligiosidade em qualquer época. No cimo do arranha-céus Tishman, de 166 metros de altura, figurava o número 666, de brilhante cor vermelha de dia e iluminado de noite. Este número foi retirado em 1992, mas o edifício é agora o “666 5th Avenue”. O seu rito pretende outorgar uma luz superior à maçónica» (in Manuel Guerra, A Trama Maçónica, Princípia Editora, 2012, p. 270).

(97) Estes encontros têm-se desenrolado no âmbito do Clube Bilderberg.

(98) O bloqueio de sites na Internet constitui parte importante do projecto de vigilância e censura operado pelo Ministério de Segurança Pública chinês. Esse projecto, iniciado em 1998, é, de uma forma geral, designado por Grande Firewall da China, ou Projecto Escudo Dourado.






(99) Esta agência, especializada em tecnologias de informação e comunicação, foi fundada em 1957 e encontra-se sediada em Genebra, Suíça. Esta organização remonta à União Internacional de Telégrafos, fundada em Paris a 17 de Maio de 1865.

(100) Curiosamente, o anterior secretário-geral da União Internacional de Comunicações foi Hamadoun Touré, entre 2007 e 2014. Originário do Mali, Hamadoun Touré foi formatado na União Soviética, onde obteve o seu diploma universitário na Universidade Técnica de Comunicação e Informática de Moscovo. Por conseguinte, estamos aqui, de algum modo, perante o interesse não menos capital por parte do Kremlin quanto à regulamentação vindoura da Internet sob os auspícios da ONU.

(101) Foi directora-geral da OMS entre 4 de Janeiro de 2007 e 1 de Julho de 2017.

(102) Li Yong foi nomeado director-geral na UNIDO em 24 de Junho de 2013, onde continua operativo até hoje.

(103) A violência em Charlostteville ocorreu a 12 de Agosto de 2017, aquando da manifestação contra uma decisão da prefeitura de remover a estátua do General confederado Robert E. Lee. A manifestação, previamente autorizada, incluiu alguns membros do Ku Klux Klan que, como é sabido, reacenderam as suas paixões raciais, nos anos 50 e 60, contra o movimento pelos direitos civis liderados pelos negros americanos, no Sul dos Estados Unidos. Contudo, convém dizer que a violência acabou por ser despoletada quando, a par de uma contra-manifestação não autorizada, a polícia permitiu o confronto entre aqueles membros do KKK e os militantes do movimento terrorista revolucionário conhecido porAntifa, que, aliás, muito deve ao apadrinhamento financeiro de George Soros e companhia limitada. Por conseguinte, tendo, porventura, havido ou não “neo-nazis” ou “supremacistas brancos” entre a manifestação de centenas de pessoas que, na realidade, nada tinham a ver nem com uns nem com outros, a verdade é que o confronto foi politicamente aproveitado para meter no mesmo saco os radicais ditos de extrema-direita e os inúmeros cristãos conservadores, liberais clássicos, patriotas e constitucionalistas que ainda suportam um largo espectro da política americana.

Mas não só: nesse mesmo saco também se quis pôr todo e qualquer apoiante de Donald Trump, para que assim ficasse imediatamente conotado com os “neo-nazis” e os membros do Ku Klux Klan. Por isso, quando o novo Presidente dos Estados Unidos condenou, por duas vezes e com toda a frontalidade e veemência, a violência, de parte a parte, em Charlostteville, caiu o carmo e a trindade no seio dos fazedores de “fake news”, por deliberadamente estarem a omitir grande parte do porquê da violência, que também viera por conta – e de que maneira – dos tais militantes militarizados anti-fascistas(a Antifa), constituídos por comunistas, socialistas e anarquistas. E assim nasceu, mais uma vez, o mito urbano de que Donald Trump estava, no fundo, a alinhar com os neo-nazis e os supremacistas brancos do Ku Klux Klan, que, como é óbvio, serviu de pretexto mais que oportuno para a ONU atacar princípios básicos da Constituição dos Estados Unidos.

(104) Esta intervenção abusiva por parte das Nações Unidas é tanto mais absurda quanto o facto de os canais ou redes de notícias norte-americanas terem já, por inúmeras ocasiões, procedido ao incitamento de múltiplas formas de violência contra o actual presidente dos EUA, como também contra todos os que nele depositaram o seu voto ou o seu incondicional apoio na sequência das eleições presidenciais de 2016. Demais, no Dia da Inauguração, a Cable News Network (CNN) já andava a puxar pela possibilidade do assassinato de Donald Trump, além de ter, através da empresa-mãe, a Time Warner, posteriormente patrocinado, durante noites consecutivas, uma macabra peça teatral em que se mostrava um Donald Trump, qual Júlio César, a ser brutalmente esfaqueado até à morte. Por conseguinte, não deixa de ser extremamente cínica a atitude da CNN quando, oportunamente apontada por Donald Trump como uma vil e desonesta rede de fake news, logo se presta ao papel de vítima perante o ajuste de contas vindo de quem não se deixa intimidar perante as permanentes tácticas de aviltamento da sua pessoa e de todos aqueles que, de alguma forma, lhe são próximos, leais ou familiarmente afins.

(105) Entretanto, na Europa já começam a aparecer casos de pastores atirados para a prisão por simplesmente defenderem a concepção bíblica sobre o casamento, ou ainda casos de políticos igualmente presos por citarem trechos onde perpassam as críticas contundentes de Winston Churchill ao Islão, entre eles Paul Weston, fundador do Liberty Great Britain e ex-candidato a membro do Parlamento Europeu.








(106) Dos 18 peritos em “direitos humanos” da já referida Convenção Internacional virada para o “combate” contra a Discriminação Racial (ICERD), consta Yemhelhe Mint Mohamed, proveniente da Mauritânia, um país africano islâmico onde, curiosamente, a maioria da população negra foi e ainda é abertamente escravizada por muçulmanos árabes e berberes. Quanto a outros peritos de países violadores dos “direitos humanos”, assinale-se Yanduan Li, da China, que, para o efeito, ainda continua a praticar o “genocídio cultural” no Tibete, além de Noureddine Amir, vice-presidente proveniente da Argélia, ou ainda Fatimata-Binta Victoire Dah, do Burkina-Faso, e Jose Francisco Cali Tzay, da Guatemala.

(107) Tal é o que explica ter sido António Guterres nomeado, a 15 de Junho de 2005, para Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mantido até 31 de Dezembro de 2015.

(108) Foi Guterres quem, na realidade, chegou ainda a propor o uso de aviões para a entrada massiva de “refugiados” na Europa, vindos da África e do Médio Oriente.

(109) Dos 248,290 pedidos de asilo recebidos até agora pela União Europeia em 2017, só 14% são provenientes da Síria. Esta última percentagem inclui indivíduos com falsa identificação, a fim de obterem melhor tratamento.

(110) Note-se que estamos aqui perante dois programas distintos mas ainda assim complementares quanto à questão dos “refugiados”: um deles proveniente das Nações Unidas e o outro da União Europeia. Entretanto, não admira nada que Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia, tivesse afirmado que, só em 2015, cerca de 500.000 “refugiados” houvessem procurado entrar na Europa para fugir à guerra, ao terrorismo e à opressão política na Síria, na Líbia e na Eritreia. E que também tenha dito que o objectivo da União Europeia haja sido, desde o ano 2000, criar legislação sobre legislação para construir um Sistema Comum de Asilo Europeu. Em suma: mais Europa, mais poder centralizador nas mãos da Comissão Europeia e, por conseguinte, menos autonomia e poder de decisão a nível nacional.

(111) A partir de 1 de Janeiro de 1995, o GATT, estabelecido em 1947, passaria a ser designado por World Trade Organization (WTO).

(112) A indicação destes nomes segue essencialmente a lista elaborada por Frederico Duarte Carvalho, em O Governo Bilderberg. Do Estado Novo aos nossos dias, Planeta, 2016, pp. 422-442).

(113) Também houve, de resto, algumas figuras que, na altura do Estado Novo, participaram no Clube Bilderberg, tais como: Rui Ennes Ulrich (1956, Dinamarca); Manoel Sarmento Rodrigues (1959, Turquia; 1960, Suíça); Marcello Mathias (1962, Suécia; 1963, França); Manuel Ribeiro Espírito Santo Silva (1966, Alemanha; 1972, Bélgica); Alberto Franco Nogueira (1967, Reino Unido; 1968, Canadá; 1970, Suíça; 1972, Bélgica). Contudo, uma diferença abissal se impõe aqui realçar perante os demais participantes no período pós-25 de Abril: os primeiros ainda tinham uma noção de Pátria e de dever ou dívida para com ela, os restantes nem sequer consciência tiveram ou têm do que isso possa alguma vez significar.

(114) «Membro permanente desde 1983, tendo faltado apenas ao encontro de 1986. Anunciou, em Maio de 2015, que iria deixar o cargo de membro permanente tendo proposto para o seu lugar o nome do ex-primeiro-ministro e antigo presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso» (in O Governo Bilderberg, p. 423). Uma das «polémicas em que [Pinto Balsemão] esteve envolvido devido à sua vinculação com Bilderberg – cujas reuniões têm um custo aproximado de dois milhões de euros –, teve a ver com o facto de se ter descoberto que o grupo Impresa suportou parte das despesas da reunião de Sintra. A Sojornal, empresa que detém a maioria das acções do semanário Expresso e da revista Visão, recebeu cerca de 40 mil contos (200 mil euros) do Ministério dos Negócios Estrangeiros para organizar o encontro dos líderes mundiais no luxuoso complexo da Penha Longa, em Sintra. Foi uma notícia veiculada pelo Semanário O Independente.

O que significa que os contribuintes portugueses contribuíram para pagar os quatro dias de luxo num dos hotéis mais caros do País, precisamente àqueles que zombavam da democracia e do parlamento. Resta dizer que o presidente da Sojornal não é senão outro que Pinto Balsemão. Segundo indicou fonte da Sojornal, o dinheiro recebido do Estado para organizar o evento não devia ser visto como uma subvenção mas sim como um patrocínio» (in Cristina Martín Jiménez, O Clube Secreto dos Poderosos, Matéria-Prima Edições, 2015, p. 203).

(115) Este internacionalista, uma vez eleito presidente da República, «não hesitou depois em convidar para o seu primeiro Conselho de Estado, orgão máximo de aconselhamento ao Chefe de Estado de Portugal, o presidente do BCE, o italiano Mario Draghi, pessoa com várias presenças em Bilderberg e que conta com o português Vítor Constâncio como seu vice-presidente...» (in Frederico Duarte Carvalho, O Governo Bilderberg. Do Estado Novo aos nossos dias, p. 26). De resto, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, outro dos participantes no Clube Bilderberg, disse – aquando da sua visita a Lisboa – sobre o novo presidente da República: «O Presidente tem sempre de enfrentar desafios, mas agora temos o homem certo no local certo» (o negrito é nosso).









(116) A Agenda 2030 é, no fundo, a continuação programada da Agenda 21 enquanto documento resultante da conferência Eco-92 ou Rio-92, organizada pelas Nações Unidas e ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, entre 3 e 14 de Junho de 1992. Esta conferência reuniu os activistas e ambientalistas mais extremistas de todo o mundo com vista a puderem debater e determinar medidas susceptíveis de coagir governos, empresas e organizações não-governamentais no alegado combate ao “aquecimento global”. O seu objectivo passa, portanto, por transformar completamente toda a sociedade humana, onde não haverá uma única acção individual que não esteja totalmente regulada, vigiada e implementada segundo um directório colectivo de decisões que conduzirão a uma inevitável qualidade e nível de vida ínfimos. Para o efeito, tudo será disposto de modo a promover governos centralizados que beneficiarão, em termos económico-financeiros, quer o poder local quer as empresas privadas que aceitem cumprir os rigorosos "padrões ecológicos" mundialmente estabelecidos.

(117) Têm sido reportados, nalguma imprensa mundial, inúmeros casos de vítimas de abuso sexual por parte de funcionários e elementos das “forças de manutenção da paz” das Nações Unidas, em que abundam meninas e raparigas sujeitas a alvo de chantagem em troca de dinheiro e comida, ou de violação e prostituição forçada no Sudão, Libéria e Serra Leoa, quando não mesmo de tráfico sexual da Tailândia para Timor Leste. Além disso, existem igualmente múltiplos escândalos a envolver os “capacetes azuis” em redes de prostituição e pedofilia no Kosovo e na República Democrática do Congo. Porém, não obstante isto e muito mais, paira na ONU uma lamentável “cultura do silêncio”, mesmo quando “figuras responsáveis” da Organização apelam, numa atitude hipócrita absolutamente contrária à extrema gravidade da situação, para uma política de “tolerância zero”.

(118) Alguns dias depois da independência da República do Congo (Léopoldville), fora igualmente desencadeada uma onda de violência e destruição lançada contra a população europeia que levou à mobilização militar da Bélgica na sua ex-colónia. Era, de alguma forma, o prenúncio do que, no ano seguinte, se passaria no Norte de Angola, iniciando-se assim a guerra travada contra Portugal nos seusterritórios de além-mar.

(119) Sobre o conflito no Katanga, seguem-se, pelo seu manifesto interesse, três episódios registados por Franco Nogueira: «Lisboa, 20 de Abril [de 1962] – Sexta-Feira Santa. Fui ao ministério para receber um emissário secreto de Tshombé, acompanhado do brigadeiro Almeida Viana. Que diz o emissário? Que Tschombé se propõe juntar no Catanga uma quantidade suficiente de aviões para destruir as forças da ONU; e que as operações devem ser desencadeadas dentro de 15 dias. Faço perguntas técnicas, de quem se deseja informar dos aspectos materiais; mas não comprometo o governo em qualquer auxílio»; «Paris, 7 de Janeiro [de 1965] – Em Paris, para uma reunião da NATO dedicada ao Congo. De manhã, tive conversa privada com Spaak e André de Staerk: estão pessimistas quanto à situação no Congo e à atitude das potências europeias, em particular a França. No Conselho, Spaak iniciou o debate; advogou uma solução política, mas sem transigência com os rebeldes, procurando encaminhar-se tudo pelas Nações Unidas, Organização da Unidade Africana e os moderados, de modo a colocar em minoria a Argélia, o Egipto, o Tanganica, o Ghana. Lord Walston apoiou. Harriman foi mais longe: mostrou compreender os perigos de um Congo comunista no centro de África e afirmou a necessidade de não se permitir o naufrágio de Tshombé. Italiano, grego e dinamarquês foram equívocos, salvo na sua ignorância de problemas africanos, e aí foram absolutamente claros, sem prejuízo da pompa convencida com que disseram imbecilidades irresponsáveis. Francês, Deloncle, tomou atitude estranha: tudo se deve deixar aos congoleses, não se interferindo nos seus negócios, até para não provocar uma reacção do lado contrário, pelo que os franceses não interviriam; mas Deloncle não disse como asseguraria a não-intervenção de argelinos, egípcios, russos, etc. Por mim, gastei quarenta minutos para salientar a importância do Congo, e sublinhar os perigos e uma solução política para um problema que o adversário procura resolver no terreno militar. Julgo que a posição francesa se explica pelo desejo de que ninguém intervenha para que Paris melhor possa intervir num duplo sentido: evitar que os americanos se instalem no Congo (como pretendem) e substituir os belgas (que estão instalados); e para isso a França tem de vencer a oposição americano-belga, visto que Bruxelas conta com o apoio de Washington para se manter no Congo e Washington pagar-se-á desse apoio cobrando aos belgas cinquenta por cento da exploração do Congo. Mas a França quer tudo para si. É isto a autodeterminação em África»; «Lisboa, 27 de Maio [de 1965] – (...) Soubemos que os americanos no Congo, quando Tshombé pediu sobresselentes para dois quadrimotores e souberam que os aviões haviam sido cedidos por Portugal, se recusaram a fornecer quaisquer peças. Assim o disseram aos nossos serviços alguns oficiais belgas. Mas também é certo que os funcionários da embaixada belga em Léopoldville estão em contacto com a UPA, o MPLA, etc. Tudo em nome dos sagrados princípios» (in Um Político Confessa-se – Diário: 1960-1968, Livraria Civilização Editora, 1986. pp. 26-17; 109-110; 126).

(120) Esta “força de manutenção da Paz”, que, como é óbvio, constituíra antes uma força militar, seria designada, a partir de 1963, por Operação das Nações Unidas no Congo.

(121) Aclarando: «Todos os nossos territórios estão abertos à observação de quem quer e o Governo e os Serviços publicam dados suficientes para se saber em cada momento como marcha a administração. A posição que havemos tomado, e manteremos, não vem pois de pretendermos ocultar seja o que for mas de que nos é impossível aceitar para as nossas províncias ultramarinas, que fazem parte da Nação, situação equivalente à de territórios tutelados pela ONU e destinados a subsequente secessão, bem como prestar contas ali de como os Portugueses entendem governar-se na sua própria casa. É ilegítimo da parte das Nações Unidas resolver discriminatoriamente contra Portugal; a Assembleia Geral não tem competência para declarar não autónomos territórios de qualquer potência. Esta é a interpretação juridicamente correcta e que sempre foi dada aos princípios da Carta. Nesses termos fomos admitidos e, se outro fosse o entendimento dos textos, é certo que não nos teríamos apresentado a fazer parte da Organização» (in Oliveira Salazar, Portugal e a Campanha Anticolonialista, SNI, 1960, pp. 16-17).







(122) «Nos debates, a ONU ultrapassa-se em violência. Portugal é alvo principal, e acaso único. Durante semanas, uma delegação após outra lançam aos portugueses e seu governo as acusações mais brutais, as ameaças mais temerosas. Racismo, colonialismo económico, opressão, massacre de populações, genocídio como objectivo político, seriam os traços fundamentais de uma orientação deliberada de Portugal no Ultramar; a miséria, o atraso medieval, a doença, a fome – não há um médico, uma escola, uma estrada – são apontados como formando o quadro de uma situação que Portugal mantém pelo simples gozo de a manter; e tudo isto requer medidas drásticas a impor pelas nações. Portugal surge e é apresentado como réu de crimes contra a humanidade: e à humanidade cumpre punir Portugal, e com dureza» (in Franco Nogueira, Salazar, V, A Resistência – 1958-1964 –, Livraria Civilização Editora, 1984, p. 173).

(123) «A partir do Congo e no interior de Angola organizou-se a revolta. Não restam dúvidas sobre o papel aglutinador da UPA e o trabalho de campo dos seus membros, confirmado por Holden Roberto. Durante uma visita a Túnis, Holden Roberto disse ao seu amigo e mentor Frantz Fanon: “Preste muita atenção a 15 de Março, o dia do debate nas Nações Unidas; coisas muito importantes vão acontecer nesse dia em Angola”. Em 10 de Março, por exemplo, um jovem quadro da UPA, Manuel Bernardo Pedro, incitou uma multidão de 3000 negros, reunidos numa mata perto de Nova Caipemba. As suas instruções foram específicas: destruir plantações, casas, pontes, aeródromos, quebrar enfim o sistema vital dos brancos. Este apelo à razia pura e simples decorria da perspectiva tribalista dos seguidores de Holden Roberto. Um investigador da história angolana observou:“a UPA não tinha em 1961 uma estratégia nacional, mas uma estratégia meramente tribal para os povos Bakongo e Dembos”. No dia 15 de Março, Holden Roberto estava em Nova Iorque, a pretexto da sessão do Conselho de Segurança. Reclamou para a UPA, em conferência de imprensa, a direcção de 40 000 quadros e mais de 500 000 simpatizantes dentro de Angola» (in José Freire Antunes, Kennedy e Salazar, Difusão Cultural, 1991, pp. 187-188).

(124) Sobre a firmeza e a tenacidade de Oliveira Salazar, entre outras características incomuns da sua índole, reporta-nos Franco Nogueira: «Lisboa, 14 de Abril [de 1961] – Todo o país está vergastado por um temporal político que deve ser raro na sua história. Compreendem-se agora melhor os tumultos, os morticínios, o terrorismo que lavram no Norte de Angola desde há um mês. Há um propósito internacional claro, deliberado, de fazer ajoelhar o governo de Lisboa e de vergar, pelo medo e pelo desvairo, o povo português. Se esta pressão se mantém, e apesar do gesto de Oliveira Salazar, por quanto tempo será suportável esta atmosfera? Firmeza, tenacidade, espírito de sacrifício e luta são coisas que desconhecemos entre nós» (in Um Político Confessa-se, p. 13).

(125) A triste sina de Portugal, após a entrega do Ultramar aos movimentos terroristas apoiados, financiados e municiados do exterior, tem-se, infelizmente, reflectido na integração das suas Forças Armadas no âmbito daquele que já é, para todos os efeitos, o exército único das Nações Unidas. A essa integração tem, aliás, correspondido o que eufemisticamente se designa pela participação de Portugal nas “missões de paz” da ONU, como a Força Internacional para Timor-Leste (INTERFET) e a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste (UNTAET), assim como a Missão das Nações Unidas para o referendo no Saara Ocidental (MINURSO), a EUFOR Althea na Bósnia, a KFOR no Kosovo, ou ainda a Força Internacional de Assistência para Segurança (ISAF) no Afeganistão e a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO, anteriormente MONUC). E não se esqueça, entretanto, a “participação” de Portugal no âmbito da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA), que surgiu na sequência da “força de paz” da União Africana constituída por 6000 elementos, nomeadamente a Missão Internacional de Apoio à República Centro-Africana (MISCA).

Curiosamente, passou no canal da TVI, no dia 10 de Setembro de 2017, uma reportagem onde se viam comandos portugueses na República Centro-Africana cujo desempenho militar tem sido, como sempre, deveras exemplar, mas desnecessariamente manchado pelo facto daqueles comandos usarem os veículos, as boinas e os capacetes azuis da ONU em detrimento das insígnias militares portuguesas. Este é, pois, o resultado por demais visível de como, em nome de “compromissos internacionais”, se traem interesses, propósitos e finalidades nacionais na esfera militar propriamente dita. No fundo, desaparecem os comandos portugueses para assim surgirem os mercenários usados e direccionados por forças militares estranhas a Portugal.

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(126) Por outro lado, há ainda o caso da epidemia de cólera que atingiu o Haiti em 2010, cuja fonte aponta para os “capacetes azuis” do Nepal que, na ausência de condições de saneamento no campo da Minustah, não somente propagaram a doença por centenas de milhares de pessoas, como também provocaram a morte a cerca de 10 000 haitianos. A ONU, como de costume, negou a sua própria responsabilidade com base na tese de uma inesperada «confluência de circunstâncias», convenientemente secundada nos privilégios e imunidades da Organização.

(127) Por seu turno, convém também relembrar as criminosas responsabilidades da ONU no genocídio do Ruanda, em 1994, ao ter forçado, com a conivência do governo ruandês, o desarmamento de civis que foram selvaticamente assassinados enquanto a “comunidade internacional” fechava os olhos e a “força de paz” da ONU se limitava, pura e simplesmente, a retirar na iminência dos massacres perpetrados contra os tútsis e hutus moderados. Ora, cerca de um milhão de pessoas foram mortas aquando do planeado genocídio ocorrido entre 6 de Abril e 4 de Julho de 1994. Além disso, muitas mulheres foram violadas, dando à luz milhares de crianças prontamente assassinadas.

O financiamento do genocídio passou, em grande parte, por dinheiro oriundo de alegados programas de ajuda internacional estreitamente ligados ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, ambos, aliás, originalmente homologados pela Organização das Nações Unidas. As armas, por sua vez, provieram do governo depois de adquiridas em França e no Egipto, com cerca de 4,6 milhões de dólares a serem investidos em facões, enxadas, machados, lâminas e martelos. De resto, não deixa de ser profundamente irónico o facto de, a 8 de Novembro de 1994, ter sido criado, através da resolução 955 do Conselho de Segurança da ONU, o Tribunal Internacional para o Ruanda, com o maquiavélico objectivo de julgar os crimes de genocídio, de guerra e contra a humanidade cometidos por ruandenses entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 1994.

(128) Este funcionário de nacionalidade sueca, identificado pelo jornal britânico The Guardian, entregou às autoridades francesas, em Julho de 2014, um relatório confidencial contendo detalhes sobre as vítimas e os “soldados franceses” envolvidos nos abusos sexuais perpetrados na República Centro-Africana. De resto, Kompass entregou um tal relatório antes de o ter apresentado a funcionários do Alto Comissariado da ONU para os direitos humanos, o que de imediato implicou a suspensão das suas funções na Organização, que o acusara de ter incluído no relatório os nomes e as moradas de testemunhos, investigadores e vítimas de abuso sexual, com os consequentes riscos de retaliação. Contudo, se tais informações haviam sido directamente entregues a promotores franceses, o único perigo daí decorrente seria mais particularmente dirigido, não àqueles testemunhos, investigadores e vítimas de abuso sexual, mas, sim, ao procedimento ilegal que está na origem das campanhas militares internacionais da ONU, bem como à prática sistemática de violação e sodomia levada a cabo pelos seus “capacetes azuis”.

(129) O método de controlo mundial da natalidade, devido à ampla e massiva esterilização com base no uso de vacinas, foi efectivamente posto em prática há mais de dois decénios pela ONU. O programa eugénico tem passado geralmente despercebido sob as diferentes campanhas de vacinação que procuram visar as mulheres em idade fértil, em países como as Filipinas, a Nicarágua e o México. A par disto, note-se ainda que o Fundo de População das Nações Unidas e a Planned Parenthood Federation of America, Inc. (PPFA) – uma organização que opera através de fundos governamentais e reúne centenas de clínicas especializadas na indústria do aborto –, têm sido, de facto, os principais organismos de projecção internacional a apoiar o regime comunista chinês na implementação de abortos forçados como parte integrante da sua “política do filho único”.

O Fundo de População das Nações Unidas tem, além disso, procurado a promoção do aborto em todo o mundo. O seu objectivo é, pois, criar os mecanismos universais para o que designa de “direitos reprodutivos”, que incluem o planeamento familiar, a contracepção e o acesso ao “aborto seguro” e legal. Tudo passa, portanto, por uma guerra travada contra as mulheres, em nome de gestações e partos seguros, além da redução do vírus da sida. Em suma: para que todas as mulheres sejam tratadas com dignidade e respeito, torna-se necessário, na óptica da ONU, protelar o casamento, a procriação dos filhos e a consagração da família.

Para que fique assegurada a redução dos níveis de fertilidade, a ONU proclama ainda o investimento na “educação” das mulheres, para mais facilmente as incluir na força de trabalho e, assim, reduzir os nascimentos. Erigida frequentemente em nome da “sustentabilidade”, a política global de “saúde reprodutiva” da ONU apenas significa o seguinte: a supressão da liberdade, da humanidade e da independência nacional.

(130) Muitos cristãos da Costa do Marfim foram, efectivamente, mortos por jihadistas à machadada, devido ao apoio militar facultado pela Organização das Nações Unidas. Note-se ainda que, a 27 de Fevereiro de 2004, fora constituída, com base na aplicação da resolução 1528, a Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim (ONUCI), que, de resto, viria na continuidade da resolução 1464 de Fevereiro de 2003 do Conselho de Segurança da ONU, que autorizava a França e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) a deslocar tropas para a Costa do Marfim, a fim de dar cumprimento aos acordos de Janeiro de 2003, firmados em Linas-Marcoussis, França, pelas partes beligerantes na guerra civil da Costa do Marfim.

(131) Muito embora a Comissão Eleitoral Independente (CEI) tenha declarado Alassane Ouattara como o vencedor das eleições, com 54.1% dos votos, a verdade é que o Tribunal Supremo, com base no artigo 94 da Constituição marfinense, declarou nula a declaração daquela Comissão uma vez se ter apurado a existência de fraude eleitoral, que, por seu turno, levou à exclusão dos votos em nove áreas situadas a norte do país. Nisto, o Tribunal Supremo acabou por concluir que, anulados aqueles votos, a vitória pertencia a Laurent Gbagbo, com 51% dos restantes votos.






Anders Kompass. Ver aqui









Continua


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