Quantcast
Channel: Miguel Bruno Duarte
Viewing all 478 articles
Browse latest View live

A Guerra do Ultramar não estava militarmente perdida

$
0
0
Escrito pelo Almirante Nuno Vieira Matias












Na varanda da residência do Comissário Régio. Sentados da esq p/dir: Vieira da Rocha, Baltazar Cabral; Luiz Gaivão; Maria José Mouzinho de Albuquerque e Joaquim Mouzinho de Albuquerque. De pé: Conde da Fonte; Aires de Ornelas; ordenanças e criados.



Monumento a Mouzinho de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, em Lourenço Marques (anos 1940).













«Foram-se mais de três partes do Império de Além-Mar e Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o futuro...».

Mouzinho de Albuquerque (in carta ao Príncipe D. Luís Filipe de Bragança).



«A guerra é de facto uma coisa má. Mas existe algo ainda pior do que a guerra: é perdê-la».

João José Brandão Ferreira 



«[...] Roubo a Vossa Excelência alguns momentos para um caso que tem moralmente muita importância. Vejo nos jornais de hoje que, no meio da confusão suscitada na República da Guiné, conseguiram escapar alguns militares portugueses que ali estavam em cativeiro. Entre eles, vejo o nome do sargento António Sousa Lobato. Ignoro se Vossa Excelência conhece a história deste homem. Foi aprisionado em nosso território por terroristas vindos da República da Guiné, há cerca de sete ou oito anos. Esteve preso naquele país às ordens de Amílcar Cabral. Vossa Excelência avaliará as condições de uma prisão na República da Guiné: promiscuidade, criminosos de direito comum, falta de alimentação e medicamentos, etc. Durante todo o tempo, ou parte dele, conseguiu-se que a Cruz Vermelha Internacional lhe fizesse chegar alguns remédios, conservas e algum dinheiro, embora parte de tudo isso fosse roubado pelo caminho. Mas o mais mportante é a atitude moral do sargento Lobato. O Governo da Guiné e Amílcar Cabral quiseram-no forçar a assinar um papel em que se declarasse desertor e condenasse as "atrocidades" do Exército português. Recusou. Depois pretenderam obrigá-lo a assinar outro papel em que se comprometesse, quando liberto, a não se alistar mais nas Forças Armadas portuguesas. O Lobato respondeu que, quando fosse liberto, a primeira coisa que faria seria a de se apresentar às suas autoridades militares. Passado tempo, novamente voltaram a insistir: se assinasse um papel comprometendo-se a não combater mais na Guiné, seria solto. Lobato respondeu que, logo que estivesse livre, pediria às suas autoridades militares para tornar a combater precisamente na Província da Guiné. Foi sempre da maior firmeza, decisão e patriotismo; e isso em condições morais e de saúde que não podiam ser mais precárias e difíceis. Raros terão tido um tão alto sentido de dever e uma constante e sólida coragem. Penso que o sargento Lobato merece uma alta distinção militar, e que o seu exemplo deveria ser publicamente conhecido e reconhecido. E por isso, tendo acompanhado durante anos o calvário daquele nosso militar, eu não ficaria de bem com a minha consciência se não escrevesse a Vossa Excelência estas linhas. Estou certo de que Vossa Excelência perdoará haver-lhe feito perder alguns minutos, 30 de Novembro de 1970. Franco Nogueira».

Franco Nogueira a Marcello Caetano (30 de Novembro de 1970. APMC).


«(...) a resignação, em 1961, do Prof. Oliveira Salazar das funções de Presidente do Conselho de Ministros, teria como consequência fatal que a carnificina em Angola, que já vitimara 7.000 brancos e negros, tomaria muito maiores proporções, com dezenas de milhares de mortes. 

E aqueles que sustaram aquela resignação, abortando o golpe Botelho Moniz-Costa Gomes, têm hoje a paz de consciência e a satisfação espiritual de terem evitado o que bem poderia chamar-se um holocausto. 


Mas o golpe, falhado de inteligência e misto de ingenuidade ou erro e de crime, do "25 de Abril" de 1974, inverteu o sentido das lutas em Angola, Moçambique e Guiné - lutas que, mantendo-se a Metrópole, nunca poderiam perder-se e que, pelo menos em relação aos dois primeiros territórios, estavam a ganhar-se. Provocou a guerra em Timor - onde havia plena paz. E deu lugar à descolonização. Em consequência, produziram-se centenas de milhares de mortes e instalaram-se e generalizaram-se a ruína e a miséria, o sofrimento e a desgraça


E aqueles que de tal são responsáveis suportam e suportarão para sempre, se possuírem um mínimo de consciência, o remorso de tamanho holocausto e serão, cedo ou mais tarde, chamados a juízo pelos homens ou por Deus. 


Assim, os que, em 1961, puderam, com acerto em todos os domínios, evitar a grande ampliação de um drama, não tiveram, em 1974 e tempos seguintes, posição, que lhes havia sido negada ou retirada, para impedirem que outros, em completo desvario ou com premeditadas intenções, provocassem uma enorme catástrofe».


Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).


«Antecedendo a situação que rapidamente se descreveu, dia após dia, depois de 1961, os nossos estadistas e os nossos estrategas proclamaram o valor do Ultramar português para o Mundo ocidental e o perigo que representava o seu controlo por poderes hostis ao Ocidente. A nossa experiência histórica de nação e país espalhado pelos continentes, e o conhecimento pormenorizado do potencial geo-estratégico de que na realidade dispúnhamos, dava aos mais esclarecidos dos nossos responsáveis a percepção nítida daquele perigo. Dia após dia apontámos, sem erro, as forças que haviam erguido e estavam sustentando os movimentos inimigos. Em anos sérios da nossa guerra tentámos despertar o Ocidente, gritando que nos considerávamos sós, num combate que a todos interessava, embora orgulhosamente, como portugueses inteiros, que então praticamente todos ainda éramos. Está à vista do Ocidente a razão que nos assistia, agora bem concretizada nessa trágica viragem estratégica sofrida pelo Mundo, após o 25 de Abril».

General Silvino Silvério Marques (in «África: A Vitória Traída»).






«A situação vivida na Guiné, nos princípios de 1974, pode ser caracterizada pelos seguintes pontos:

1. O mais importante acontecimento político-social, nos três primeiros meses de 1974, foi o V Congresso do Povo, realizado de 21 de Fevereiro a 10 de Abril.

Manifestação de diálogo entre o Povo e o Governo, através do qual se conferia às populações a possibilidade de uma participação mais efectiva na vida da comunidade, o V Congresso do Povo desenvolveu-se nas suas fases regional e provincial, mobilizando alguns milhares de representantes das populações e dando lugar a 24 sessões de 4 reuniões cada, em 19 localidades da Guiné, além de Bissau.

Se a realização do Congresso, pelo quinto ano consecutivo, traduziu adesão das populações e, pelo lado da Administração, continuidade de acção e capacidade de execução, de salientar é também que trabalhos preparatórios, deslocamentos de autoridades e participantes e reuniões se processaram sem interferência do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), embora essa actividade se estendesse a todo o território da Província.

2. Ainda sem interferência do PAIGC se realizou a visita do Ministro do Ultramar, de 15 a 20 de Janeiro. O Ministro deslocou-se a Teixeira Pinto, Cacheu, Pelundo e Farim, no norte, a Nova Lamego e Bafatá (viajando de automóvel entre estas duas localidades), no leste, e a Catió e Caboxanque, no sul.

3. No princípio do ano iniciou-se a execução do Orçamento da Província, no montante de cerca de 380 000 contos, um aumento de 63 mil contos (quase 20%) sobre o orçamento do ano anterior.

Também se deu início à execução do Plano de Empreendimentos (IV Plano de Fomento), dotado com 155 000 contos e especialmente orientado para os sectores da Educação, Saúde, Vias de Comunicação, Agricultura e Melhoramentos urbanos e rurais.

4. No sector da Educação, existia uma população escolar de cerca de 61 000 alunos, com 2 200 professores.

Desta população pertenciam ao ensino primário cerca de 56 00 alunos, que se repartiam por 550 salas de estudo, onde ensinavam 1 050 professores (830 agentes de ensino e 220 militares). No ciclo preparatório estavam matriculados 3 800 alunos e 1 700, no ensino secundário.

5. A Guiné dispunha de 1 Hospital Central, 3 Hospitais Regionais, 6 Hospitais Rurais, 50 Postos Sanitários (24 com médico e enfermeiro) e 12 Maternidades.

Os Serviços de Saúde contavam com 82 médicos (dos quais 4 civis), 2 farmacêuticos e 1 farmacêutico-analista, 360 enfermeiros e auxiliares de enfermeiro, 2 assistentes sociais e 1 auxiliar social, e 76 parteiras e auxiliares de parteira.

Em 1972 foram dadas 676 000 consultas a doentes civis, sendo 174 000 nos Serviços Provinciais de Saúde e 502 000 pelas Forças Armadas.

6. Mantinham-se em construção as estradas Jugudul-Bambadinca, Piche-Buruntuma, Catió-Cufar e Aldeia Formosa-Buba.

7. No sector privado assinala-se a entrada em laboração duma fábrica de cerveja e refrigerantes e dum parque de armazenagem e envazilhamento de gases de petróleo liquefeito, e a construção duma nova unidade hoteleira em Bissau, já em fase adiantada.

8. Problema que afectava toda a população da Guiné era o do abastecimento de arroz, base primeira da sua alimentação.

Reduzida a produção local a cerca de 50% das necessidades, por aumento do consumo e diminuição da produção, como consequência da guerra e dum certo afastamento do trabalho na terra por parte da população, em especial da mais jovem, desde fins de 71, princípios de 72, a importação passou a encontrar dificuldades crescentes, por força da escassez de cereais nos mercados mundiais e da elevação de preços, quer do produto, quer dos transportes. Assim, em fins de 1973 houve necessidade de contingentar a distribuição e de elevar o preço, tabelado, de 5$50 para 7$00, suportando embora o Governo um encargo não inferior a 2$50/kg.

Estas medidas não foram naturalmente recebidas com agrado pela população, apesar de o arroz ser vendido nos territórios vizinhos a preços muito superiores ao praticado na Guiné (Senegal 14$00 e República da Guiné 22 a 26$00) e de ter havido um aumento do preço de aquisição ao produtor local de cerca de 25%.





Para atenuar uma situação de abastecimento com tendência para se agravar, dada a progressiva retracção do mercado mundial, independentemente de custos, várias acções foram empreendidas, com a diversificação da dieta alimentar tradicional, para o que se recorreu à importação de milho e feijão, a recuperação de bolanhas e uma intensificação do esforço para o aumento da produção, pelo apoio à cooperativização dos agricultores, distribuição de sementes de arroz seleccionadas e de adubos e apoio técnico dos Serviços Provinciais de Agricultura, além do aumento dos preços de aquisição ao produtor.

9. Por último assinala-se a contribuição das Forças Armadas para a vida da Guiné, em tarefas de promoção social, de desenvolvimento económico e de assistência, e na ocupação de posições nos quadros dos Serviços Provinciais, por falta de elementos civis que os guarnecessem.

Em Março de 1974 estavam desviados para funções exclusivamente civis 37 oficiais, 50 sargentos e 182 praças, num total de 270 militares. Em regime de acumulação de funções militares com funções civis havia 137 militares (110 oficiais, 21 sargentos e 6 praças).

- Dos 82 médicos em serviço na Guiné, 76 pertenciam às Forças Armadas e 2 eram seus familiares.

- Cerca de 75% dos professores eram militares ou seus familiares.

- As verbas dispendidas em 1973 pelas Forças Armadas no desenvolvimento sócio-económico ascenderam a cerca de 160 mil contos, assim distribuídos:


Comparticipação directa:

Saúde: 18 000 contos
Educação: 3 000
Desenvolv. rural: 20 000


Comparticipação indirecta:

Vencim. a civis: 61 000 contos
Transportes: 61 000


- No Plano de Empreendimentos para 1974 foi atribuída às Forças Armadas a construção de 1 500 casas em 44 reordenamentos, 11 postos sanitários e 30 edifícios escolares, bem como a continuação da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba, já em fase adiantada.

- Até fins de 1973 as Forças Armadas haviam construído, no sector do Desenvolvimento Rural, 15 700 casas, 167 escolas, 40 postos sanitários, 56 fontenários e 3 mesquitas, e aberto 144 furos para abastecimento de água».

General Bethencourt Rodrigues (in «África: A Vitória Traída»).


«A partir de Janeiro de 74, (...) houve um recrudescimento da actividade do PAIGC com abundantes bombardeamentos de artilharia (donde se detectavam os terríveis foguetões de 12 mm mas, felizmente para nós, com muito pouca pontaria.

A zona mais causticada foi Canquelifá, até que o Batalhão de Comandos atacou, com sucesso, as bases de fogos do PAIGC, entre 21 e 31/3, e a coisa terminou (operação "Neve Gelada" - raio de nome!)».

João José Brandão Ferreira (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).


«1. Em paralelo com a guerra, e naturalmente sofrendo condicionamentos por ela postos, desenvolvia-se a vida política, económica e social da Guiné.

Embora sob a influência daqueles condicionamentos, que em maior ou menor grau, punham questões de segurança de pessoas e bens, ampliavam margens de incerteza nas previsões, criavam distorções nos mecanismos de gestão, afectavam relações sociais:

- funcionavam os orgãos de governo próprio;

- a rede administrativa cobria todo o território;

- os orgãos de administração local exerciam as suas funções de gestão;

- os serviços de saúde e de educação cumpriam as missões próprias;

- as comunicações de transporte e de relação asseguravam os contactos entre localidades, permitiam os deslocamentos de pessoas e garantiam os circuitos de comercialização, no interior e para o exterior;

- estavam em curso obras de fomento nos sectores da educação, saúde, vias de comunicação, agricultura e melhoramentos rurais e urbanos;

- a produção agrícola satisfazia parte das necessidades da população;

- cobravam-se impostos;

- cumpria-se um orçamento.

(...) 2. A contribuição das Forças Armadas era vultosa e decisiva, incidindo praticamente sobre todos os sectores da vida da Província.

Militares em regime de ocupação exclusiva ou em acumulação, ocupavam posições nos Serviços Provinciais, responsabilizavam-se pela assistência sanitária, exerciam funções docentes, empenhavam-se na execução de melhoramentos rurais e urbanos, auxiliavam a gestão das comunidades, executavam trabalhos de mão-de-obra especializada, criavam postos de trabalho, dinamizavam iniciativas nos mais diversos campos.

Tinham parte destacada e relevante na comunidade civil e eram elemento essencial da sua promoção e desenvolvimento.

3. O Teatro de Operações da Guiné tinha as seguintes características principais, algumas das quais se não podiam encontrar nos Teatros de Operações de Angola ou de Moçambique:

- Envolvimento por Estados, declarada e nitidamente, hostis, onde as forças inimigas dispunham de todo o apoio e de total liberdade de acção;

A BA 12 (Guiné, 1966).


- Extensa fronteira terrestre (700 km), aberta em toda a sua dimensão, dum extremo ao outro; da conjugação deste factor com o antecedente resultava, para o inimigo, facilidade de penetração no território da Guiné e de ataque às guarnições de fronteira e, para as Forças Nacionais, acrescida vulnerabilidade destas guarnições e dispersão de esforços na vigilância da faixa fronteiriça;

- Reduzida superfície, que assim não punha ao inimigo, por isso e pelo apoio recebido nos países vizinhos, problemas de alongamento das suas linhas de comunicações, de dispersão de efectivos e de complexidades logísticas;

- Dos pontos de vista de comando, de manobra e de apoio logístico, com centralização em Bissau, compartimentação, por obstáculos naturais, em 3 zonas: 


- a norte do rio Geba
- entre os Rios Geba e Corubal
- a sul destes dois Rios


Esta compartimentação do Teatro de Operações por rios de envergadura, nenhum deles com pontes entre as suas margens e com a navegabilidade condicionada, em absoluto, pelo regime de marés, implicava fortes limitações à acção de comando, ao deslocamento de forças e ao apoio logístico, e lançava um pesado ónus sobre os meios navais e aéreos;

- Clima e terreno não favoráveis às operações, em particular na metade ocidental do território, com as suas quase impenetráveis zonas de mangal e densas florestas tropicais, e com as marés a penetrarem diariamente pela terra dentro, alagando as terras e causando nos rios desníveis de metros;

- Um mosaico de etnias, mais de trinta, diferenciadas entre si, com características e organizações específicas, seus problemas, seus anseios próprios e suas rivalidades.

Por outro lado, o empenhamento das unidades militares na manobra sócio-económica conduzira a uma inconveniente mistura da tropa com a população, que manifestava toda a sua acuidade quando de acções por parte do inimigo.

4. O inimigo evoluíra progressiva e significativamente no seu conceito geral de manobra (concentração de forças sobre objectivos seleccionados ao longo da fronteira, procurando conjugar concentrações maciças de fogos com acções de isolamento dos objectivos atacados) e no seu potencial militar, tanto humano como material, neste dispondo até de superioridade em algumas armas.

O inimigo punha, portanto, uma ameaça séria sobre as guarnições de fronteira, em particular daquelas com mais difícil acesso pelas Forças Nacionais, para reforço e reabastecimento.

5. As características naturais do Teatro de Operações, a evolução do inimigo e a sua liberdade de acção do outro lado da fronteira aliadas a, por parte das Forças Nacionais, reduzidas forças de intervenção e dificuldades de manobra de meios, limitavam em grau considerável a capacidade de iniciativa do Comando das Forças Armadas Portuguesas.

A necessidade de manter forças disponíveis para o eventual reforço, em tempo oportuno, dum objectivo seleccionado pelo inimigo constituía uma preocupação permanente do Comando, aliás traduzida em progressivo aumento das forças em reserva, e um condicionamento pesado da sua liberdade de manobra. Por outro lado, porém, o empenhamento de forças de intervenção nos sectores em que o inimigo decidira fazer o esforço, aumentava a probabilidade de actuação contra as forças que, como norma, se esvaíam e contribuía assim para a desarticulação do sistema adverso.

6. A listagem das características principais do Teatro de Operações da Guiné, feita no n.º 3, só por si conduz naturalmente à noção da grande dificuldade duma acção militar em tal teatro de operações.

Se a essa dificuldade se adicionarem as que resultavam de se defrontar um inimigo com as características que foram referidas, facilmente se deduz a gravidade da situação militar que se vivia na Guiné no 1.º trimestre de 1974.

Era uma situação extremamente exigente para os Comandos e também extremamente exigente e muito dura para as tropas, a requerer em curto prazo a adopção de medidas de âmbito local e no plano da Defesa Nacional, umas em planeamento ou já planeadas e outras em vias de execução.

7. No campo rigoroso do concreto, nega-se frontalmente a veracidade de algumas afirmações que sobre a Guiné têm sido produzidas.

Nomeadamente, aponta-se como rotundamente falso que, no 1.º trimestre de 74, dois terços do território estivessem sob o domínio do PAIGC; que as tropas portuguesas estivessem entrincheiradas em algumas cidades e algumas bases; que as Forças Nacionais estivessem acantonadas na capital e em mais dois ou três pontos.

Pelo contrário, afirma-se sem receio de desmentido, que as tropas portuguesas tinham acesso a quase todos os pontos do território, com medidas de segurança de intensidade variável; que os comboios auto, de reabastecimento, circulavam pelas estradas; as tropas se movimentavam em campo aberto, com maiores ou menores dificuldades, efectivos mais ou menos numerosos, apoios tácticos mais ou menos desenvolvidos; que o dispositivo militar cobria todo o território; que as Forças Nacionais ocupavam, com guarnições militares ou de milícias, 225 localidades.

8. A guerra estava militarmente ganha? Evidentemente que não. Nunca ninguém o disse, nem pretendeu fazê-lo crer.

A guerra, na Guiné, "estava perdida no campo militar", como se tem afirmado com alguma frequência? Estávamos, na Guiné, "à beira dum desonroso colapso militar", como também se declarou?

A situação na Guiné, no 1.º trimestre de 1974, concedia base àquela primeira afirmação ou apontava irremediavelmente para a segunda?

Estas "notas", no rigor da sua objectividade, poderão ser, julga-se, elemento de informação útil para quem procure obter resposta a estas questões.

Certo é que as guerras sempre foram e continuarão a ser lutas de vontades... e não só das vontades dos combatentes».

General Bethencourt Rodrigues (in «África: A Vitória Traída»).



Chegada a Bissau de Bethencourt Rodrigues



« - É inegável que houve, a partir de 1973 (morte de Amílcar Cabral), uma mudança de actuação por parte do PAIGC, um aumento do potencial de combate a seu favor e uma melhor eficácia de tácticas e técnicas. Tudo isto se deveu a um forte apoio dos países comunistas, sobretudo da URSS e Cuba, no seguimento da operação "Mar Verde" e da morte de Amílcar Cabral (deve recordar-se que a URSS nunca tinha perdoado ao nosso país ter contribuído, decisivamente, para o fracasso da implantação do comunismo na Península Ibérica, durante a Guerra Civil de Espanha).

Tais modificações não foram antecipadas convenientemente pelas nossas autoridades.

- Para além da ofensiva, que conseguimos fazer gorar, restou alguma perda de moral nas Nossas Tropas (ter passado a haver mais constrangimentos à evacuação aérea dos feridos, não ajudou nada), e o facto, que poderia tornar-se preocupante, do PAIGC ter conseguido, pela primeira vez, efectuar atentados dentro de Bissau.

- Foi referido, por várias vezes, a existência de viaturas blindadas (seriam as BRDM-2), mas não se especificando, tal pode criar confusões. Viaturas blindadas de transporte, não é a mesma coisa que blindados ou carros de combate. Viaturas blindadas também as Nossas Tropas passaram a ter, as "chaimites". Havia muitos boatos a correr...

- Sem dúvida era urgente substituir o material gasto e adquirir outro mais moderno e as autoridades nacionais atrasaram-se  muito a fazer isto, independentemente das dificuldades existentes. No entanto tal não tinha a ver com não haver dinheiro, como aduzido por Matos Gomes/Aniceto Afonso (pág. 31: "Os factos sustentam a tese de que as Forças Armadas nos três Teatros caminhavam para esse choque fatal [a derrota - referido no parágrafo anterior], caso não fossem alterados radicalmente os seus meios e atitudes, o que não era possível fazer, adquirir e operar os meios necessários, custava dinheiro que não existia, exigia vendedores disponíveis, que não eram fáceis de encontrar, demoravam tempo, pois havia que preparar os operadores, e esse factor também era escasso"), que por ser um erro grosseiro, não carece de rebatimento.

Mas não quer dizer que não se tivesse iniciado a procura de aviões de combate (de que chegaram a ser adquiridos os Aviocar e o FTB 337), helicópteros de ataque e mísseis anti-aéreos (crê-se que os "Crotale" já estavam em fase avançada de adjudicação). E estavam para entrar ao serviço 10 corvetas especialmente desenhadas para África. Muito mais haveria a fazer mas, para tal, era necessário acabar com as dúvidas, indecisões e tergiversações existentes em Lisboa.

- O Inimigo, apesar do aumento e melhoria do seu material também tinha dificuldades. De facto o seu nível de instrução, treino e capacidade de operar equipamentos mais sofisticados era limitada; as potências fornecedoras tinham receio em entregar material moderno, pois receavam que caísse nas nossas mãos e armazenar e manter material sofisticado nas condições marginais em que a guerrilha operava, era uma dor de cabeça muito grande. De tudo isto resultava uma necessidade e visibilidade maior de instrutores estrangeiros o que punha em causa a teoria da luta pela "autodeterminação dos povos".

- Da análise do relatório da reunião realizada no Comando-Chefe em Bissau, em 15 de Maio de 1973 - um documento de análise muito importante (mas que deve ser lido com "olhos de ver") - retira-se um quadro cru da situação, em que se equacionam as ameaças existentes e possíveis. Não se considera ser um relatório optimista, nem pessimista. Porém, dele não ressalta um colapso das Nossas Tropas a curto prazo - apesar de a reunião ocorrer no pico da ofensiva em curso (e Guilege ainda não tinha sido atacada). Lista-se uma necessidade de meios (creio que realista e económica relativamente à FAP e algo "optimizada" em relação ao Exército e Marinha). Fala-se em unidades com elementos brancos não identificados e, até hoje, ainda não se conseguiu encontrar alguém que os identifficasse; topa-se com uma frase do General Spínola "as implicações da carência de meios para enfrentar a ofensiva do PAIGC conduziam a opções que ultrapassavam a sua esfera de responsabilidades" (pág. 22) Que seria que ele queria dizer com isto?

- Por último uma dúvida: na sua intervenção final na citada reunião, Spínola é peremptório em dizer que não se devia reduzir o dispositivo, a fim de não desproteger a população e deitar por terra a sua política (aliás correcta) de desenvolvimento político-social-económico.






Mas depois, aquando da reunião de comandos em Bissau, a 8 de Junho, em que participou o CEMGFA, General Costa Gomes, foi decidido remodelar o dispositivo de modo a "trocar espaço por tempo" (pág. 23: "Junho 08 - Reunião de Comandos em Bissau com a presença de Costa Gomes, para análise da situação na Guiné, do que resultou a orientação de remodelar o dispositivo, trocar espaço por tempo. Foram analisados os factores que caracterizavam a situação e as claras perspectivas do seu contínuo agravamento e definidos os parâmetros orientadores da manobra face à conjuntura e a sua evolução"), que previa retirar as guarnições militares da faixa fronteiriça de modo a pô-los a coberto dos ataques de artilharia do outro lado da fronteira e permitir uma maior concentração e complementaridade de esforço, com definição de pontos-chave a defender "a todo o custo" (não teria sido este o conceito de manobra previsto em Goa, e tão condenado?).

Mas, afinal o que fez balancear o General Spínola para este conceito, depois de o ter condenado liminarmente na reunião de 15 de Maio?

E porque nunca chegou a ser posto em prática? E porque se queria agora novamente reocupar o Boé, depois de o ter abandonado, será que queriam emendar um erro?

E que terá levado também, o novo Comandante-Chefe, General Bettencourt Rodrigues a reavaliar toda a situação, não tendo sido abandonada nenhuma povoação?

E porque não forçou o CEMGFA a implementação de uma ideia de que ele teria sido, possivelmente, o principal defensor?

- Sem embargo das dificuldades reais e sentidas na situação militar, um facto existiu que se estima muito mais grave do que aquela: o conflito crescente entre Marcello Caetano e Spínola. Este conflito culminou com a proibição, por parte de Lisboa, de negociações com o PAIGC, na sequência da sugestão de Senghor durante o encontro com Spínola, em Cap Skiring (Senegal), em 18/5/72.

- E, ainda, por causa de uma conversa que correu mal entre o Presidente do Conselho de Ministros e o Governador da Guiné, em que este ficou escandalizado por ter inferido que o governo não se importava que ocorresse uma derrota militar na Guiné, o que fez ressuscitar os fantasmas da Índia.

- O estado de espírito do general não seria dos melhores e tal estado de espírito veio a contaminar, naturalmente, o seu Quartel-General. Até que ponto esta situação desmoralizou o Comando na Província é passível de especulação. Bom não foi certamente e seguramente que veio a influenciar o Movimento das Forças Armadas (MFA) local (1.ª reunião de 50 oficiais a 21 de Agosto de 1973, em Bissau).

- Ao contrário do conflito com Kaúlza de Arriaga, em Moçambique, este outro parece ter tido consequências na cadeia de comando e no moral das tropas.

- Hoje podemos ter uma visão mais clara sobre o que se passou - embora as verdadeiras intenções dos protagonistas sejam difíceis de perscrutar - o Governo não quis deixar "cair" a Guiné, pois nomeou um dos melhores generais no activo, para substituir Spínola e a defender, e quanto à proibição dos contactos com Amílcar Cabral, nas condições propostas, os argumentos aduzidos eram lógicos e pertinentes.

- O General Spínola abandonou a Guiné (a seu pedido) para ir escrever o "Portugal e o Futuro" (ou alguém por ele); arrajaram-lhe um cargo que não existia, o de Vice-CEMGFA e mandaram-no visitar Angola e Moçambique, para ele não ter uma visão do mundo apenas "pela fresta de Bissau".

- E ainda está por apurar se alguém em sua representação, esteve presente ou não, entre as cúpulas do recém-formado PS e o PCP, em 1973, em Paris, onde estes, aparentemente, combinaram a estratégia final de assalto ao poder em Portugal.

Coisa que talvez Matos Gomes e Aniceto Afonso nos possam vir a elucidar no futuro...».

João José Brandão Ferreira (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).







«Na minha opinião, a guerra do Ultramar não estava militarmente perdida. A situação não era idêntica em todo o Ultramar, mas mesmo no caso mais complicado não se pode honestamente falar de início de ruptura, ou de ineficácia das forças portuguesas, em termos militares. A capacidade de defesa contra as acções inimigas, continuava sustentável, e o apoio às populações estava em crescendo no final da guerra. As operações militares que em alguns dos casos mais complexos enfrentaram uma guerrilha forte e bem organizada, tiveram graus de sucesso que não poderiam legitimamente indiciar uma derrota. Poderiam prever-se dificuldades de sustentação, assim como seria legítimo admitir, à data, a sua superação. Os problemas mais complicados eram de retaguarda. Os militares portugueses cumpriam a sua missão, com sucesso, face às adversidades que lhes eram colocadas; houve raros casos pontuais negativos, como acontece em qualquer guerra em qualquer parte do Mundo, que não afectaram minimamente o prestígio das forças, no seu conjunto. O espírito de missão nunca esteve em causa.

O isolamento político a nível internacional, as correntes internacionais sobre conceitos de colonização, marxistas e não marxistas, que não davam ouvidos à argumentação sobre a especificidade do caso português, a acção psicológica interna movida por algumas forças radicais de oposição ao regime com influência na universidade e no mundo laboral, alguma ambiguidade na mensagem política interna, as dificuldades políticas colocadas na aquisição de armamento, o enorme esforço de preparação das forças, para a manutenção de cerca de mil homens em operações, tudo isto eram dificuldades, próprias de uma Nação em guerra em três teatros longíquos. Não é lícito dizer que o prazo para o fim do sacrifício estava em vias de ser esgotado, assim como não se poderá dizer que não existiria qualquer prazo. Certamente que o inimigo também teria as suas dificuldades no campo militar, algumas das quais eram conhecidas, outras não; o desgaste da guerra longa não afectava só um dos lados, apesar da onda política internacional pender muito mais para um dos lados; muitas vezes desvaloriza-se este facto na análise, em especial quando se incluem factores de avaliação tendencialmente ponderados de forma desigual.

Estando perante uma guerra subversiva e de guerrilha, o sentido de vitória ou de derrota não tem a mesma expressão usada na guerra convencional; basta que exista um guerrilheiro com arma municiada agindo por conta própria para que não se possa falar de fim decisivo da guerra. Diz-se com frequência que a guerra de guerrilha é uma guerra de desgaste, raramente frontal, de iniciativa unilateral e aleatória, e por essa razão a guerrilha é sempre muito mais resistente, com o correr do tempo a seu favor; na verdade, este princípio não tem uma aplicação universal, também existe fadiga, frustração, abandono por parte da guerrilha. O factor de tolerância às baixas, sendo mais elevado do lado da guerrilha, no início, também é muito afectado com o decorrer do tempo. O mesmo se passa com a motivação tendo em conta que a grande massa dos combatentes é recrutada por conscrição. Em todo o caso, a análise histórica, objectiva, continua muito difícil de alcançar, em virtude de praticamente só existirem fontes de uma das partes e, muitas vezes, a opinião prevalecer sobre os factos.

Não estando a guerra militarmente perdida, é preciso acrescentar que não estava fácil, em primeiro lugar na Guiné e depois em Moçambique. O caso particular da Guiné, por razão da condição geográfica, da qualidade dos quadros da guerrilha, da sua organização e do forte apoio político internacional, e de fornecimento de um grande volume de armamento, assim como da intervenção de mercenários, é muitas vezes apresentado para sublinhar as dificuldades. A abertura entusiasta dos canais de comunicação internacional à guerrilha permitia a esta um exercício de guerra psicológica que desenvolveu com muita mestria, com acções de propaganda dirigidas ao exterior e ao interior.

São fundamentalmente três os factos ou condições que muitas vezes são invocadas por aqueles que propalaram que a guerra estava perdida, no seu ponto mais crítico que era a Guiné: o aparecimento do míssil superfície/ar Strella, as operações em Guidage e Guileje em Maio de 1973 e as notícias do serviço de informações militares quanto à previsão de ordem de batalha inimiga para o curto prazo.

Não existe qualquer dúvida que o aparecimento do míssil Strela provocou um impacto muito forte, pelo efeito de surpresa e pelos resultados imediatos que produziu no espaço de cerca de uma semana. Criou-se um ambiente psicológico negativo em alguns sectores das forças terrestres, pelo sentimento de que não poderiam mais contar com o apoio aéreo que consideravam fundamental para o cumprimento das suas missões. Ainda hoje existem ideias erradas quanto a este problema, que de facto foi importante, mas não determinante. Ora, o que é um facto é que a Força Aérea continuou a executar as suas missões, ao mesmo ritmo do anterior, perfazendo um total de horas de voo sensivelmente igual ao esforço dos anos anteriores. A Base Aérea da Guiné continuou a ser a base do conjunto da Força Aérea com mais acções aéreas executadas nesse ano. O que mudou foi o perfil do voo, a táctica aérea, por razões evidentes, o que obrigou a uma alteração nos procedimentos de apoio aéreo. A operação a baixa altitude, em zonas de possível existência de míssil, só era possível desde que garantida a segurança ao meio aéreo na área correspondente ao alcance do míssil. Depois da semana fatídica, em que foram abatidos cinco aviões, só houve mais um abate de um avião mais de seis meses depois. Em Moçambique, onde o míssil apareceu depois, a atrição praticamente não existiu, porque a doutrina aérea foi antecipadamente adoptada. Segundo as notícias da época, o arsenal inimigo inicial na Guiné era de mil mísseis, com uma densidade comparável ao arsenal em cenários muito mais complexos. Não sabemos quantos mísseis foram disparados. Nem sabemos quantos atiradores foram atingidos pelo fogo aéreo, em reacção e em função da táctica aérea aplicada. Na história do combate antiaéreo na Guiné que vai desde o calibre 7.65, até ao míssil transportado ao ombro, passando pelas metralhadoras 12.7, 14.5 e 37 mm, o avião sofreu naturalmente danos, mas o resultado final foi-lhe sempre favorável em termos tácticos, relativamente às expectativas artilheiras, e ao contrário dos relatórios propagandísticos perfeitamente fantasiosos. Naturalmente que o impacte do míssil foi o mais forte, mas isso iria corresponder a um novo desafio no quadro da operação conjunta, como aconteceu no passado e como se começou de imediato a desenhar.

Carregando um míssil Strela, a arma que influiu decisivamente na frente da Guiné.





Quanto às operações em Guidaje, em 1973, que se assemelharam mais a um quadro de operação clássica do que de guerrilha, com efectivos muito elevados do lado inimigo, incluindo mercenários e com armamento sofisticado, é certo que provocaram baixas nas nossas forças, mas não se pode atribuir um desfecho vitorioso para o lado inimigo. O apoio aéreo próximo, pelo fogo, em especial às forças comando na sua progressão para o objectivo, como na sua retirada, foi muito importante para o sucesso da operação, como é sabido; não só nesta situação mas também no apoio às forças que acorreram à defesa do quartel, incluindo foras páraquedistas. No final, as tropas africanas que anteriormente guarneciam o quartel, aí se mantiveram depois do confronto, com a respectiva população. No ataque de artilharia a Guileje, a partir de bases muito próximas da fronteira, que se seguiu à operação de Guidaje, o comandante da força portuguesa decidiu retirar para Gadamael levando consigo toda a população, passando a ser este quartel o alvo dos ataques à distância. Os meios aéreos de apoio de fogo intervieram, sempre que foram solicitados, contra as bases de fogo inimigas. Guileje, que não foi reocupado pelas nossas forças, por opção estratégica, também o não foi pelas forças inimigas.

Quanto ao rearmamento do inimigo, cuja notícia criou alguma preocupação, havia um pendor mais para o lado convencional. A aplicação de algum tipo deste armamento pela guerrilha poderia trazer-lhe uma nova vulnerabilidade, pela exposição, em especial ao ataque aéreo. O inimigo estabeleceu uma malha de "santuários" muito próximo da fronteira portuguesa, que estavam perfeitamente identificados, e que, salvo enquandramentos muito específicos, não foram atacados pelas forças portuguesas. Se o conflito escalasse seria de admitir uma alteração de estratégia. Por outro lado, seria lógico de admitir um aumento de capacidade operacional portuguesa, que já estava a ser planeada. Entretanto, todas as operações militares foram coroadas com sucesso. A ocupação de uma área crítica no Cantanhez, em finais de 1972, com recuperação de parte da população, é talvez um exemplo da capacidade militar portuguesa.

Neste quadro de guerra, tão complexo e difícil, há um indicador que muitas vezes se esquece: a apresentação da população nos quartéis portugueses e o volume do conjunto da população que se acolhia à protecção das forças militares portuguesas.

Estes foram alguns factos e ideias que estão na base da opinião que me foi pedida. A decisão final foi política, como é sabido, e não foi certamente determinada por um potencial fracasso militar».

Tenente-General Antonio de Jesus Bispo (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).


«Logo a seguir ao bem sucedido golpe militar de 25 de Abril tornara-se evidente que o Partido Comunista Português, organização muito bem estruturada e com larga experiência de movimentação na clandestinidade, se encontrava empenhado no iminente assalto ao poder, quer na Metrópole, quer junto dos movimentos independentistas africanos.

Na Guiné, à data do 25 de Abril, são cerca de 17.000 os naturais daquela província que integram as Forças Armadas portuguesas ou constituem as milícias e, lado a lado com as tropas metropolitanas, combatem os movimentos subversivos. O destino destes homens preocupa os seus antigos chefes, pelo que estes, como é natural, procuram acautelar que nada de mal lhes suceda.

Assim, de Maio a Junho de 1974 este assunto é objecto de discussão entre delegações de Portugal e do PAIGC. Num dos encontros preliminares participam, pela delegação portuguesa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, e o ministro da Coordenação Interterritorial, António de Almeida Santos, o subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Jorge Campinos, e o tenente-coronel Almeida Bruno, sendo o PAIGC representado por Pedro Pires e José Araújo. E as indicações que o general Spínola dera a Almeida Bruno eram bem precisas, no sentido de proteger não só os oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos como também os comandantes das milícias, que tinham cerca de 20 mil homens com insígnias e uniformes próprios.

No entanto, quando Portugal reconhece o estado da Guiné-Bissau através dos acordos de Argel, a recomendação de Spínola é ignorada. Nem nos textos da acta, nem nos anexos do documento que sela os referidos acordos a salvaguarda dos militares africanos é tratada com as necessárias cautelas, de modo a precaver ameaças futuras à segurança de leais portugueses, cuja diferença para os seus camaradas metropolitanos residia unicamente na melanina que lhes dava cor à pele.

(...) Como o tempo demonstraria, a incúria dos negociadores permite que centenas de militares e cidadãos portugueses africanos sejam vilmente chacinados, fuzilados na solidão das matas ou em espaços públicos, acabando por jazer em valas comuns.






Vala comum dos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas assassinados às ordens de Luís Cabral (1980).



Na Guiné vão, entretanto, ocorrendo confraternizações não autorizadas de alguns militares portugueses com guerrilheiros do PAIGC, enquanto se procede à transferência dos aquartelamentos para as mãos daqueles que há pouco tempo ainda eram os inimigos e que a revolução em Lisboa tornara vencedores de uma guerra que não tinham sido capazes de ganhar pela força das armas.

(...) Em Moçambique, a bandeira de Portugal é arrastada de rojo pelas ruas de Lourenço Marques. Em Angola, o major Pezarat Correia desarmara os brancos para que estes não se intrometessem ou sequer viessem a ter qualquer peso nos pratos da balança com que se havia acertado os acordos, tendo como resultado a instalação do terror e a vergonha de ver unidades do Exército serem obrigadas a abandonar os quartéis em cuecas.

Na Guiné, ainda antes da independência e à medida que as Forças Armadas portuguesas retiram, explode o sentimento de vingança do PAIGC contra os seus concidadãos que estiveram ao lado de Portugal, e começam os assassinatos. A primeira vítima é o tenente Abdulai Queta Jamanca, que pertencera à 1.ª Companhia de Comandos africanos e participara na operação "Mar Verde", um herói condecorado pelo general Spínola. Jamanca era um mito entre os africanos, um príncipe local que, servindo então na Companhia de Caçadores 21, em Babadinca, foi fuzilado naquela localidade após ter sido preso numa horta próximo de sua casa.

Os meses passam mas a situação em nada melhora. Logo a seguir ao golpe de 11 de Março de 1975, em Lisboa, o PAIGC lança uma enorme operação de limpeza entre os ex-soldados, os ex-marinheiros e os ex-milícias, portugueses e guineenses, com o argumento falacioso de que pretendiam desferir um golpe de estado na Guiné.

Largas centenas de antigos militares são presos, torturados e fuzilados (500 segundo as autoridades locais informaram posteriormente, 1.000 de acordo com os seus companheiros sobreviventes). Muitos dos prisioneiros são pendurados pelos pés e chicoteados até à exaustão; outros, obrigados a carregar às costas gigantescos pneus de Berliet, e as respectivas jantes.

Joaquim Baticã Ferreira, rei manjaco e antigo deputado da Assembleia Nacional Popular, muito querido do seu povo, credor de grande consideração por parte das autoridades portuguesas, e Didi, um sargento dos comandos africanos natural de Cadgindjaça - povoação um pouco a norte de Bissau -, ambos são fuzilados depois de um julgamento fantoche sumário. Para os humilhar, amarram-lhes as mãos atrás das costas e, de joelhos no chão, nem lhes dão o direito a defender-se. Aquilo a que chamam julgamento durou apenas um minuto.

Os fuzilamentos não páram. Nas matas, em aeroportos, nos campos de futebol, na presença das populações, centenas de guineenses cujo único "crime" foi terem sido leais à sua Pátria, acabam por ser sumariamente executados. E os linchamentos continuam até aos anos 80, sob as ordens de Luís Cabral, durante este período presidente da Guiné.

Os corpos são atirados de qualquer maneira para valas comuns nas matas de Jugudul, Cumeré, Portogole, Mansabá e Mansoa e, pretendendo que tudo tivesse um ar de natural legalidade, era então passada uma ingénua certidão de óbito - muitas vezes em papel timbrado e selado com as armas de Portugal -, na qual se atestava que "...faleceu por fuzilamento um indivíduo do sexo masculino..."».

Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão, Honra e Dever. Uma quase Biografia»).


«No dia nove de Janeiro de 1976 podia ler-se no semanário "O Jornal" uma reportagem destinada a criar sensação no grande público. Três páginas compactas ajudavam a manter o complexo de culpa no povo português desencadeado pela estratégica do PCP. As grandes linhas mestras de todo o processo post-25 de Abril pareciam assentar na psicanálise. Não bastava culpar toda uma população pela guerra colonial: era necessário emocioná-la com pormenores chocantes para a alma cristã dos portugueses. Noticiar um desastre de comboio no qual morreram 50 pessoas, é uma coisa que impressiona, que torna as pessoas pensativas e, quiçá, revoltadas contra uns vagos técnicos responsáveis pela segurança dos caminhos-de-ferro. Mas se essa mesma notícia vier acompanhada de uma fotografia mostrando uma criança contorcida nos ferros quebrados, esmagada debaixo da sucata e a mãe chorando diante do espectáculo macabro, então as pessoas perdem a serenidade e o melhor que os técnicos responsáveis têm a fazer é não aparecer em público durante algum tempo.






Da guerra colonial faltava o pormenor chocante, revoltante, que fazia transbordar a cólera dos portugueses: o assassinato de um líder respeitado. Foi assim que, naquele dia nove, o "Jornal" anunciava em grandes títulos: "Como Lisboa planeou a morte de Amílcar Cabral!..."

A reportagem abria da seguinte forma: "Completam-se, no dia 20 de Janeiro, três anos sobre a data em que Amílcar Cabral, o grande dirigente africano que fundou o PAIGC, morreu assassinado, no decurso de um golpe levado a cabo por alguns traidores desse partido, sob a direcção dos governantes fascistas portugueses".

Mais adiante o semanário transcreve do Livro Branco que o PAIGC preparou sobre o crime, a seguinte passagem: "No dia 20 de Janeiro do corrente (1973) os criminosos colonialistas portugueses conseguiram levar a cabo o mais crapuloso crime contra o nosso povo. O assassinato do nosso secretário-geral Amílcar Cabral é, sem dúvida alguma, o maior golpe que o inimigo desfechou desde a fundação do nosso partido.

Como se sabe, nesse dia, agentes inimigos, infiltrados de colaboração com certos elementos do nosso partido, corrompidos e frustrados nas suas ambições, perpetraram esse odioso crime que veio a juntar-se à enorme lista de barbaridades e massacres que o desacreditado exército colonial e fascista português pratica quotidiamente contra as nossas populações indefesas.

Com efeito, cerca das 22 e 30 desse dia, um grupo de traidores africanos devia pôr em execução o criminoso plano longamente preparado pelas autoridades de Lisboa para eliminação fisica do nosso secretário-geral e a destruição do nosso glorioso partido.

Cabral acabava de regressar de um jantar na Embaixada da Polónia. A maioria dos militantes, dirigentes e responsáveis presentes em Conacry encontrava-se na nossa escola-piloto de Ratoma, onde o camarada Chissano, membro da Comité Executivo da Frelimo, de passagem em Conacry, fazia uma conferência aos nossos quadros sobre o desenvolvimento da luta em Moçambique.

No secretariado, encontrava-se apenas o secretário-geral adjunto, camarada Aristides Pereira, em companhia de três camaradas, todos mobilizados pelos traidores, assim como os restantes guardas do secretariado.

Logo à chegada do secretário-geral, os traidores, encobertos pela noite, puderam assim dirigir-se, sem serem incomodados para o carro, em vias de estacionamento à porta da garagem. A bordo encontravam-se apenas Cabral e a sua esposa, ambos desarmados. Após uma tentativa infrutífera de rapto, o criminoso Inocêncio Kani disparou cobardemente um tiro de pistola que devia arrebatar à vida a esperança de todos aqueles que na África e no Mundo lutam contra a opressão colonial e para uma vida melhor de paz e de progresso.

Não satisfeito com o monstruoso acto que acabara de praticar, o renegado Kani ordenou aos seus cúmplices que concluíssem a obra destrutiva que ele próprio havia iniciado. Imediatamente, uma rajada de AK disparada por um dos guardas pôs termo à vida do nosso secretário-geral".

Estranhamente o Livro Branco não fala mais na mulher de Amílcar Cabral... Os assassinos não a mataram. Deixaram uma testemunha? Os executantes de operações deste género não costumam cometer erros tão elementares. Recordemos o assassinato do general Humberto Delgado: a sua secretária brasileira, Arajarir, foi igualmente morta para que, obviamente, não pudesse testemunhar. Porque teriam, então, poupado a mulher de Amílcar? Pela simples razão de que não foi assim que as coisas se passaram. A versão oficial do PAIGC e do governo da Guiné-Conacry não corresponde à realidade. Simplesmente não é verdadeira e, mais uma vez, o povo foi burlado pela estratégia do PCP em todo o processo revolucionário português.

Embora extremamente difícil de provar por forma irrefutável - como difícil se torna documentar a implicação dos comunistas na morte de Delgado -, a verdade é que não havia a mínima lógica para que as autoridades portuguesas desejassem, em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral. E nas andanças de guerra os planeamentos à distância obedecem sempre a um critério lógico.

Para o governo de Sékou Touré essa eliminação era vital. E Sékou Touré mandou matá-lo. Tanto quanto foi possível apurar, Amílcar teria sido degolado e não morto a tiro. Mas vejamos as razões do interesse do ditador de Conacry.











Sékou Touré



Amílcar Cabral






Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída em 1495, a mais antiga igreja colonial do mundo, na Cidade Velha, na Ilha de Santiago (a maior ilha do arquipélago de Cabo Verde).


Elementos do PAIGC hasteiam a bandeira da Guiné-Bissau em 1974, depois da "declaração de independência".







Amílcar Cabral estava em contacto com o general Spínola para pôr fim à guerra de uma forma honrosa, e obter a independência de uma forma prudente. Sékou Touré soube disso e mandou matá-lo. Simplesmente isto.

Este livro revela documentos altamente secretos que provam os contactos havidos com Amílcar Cabral e o irmão Luís Cabral. Estes contactos eram realizados através de uma gente nossa colocada em Londres. Pelas datas dos telegramas aqui reproduzidos verifica-se que esses contactos se processaram cerca de dois meses antes da morte de Amílcar Cabral... Porque é que nós, portugueses, mandaríamos matar um homem com quem queríamos negociar e que nos havia respondido estar disposto a isso? Saberá por acaso o povo português que a mãe de Amílcar Cabral vivia tranquilamente em Bissau? E que o sonho de Sékou Touré era anexar pura e simplesmente a Guiné-Bissau?».

Alpoim Calvão («De Conacry ao MDLP»).


«No dia 20 de Janeiro de 1973, o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, um mestiço politicamente moderado (vagamente marxista), de cultura lusíada, foi assassinado em Conacry, por três elementos do mesmo partido.

Na sequência foram eliminados numerosos guerrilheiros e até hoje, nunca se soube oficialmente os verdadeiros contornos da trama, tendo-se atirado para cima da PIDE/DGS a hipótese inverosímil, de estar por detrás desta morte. [O que, a ser verdade - convenhamos - seria mais do que legítima]».

João José Brandão Ferreira (in «Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?»).


«A figura carismática de Amílcar Cabral surgira muito antes do início da luta armada, afirmando-se rapidamente como um dos grandes e mais populares líderes africanos. Nascido em Bafatá, Guiné, a 12 de Setembro de 1924, era filho de Juvenal Lopes Cabral, cabo-verdiano de ascendência e funcionário público de profissão (empregado da alfândega e professor na região de Cacine), e de Iva Pinhel Évora, costureira guineense. O pai estudara no Seminário de Viseu e fora colega de Oliveira Salazar, por quem sentia enorme admiração. Era um acérrimo defensor da colonização portuguesa na Guiné e considerava o Presidente do Conselho "um dos maiores estadistas da actualidade, astro de primeira grandeza entre a formosa constelação de patriotas que dirigem os destinos da Nação".

No entanto, admirava ainda mais o cartaginês Hamílcar Barca e é em homenagem a ele que regista o filho como Hamílcar Lopes Cabral. A consoante muda do primeiro nome perde-se no tempo e é já como Amílcar Cabral que o filho vai estudar para a Metrópole com uma bolsa do Estado Português e se forma engenheiro agrónomo, pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa.

A primeira experiência profissional após terminar o curso, em 1950, é na Estação Agronómica Nacional, em Santarém, mas já antes dava aulas de alfabetização e explicações de Matemática a operários da zona de Alcântara. Participa nas actividades culturais da Casa dos Estudantes do Império a partir de 1947, onde chega a desempenhar as funções de secretário-geral e presidente do comité de cultura. Regressa à terra natal, em 1952, para trabalhar nos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, que o fazem percorrer o país de lés-a-lés, permitindo-lhe adquirir um profundo conhecimento geográfico e social que viria a revelar-se de extrema utilidade para o exercício do comando da guerrilha.

Em 1954, pede licença para criar em Bissau o Clube Desportivo e Cultural, destinado a africanos, mas a autorização é-lhe negada. Entra então na contestação aberta a portugal e passa a ser vigiado pela PIDE. Não se conforma e, no ano seguinte, cria o Movimento para Independência Nacional da Guiné (MING). No dia 19 de Setembro de 1956, Amílcar Cabral funda, em Bissau, o Partido Africano para a Independência (PAI), juntamente com seu irmão, Luís Cabral - encarregado da contabilidade da Casa Gouveia, uma filial da CUF -, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte, e Elisée Turpin - gerente na Casa Gouveia.

Dois anos depois, a Guiné-Conacry vê reconhecida a sua independência, cortando definitivamente os laços que a ligavam à França. Uma notícia que estimula Cabral, que em 1959 cria a Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde (FLGCV), com Rafael Barbosa, em Bissau, e o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGCV), em Dakar. A FLGCV acabará por fundir diversos movimentos de emancipação, adoptando a linha política do PAI e, em Outubro de 1960, passa a designar-se por Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Antes, a 14 de Julho, ainda como secretário-geral do PAI, Amílcar Cabral dirige uma mensagem aos povos da Guiné e Cabo Verde, em nome deste partido e da FLGCV, na qual lança um forte apelo: "Mobilizemos todas as forças anti-colonialistas, organizemo-nos o melhor possível, unamo-nos fortemente no nosso Partido e na nossa Frente de Libertação - e preparemo-nos activa e cuidadosamente para acabar em breve com a odiosa dominação portuguesa nas nossas terras! CRIEMOS URGENTEMENTE ORGANIZAÇÕES DO NOSSO PARTIDO DA INDEPENDÊNCIA EM TODOS OS LOCAIS DE TRABALHO E RESIDÊNCIA".









Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa



Monumento a Teixeira Pinto (Guiné Portuguesa).



Monumento a Diogo Gomes (Guiné Portuguesa).



Desfile na Praça do Império (Guiné Portuguesa).



Amílcar Cabral não mais pára de lutar e, em 1962, torna-se no primeiro chefe de um movimento de libertação a fazer-se ouvir internacionalmente, discursando na Assembleia-Geral da ONU. O conflito intensifica-se e obriga Portugal a reforçar o contingente militar no território.

(...) A doutrina com que, entretanto, Amílcar Cabral incentivava os quadros do PAIGC assentava em apregoar os malefícios do colonialismo e as virtudes da luta de libertação, bem expressas nas "Palavras de Ordem Gerais", um opúsculo que o Secretariado-Geral do PAIGC editara e difundira em Novembro de 1965.

O pensamento de Cabral aí exposto, com a apregoada concepção humanista do seu autor a ser desmentida a cada parágrafo, fazia a apologia da violência e do ódio, incitando à destruição de tudo aquilo que os portugueses haviam construído, mesmo que fosse os frutos de uma acção benéfica para o povo guineense...».

Rui Hortelão, Luís Sanches de Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão, Honra e Dever. Uma quase Biografia»).



«Não senhor, tudo isto foi feito pelos portugueses; nós não fizemos nada, nós só estragámos».

Coronel Celestino de Carvalho (CEMFA da República da Guiné-Bissau - 1996).





 A Guerra do Ultramar não estava militarmente perdida


Nuno Gonçalo Vieira Matias ingressou em 1957 na Escola Naval. Terminada a licenciatura em Marinha, foi voluntário para embarcar na fragata Vasco da Gama, onde fez comissão em Angola de 1961 a 1963.

Especializou-se em Artilharia e, mais tarde, em Fuzileiro Especial. Combateu na Guiné, como Comandante do Destacamento N.º 13 de Fuzileiros Especiais de 1968 a 1970. Desempenhou depois, sucessivamente, as funções de professor da Escola Naval e de Director do Laboratório de Explosivos, Comandante da Força de Fuzileiros do Continente, Capitão dos portos de Portimão e de Lagos, Comandante do N.R.P, João Belo, Chefe de Divisão do Estado-Maior da Armada e professor do Instituto Superior Naval de Guerra.

Além da formação em escolas nacionais, frequentou, ao longo da carreira, em países da NATO, uma dezena de cursos, entre os quais o Naval Command College, nos EUA, no ano lectivo de 1988/89.

Como Oficial General, foi Subchefe do Estado-Maior da Armada, Superintendente dos Serviços do Material, Comandante Naval e Commander-in-Chief Iberian Atlantic Area.

Entre 1997 e 2002, desempenhou o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada.

Ao longo da sua carreira, foi agraciado com 16 condecorações nacionais, incluindo a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e, 10 estrangeiras, do Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, França e Itália.

Foi membro da Comissão Estratégica dos Oceanos e do European Security Advisory Board, é autor de diversos trabalhos e artigos sobre estratégia marítima, segurança nacional e economia do mar. Dedica-se à actividade de docência e participa, regularmente, em painéis e debates sobre esses temas. É professor convidado da Universidade Católica Portuguesa, membro da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Portuguesa de História, do Conselho Nacional de Educação, Vice-Presidente da Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa e Presidente do Conselho Supremo da Liga dos Combatentes. Integra o conselho editorial das revistas de Marinha, Segurança e Defesa e Nova Cidadania.



AS CAMPANHAS EM ÁFRICA DE 1961 A 1974


Domínio Militar, Desastre Político


Na sua perspectiva, considera que as operações anti-subversivas e de contra-guerrilha desenvolvidas em Angola, Guiné e Moçambique, em defesa da soberania portuguesa sobre aqueles territórios e populações que viviam há séculos debaixo da bandeira das Quinas, estava militarmente perdida?


O Conhecimento que obtive das nossas acções de contraguerrilha, durante uma comissão de serviço em Angola, de 1961 a 1963, a bordo de uma fragata, e outra na Guiné, de 1968 a 1970, no comando do Destacamento de Fuzileiros Especiais N.º 13, acrescido do acompanhamento que fui fazendo do desenrolar das campanhas nos três teatros, assim como a ponderação que a distância no tempo me permitiu, levam-me a responder negativamente à pergunta base que me foi colocada. Isto é, a guerra de contra-subversão, sustentada durante treze anos em três frentes, não estava militarmente perdida em 1974 e nem nunca tinha estado antes.

Para justificar esta resposta, comecemos por recordar alguns factos apenas e, depois, analisemos os quadros de situação adequados, sobretudo estratégicos e operacionais.












Quibocolo







Em 15 de Março de 1961, uns largos milhares de Bakongos armados, sob o controlo da "União dos Povos de Angola", chefiada por Holden Roberto, antigo serviçal de uma igreja protestante, invadiram o norte de Angola, por uma faixa fronteiriça de umas três centenas de quilómetros e, só nas primeiras semanas mataram 300 fazendeiros brancos e 6.000 negros angolanos desarmados, números estes que se estima tenham subido para cerca de 500 brancos e 20.000 nativos, até esta matança de indescritível violência ter começado a ser contida pelas reduzidas forças locais de milícias e fazendeiros armados. Todos os meios disponíveis foram usados para conter a barbárie e proteger as populações, brancas e negras. Até mesmo as pequenas forças de desembarque dos navios da nossa Armada, em missão no Território, foram usadas pela terra dentro.

O meu início de carreira naval permitiu-me o primeiro contacto com Angola, uma vez que, terminada a parte escolar do curso da Escola Naval, na primavera de 1961, fui, em viagem de instrução, na fragata "Pero Escobar" para Angola, onde permaneci uns meses. Os contactos estabelecidos com as populações, ao longo de toda a costa, os "briefings" recebidos, incluindo um feito pelo Comandante Militar, General Silva Freire, e a informação recolhida de muitas fontes traduziam uma realidade de uma violência indescritível, apesar de esta ter sido contida numa região próxima da fronteira norte, ainda longe de chegar a Luanda.

Foi com acções muito duras que a loucura invasora foi parada pelas forças militares portuguesas, que só a partir do princípio de Maio de 1961 começaram a dispor de meios significativos na área em convulsão. Em 13 de Junho, foi finalmente recuperado o pequeno posto administrativo da Lucunga, ocupado pelos invasores logo nos primeiros dias de acção.

Como testemunho pessoal, tenho gostado de transmitir a extraordinária impressão que recolhi no contacto com as populações visitadas na linha de costa, de Cabinda à Baía dos Tigres. A "Pero Escobar", na sua dupla missão de patrulha costeira e de instrução dos aspirantes do meu curso, permitiu-nos uma grande aproximação às gentes de Angola, que nos recebeu com tocante simpatia. Aparentavam natural preocupação com o que se estava a passar no Norte, mas demonstravam também uma firme determinação de não hesitar na "defesa da nossa terra".

No decurso dessa actividade formativa, acompanhei uma pequena força de desembarque da fragata "Diogo Gomes" em patrulha do Rio Chiloango, o principal de Cabinda, na pequena, lenta e ruidosa lancha de boca aberta "Lué Grande". Não tinha havido qualquer incidente com a força e as populações ribeirinhas, concentradas em aldeias muito dispersas, que mantinham com os marinheiros a melhor das relações. Contudo, a memória da tragédia e o aviso do perigo existiam na margem esquerda do Rio, materializados nos escombros de uma serração que usava madeiras provenientes da Floresta de Maiombe, onde os invasores congoleses haviam assassinado os proprietários, dois irmãos brancos, cortando-os em pedaços nas serras de processar madeira!

Perante este quadro de situação, os jovens aspirantes, como quaisquer cidadãos normais, reforçaram a convicção de que Angola e as suas gentes, de origem africana, europeia, ou outra tinham de ser protegidas da selvajaria que transbordava do Congo.

Hoje, passadas mais de cinco décadas, custa-me a entender que apareçam alguns indivíduos que se expressam em português, mas que não devem ser portugueses, que advogaram, e que ainda o repetem, que os militares deviam ter baixado as armas e desertar. Isto é, deveriam ter deixado matar toda a população de Angola.

Foi, muito impressionado pelo que vi e senti que fui mandado regressar a Lisboa de avião, enquanto a "Pero Escobar" continuava a sua missão de patrulha nos mares de Angola. Aqui chegado, ofereci-me para voltar para aquele território ultramarino, como membro da guarnição da fragata "Vasco da Gama", recentemente adquirida a Inglaterra e que se preparava para comissão. Em 20 de Dezembro de 1961, chegava, de novo, a Luanda, iniciando uma longa comissão de serviço embarcado, até finais de 1963.

Os factos depois vividos nessa intensa comissão confirmaram os que já haviam marcado a minha alma de jovem militar português, ainda na fase de formação. Entendo que os chamados "ventos da história" não eram mais do que "ventos da cobiça", habilidosa, mas fortemente soprados do exterior para afastarem de tão importante terra os "pequenos portugueses", os quais, pelo seu reduzido poder nacional, não tinham o direito de viver em África, para mais em perfeita comunhão com os povos locais.








Abordados estes factos com a concisão que a emotividade memorizada permite, tentarei agora elaborar sobre o quadro de situação relativo às, até 1974, três províncias ultramarinas portuguesas, começando pelos aspectos estratégicos, seguidos dos operacionais, para, no fim, numa sequência não muito ortodoxa, aflorar apenas alguns aspectos do quadro político.

Numa breve avaliação, podemos, pois, concluir que o País mantinha, em termos estratégicos, total independência de telecomunicações entre todos os seus territórios europeus, africanos e asiáticos, assim como no seu interior. Foi um patamar alcançado ainda antes de 1961 e que, sucessivamente, se reforçou.

Ainda no âmbito das comunicações, mas agora das marítimas e aéreas, essa autonomia foi conseguida e usada, sem limitações impeditivas, durante os 13 anos de empenhamento militar em África. De facto, a existência de uma enorme frota de navios mercantes de significativo porte, da ordem da centena e meia, incluindo duas dezenas de paquetes, permitiu total autonomia nos movimentos de pessoas (civis e militares) entre todos os territórios insulares e continentais portugueses. Conseguia-se o controlo do mar nos locais e nos tempos necessários e, quando esse domínio começou a ser problemático, pela existência na Guiné Conacri de 7 lanchas rápidas, lança-torpedos e mísseis, de origem soviética (classes Komar e P6), a ameaça foi eliminada com o afundamento da totalidade dos navios, conseguido heroicamente pelos Fuzileiros, durante a operação "Mar Verde" (1970).

Também as ligações aéreas foram aumentando de capacidades, complementando, nalguns casos, as ligações marítimas.

Em suma, as telecomunicações e as ligações marítimas e aéreas, eram feitas com total independência nacional, ligando portos e aeroportos, que mantínhamos intocados e percorrendo espaços marítimos e aéreos transcontinentais com liberdade de acção.

Outro aspecto estratégico foi o da obtenção do material de guerra necessário às operações, armas, munições, viaturas, aeronaves e navios, conseguido com surpreendente fluidez, por aquisição no estrangeiro e por produção no País. A boa situação das contas do Estado e crescimento da economia, apesar do conflito em três frentes, constituíram factores decisivos para essa satisfação estratégica das necessidades logísticas.

Ainda apenas mais uma questão estratégica que vale a pena aflorar mesmo que ligeiramente - é a do apoio moral dos Portugueses contra a invasão insurreccional dos três territórios - Angola, Moçambique e Guiné.

Na verdade, a barbárie terrorista de 1961, levada a cabo pela UPA de Holden Roberto em Angola, impressionou de tal forma os Portugueses que a mobilização de vontades para defender o que era nosso - pessoas e territórios - surgiu por todo o lado. Quantos exemplos houve de jovens, a viver no estrangeiro, que regressaram a Portugal só para cumprir o serviço militar? Eu conheço vários, mas, normalmente, só se publicita os que desertaram.

Isto é, a força moral da Nação era grande, muito grande mesmo, constituindo um valioso factor de poder nacional, determinante para a prossecução de um conflito em três frentes distantes, por um país de recursos humanos e materiais muito limitados. É um caso tão admirável que alguns estudiosos estrangeiros ainda o continuam a analisar.

Passando ao quadro operacional, considero que a situação em Angola e Moçambique, no princípio dos anos 70 tinha evoluído muito positivamente para as nossas forças, empenhadas principalmente na contenção das infiltrações de homens e de material militar, a partir de territórios vizinhos e também no controlo das populações. A utilização, de forma bem entrosada, dos meios terrestres, aéreos e navais, estes no mar, nos rios e nos lagos, tinha vindo a dar bons resultados na contenção dos locais onde se verificava actuação dos insurrectos, reduzindo alguns e eliminando outros. Não havia nenhuma parte desses territórios dominada por qualquer dos movimentos de guerrilha e a liberdade das nossas forças só era condicionada nalguns locais por acções esporádicas de guerrilheiros. Isto é, estes não dominavam espaços. Em todos era possível a acção das nossas forças e o nosso esforço desenvolvia-se no sentido de encontrar os guerrilheiros, que se furtavam ao contacto sempre que não podiam usar os golpes de surpresa.

Guiné (Região de Quínara). Povoação (à esquerda) e aquartelamento (à direita) vistos de helicóptero.




Estrada Buba-Mampatá-Quebo


Na Guiné, que conheci bem, por lá ter combatido entre 1968 e 1970, a situação era mais dura, devido às condições ambientais, ao apoio à guerrilha proveniente dos dois países lindeiros e também da União Soviética e seus satélites, que eram os seus grandes fornecedores de armamento e de treino, já com algum apoio da China. Eram factores que, aliados à pequena dimensão do território e à sua configuração plana, penetrado por rios e braços de mar, sujeitos a marés de enorme amplitude, causavam mais dificuldades às nossas forças.

Mesmo assim, recordo que o conceito operacional desenvolvido pelo Comandante-Chefe, General Spínola, em 1968/69, focado num grande esforço de contra-penetração sobre os principais corredores de infiltração para abastecimento da guerrilha, deu excelentes resultados.

Participei, com o meu destacamento de fuzileiros especiais, tal como outras unidades de fuzileiros e navais, no esforço de contenção do corredor norte, com origem no Senegal, em acções de longa permanência no Rio Cacheu, seus afluentes e margens. Também, e dentro do mesmo conceito, unidades de comandos e de páraquedistas actuaram em corredores, no sul, provenientes da Guiné Conacri.

Este conceito operacional reduziu muito a acção da guerrilha, levando-a a diminuir drasticamente o número de flagelações às unidades aquarteladas no Território e limitando as suas movimentações. Por outro lado, a boa utilização do meio aquático, como via de comunicação múltipla e de controlo do terreno adjacente, assim como o adequado emprego dos meios aéreos, permitiam o necessário apoio às forças terrestres, garantiam a liberdade de manobra necessária e negavam o uso controlado dos espaços ao inimigo. Isto é, não existia nenhuma parte do Território onde a guerrilha impedisse a nossa acção, com maior ou menor facilidade. Sempre que tentou a possibilidade de controlar, em permanência, algum espaço, o preço que pagou foi muito alto, com derrotas pesadas, como na Ilha do Como, na Península do Sambuiá, etc.

Diz-se que, perto do final da nossa presença na Guiné, o uso de mísseis antiaéreos pela guerrilha levaria à nossa derrota, mas isso não é verdade, já que havia tácticas e procedimentos que poderiam limitar a eficácia de tais meios, tal como se ultrapassou a ameaça das metralhadoras antiaéreas.

Em suma, no início de 1974, as comunicações interterritoriais, de enorme importância estratégica, mantinham a sua inviolabilidade. Também, em cada território, estava garantido o total domínio dos espaços marítimos, fluviais e lacustres, ocorrendo apenas nalguns rios da Guiné, esporadicamente, flagelações aos meios navais, com carácter mais ou menos pontual, os quais, contudo, não resistiam à resposta das unidades atacadas.

Em terra, a situação em Angola e Moçambique, tinha vindo a evoluir positivamente para o nosso controlo, até com desistência da actividade da guerrilha por alguns grupos e nalgumas zonas. Na Guiné, as condições ambientais, o apoio externo e a proximidade das bases nos dois países limítrofes, continuavam a propiciar acções de surpresa da guerrilha, sem contudo lhe garantirem o domínio de qualquer área.

O nosso controlo do espaço aéreo era total. Na Guiné, o uso de armas antiéreas com guiamento, por parte da guerrilha, não lhe permitiu, de forma alguma, o domínio do ar, nem sequer impediu a acção da Força Aérea Portuguesa, que continuou a manter a sua excelente acção, embora com riscos acrescidos.

Assim, Portugal continuava a ter, ainda no primeiro trimestre de 1974, liberdade estratégica de ligação por mar, ar e por telecomunicações de todos os territórios sem qualquer impedimento. Por outro lado, nos três teatros de operações o controlo do espaço impedia a ocupação permanente de qualquer área pela guerrilha. Isto é, a liberdade de acção das nossas forças mantinha-se e nenhum espaço era dominado pela guerrilha. Ou seja, continuavam assegurados todos os pressupostos que negavam a nossa derrota militar. Militarmente, continuávamos com supremacia total.

Então, se abandonámos os 3 territórios, com toda a torrente de consequências desastrosas, incluindo as guerras civis que se seguiram, com milhares de mortos, foi por decisão política tomada em Lisboa, mas não por desaire militar.

Na verdade, e sem pretender analisar com um mínimo de profundidade a questão política, é evidente que essa constituiu a vertente que, com o tempo, se tornou muito frágil. De facto, enquanto que, durante bastantes anos, a orientação política e estratégica foi forte e adequada, era evidente que o desgastante e exigente conflito que mantivemos, por tanto tempo, em terras tão distantes, sendo duas delas de enorme dimensão geográfica, tinha de atingir o seu limite. Em termos históricos, os Portugueses sempre foram capazes de esforços de forte intensidade, mas sem grande extensão temporal. O factor demográfico constituiu, normalmente, uma limitação séria do nosso poder. Mesmo assim, a forma brilhante como nos batemos em África é um verdadeiro "case study" que, também no estrangeiro, causa admiração a muitos especialistas. Veja-se, por exemplo, a obra do professor americano John P. Cann que conta já com vários livros publicados nos Estados Unidos da América, em Inglaterra e também em Portugal. De facto, batemo-nos galhardamente durante treze anos, poderíamos ainda ter suportado a superioridade durante mais tempo, mas isso exigiria outtra condução política do País e dos conflitos.



Ver aqui




A incapacidade para encontrar a política adequada à evolução da situação, enquanto mantínhamos supremacia militar em África, contribuiu para o desastroso abandono de Angola, Moçambique e Guiné. E foi desastroso para Portugal, mas sobretudo para os habitantes desses territórios, independentemente da cor da pele. Se dúvidas houver, pense-se no drama das multidões de retornados e nos milhares de mortos das guerras civis entre facções dos povos abandonados. Fomos os últimos a abandonar África e tínhamos sido os primeiros a chegar. (in Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?», Fronteira do Caos Editores, 2015, pp. 325-333. O título é de nossa autoria).



Nunca louvarei o capitão que diga: «Não cuidei»

$
0
0
Escrito por Luís de Camões








Tal há-de ser quem quer, co'o dom de Marte,
Imitar os Ilustres e igualá-los:
Voar co'o pensamento a toda a parte,
Adivinhar perigos e evitá-los,
Com militar engenho e sutil arte,
Entender os imigos e enganá-los,
Crer tudo, enfim; que nunca louvarei
O capitão que diga: «Não cuidei».

Os Lusíadas (Canto VIII, LXXXIX).



Ares


Depois da proclamação constitucional do socialismo, “Na literatura portuguesa não houve quebra de qualidade”

$
0
0
Entrevista a Orlando Vitorino





Orlando Vitorino e António Quadros



Orlando Vitorino é um dos nossos melhores e mais conscientes intelectuais. Ponhamos de parte a sua bibliografia – que é vasta – não sem referir que escreveu cinco ensaios de filosofia e duas peças de teatro. E não só, para parafrasear os dizeres contumazes de certo tipo de jornalistas que por aí andam. Autor de “Refutação da Filosofia Triunfante”, Orlando Vitorino recebeu os louvores críticos de personalidades como Henrique Ruas e Natércia Freire, Pinharanda Gomes e Urbano Tavares Rodrigues, etc., e sobre ele escreveu, na Revista Brasileira de Filosofia, ligada à Universidade de S. Paulo, o crítico marxista Washington Luís: “Páginas de estupenda beleza literária… escritas num momento trágico da vida do seu País, o preciso momento denominado por Dennis Drogan o fim do império”.

Orlando Vitorino é um dos mais probos intelectuais portugueses, que alia à sua validade de pensador, a coragem e o desassombro do homem forte e conscientemente patriota, face ao que tem ocorrido entre nós. E não esqueçamos, por outro lado, o criador e fundador de revistas culturais, desde “ACTO” com António Quadros, há mais de 20 anos, até, recentemente, com Afonso Botelho, a “Escola Formal”. E não esqueçamos ainda a sua acção como empresário, que fez representar algumas das obras-primas da dramaturgia contemporânea, como “Jacob e o Anjo”, de José Régio. E anotamos ainda, como factores de excepcional importância, a sua acção nos círculos internacionais, a sua colaboração nos “Archiv fur Rechts-Und Sozialphilosophie”, a sua ligação com os meios da economia liberal, que lhe permitiram trazer a Lisboa Frederico Hayek, e a sua participação em Congressos de Filosofia.


As 10 perguntas que fizemos: 


1. Como encara o panorama actual da literatura portuguesa, quer no seu aspecto nacional, quer na sua repercussão internacional?

2. A que atribui a quebra de qualidade da literatura portuguesa, quer quanto aos temas, quer ao próprio espírito e afirmação da nossa língua?

3. Não sente profundamente a necessidade de uma como que purificação da língua portuguesa e de renovação da temática literária?

4. Todos sabemos que, após uma Revolução, onde quer que ela se dê, a Literatura sofre a sua influência, de um modo geral para melhor. Os exemplos estão à vista nas literaturas estrangeiras, quer no período do Renascimento, quer após a Revolução Francesa. Acha que em Portugal, com o 25 de Abril, a cultura portuguesa recebeu qualquer benefício ou, pelo contrário, se desvalorizou a si própria?

5. Deixemos isso, agora, e diga-me: o que é para si a criação literária? Acha que ela deve subordinar-se a uma ortodoxia ou, pelo contrário, deve permanecer alheia a interesses partidários?

6. Deve o escritor interferir directa e pessoalmente na política do seu tempo, como criador ou pelo contrário, deve, de certo modo, manter-se acima dos interesses pessoais e partidários e momentâneos? Pode o escritor libertar-se desses momentos e criar livremente ou não se sentirá coarctado por influências que pretendem dominá-lo?

7. Por outro lado, quando a Pátria está em perigo, a acção do escritor, individualmente ou em grupo, poderá constituir um meio de luta, servindo-se da sua pena, com prejuízo da eternidade da Cultura, da História e da Civilização? Poderá mesmo o escritor abstrair-se do que ocorre à sua volta? Ou deve continuar a criar, dentro daquele sentido recentemente expresso por Miguel Torga, deixando a política para os políticos? Ou deverá ainda admitir-se casos como os de Zola, no caso Dreyfus?

8. Entre “os partidários da ordem” e os “defensores da Liberdade”, ideias expressas por Graham Greene e Charles Moeller, não deverá o escritor agir com aquela “deslealdade” defendida por Green num dos seus ensaios?

9. Em conclusão: qual deve ser a posição do escritor na época actual, não apenas em Portugal como no Mundo?

10. Face a uma Pátria em perigo, o escritor, que também é cidadão, em que sentido deve orientar a sua missão de intelectual, responsável dentro de uma sociedade?


UMA CORAJOSA E CLARA POSIÇÃO INTELECTUAL 


Às duas primeiras perguntas, Orlando Vitorino deu-nos uma resposta que, pela sua profundidade, desassombro e coragem intelectuais, aqui deixamos, face a uma panorâmica intelectual portuguesa a que nos abalançamos a esclarecer, para que a verdade assuma aquela verticalidade e aquela dignidade dos grandes responsáveis da Cultura: 

- Não houve, depois do 25 de Abril ou da proclamação constitucional do socialismo, qualquer quebra de qualidade na literatura portuguesa. A literatura portuguesa tem, neste século, o seu período culminante reunindo nele três dos seus maiores poetas – Pascoaes, Fernando Pessoa e José Régio– e os seus dois maiores pensadores, Leonardo Coimbra e José Marinho (para não falarmos agora de Álvaro Ribeiro). Pascoaes pode, sem grandes possibilidades de séria contestação, figurar entre os génios artísticos da humanidade, sendo, na linhagem de Homero, Virgílio, Dante e Shakespeare, o poeta da idade que vivemos agora. Por Leonardo e Marinho terá de passar todo o pensamento filosófico que não queira aceitar, como não pode aceitar, a demissão da filosofia anunciada pelos alemães posteriores a Hegel, mais expressamente por Heidegger no seu “testamento filosófico”.



Ver aqui



- Todavia, existem… 

- Espere, por favor: aquilo a que V. se refere – ao afirmar uma “quebra de qualidade da literatura portuguesa” é a uma espécie de literatura, a uma infraliteratura que, durante os últimos quarenta anos, foi motivada, alimentada e celebrizada pela oposição ao salazarismo, e constituiu para os políticos da esquerda, um instrumento precioso das tácticas e estratégias com que fazem, ou a que reduzem, a política.

- Quer dizer, portanto… 

- Que com a derrota do salazarismo, essa infra-estrutura perdeu a razão de existência e deixou efectivamente de existir, tanto pela impossibilidade de continuar a produzir os livros que até então produzia, pois lhe falta o regime, o establishment, aonde ia buscar seus motivos e temas, como pela modificação do mínimo ou nenhum valor e significado dos livros que, durante os seus findos 40 anos de existência, produziu.

- Gostava que alongasse as suas considerações a esse respeito… 

- Sem dúvida alguma. Por um fenómeno facilmente explicável, embora à primeira vista paradoxal, essa espécie de literatura satisfazia igualmente a mentalidade do establishment salazarista e a mentalidade da sua oposição política, correspondia à imagem que ambas tinham da literatura como servil instrumento da política, beneficiava do igual interesse de ambas em fazer ignorar a “literatura portuguesa”, desde Camões aos nossos dias, desde Leonardo a Pascoaes, desde Marinho a Pessoa, desde Álvaro Ribeiro a José Régio.

- Isso leva-nos a uma análise aparentemente “cruel”… 

- Por isso as suas “obras” – ensaios superficiais, como hoje claramente se vê que são os de A. Sérgio, poemas de gazetilha, como os de J. Gomes Ferreira, e novelas de magazine como as de A. Redol e Pereira Gomes – se viam editadas, lançadas e premiadas pelos poderes, instituições e empresas do regime, coligidas nas selectas escolares oficiais, adaptadas ao cinema e ao teatro, subsidiadas pelo Estado, instaladas com seus autores ou seus panegiristas nos liceus e universidades. Organizou-se deste modo – prossegue o nosso entrevistado – um tão eficaz ludíbrio da opinião que esta ficava impedida de observar como essa “literatura” que se dava por perseguida, vitimada e censurada pelo regime político era também a única literatura reconhecida e protegida por esse regime. Naturalmente, menos se observava ainda que a literatura portuguesa, essa que era todos os dias silenciada, tinha de recorrer aos editores marginais ou fora das grandes redes de distribuição, escondida pelos livreiros, segregada do ensino e, até, a única verdadeiramente proibida pela censura.

- Não haverá exagero na sua dissecação? 

- Oiça, meu caro, quando extinta a famigerada instituição, uma sociedade subitamente convertida ao comunismo triunfante organizou uma exposição de livros que a Censura havia proibido, logo teve de encerrar e tornar acessível o seu catálogo, por se verificar que os autores mais “censurados” não eram os da “esquerda”, mas sim os escritores como Domingos Monteiro e José Régio. A iniciativa desta exposição mostra bem como a infraliteratura tentou prolongar o ludíbrio que lhe mantivera a existência até para além de todos os limites de verosimilhança.

- Há muitos exemplos de tudo isso. E tem havido pouca coragem em os mostrar… 

- Exacto. Este exemplo é, porém, demasiado ingénuo e tolo. Outros há. Um deles é-nos oferecido por Eduardo Lourenço que, em livro recente, ainda veio denunciar pensadores como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Afonso Botelho, António Quadros, António Telmo, eu próprio, de terem formado uma corrente de pensamento de apoio ao salazarismo, quando ele, Eduardo Lourenço e seus parceiros de opinião, eram quem desempenhava cargos, como os de professor universitário, que não podiam deixar de ser da confiança do Governo, então o salazarista.

- Bem… e depois? 

- Desaparecido o salazarismo, desapareceu essa infraliteratura que dele se alimentava. Os ambientes que a tomavam a sério, forjados pela imprensa dirigida e pelo ensino marxizado da universidade, ficaram efectivamente sem literatura, pois só aquela lhes era acessível, e substituíram-na pela televisão e algum cinema, nada tendo perdido com a troca. Mas os políticos que nele tinham a sua “literatura própria”, esses é que, ao passarem da oposição para o poder, ficaram sem o que seria a “literatura oficial”.

- Sendo embora exacto, Orlando Vitorino, clarifique os seus pontos de vista… 

- Bem. Sabendo eles que os valores, princípios, pensamentos e sentimentos da “literatura portuguesa” ou de toda a verdadeira literatura (ao contrário do que o bem-pensantismo ainda julga, os escritores não são da esquerda), sabendo que esses valores têm, como a expressão da verdade para o predomínio do erro, efeitos nefastos e destruidores para o socialismo, vêem-se obrigados, como os salazaristas, a fazê-la ignorar. Ficam assim, sem nenhuma literatura.





O PROBLEMA DO LAVAR DAS MÃOS 


- Para lavarem daí as mãos – prossegue Orlando Vitorino -, declaram toda a literatura em crise, fazem constar coisas como essa de haver “uma quebra de qualidade na literatura portuguesa actual”. Você, meu caro, fez-se eco dessa balela, deixou-se levar.

- Não acredite nisso. Fiz a pergunta consciente dela e pensando de certo modo como você, bastará ler alguns de meus trabalhos, em jornal e até em livro. Mas adiante. O meu caso não interessa e o entrevistado é você e não eu. 

- Seja. Repare bem que não é só a “literatura actual” que eles pretendem englobar na balela. É toda a literatura portuguesa, desde a clássica até à contemporânea. Observe o que tem sido a acção das autoridades socialistas desde que assumiram o poder: fizeram a campanha contra Camões, dizendo-o poeta militarista, colonialista e racista, cantor de uma história com “cinco séculos de fascismo”; comemoraram o centenário de Herculano, mas tendo o cuidado de deixarem sepultados seus inéditos e por reeditar a sua obra fundamental (os salazaristas tinham feito o mesmo com Guerra Junqueiro); congelaram, nas mãos dos professores universitários, a obra de Pascoaes e a de Camilo: prolongaram a campanha, que já vinha do regime anterior, contra José Régio, campanha que há quem diga ter sido a responsável da sua morte, para, depois, numa sinistra macacada comicieira, lhe chamarem “o nosso camarada socialista”; fizeram comprar pelo Estado o espólio de Fernando Pessoa para o entregarem, com os seus 26 000 inéditos, às mãos servis dos professores universitários que dele vão extraindo, sem qualquer garantia da verídica autoria (já chegaram a publicar como sendo um inédito de Pessoa, uma versalhada do antiquário Kamnetzky à Greta Garbo), aqueles textos, ou excertos de textos que julgam poder servir para a deturpação do pensamento do grande poeta; cercam de sinistro silêncio e obstáculos editoriais as obras de Leonardo Coimbra e José Marinho, de seus epígonos e seus companheiros, comoÁlvaro Ribeiro e Santana Dionísio; enchem as selectas escolares de textos que esterilizam para sempre a capacidade de compreensão intelectual e estética de sucessivas gerações de estudantes; fazem do ensino da língua portuguesa o ensino de uma técnica de comunicação no qual o homem se não distingue do animal.


OS FACTOS PONTUAIS 


Tudo isto – acentua Orlando Vitorino, com o seu habitual desassombro – são factos. “Factos pontuais”, dirá Você, utilizando a linguagem corrente. 

- Talvez…

Pois é. Exactamente, respondo eu, mas é unindo os pontos que se aprende na escola a desenhar as figuras. Dir-me-á Você que as autoridades não podem ser responsabilizadas, por tudo o que lhe descrevi…

- Também não o direi… Aí engana-se Você, Orlando Vitorino… 

- Melhor. Mas eu lembrar-lhe-ei que vivemos em regime socialista, que todo o regime socialista é estatizante, que os nossos chefes socialistas se orgulham de terem estabelecido em Portugal o mais amplo grau de estatização de todos os países ocidentais e que, nestas condições, tudo o que lhe descrevi está dependente do Estado socializado.

- Bem, meu caro: uma pergunta lhe faço agora: Como é que, perante tal situação, pode sobreviver a literatura portuguesa que, sem quebras, continua a existir. 

- Responder-lhe-ei: como sempre sobreviveu: em “GUETOS”.


RENOVAÇÃO DA TEMÁTICA LITERÁRIA E O PROBLEMA DA LÍNGUA 


Quanto à sua terceira pergunta, responder-lhe-ei. Quanto à renovação da temática literária, do que anteriormente disse se deduz que isso seria um problema só daquela infraliteratura desaparecida com o salazarismo.

Quanto à “purificação da língua”, o caso é outro. A língua portuguesa– que foi a primeira das línguas românicas a adquirir virtualidades de expressão descritiva, com Fernão Lopes, e de expressão conceptual (o que é muito mais importante), com D. Duarte – parece ser também a primeira delas a passar, como o latim e o grego, a “língua morta”. A maneira como se fala nos meios escolares de todos os graus e nos jornalísticos, radiofónicos e políticos, a maneira como está redigida a “Constituição” são um espectáculo em que facilmente se diagnostica a doença mortal. E são um espectáculo tão generalizado, consentido e até aplaudido – sobretudo quando se referem aos “novos países de expressão portuguesa” - que é difícil esperar que a doença tenha remédio. Dela ficará – mais uma vez confirmando a antiquíssima sabedoria de que “o pássaro de Minerva levanta voo ao anoitecer” - a literatura que nos nossos dias alcança, com essa língua moribunda, as suas mais imperfeitas expressões, designadamente no domínio conceptual. Daqui resulta que os nossos escritores, sendo ainda operantes, são já escritores clássicos, no sentido em que se diz que os romanos e os gregos, com seus livros escritos numa língua há muito morta, gradualmente mais actuante do que Fernando Pessoa previu e alegorizou no poema dos “Jogadores de Xadrez”, constituem uma situação talvez única na história: escritores a escreverem numa língua que lhes é natural mas se debate, já moribunda, nas convulsões e no tumulto da morte. Nada se pode fazer contra isto. Durante mais alguns anos, durante ainda uma ou duas gerações, assistir-se-á nas escolas, na imprensa, na rádio e na política, agora também nas igrejas, que aboliram o latim, à degenerescência cada vez mais acelerada, mais grosseira e mais vil, de uma língua que alguns raros homens, os escritores que Pessoa via na figura dos jogadores de xadrez, continuarão a utilizar com uma perfeição que ela nunca antes teve.



Aleister Crowley e Fernando Pessoa





















ORLANDO VITORINO FALA DO ONTEM E DO HOJE 


- Vou responder à sua quarta pergunta. Em Portugal não houve nenhuma revolução. O 25 de Abril foi apenas a previsível, prevista, inevitável transição de um regime socialista gradualmente mais actuante, mas envergonhado de si, escondendo-se e mascarando-se, a um regime socialista sem qualquer espécie de vergonha, proclamando-se e constitucionalizando-se. Nesta transição apenas se substituíram os capitalistas que tinham nas mãos o Estado pelos estatistas que têm nas mãos o capital. Muitos deles, são as mesmas pessoas e quase todos pertencentes às mesmas famílias. Os militares e os funcionários públicos puderam jurar a nova Constituição sem perjúrio de terem jurado a anterior Constituição.

- Como encara as consequências dessa transição? 

- As consequências dessa transição na literatura foram o desaparecimento da infraliteratura que lhe descrevi, caso se lhe queira dar alguma mínima importância. Quanto à literatura portuguesa, essa permaneceu e permanecerá imperturbável. Não há regime socialista constitucionalizado ou salarizado, que tenha sobre ela algum poder, além do de a obrigar a viver em guetos.

Quanto às questões que me põe, nas perguntas 5 e 6, acham-se implícitas nas anteriores perguntas.

- E quanto à sétima pergunta? 


O PROBLEMA DA PÁTRIA 


- Também aqui a resposta já está dada.

- Mas gostava que a ampliasse. 

-  Seja. Deixe-me, por isso, fazer-lhe uma observação. Os “exemplos” que propõe, de Zola e Torga, são inadequados. Zola é um escritor estrangeiro e ultrapassado (tenho em conta que só de certas obras literárias se pode dizer que estão ultrapassadas). Falemos, pois, de Torga apenas. Sempre ele se considerou escritor de “esquerda” e intervencionista. Era-o, porém, mais sentimental do que intelectualmente, o que está patente nos volumes dos seus “Diários” de angústia sem ternura. No último destes volumes, o 12.º, creio, Torga descreve a decepção que lhe causou a “esquerda” triunfante com o 25 de Abril. Descreve-a com uma indignação e uma verdade superiores àquelas com que anteriormente a defendia. Depois, o regime vigente utilizou Torga com homenagens, que Mário Cesariny já ridicularizou, destinadas a encobrir o vazio aberto pelo desaparecimento da sua infraliteratura e também esconder e fazer ignorar a literatura. Diz-me Você agora que o Torga nos aconselha a deixarmos a política para os políticos. Compreende porque é que eu considero o exemplo de Torga inadequado?

- Mea culpa, Meu caro. Tem inteira razão. Dou a mão à palmatória. E eu sou contra todos os oportunismos e oportunistas, deixei-me embalar pelas palavras bonitas? Exacto. E isso é imperdoável. 

- Quanto à sua oitava pergunta, eis a resposta: Deslealdade e Lealdade são duas faces da Servidão com Honra; como a dos militares. Ora falar hoje, entre nós, da virtude que é própria aos militaristas, presta-se às maiores confusões.

Quanto à nova pergunta a minha resposta é: Amar a Verdade.

E, finalmente, sobre a última palavra, digo-lhe com a mesma sinceridade: Dizer a Verdade.

A entrevista concluíra-se. Outras se seguirão, mas não concluo sem afirmar que nos confortou espiritualmente e nos causou grande orgulho como português, dialogar com Orlando Vitorino, grande escritor e também ele, português de boa cepa. 

Martins Gaspar


(in suplemento «Ler e Saber», de O Dia de Amanhã, 5 de Janeiro de 1980).



1.ª representação em Portugal de Jacob e o Anjo, concretizada pela Companhia do Teatro Popular de Lisboa, a 22 de Maio de 1968, no Teatro da Estufa Fria, numa encenação de Orlando Vitorino, com cenários e figurinos de Pinto de Campos. Alguns intérpretes foram: Augusto de Figueiredo, Andrade e Silva, Ricardo Alberty, Madalena Sotto, Henrique Viana, Alves da Costa, Assis Pacheco...

O complexo pombalino

$
0
0
Escrito por Miguel Bruno Duarte













«O próprio Pombal é o Desejado? Não. Fez-se temer, não se fez amar. Cabeça de Bronze, coração de pedra. Moralmente ignóbil, alheio à graça, indiferente à dor. Inteligência vigorosa, material e mecânica, sem voo, sem asas. Um brutamontes, raciocinando claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heróica, vida profunda – humanidade em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do amor, a génese é divina. Criar é amar. Por isso a obra foi a terra. Pulverizou-se: só dura o que vive. Uma raiz esteia mais que um alicerce. Pombal em três dias, num deserto, quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com mortos e regou-se com sangue. Apodreceram melhor».

Guerra Junqueiro («Pátria»).



Uma vez sabido ser a Universidade a principal instituição estranhaà índole espiritual do povo português, convém não esquecer como, a par dela, outras instituições, sejam elas de ordem estatal ou particular, agem, promovem e potenciam, consciente ou inconscientemente, a servidão política, económica e cultural de que jamais houve memória em Portugal. Deste modo, comecemos por referir aquele que foi, em 1999, o congresso tributado à memória infame do «Déspota Esclarecido», no qual, para além dos universitários de Coimbra, participaram também os seus congéneres brasileiros, assim como alguns de nuestros hermanos e até uma especialista americana da Universidade da Califórnia. Enfim, tudo disposto e preparado para dar lugar às Comemorações do Tricentenário do Nascimento do Marquês de Pombal, decorridas em dois municípios pombalinos: Pombal e Oeiras.

Ora, abrindo as Actas (1), temos à cabeça duas notas de abertura altamente esclarecedoras. A primeira, do então Presidente da Câmara de Pombal, Narciso Ferreira Mota, começa por dizer o seguinte:

«(...) a autoridade que este estadista [o Marquês de Pombal] soube exercer, sem vacilar e sem recuos, para o bem de Portugal, fazem com que muitas das suas doutrinas sejam ainda hoje respeitáveis e enquadráveis em termos político-ideológicos» (2).

A segunda nota, do Presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, prima pelo seguinte:

«Com a edição desta obra pretende-se igualmente lançar um novo olhar sobre o homem, deixando transparecer a personalidade do estadista, cuja vida foi totalmente votada à clarividência política e dedicação ao bem público. Precursor de um arrojado projecto político de modernização do país, Sebastião José de Carvalho e Melo foi autor de inúmeras reformas de grande envergadura nas mais diversas áreas. Imbuído do espírito que era característico do período iluminista, empreendeu uma série de medidas que visaram a extinção de muitos interesses sectoriais (de que o antijesuitismo é exemplo), em benefício do que era considerado o bem comum. Procurando assim, honrar e dar continuidade à herança pombalina, pretendemos agora homenagear e engrandecer a memória deste homem, cujos laços em relação à vida de Oeiras e à Cidade de Pombal são indiscutíveis» (3).

Note-se: precursor de um arrojado projecto político de modernização do país– eis assim como este socialista do Partido Social-Democrata encara a suposta acção reformadora de Pombal, obnubilando pura e simplesmente o que, na verdade, fora o sofrimento, a penúria e o mal-estar geral dos portugueses na segunda metade de Setecentos. Sobre o facto não resta a menor dúvida, a avaliar pelos depoimentos do viajante inglês Wraxall e do oficial da guarnição de Gibraltar, Dalrymple:

«A casa real andava tão mal administrada que a maior parte dos oficiais e criados não eram pagos, havia uns poucos de anos, e se achavam nas mais penosas circunstâncias… Os lacaios, que acompanhavam as carruagens reais, estavam quase sem meios de subsistência. (…) O rei (…) está a dever a todo o pessoal da sua casa» (4) .

Para além de tais depoimentos reveladores da precária quão aviltante condição financeira na época pombalina, vejamos ainda o que Teófilo Braga, por seu turno, nos tem a dizer sobre o grande Marquês:

«Este Ministro, apesar de tudo quanto disseram dele os seus panegiristas, não talhou um plano útil que honrasse a sua Nação e o seu século».

É, porém, verdade quando se afirma o carácter indiscutível dos laços do «ministro-terramoto»à vila de Oeiras, porquanto a solicitude de Pombal como administrador só o predispusera a mandar construir uma estrada capaz até Oeiras, já que, por todo o país, quase tudo ficava ao cuidado e à resignação de quem, porventura, se ia aventurando por caminhos impérvios «que o Inverno convertia em tremedais». Felizmente, um tal problema concernente ao Concelho de Oeiras parece estar hoje ultrapassado, como, aliás, qualquer pessoa, dispondo de veículo automóvel, poderá por si mesma comprovar. Contudo, quanto aos «interesses sectoriais» que o Marquês, no juízo opilante de Isaltino Morais, tão zelosamente extinguira, outros mais resultariam no âmbito pombalino da Câmara de Oeiras.

Nisto, o Parque Residencial de Miraflores, situado em pleno Concelho Oeirense, é um caso digno de observação nos últimos quarenta anos, mais particularmente nos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. Não há, portanto, nada que verdadeiramente justifique o uso e abuso do negócio imobiliário assente no coração de Oeiras. Em todo o caso, trata-se de uma prática que afecta, na actualidade, todos os nossos municípios, em que sobressai o nivelamento a régua e esquadro que a herança pombalina, imposta à capital utilitária e abstracta, haveria de ampliar ao Portugal vindouro.

Armação de Pêra. Ver aquiaqui e aqui









Capela Nossa Senhora da Rocha






Castelo de Silves. Ver 1, 2, 3, 4, 5 e 6







Estátua de D. Sancho I, no Castelo de Silves.




Museu Arqueológico de Silves




Sé Catedral de Silves. Ver aqui, aqui e aqui




No Algarve temos, por exemplo, o caso de Armação de Pêra, onde, de ano para ano, se torna patente, aos olhos dos veraneantes, o desarranjo paisagístico de uma vila turística e piscatória proporcionado pela Câmara de Silves. Aliás, basta percorrer o caminho que vai do litoral ao interior, ou de Armação a Silves, para assim depararmos com o fundo contraste entre um crescente aglomerado de betão armado e uma comunidade que, não obstante os assaltos à sua tradição histórica e medieval, subsiste à luz de um vasto e riquíssimo património nacional. Referimo-nos, pois, ao Castelo sarraceno de Silves, ao Museu Arqueológico, às Portas da Cidade e ao que Agostinho da Silva reconhecera como um mestre entre os demais, nomeadamente aquele que não escreve nem fala: a Sé Catedral de Silves.

Enfim, o emprego recorrente de «artimanhas» é o que não falta seguramente na ordem do planeamento e da administração pública em curso. Por outras palavras, estamos, pois, perante aquele tipo de «artimanhas» que, de alguma forma, ainda projectam a desditosa sombra do Marquês de Pombal, já «que tão precisas – diz um seu panegirista – elas são, hoje como ontem». Em suma: «tudo prenhe de ímpar actualidade!» (5)

Contudo, para que a suprema «artimanha» possa realmente singrar, tudo começa, concreta e efectivamente, na Universidade, que é o foco por onde dimanam as mais opostas interpretações ideológicas que, já de si, permitem desmentir o mito da objectividade científica que uma tal instituição apregoa e proclama aos quatro ventos. Senão vejamos:

«(...) continua a manter-se viva uma interpretação ideológica de Pombal, nomeadamente afirmada pelo sector católico, já que as doutrinas monárquicas e integralistas e o salazarismo praticamente se extinguiram e com elas as suas interpretações ideológicas, adaptadas aos seus interesses históricos.

É certo que as interpretações ideológicas de Pombal foram suscitadas também pelo sector liberal e republicano e pelo sector maçónico que lhe anda ligado. No entanto, se este, ocupando os espaços do poder, acabou, neste tempo em que vivemos, por conceder às comemorações um sentido essencialmente “científico”, sem com isto deixar de ter perdido algum sentido despropositadamente panegírico, a verdade é que são os historiadores eclesiásticos a manter de forma mais viva uma interpretação ideológica, que se tem mantido quase inalterável» (6).

Ora, a esta última interpretação ideológica, que, como se aventa, «se tem mantido quase inalterável», também se referiu o maçon e universitário Raul Rego ao alegar que Manuel Antunes, em texto de abertura da revista Brotéria, de 1982, insistira «em afirmações de tipo “pessoal”, apresentando sempre Sebastião José como uma personalidade forte e de mau carácter, interessada numa verdadeira “hecatombe” eclesiástica ou mesmo religiosa» (7). Porém, se o «sector católico», pela mão do professor universitário M. Antunes, cai em tentação ideológica, é caso para perguntar por que razão é que o «sector maçónico», ligado ao «sector liberal e republicano», não cai em semelhante tentação visto até ocupar, «neste tempo em que vivemos», os espaços do poder?

De facto, a Universidade, sempre vítima ou refém das mais diversas interpretações ideológicas ante as quais se procura superiorizar em nome de nominais critérios de rigor e cientificidade - de resto altamente suspeitos e duvidosos -, nunca consegue ir além do reticulado interpretativo que faz da História de Portugal uma linha de convergência para um efeito necessário. Demais, esse efeito não permite indagar o que, na sua profundidade, verdadeiramente caracteriza a tradição espiritual de um povo que se pode e deve legitimar à luz de uma autêntica filosofia da história. Só assim, aliás, se compreenderá como, mediante a reforma pombalina, que alterou ab abrupto a posição da Universidade perante o Estado e a Igreja, todo o ensino, até então assegurado pelo aristotelismo da neo-escolástica jesuítica, jamais logrou actualizar o princípio da liberdade reivindicado pelo pensamento moderno.

Consequentemente, ao invés de todas aquelas criaturas que, em jeito de homenagem, lá vão comparticipando em eventos comemorativos dirigidos a quem deveras influiu para o obscurecer da memória colectiva dos portugueses, é mister ver como, destituído Aristóteles, a nossa cultura permaneceu na impossibilidade de realizar e tornar sumamente aptos os princípios filosóficos do liberalismo económico, político e religioso. Mas, seja como for, compaginemos ainda alguns dos exemplos oportunamente extraídos das «Leituras ideológicas do pombalismo», evitando, contudo, a descrição exaustiva do pormenorizado rol de vicissitudes por que passou o antipombalismo desde D. Maria I ao salazarismo.





Entre os exemplos a apresentar, o primeiro, reportando-se a António Ribeiro Saraiva, dá-nos a entender as razões políticas que levaram ao antipombalismo do outrora diplomata de D. Miguel:

«Se há no mundo animais desprezíveis e contraditórios, à luz, ao mesmo tempo da razão e do patriotismo, a nossa Liberangada leva nisso a palma a quanto há de mais abjecto e absurdo em qualquer outro país. (…) Em cousa nenhuma, porém, se manifesta a tal ponto semelhante contradição, ao mesmo tempo perversa e antipatriótica, como na monstruosa tenção de centenariar o primeiro, o maior e o mais cruel, o mais ferrenho Déspota que o mundo viu nos tempos modernos» (8).

Depois, aludindo à «Constituição» portuguesa, adianta:

«Falam tanto de absolutismo, despotismo, tirania, etc., aplicando isso ao governo dos nossos Monarcas (Legítimos, ao mesmo tempo, e verdadeiramente constitucionais, segundo a genuína significação da palavra), e querem divinar o homem, o tirano, que pisou insolentemente todos os direitos e verdadeiras liberdades do Povo Português... Que assim aboliu, verdadeiramente, (de facto que de direito, nem ele, nem o maçónico apostolado de 24 d'Agosto de 1820, o podia fazer) a Constituição Legítima, histórica, respeitável, da Nação, arrogando em si a mais despótica e tirânica autoridade, em nome do Rei que, ele próprio, a não tinha até tal ponto!».

Compreende-se, pois, o repúdio que as comemorações do Marquês de Pombal, em 1882, suscitaram contra liberais e republicanos. A comprová-lo, está A Nação enquanto orgão do espírito contra-revolucionário miguelista:


«Ou contra o centenário e a revolução; ou com a revolução e o centenário» (9). 

Mais:

«Execramos o ministro prepotente d'el Rei D. José – justifica a dado momento A Nação– porque preparou para a nossa pátria o advento da revolução, simbolizado por ora, na monarquia da Carta, como amanhã, o será na república, e no outro dia, no socialismo» (10).

Outro exemplo é o do Integralismo Lusitano cuja concepção propugnava por um novo monarquismo destituído de legitimação filosófica. No entanto, o seu aparecimento dividira a opinião monarquista ao também preconizar, numa base de afirmação do poder pessoal do rei, um Portugal medievo de tradição corporativa e municipalista. Propunha assim, em pragmática reacção à «Monarquia absoluta», um regresso a ordenações tradicionais cuja experiência histórica fosse, por si mesma, uma cabal garantia contra o «poder absoluto» precursor do estatismo moderno.

Além disso, é de notar como a concepção integralista, filiada na ortodoxia escolástica, considerava o «poder absoluto» como só tendo existido em Portugal no tempo do Marquês, o qual, no dizer de António Sardinha, «anatemizava assim a tradição representativa da Raça, expulsando os jesuítas que a preconizavam através dos ensaios de San Tomás e dando como exclusivo título do poder real a hereditariedade pura e simples…» (11). E continuando a sua alusão a Pombal, escreve António Sardinha:

«A concentração absolutista é então como que uma moda europeia. Tornar-se-á descaradamente doutrina de Estado, quando, no altear dos séculos XVI-XVII, as velhas monarquias católicas eivando-se de jansenismo e de febronismo, prepararem o seu suicídio nos braços da Revolução, ao perfilharem sem restrições os violentos personalismos governativos dos tratadistas protestantes. Os corpos intermédios do Estado, municípios, corporações e províncias, atrofiam-se, enlanguescem, volvem-se unicamente em cariátides do Poder. É o tempo de D. José II de Áustria, de Frederico da Prússia, de Catarina da Rússia – numa palavra dos “Reis Filósofos”, amigos dos Enciclopedistas. Em Portugal, o Marquês é o seu justo equivalente» (12).

Por outro lado, o antipombalismo surge como uma das críticas mais contundentes no seio do movimento católico, sobretudo quando, em confronto com os centenaristas do Porto e de Lisboa, a cidade de Braga, «em desagravo da afronta feita à Igreja pelos inimigos da religião», protesta contra as conspurcações do «Portugal louco». Esse protesto, a que acorriam católicos de toda a ordem, projecta-se por todo o século seguinte. «Assim, em 1923, quando da transladação dos restos mortais do Marquês de Pombal para a Igreja da Memória, o jornal católico e monárquico A Época, dirigido por Fernando de Sousa “Nemo”, foi o periódico do tempo que contestou em termos mais veementes tal iniciativa, considerando-a um aproveitamento maçónico e dirigindo também ao próprio Marquês violentas diatribes. Depois, em Maio de 1926, altura em que foi lançada a primeira pedra da estátua da Rotunda, surgem novamente no mesmo jornal críticas à comissão encarregada do empreendimento, afirmando que o seu objectivo não era glorificar os actos meritórios de Sebastião José, mas sim o “opressor da Igreja”. Idêntica posição é de resto tomada pelo Novidades, jornal ligado ao Centro Católico», visto que Pombal aí surge como «“o precursor da civilização laica, o perseguidor e o antagonista da autoridade do Papa, o protector nefasto do jansenismo e do filosofismo”, que o jornalista classifica, por seu lado, como o “maior tirano que conheceu o século XVIII”» (13).


É também de notar, no mesmo mês em que se dá a revolta de Gomes da Costa, a forte reacção que da revista Ordem Nova, fundada e dirigida por Marcello Caetano, sobressai contra a iniciativa da construção da estátua do Marquês. Ele próprio, Marcello Caetano, é o autor de um texto que tem, curiosamente, o seguinte título: «Quinze Centavos para o Marquês» (14). Ora, a «razão do título é o facto de o Governo ter determinado que as cartas que circulassem fossem taxadas com uma sobrecarga de 15 centavos, para custear as despesas de construção da estátua. Os correios fizeram para o efeito uma série filatélica, constituída por três selos diferentes mas com o mesmo valor, que circularam não só no Continente mas também nas ilhas e nas colónias, variando apenas as respectivas cores» (15).

Contudo, o antipombalismo não fora oficialmente sancionado pelo regime de Salazar. E, no lance, há, ocasionalmente, um certo aproveitamento ideológico do Marquês, cujo autoritarismo podia servir, ainda que reticentemente, ao ideário do Estado Novo. Daí termos, por exemplo, o caso da construção do monumento ao Marquês, oficializado pelo regime, bem como a publicação, pelo Secretariado Nacional da Informação (1948), de um opúsculo intitulado Marquês de Pombal, de Estevão de Pinto, e para mais inserido na colecção «Grandes Portugueses», cuja difusão, à época, estava a cargo das bibliotecas populares.

Além de que, nem sequer faltaria quem, na qualidade de professor universitário e deputado da Assembleia Nacional – um tal Luís da Cunha Gonçalves –, houvesse proferido, na Academia das Ciências, em 1940, por ocasião do Centenário da Restauração, as seguintes palavras:

«Poderá dizer-se que o Marquês de Pombal, combatendo a doutrina jesuítica da soberania, defendia talvez o seu próprio e ilimitado poder, baseado no absolutismo do poder real. Mas, queremos supor que Pombal pretendeu opor a última barreira às ideias subversivas, que já então se propalavam na Europa, a favor da democracia individualista, muito mais avançada do que o democratismo condicional e tímido dos teólogos» (16).

Tratar-se-ia, enfim, de uma interpretação oposta à concepção integralista, concepção esta que também influíra na projecção do antipombalismo no regime de Oliveira Salazar.

Por conseguinte, nos primeiros anos do salazarismo, consagram-se historiadores como Caetano Beirão, que em D. Maria I descreve o reinado de D. José I como um momento antinatural da monarquia tradicional portuguesa. Outro autor é ainda Alfredo Pimenta, com o seu compêndio Elementos de História de Portugal, que, não obstante ter sido contestado em alguns círculos do poder, fora elogiado por Salazar como «um livro de história cristã e portuguesa». O que, aliás, se torna bastante compreensível, se virmos como Alfredo Pimenta, em sintonia com o ideário antiparlamentar e antiliberal do Estado Novo, distingue dois conceitos de absolutismo:

«O Absolutismo não era capricho, ou arbítrio, ou irresponsabilidade plena. Para encontrarmos esta, precisamos de chegar aos regimes saídos da Revolução Francesa que proclamam a Soberania do Povo exercida ficticiamente por Assembleias Parlamentares, anónimas na expressão da sua vontade, irresponsáveis na definição das suas atitudes, e caprichosas na flutuação dos seus pareceres. O Absolutismo, como expressão de Arbítrio e de Irresponsabilidade, encontra a sua realização perfeita nos regimes democráticos que se baseiam no poder do Número» (17).

Logo, «a ideia que o Marquês serviu» – a Realeza, única e exclusivamente –, «serviu, por sua vez, a Revolução, mas não o fez intencionalmente, conscientemente. Esqueceu que o Rei precisa de uma Nobreza que o cerque e se lhe dedique. Pombal isolou o Rei, não para servir a Revolução que se aproximava, mas por amor do próprio Rei» (18).

Alfredo Pimenta estava, porém, longe de imaginar que a tanto o não permitia a filáucia do Marquês. Disso sabia João Ameal, um outro historiador neotomista com papel de relevo no regime de Oliveira Salazar. «Assim, nas suas Erratas à História de Portugal, publicadas em 1939, afirmava em síntese:

«Pombal só admirou e só tentou consolidar a Monarquia da tábua-rasa. Desconhecia a arquitectura natural das sociedades – formadas por uma sucessão de organismos em escala ascendente. Via apenas: um rei, senhor do mandado supremo, abstracto, longínquo, frio como um símbolo – e uma poeira de indivíduos iguais, indiferenciados, a igual distância, como extensa planura de zeros. E deste modo, suposto paladino do absolutismo, transformou-se no batedor da Revolução, individualista liberal-democrática» (19).

Em suma:

«São eles [Pombal e D. José] quem, de comum acordo, efectua o divórcio da Realeza e da Nação. São eles quem reduz a sociedade portuguesa a um monte de escombros. São eles quem impõe, ao liberalismo nascente, o seio da impiedade, do ódio religioso, de insurreição satânica – para empregar a palavra-estigma de José de Maistre – que o marcará depois na centúria funesta» (20). 










De qualquer modo, também algures, no nosso caso particular, nos fora dado verificar como o Marquês de Pombal lograra ser efectivamente alcandorado a figura maior da história portuguesa por parte de algumas personalidades afectas ao Estado Novo. Era, em larga medida, o caso de José Pinheiro da Silva, que cheguei a conhecer pessoalmente por intermédio de Henrique Veiga de Macedo, que fora, no consulado de Salazar, Subsecretário de Estado da Educação Nacional (1949-55), assim como Ministro das Corporações e Previdência Social (1955-61). Das duas personalidades consideradas, a primeira era, por antonomásia, também conhecida por “Pinheiro da Selva”, como pude atestar no círculo de amizades que fui travando na Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), pelo facto de meu pai ter pertencido ao respectivo quadro administrativo.

Curiosamente, José Pinheiro da Silva fora praticamente meu vizinho, morando em Algés, zona contígua a Miraflores. Ele próprio pertencera ao Núcleo de Estudos Oliveira Salazar (NEOS), uma Associação de inspiração nacionalista sediada em Lisboa, no Largo do Carmo. A Associação tinha por objectivo reconhecer a excelência dos princípios e do carácter exemplar de Oliveira Salazar mediante o dever e a obrigação de honrar a verdade histórica, a doutrina e o pensamento do maior Estadista do século XX. Por conseguinte, a Associação promovia palestras, conferências e até publicava estudos dedicados ao Estado Novo, à guerra do Ultramar e outros afins.

Entre esses estudos, destaca-se o de Carlos Alves (Cave), A Epopeia de Mucaba (Angola – 1961), bem como o opúsculo de Silvino Silvério Marques, intitulado Comentários às Quase Memórias de Almeida Santos. Além disso, lembro-me de como um dia ficara completamente siderado quando José Pinheiro da Silva, confiando na minha discrição, me mostrara uma cave que tinha no seu prédio transformada numa biblioteca repleta de livros versando sobre poderes, organizações e movimentos instigados pelo comunismo internacional. José Pinheiro da Silva pertencia, sem dúvida, a uma geração em muitos aspectos profusamente interessante, de que fazia parte Carlos Machado, o outrora responsável pela segurança da Companhia de Diamantes de Angola sediada na Rua dos Fanqueiros, em Lisboa.

Amigo do meu pai, Carlos Machado era um homem extraordinário devido ao conhecimento e ao rol de informações que detinha sobre a expulsão dos Portugueses de África, mais particularmente de Angola. Tinha até um volume considerável de folhas escritas sobre tão censurada tragédia, que tencionava publicar caso tivesse tempo de os organizar, o que, infelizmente, não aconteceu. Em todo o caso, tive o grato privilégio de poder sempre contar com a sua amizade e o seu vasto conhecimento nos mais variados domínios do saber.

Um dia, em sua casa, na Avenida das Forças Armadas, falei noÁlvaro Ribeiro e na questão universitária em que sobressaía o concomitante papel profundamente negativo do Marquês de Pombal. Ainda trago bem presente a imagem do seu rosto marcado por uma expressão de arreigada e inesperada surpresa quando, em momento oportuno, lhe descrevi no que se tinha transformado a Universidade, ao que ele simplesmente concluíra:

Claro, não é por acaso que o Álvaro Ribeiroé o maior filósofo português. E também não é por acaso que o Marquês de Pombal foi um dos maiores inimigos da cultura portuguesa.


Notas:

(1) in Actas do Congresso O Marquês de Pombal e a Sua Época, 10-12 Novembro 1999, Auditório Municipal de Pombal, e do Colóquio O Século XVIII e o Marquês de Pombral, 17-20 Novembro 1999, Auditório da Biblioteca Municipal de Oeiras.

(2) Ibidem, p. 7.

(3) Ibidem, p. 9.

(4) J. Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 271.

(5) José d’Encarnação, «Sentados em redor do Conde e do Marquês...», in Actas, p. 11.

(6) Luís Reis Torgal, «Leituras ideológicas do pombalismo», in Actas, p. 63.

(7) Ibidem, p. 63.

(8) Ibidem, p. 68.

(9) Ibidem, p. 69.

(10) Ibidem, p. 69.






(11) Ibidem, p. 71.

(12) Ibidem, p. 71.

(13) Ibidem, pp. 73-74.

(14) Ibidem, p. 81.

(15) Ibidem, p. 81.

(16) Ibidem, p. 76.

(17) Ibidem, p. 77.

(18) Ibidem, p. 77.

(19) Ibidem, pp. 77-78.

(20) Ibidem, p. 78.


"Saint" Mandela? Not So Fast!

$
0
0
Written by William F. Jasper




Republic of South Africa flag









«There was never any question where the American media stood on the South African elections. They have been madly involved in a torrid love affair with Nelson Mandela and his "movement" at least since his release from prison in 1990. For many members of the fourth estate, the illicit relationship started long before. However, when it comes to describing the so-called "news coverage" of the run-up to the election and the election itself, words like "biased" and "slanted" don't begin to do justice. The Establishment press made the event into a blatant, shameless propagandafest, plain and simple.

For quantity, magnitude, and viciousness, the lies, inventions, distortions, shadings, twistings, and glaring omissions of the media's "Elect Mandela" campaign will be difficult to top. The campaign included the following elements:

• Continue the sanctification of Mandela and associates to establish their moral claim to the throne.

• Present a Mandela/ANC victory as a fait accompli by establishing them as the overwhelming favorites; flood the print and broadcast media with Mandela's image.

• Minimize or ignore any embarrassing Mandela/ANC actions, statements, or policies that might jeopardize their victory.

• Cover up or explain away the dominant influence of the South African Communist Party (SACP) in the ANC.

• Play down the ANC's continued terror campaigns against its opposition.

• Present F.W. de Klerk's National Party as the only significant and legitimate opposition. Present all other opposition parties as inconsequential or outright evil.

• Ignore or justify all illegal and unfair use of government force against ANC opposition.

• Report that the blatantly biased election commissions, monitors, and procedures are "impartial and fair."

• Psychologically prepare world opinion for the probable "necessity" of using international military force against "violent" and "obstructionist" opponents.


Invading the "Bop" 

The ANC/SACP had long targeted the independent tribal homelands for takeover. During the first two weeks of March, some 40,000 to 50,000 ANC supporters were bused into the Bophuthatswana homeland. These were mostly Zulu - and Xhosa-speaking ANC people and clearly not Tswana residents. They started a week-long spree of rioting, arson, murder, and pillaging in order to justify sending in the new ANC-dominated National Peacekeeping Force to remove anti-communist President Lucas Mangope.

Yet, the Chicago Tribune called the invaders "pro-democracy demonstrators,""the people of Bophuthatswana," and "jubilant residents," and Bob Drogin of the Los Angeles Times wrote: "... the spontaneous protests spread quickly to a general anti-Mangope uprising." Bill Keller at the New York Times reported the Bop riots as a "popular uprising" that "appeared to be spontaneous and even disorganized." Newsweek's Richard Lacayo wrote that Mangope suffered "a stinging rebuke from his own people." It was much the same for the rest of the print and broadcast media.

Next, the campaign moved to the Ciskei homeland, where Brigadier Oupa J. Gqoso was overthrown in similar manner. Like Mangope, he was vilified in the American press as a corrupt stooge. No one in the media bothered to ask why General Bantu Holimisa, dictator of the Transkei homeland, or Brigadier Gabriel Ramushwana of the Venda homeland, both of whom came to power through ANC-supported military coups and cannot even offer a pretense of democratic legitimacy, were not also replaced. Perhaps it is because Transkei has long been a base for launching ANC terrorist attacks on surrounding farmers, villages, and cities. And Ramushwana has been so supportive of the revolution that the ANC/National Party coalition named him commander of the National Peacekeeping Force.

Following the "pacification" of Ciskei, top communist Joe Slovo remarked on March 23, "Two down, one to go." That "one to go" referred to Chief Buthelezi and King Goodwill Zwelithini of KwaZulu. The communists' plan for the Zulus was already out of the bag long before that, however. An ANC/SACP document, entitled Prepare the Anvil for the Coming Hammer, had already slipped out. It sets forth the ANC's strategy to destroy KwaZulu. The plan is almost identical to that used against the Bop and Ciskei. One part of the plan states:

Efforts must be made to persuade civil servants that job security and their pensions can only be secured by a people's government and not by tribal despots. Combined with mass action ... a situation of ungovernability could reproduce itself fairly rapidly .... It is important, however, for this crunch movement to have an appearance of spontaneity and popular support. Direct ANC involvement must be played down [Emphasis added].

The ANC/SACP needn't have worried; the press has been only too glad to "play down" the involvement - so much so that almost no one in America has even heard of the document. All most Americans know is that this Chief Buthelezi guy and his Inkatha Zulus are really bad news. They've had help in forming that opinion from a surfeit of nasty charges like that leveled by New York Times columnist Anthony Lewis in a March 30 piece entitled "Pride of Buthelezi Comes Before the Fall: He can do a lot of damage in the meantime." Lewis describes the Zulu chief as "a man undone by his overweening pride" and refers to his alleged "paranoid streak" and "his vanity." The Timesman condemns "armed Inkatha toughs" and "Inkatha hit squads" and, in virtually the same breath, offers homage to the late "great black leader, Robert Sobukwe" - the father of South African ultra-violence. Finally, he says, "Buthelezi's strength lies in violence. A few well-armed thugs can spread a lot of terror."


In the same vein, the Los Angeles Times offered up a heavy piece on April 10 by Michael Clough, a senior fellow at the Council on Foreign Relations (CFR), entitled, "For Roots of South Africa's Violence, Look to Buthelezi.""The current battles are outgrowths of Buthelezi's continuing effort to carve out a political role for himself in a post-apartheid South Africa," said Clough. And he warned that "an attempt must be made to calm the Zulu passions that Buthelezi has aroused." He continues: "South Africans and the international community must come to terms with the fact that many Inkatha warlords are unlikely to compromise. Forcing them to accept the reality of a democratic South Africa will be a long, and probably violent process...." Yes, the UN may have to invade.


Selective Outrage

One of the most extraordinary coverups surrounds the murder of over 50 Inkatha Zulus by ANC snipers in broad daylight in the heart of Johannesburg's financial district. The outrage occurred on March 28 as thousands of Zulu demonstrators marched past Shell House, the former oil company headquarters that now serves as headquarters for the ANC. According to many media reports, "shots rang out" and it just happened that all of the dead and wounded were Zulus. No blame, just one of those things.

Richard Ellis, Johannesburg reporter for the Sunday Times of London, has provided some welcome balance to the blatant pro-ANC bias overwhelmingly displayed by most of the "liberal" international press corps. His story in the April 3 issue of the Times cast a much different — and more believable — light on the incident. According to Ellis, "Without warning, the ANC guards opened up with automatic weapons on the largely unarmed [Inkatha] crowd." Ellis quoted eyewitnesses who own or are employed in nearby shops who watched the ANC open fire without provocation. Tony Dias, working in his family's restaurant opposite the ANC headquarters, stated that the Inkatha marchers "were doing their own thing, they were not breaking anything or threatening anybody," when Mandela's thugs started shooting down on them from the upper floors of Shell House. "Later," reported Ellis, "the ANC would claim that the Zulus had been shot while attempting to storm their HQ, even though they were gunned down at the side of the building, far from any entrance."

There are other obvious problem's with the ANC's "self defense" explanation:

• If ANC shooters were simply trying to repel an invasion of their building, why did witnesses report seeing ANC security personnel running and shooting marchers in the street?

• Why did the ANC snipers shoot Zulus in the garden of the Johannesburg library and in the streets blocks away from Shell house — people who couldn't be considered a threat by any stretch of the imagination?

• Why did even a top ANC official at the scene acknowledge that the marchers had been killed "in cold blood"? (Bet you never heard about that from any of your "news" reports.) The Sunday Times reported that a "senior ANC politician," a woman on the organization's national executive council, who watched the carnage from the fourth floor of Shell House conceded the violence was ANC-instigated.

• Why did ANC thugs continue the slaughter long after the marchers dispersed? Ellis reported: "As the demonstration broke up in disarray, bands of marauding ANC youths began hunting down Zulus." He then reported in gruesome detail the stoning murder of a lone Zulu youth about 20 years old by some 20 ANC gangsters in a park near Shell House. A Sunday Times reporter and four photographers tried to protect and help the man but were overpowered by the killers. After ten minutes of pulverizing the hapless victim with rocks and kicks, reported Ellis, "Finally, a comrade came up and delivered the coup de grace: using two hands to hurl a jagged rock the size of a paving stone, he split the man's head like a pumpkin."

• What about the "rule of law" Mandela and his supporters continually prattle about? When police obtained a search warrant to look for weapons and gather evidence at Shell House, Mandela personally prevented the police from entering the building. This made clear some very important points, namely: Mandela and his thugs consider themselves above the law that they prescribe for others; and Mandela's forces at that time were already in de facto control of much of the government. The Shell House incident is especially important because it was not an incident in which the identity of the assailants is in question, or one which can be passed off as the work of some low-level "hot heads" acting on their own. It involved the ANC headquarters staff.

On April 18, just a little over a week before the election, another incident reemphasized these same points. It came to light that five Inkatha supporters (four men and a boy) were imprisoned in a torture cell in one of the ANC's buildings in the middle of downtown Johannesburg. One of the men had escaped and brought police back to free his captive cohorts. It was obvious the cell couldn't have been constructed and the torture operations carried out without official ANC approval, but the ANC was allowed to brush the scandal aside with a mere pledge to "investigate." And the media "watchdogs" were perfectly content to drop the story. Had the roles been reversed -- had ANC comrades been found tortured in an IFP cell — is there any doubt that the press would have made it a page-one event for days or weeks, demanding an international investigation?

African National Congress flag



"Free and Fair" Elections 

When it came to the election process and the elections themselves, the international press corps again showed an amazing lack of curiosity. A host of "imbalances" and "irregularities" were given short shrift, if noticed at all, such as:

• Judge Johann Kriegler, chairman of the highly-touted "impartial" Independent Electoral Commission, is a founding member of the left-wing Lawyers for Human Rights and an ANC supporter. The rest of the commission was weighted overwhelmingly toward the ANC and the National Party

• Many election monitors at polling centers openly wore ANC pins and hats and "coached" voters.

• Heavily armed "National Peacekeepers" at some IFP strongholds scared off many voters.

• Inkatha Freedom Party stickers were left off of hundreds of thousands of ballots.

• Many polling booths were left closed resulting in tens of thousands being unable to vote.

• There were numerous reports of ballot boxes being tampered with, and reports of young ANC children voting, using obviously fraudulent documents.

With a few telephone calls to various points throughout South Africa, The New American was able to cross check and make a preliminary confirmation of many of these charges. But the major prostitute press was in a hurry to pronounce the elections "free and fair."


Final Benediction 

To add a final benediction on the election, the press turned to Mandela's old comrade, Bishop Desmond Tutu. The Red Bishop basked in the massive media glow on election day. The New York Times' lead editorial for April 30, "South Africa, Reborn," quoted the blissful clergyman on the joy of casting his vote for the new ANC/SACP regime: "It's an incredible experience — like falling in love."

Christopher Matthews, Washington bureau chief of the San Francisco Examiner, provided a May 1 op-ed column from Cape Town entitled "The Prayers of Desmond Tutu.""For Tutu, the man of God, Wednesday, April 27, 1994, would be a day of deep religious significance, a day of transfiguration for the blacks of South Africa." Before going to vote, said Matthews, Tutu prayed in his private chapel and "asked God to transfigure those right-wing whites who were trying to stop the South African elections with terrorism: 'We pray that you turn the hearts of those who want to use evil methods.'"

Yes, this is the same good bishop who has been steadfastly unable to direct the same concern and energy toward converting his terrorist ANC comrades from their evil methods. The same saintly cleric who said, "I think the West, for my part, can go to hell." The same "man of God" who, in a 1979 speech, said, "I am a socialist — I detest capitalism. Capitalism is exploitative and I cannot stand that." And who, in 1984 said: "What I know is that if the Russians were to come to South Africa today, then most blacks who reject communism as atheistic and materialistic would welcome them as saviours." The same "Reverend" Tutu who has had kind words for Red China, Cuba, and every other communist dictatorship and terrorist "liberation movement," and who once boasted, "I have never hidden the fact that I meet with the leaders of the liberation movement when I go abroad."

Accompanying the Matthews piece was an illustration of the praying Tutu, head bowed reverently, his lips touching his folded hands. Matthews continued: "Now came the chase.... He could not wait to cast his vote. 'He prays three times a day,' American divinity student Michael Battle explained as we raced to catch up with the bishop."

The radical prelate's saintliness thus established once again, his support for the ANC is presented as the ultimate imprimatur of the "new order" of Mandela. We shall see if it be the heavenly order promised».

William F. Jasper («Mandela's Messianic Image: The Rest of the Story», in The New American, 30 May 1994).


«Before being sanitized by a “ghostwriter” who now works in the Obama administration, the recently released original manuscript of South African revolutionary Nelson Mandela’s autobiography exposed the widely celebrated figure as a violent enemy of “democracy.” The first Long Walk to Freedom manuscript also reveals Mandela’s little-known support of violence and terror to advance communism. Largely ignored thus far, the document paints a picture of Mandela that is entirely at odds with the myths of a peace-loving political prisoner propagated by the establishment, communists, and the Western media.

After the revolutionary’s death, the ruling African National Congress and its South African Communist Party coalition partner both released statements officially confirming what had long been suspected by credible analysts. Mandela was not only a communist, he was a member of the Soviet-backed party’s decision-making Central Committee. With the release early this year of the communist leader’s unedited Long Walk to Freedom autobiography, even his most ardent supporters may have trouble defending many of Mandela’s violent and radical views.











Aerial Photograph of Missiles in Cuba (1962).



U.S. ambassador to the UN Adlai Stevenson presents evidence of Soviet missiles in Cuba at the UN Security Council on October 25, 1962.













P-3A VP-44 over USS Barry (DD-933) and Metallurg Anosov.



The USS Vesole intercepts the Soviet freighter Pulzonov during the 1962 Cuban missile crisis.

 


Soviet ship Poltava carrying IRBMs (mounted on the circled trucks) turns away from Cuba.









“Unquestionably, my sympathies lay with Cuba [during the 1962 Soviet missile crisis],” Mandela wrote in the original, expressing fervent support for one of the most ruthless mass-murdering communist autocracies to ever plague humanity. “The ability of a small state to defend its independence demonstrates in no uncertain terms the superiority of socialism over capitalism.” In another excerpt from the heretofore unreleased version, Mandela said he considered the U.S. brand of “imperialism” to be “the most loathsome and contemptible.”

On the Marxist principle of “dialectical materialism” — a key foundation of every murderous communist regime’s terror — Mandela said: “I embraced it without hesitation.” The newly unveiled document also confirmed again that despite popular myths about Mandela remaining a “peaceful” and “moderate” activist until the 1960 Sharpeville massacre, he had actually been plotting violent revolution since at least 1953, perhaps even earlier.

In his unsanitized memoirs, for example, the revolutionary reveals that he sent a “comrade” to seek weapons and support for the then-officially “non-violent” ANC from the mass-murdering communist regime in Beijing. The original draft also reveals the fact that even Mandela acknowledged that the anti-communist white-led Apartheid government had not isolated, beaten, tortured, or killed a single political detainee until the murderous communist bombing campaigns began in late 1961. Countless innocent civilians were killed in the ANC-SACP terrorist onslaught.

Indeed, to advance communist tyranny, Mandela was more than willing to use violence, as other scrubbed sections from the original manuscript reveal clearly. For instance, Mandela wrote that he felt “ever more strongly” that South African whites needed another “Isandlwana,” a reference to an 1879 battle in which Zulu warriors slaughtered over 1,300 British troops. Incredibly, he seemed to glorify murder and mayhem, writing that soon, “the sweet air will smell of gunfire, elegant buildings will crash down and streets will be splashed with blood.”

Even more alarming, perhaps, is Mandela’s open endorsement of violence against those who opposed his communist revolution — even fellow black Africans, many thousands of whom were tortured and executed by the ANC for standing in the way of Soviet-backed revolution. “If force will advance [the struggle], then it must be used whether or not the majority agrees with us,” Mandela wrote in the original, a notion that analysts compared to Stalinism.

In the published version, however, the sanitized autobiography suggests that violence and coercion are only acceptable when a minority is standing in the way. “A minority should not be able to frustrate the will of the majority,” reads the book published in 1994, essentially the opposite of what Mandela actually wrote while in prison.

Nearly all of the most damning sections of Mandela’s manuscript were conveniently, but not surprisingly, scrubbed from the version of the book that was actually published in 1994. The “ghostwriter” who oversaw the historic deception was then-Time magazine "journalist" Rick Stengel, who, also not surprisingly, currently serves as undersecretary for public diplomacy in the Obama administration.

The ghostwriter-turned-Obama official has refused to comment so far on his deception when contacted by a journalist and researcher — also not surprising considering the staggering effect that the deception had. If Americans and Westerners had known the truth at the time, history certainly would have been very different.

Indeed, the sanitized and deceptive version of Long Walk to Freedom helped to transform Mandela in the public mind from a convicted communist terrorist into a “political prisoner” and a global icon adored worldwide as a symbol of non-violent resistance. In reality, of course, Mandela could have walked out of prison simply by renouncing violence. He refused.

The Hollywood propaganda movie by the same name, based on the bogus book and released last year, helped accelerate the deification of Mandela as a larger-than-life hero peacefully standing against racist oppression. The wild transformation was so thorough that after Mandela’s death, Obama even went to South Africa and compared the communist revolutionary to America’s Founding Fathers.




Declaration of Independence, a painting by John Trumbull depicting the Committee of Five presenting their draft to the Congress on June 28, 1776.


Scene at the Signing of the Constitution of the United States, by Howard Chandler Christy.



Portrait of George Washington and his valet slave William Lee.



Graça Mandela and Barack Obama at Mandela Memorial.




Early this year, though, the long-missing original manuscript was finally released by the “Nelson Mandela Centre of Memory,” which critics say has played a key role in the Orwellian rewriting of South African history. Unsurprisingly, the Western establishment media, which could not shower enough praises on Mandela over a period of decades, culminating in thousands of worshipful but factually challenged obituaries worldwide late last year, refused to mention the explosive revelations. There has been almost complete silence surrounding Mandela’s now-proven Communist Party leadership, too.

At least one man, though, did highlight the new revelations. Writing in the U.K. Spectator, Afrikaner journalist Rian Malan, who opposed Apartheid, helped blow the lid off of the scrubbed quotes. “By day, he was or pretended to be a moderate democrat, fighting to free his people in the name of values all humans held sacred,” Malan wrote in comparing Mandela’s ghostwritten autobiography to the version that the revolutionary actually wrote while in prison. “But by night he donned the cloak and dagger and became a leader of a fanatical sect known for its attachment to the totalitarian Soviet ideal.”

Other analysts who struggled against Apartheid also had some comments about the revelations. South African activist Sonia Hruska, a former consultant to the Mandela administration who now lives in the United States and works to raise awareness about the grim reality of her homeland and its government, has known something was amiss for many years. “Give credit where credit is due, the ANC played the Mandela card outstanding with the help of the Western liberal community,” she told The New American.

“They were able to hide the dark side, burning their own people and planting bombs to kill innocent civilians, while flaunting the saintly Mandela character,” she continued. “Notwithstanding that he personally gave the orders for the bombings, I doubt if we will ever know how much he was involved with necklacing. One thing is for certain, there is no evidence that he condemned it, neither publicly nor privately.” Necklacing, of course, is the barbaric torture-execution tactic pioneered by the ANC against fellow blacks involving the burning of a gasoline-filled tire around a victim’s neck.

Nelson Mandela, Hruska continued, was a committed communist and even wrote the essay “How to be a good communist.” “The latest surfaced manuscript confirms that inherently, he was not non-violent as he was portrayed so affectionately by the Western media and liberals,” she said. “For 20 years he refused to denounce the brutal murders of the very people he represented, and for the 20 years after the ANC took power, he never condemned the rise of the violent society created by the ANC.”

Another South African working to expose the truth, Harry Booyens, Ph.D., wrote a massive book with meticulous documentation shattering myths about his homeland entitled AmaBhulu — The Birth and Death of the Second America.“In few areas of human endeavor is the selective blindness and deafness of Western media as vividly clear as in the matter of their treatment of Rolihlahla Mandela,” Booyens wrote in his book.

In an e-mail to The New American, Dr. Booyens notes that during his trial, Mandela told the court he was not a communist — and the Western press believed it. “At this point I believe that if Mandela told the New York Times that the Moon was made of cheese, that much quoted newspaper would insist on challenging all the scientists on the planet as to the edible nature of that satellite,” Booyens said, echoing widespread concerns about the Western media’s well-documented failings and deception. The Times, in particular, has a long and sordid history of concealing communist atrocities. Booyens also noted that the press in the West generally continues to help the ANC conceal its crimes, with Mandela’s party seeming not to even care about incriminating itself anymore.

Four Americans in particular, though, were “positioned at the logical root of the entire South African disaster,” Booyens said. Among them: Robert Kennedy, who “inappropriately linked South Africa’s problems of Clashing Civilizations with America's Civil Rights and Jim Crow issues;” Sen. Dick Clark, who got an amendment passed that “completely destabilized the Southern African situation;” and Randall Robinson, “who built up Desmond Tutu to a level of Godlike status in the United States and inflamed the U.S. public opinion until the U.S. effectively declared economic war on South Africa.”

The final key operative, he said, was Richard Stengel, the current senior-level Obama official who “massaged” Mandela’s biography “to make it palatable to Americans and expunge Mandela's real convictions on and leadership in matters of Communism.” Stengel, Booyens continued, “must have known full well those convictions would have sunk both the book and Mandela like a lead balloon. This gave the murderous live-human-torching ANC a ‘messianic’ figurehead and made them somehow acceptable to America.”





See here, here and here










“Perhaps Stengel thought he was doing some or other great deed, but what he did was to legitimize a terrorist organization to Americans,” Booyens continued, linking Stengel’s machinations to the overlooking of the U.S. government’s “correct” designation of Mandela and the ANC as terrorists, where they remained until 2008. “Mandela is dead. The ANC is not. The broken bodies of more than 3,000 dead white farmers testify to this”».

Alex Newman («Original Mandela Autobiography Advocates Violence, Communism», in The New American, 28 April 2014).


«At the December 10 memorial for Nelson Mandela, President Obama joined a sordid lineup of heads of state — a UN-style dictators’ club — to lavish unstinted praise and adulation upon the former president of South Africa, who died on December 5. In his eulogy, President Obama compared Mandela to America’s Founding Fathers and referred to him as “a giant of history” and “the great liberator,” invoking Mandela’s name as an inspiration for the advancement of freedom, justice, equality, and human rights throughout the world.

However, as The New American has reported for decades, the carefully constructed sainted image of Mandela is marred by a host of facts and overwhelming documentary evidence, to wit:

• Mandela was, throughout his entire adult career, not only an underground member of the violent, Soviet-directed South African Communist Party, but was also a top leader, a member of the Central Committee of the SACP.

• Mandela worked closely for decades with Joe Slovo, head of the SACP (and a Soviet KGB colonel) to help the Reds take control of the African National Congress and purge it of all leaders who opposed the SACP’s Soviet ties and Communist terrorist tactics [...].

• Mandela and Slovo were appointed by the SACP as the co-leaders of Umkhonto we Sizwe, the Communist-created terrorist group that viciously tortured and murdered thousands of black South Africans, as well as whites, often employing the ANC’s signature “necklace” method of terror/torture/murder.

• Mandela steadfastly denied, time after time over the decades, his membership in the SACP and Umkhonto we Sizwe, but on the day after his death, the SACP released a statement acknowledging that he had been a top SACP leader all along. This admission is also an admission that Mandela was a lifelong liar.

• Those who argue that the SACP/Umkhonto we Sizwe ties belong to an earlier, younger Mandela and shouldn’t reflect on his later, wiser years, must deal with the facts of his continued involvement in and support for the organizations to the end of his days, and the video of him singing the Umkhonto we Sizwe anthem, a genocide song used to stir up black mobs to kill whites.

Not surprisingly, the Mandela memorial attracted many of the world’s worst oppressors, all of whom joined President Obama in posturing for “peace,” “justice,” “freedom,” and “democracy.”

President Obama went out of his way to meet and shake hands with Cuban Communist dictator Raul Castro, who, together with his more infamous brother Fidel, has ruled the island prison-state with an iron fist, since 1959. Reportedly, the meet-up was scripted to appear as a chance encounter at the memorial, but had been carefully choreographed as part of an overture by the Obama administration to begin normalization of U.S.-Cuba relations.

Far less known than Castro, but now casting a much larger shadow, as leader of the most populous nation in Latin America, with the largest economy, is Brazil’s President Dilma Rousseff a lifelong communist activist, who was actually a “most wanted” terrorist in her youth (much like President Obama’s friends Bill Ayers and Bernadine Dohrn, the unrepentant Weather Underground terrorists). [...].

Like Mandela, Rousseff’s radicalism was not merely a youthful indiscretion; she continues on the same path, as this recent Brazilian news video of her addressing a large Communist gathering demonstrates — on a stage flanked by giant portraits of Marx and Lenin and festooned with flags and symbols sporting the communist hammer and sickle. She is also a longtime member and participant in the notorious Sao Paulo Forum, an annual gathering of dictators and terrorist leaders. Among the many communist-style programs she has foisted on Brazil is the criminal, forced removal (at gunpoint, using the military) of whole towns and thousands of Brazilians from their ancestral homes in the name of environmental “sustainability.”

By embracing and kissing Rousseff at the memorial — an image that not only flashed around the planet but was used extensively by the pro-Rouseff media in Brazil — President Obama gave the impression that the most powerful nation in the world fully supports her pro-communist regime.

Among the many other notables at the memorial, whose presence and prominence belied the much-stated claims of eulogists’ commitments to peace, justice and liberty, were (to name only a few):

• Mahmoud Abbas, successor to Yasser Arafat as head of the Palestine Liberation Organization (PLO) terrorist group and president of the Palestinian National Authority since 2005.








Palestinian leader Yasser Arafat with Soviet Union leader Leonid Brezhnev.


















• Li Yuanchao, vice president of Communist China.

• Jacob Zuma, South Africa’s own president, whose lifelong involvement in the terrorist SACP/ANC/ Umkhonto we Sizwe is accented by a recent video of him leading a mob in a vicious song that urges the murder of white (Boer) South Africans».

William F. Jasper («Obama: Schmoozing With Terrorists and Tyrants at Mandela Memorial», in The New American, 18 December 2013).


«The establishment media this week has engaged in a grotesque spectacle surrounding the death of Winnie Madikizela-Mandela on Monday at age 81. Instead of being honest, much of the press has been idolizing as a hero the mass-murdering communist terrorist infamous for, among other crimes, ordering the murder and savage torture of numerous victims, including innocent children. Most of her victims were blacks who opposed or were believed to oppose her totalitarian agenda. Ruthless and unrepentant until the end, she refused to even apologize.

One of her more prominent victims, 14-year-old Stompie Sepei, was brutally tortured for days and finally slaughtered by having his throat slit with gardening tools, all on Winnie's orders. South African Communist Party leader Nelson Mandela's ex-wife also was an enthusiastic supporter of “necklacing,” which involves putting a tire soaked in gasoline around a victim's neck, and then lighting it on fire. The slow, agonizing torture is one of the most horrendous ways to murder people known to man.

But the disgraceful Western media seemed not to notice or care. Instead, much of the press lionized her as the “Mother of the Nation” (a term her PR team apparently invented and popularized), an “anti-Apartheid activist,” and a “hero” who waged a “heroic struggle” against injustice. When her crimes were mentioned at all, they were often downplayed as justified, youthful indiscretions that were simply a logical response to crimes by the apartheid (which means separate development) government. Her well-documented adultery and fraud against poor people were hardly mentioned.

Very little was written in the eulogies and obituaries for Winnie about her fervent support for barbaric forms of torture, either. But it was not for lack of documentation. In fact, she was infamous for endorsing “necklacing” of those who opposed the Soviet-controlled African National Congress and its efforts to impose communist tyranny on South Africa. “Together, hand-in-hand with our sticks of matches, with our necklaces we shall liberate this country,” Winnie declared in comments that were caught on tape.

Instead of focusing on her crimes, much of the Western media focused on her alleged saintliness. “She kept the memory of her imprisoned husband Nelson Mandela alive during his years on Robben Island and helped give the struggle for justice in South Africa one its most recognizable faces,” the family said in a statement quoted by major media outlets all over the world. “She dedicated most of her adult life to the cause of the people and for this was known far and wide as the Mother Of The Nation.”

The truth, though, is far less benign. In fact, even the far-left New York Times, an establishment mouthpiece with a well-deserved reputation for hiding communist crimes stretching back to Walter Duranty's cover-up of the barbarous Soviet genocide of Ukrainians, has documented the savagery of Winnie Mandela. In a 1997 article that has largely gone down the memory hole, the Times reported on her role in the kidnapping, beating, torture, and eventual murder of a young child — one of many victims abducted, tortured, and murdered on Winnie's direct orders.

Her chief bodyguard in the late 1980s, Jerry Richardson, admitted to some of the horrors he was ordered to participate in by his boss. “My hands are full of blood today because I would be instructed to kill and I would do like I was told,” Richardson explained to South Africa's Truth and Reconciliation Commission (TRC) set up after whites voted to surrender political power, referring to Winnie as “mommy.” Some of the victims' families had to step out, with tears filling their eyes.

Especially horrific was Richardson's description of the 1989 torture and murder he perpetrated against 14-year-old Stompie Sepei. The young boy was an anti-government activist associated with Winnie and the communist-controlled African National Congress, at least until he came under suspicion of being a “spy” for police. Then, according to testimony by Richardson and others, Winnie ordered that he be abducted, brutally beaten, tortured, and eventually, executed like livestock.






See here



“I slaughtered him like a goat,” testified Richardson, who was also the “coach” of Winnie's “soccer team.” According to Richardson, described as one of Winnie's “closest confidantes,” Winnie personally participated in the barbaric torture of the young boy, which involved beatings, whippings, and other horrors. She reportedly sang joyfully as the boy writhed in horrifying pain. The actual killing, performed by slitting the boy's throat with pruning shears, took place in Noordgesig in Soweto, near a railway and Winnie's home.

Richardson remembered well how it happened. “I put the shears through Stompie's neck. They went to the back,” he testified. “It was a stabbing motion, not a cutting motion.” Other members of Winnie's gang corroborated the testimony, and Winnie herself was eventually convicted for her role in the kidnapping — though she escaped the murder charges thanks to friends in high places and the need to preserve her ex-husband's image.

Among her many crimes, Winnie controlled a gang of mass-murdering terrorists euphemistically disguised as the “Mandela United Football Club.” This fake “football” team would drive around Soweto kidnapping ANC opponents and alleged collaborators with the government. The victims would be shoved into Winnie's van and taken to her luxurious mansion, where they were beaten, tortured, and oftentimes slaughtered as her associates sang songs, drank brandy, and danced. Numerous eye witnesses have testified to her cruel savagery.

Winnie also refused to apologize to the victims of her murders, her fraud, her torture — or to the families of her victims. “I am not sorry. I will never be sorry,” she declared, defiantly. “I would do everything I did again if I had to. Everything.” Presumably that includes torturing and ordering the murder of young Stompie and other black children.

And yet, much of the Western press celebrated the mass-murdering butcher as a hero. The far-left U.K. Guardian, for example, which specializes in deceiving readers and promoting everything from globalism to climate alarmism, helped lead the pack in downplaying Winnie's savagery. In a grotesque screed by Guardian columnist Afua Hirsch, the argument was essentially that brutally murdering women and children is simply the price that had to be payed to dismantle a “system of racial supremacy.”

Basically, she argued that some British heroes also waged war — no mention of the fact that these battles were generally fought against other armies and did not involve slaughtering or torturing innocent children — and so Winnie's barbarism should be overlooked. Anyone who disagrees with her that torture and murder of children are necessary to overthrow a government is a white supremacist, she argued. Incredibly, it seems Hirsch and the Guardian actually expect supposedly civilized people to believe that.

Even American race hustlers celebrated the brutal revolutionary. “She was the face and voice of the movement,” Jesse Jackson, a far-left race profiteer, was quoted as saying by USA Today, America's largest newspaper by circulation. “It was her voice and her courage and her risk that kept them alive for those years.” USA Today also claimed Winnie was “tortured,” and yet the only example cited in any media report was an instance where she allegedly was not given a sanitary pad while in prison for a short time for her involvement in communist terrorism.

Some especially dishonest media reports, such as a eulogy published by the far-left Washington Post, did not even mention that Stompie was brutally murdered. Instead, the writer merely dismisses critics and casually says that she was “convicted of kidnapping and assaulting a young activist named Stompie Seipei.” The testimony implicating her in ordering his savage murder was not even alluded to, much less confronted honestly. The Post also falsely claimed she was a “hero to black South Africans.” That is simply untrue — even some of her murderous “comrades” in the “struggle” have distanced themselves publicly from her evil.

More than a few media outlets that at least acknowledged the “controversies” sounded a lot like apologists for Hitler, Stalin, Mao, and other mass-murderers — “at least Hitler built great highways,” as some Nazi apologists still claim today. While the pro-Winnie reports sometimes made reference to the murders and the torture of children, they typically tried to find some allegedly redeeming qualities and justifications to provide “balance.”












Some media outlets did at least offer some real balance to the pathetic fawning masquerading as journalism that appeared in so many publications. “She was a mother and a monster, a martyr and a tyrant, a rampaging megalomaniac posing as a selfless defender of the poor and the helpless,” wrote Andrew Kenny on the U.K. Spectator, adding that the “endless panegyrics to her saintliness and self-sacrifice are difficult to stomach.”

A number of other British outlets were far more honest in their assessment than most of the U.S. press. The U.K. Daily Mail, which sometimes leans conservative, published one of the few honest reviews of Winnie's life. “Winnie Mandela was an odious, toxic individual who continued to preach hatred rather than reconciliation right up to the end of her life,” wrote Andrew Malone, adding that she supported stealing the property of white people. “In truth, she was a bitter woman consumed by hate who increasingly was turning to violence and murder, living off her husband’s name and ruthlessly protecting her own interests financially.”

Malone, who was on the ground in South Africa during much of the chaos, also recounted the story of Lolo, another child kidnapped and “disappeared” by Winnie and her goons. “‘Winnie Mandela appeared outside my home in a vehicle with Lolo,’ Sono [the boy’s father, told me [Malone, in an interview]. ‘Lolo was bleeding and badly bruised. She accused him of being a police informer, just because he had been taken in for questioning. I begged, I pleaded, for Lolo’s life. She said the movement would decide what to do with him and that he was a dog. They drove off. I have never seen my son again.’”

Unfortunately, Nelson Mandela, who lied all his life about his membership and even leadership role in the Soviet-controlled South African Communist Party, was similarly glorified by the dishonest Western media both before and after his death. Virtually nothing has been said in the establishment press about the real Mandela. But even his own words, in a manuscript of his auto-biography before it was sanitized and published, exposed him as a violent communist willing to use murder and terror to enslave his fellow human beings under a Soviet-backed dictatorship of the proletariat.

Among other crimes, Nelson Mandela founded and led the brutal terrorist wing of the ANC known as Umkhonto we Sizwe (MK), which slaughtered thousands of innocent people — mostly black people, but also many white women and children in bombings of restaurants, farm roads, shopping malls, and more. The so-called Spear of the Nation, as it was known, became infamous for mass murder, torture, bombings, sabotage, terrorism, and more. It was almost universally recognized as a terrorist group outside of mass-murdering communist regimes, landing Mandela on the official U.S. terrorist list until he was formally removed in 2008.

Today, the fruits of the revolution aided and abetted by the Mandelas are becoming impossible to ignore. The so-called rainbow nation — really an unnatural amalgamation of myriad nations with different cultures, beliefs, languages, and histories — is literally imploding in on itself. Violence, poverty, disease, and terror are out of control. Lifespans have plummeted by more than a decade since the ANC and the communists took over. The threat of genocide is now very real, too. Indeed, top South African leaders, including the recently departed president, openly sing songs advocating the extermination of minorities amid a wave of unfathomably barbaric slaughters targeting Christian Afrikaner farmers. Multiple polls of South Africans have found that most people, including blacks, believe their lives were better even under the loathed apartheid regime.

Now, as the “Second Phase” of the communist revolution gets underway, the Communist-controlled ANC regime is plotting to steal land from farmers, threatening to turn the once-prosperous first world nation into another Zimbabwe-style basket case. Hatred is exploding. Starvation and mass killings may well follow. It is definitely going to get worse. And the dishonest Western media, along with the globalist establishment behind it, will deserve much of the blame».

Alex Newman («Media Idolizes Winnie Mandela, Hides Murder and Torture of Kids», in The New American, 04 April 2018).









"Saint" Mandela? Not So Fast!


President Barack Obama has compared him to George Washington. MSNBC’s Chris Matthews heralded him as “perhaps the world’s greatest hero.”

The Las Vegas Guardian Express dispensed with the “perhaps,” declaring in headline: “Nelson Mandela World’s Greatest Hero.” 

Others have christened him“the greatest man of the 20th century.” Many revere him as “the savior” of South Africa. School children worldwide read books, write essays and sing songs about him, and watch movies extolling his virtues and heroic accomplishments.

As we write, the 94-year-old Mandela has been hovering near death for days, the subject of hourly news updates and the beneficiary of tearful prayer vigils worldwide. With the announcement of his death, the eulogies will soon be sounding and in his honor innumerable streets, highways, schools, stadiums, parks, and public buildings will be renamed.

For the past three decades, Nelson Mandela has been swathed in global media adulation unlike any other human being in history. No pope, president, king, war hero, movie star, or rock star can boast of having been the beneficiary of such undiluted, unalloyed, and unbroken acclaim. It is common for totalitarian dictators to employ their state-controlled media to create a worshipful cult of personality about themselves — Stalin, Hitler, Mao, Fidel Castro, Kim Il-sung — but outside of their countries there are usually journalists and media organs that will report their crimes, failings, and misdeeds. Mandela has not had to worry about dirty laundry; he is the first individual to achieve a near-universal cult of personality on the global level, thanks entirely to the unparalleled glorification campaign bestowed upon him by the major media in the United States and Europe.

As we reported in 1990 regarding his world tour that year, following his release from prison, his media saturation coverage (and infatuation coverage) was unprecedented — and has not been matched by anyone since. He has received the Nobel Peace Prize, the Presidential Medal of Freedom from the United States, the Lenin Peace Prize from the Soviet Union, and numerous other honors from countries, universities, and institutions.

What is it about Nelson Mandela the man that justifies this global adoration? To be sure, his mien contributes; he is tall, dignified, and statesman-like in appearance, gracious in public speech, and grandfatherly in tone. He does not exude the radical, self-promotional hucksterism of, say, Al Sharpton, Zimbabwe’s Robert Mugabe, or the ANC’s current head, Jacob Zuma. And, yes, he served many years in prison, but not merely for opposing injustice and racism, as his legions of hagiographers would have us believe. He was a leader of the African National Congress (ANC), an organization designated a terrorist group by the U.S. State Department and many governments and intelligence agencies. He was also a co-founder of the ANC’s Umkhonto we Sizwe (Spear of the Nation), a militant terrorist group within a terrorist group. He was tried and convicted for his terrorist and subversive activities within those organizations (more on which in a moment).

Countless thousands of genuine prisoners of conscience, who have never done anything more “criminal” than praying, or speaking out against tyranny, are languishing in prisons all across the planet without so much as a peep of protest from the legions of Mandela worshipers and his chorus of media promoters. How many of those praising Mandela as the world’s moral compass have ever heard of Ignatius Cardinal Kung, the Roman Catholic Bishop of Shanghai, who was imprisoned in Communist China for 33 years, most of it overlapping the same period in which Mandela was in prison? Cardinal Kung’s heroic incarceration was in many ways more severe than that faced by Mandela, but no media love-fest awaited him when he was released in 1988. Ditto for Dr. Oscar Elias Biscet, a black Cuban physician who was released from Fidel Castro’s prison system in 2011 after brutal captivity for the “crime” of criticizing the island’s communist regime. But did Nelson Mandela chastise his comrades in Beijing and Havana when he visited there, or did he bring up the plight of the countless political and religious prisoners in their gulags? If so, there is no public record of it, though there is plenty on record of him praising those oppressive regimes.





Mandela: Communist, Terrorist, Liar 


This leads us directly to one of the most important issues concerning Nelson Mandela: Was he a Communist with a capital “C,” meaning a disciplined member of the Communist Party, which, in this case means the South African Communist Party (SACP)? In the 1958 treason trial, Nelson Mandela denied being a member of the SACP, a denial he has repeated many times since, and has maintained to the end. His defenders fall into two general categories on this issue, those who believe his denial and those who say, in effect, “So what? What does it matter if he was/is a Communist?”

Those who say they believe his denial must ignore an overwhelming mountain of evidence to the contrary, much of which has been available for decades and much which has only recently come to light from: previously unavailable SACP records; government archives of Communist countries; memoirs and biographies of, and interviews with, SACP and ANC members of the period.

Those who say “So what?” to the question of Mandela’s membership in the SACP must ignore the well established facts that show:

• The SACP was, and remains, a hardcore Marxist-Leninist organization in which all members must pledge unquestioned obedience to the will of the Party, as determined by its Central Committee;

• The SACP took its direction from the Communist Party of the Soviet Union (CPSU), and, as such, was an agent of a hostile foreign power;

• SACP members, including Mandela, secretly took control of the ANC, pushing aside and sabotaging ANC leaders committed to reform and change through peaceful, political means;

• ANC and its terrorist arm, Umkhonto we Sizwe (MK), which was also controlled by the SACP, were trained in Soviet Russia and Red China, or in Communist “Frontline States” — Zambia, Angola, Mozambique, Tanzania, Zimbabwe — by Soviet, Chinese, East German, Cuban, Czech, and other Communist instructors;

• The SACP-controlled ANC and MK exploited the conditions of apartheid, racism and colonialism not to help South African blacks, but to further the objectives of the Soviet Union and the world Communist conspiracy;

• The SACP-controlled ANC and MK used the Communist-provided training and arms to direct their terror, torture, and murder against South Africa’s black majority even more often than against the white minority;

• If Mandela was not only a Communist Party member, but also a top SACP leader — which the evidence irresistibly shows he was — then he is not only a colossal and persistent liar, but he is all the more culpable in the innumerable acts of terror, torture, and murder committed by ANC mobs and MK cadres over the past several decades;

• Mandela has bequeathed South Africa a one-party state ruled by the increasingly tyrannical and kleptocratic ANC/SACP, which is leading the country down the path toward economic destruction, record-level violent crime, chaos, and genocide.


The coming wave of terror and genocide 


The last point mentioned above is especially relevant, since the ostensible purpose of the ANC/SACP revolution was to ameliorate the plight of the disadvantaged black population. Instead, they are transforming what was by far the most prosperous state in Africa (and the one to which black Africans were fleeing to escape Red/black oppression, despite South Africa’s apartheid system then in place) into a corrupt despotism with: squashing of dissent; looting of the treasury by top government officials; sky-high unemployment; increasing poverty and homelessness; some of the world’s highest rates of murder, rape, robbery, kidnapping, car-jacking; and the world’s highest HIV/AIDS infection rates.

Resolving the issue of Mandela’s role in the SACP is all the more important when viewed in its proper historical context, which is in the context of the Cold War and the Soviet’s aggressive campaigns in the Third World through “wars of national liberation.” During that period the Communists were killing tens of millions of their own subjects in what Professor R. J. Rummel calls “democide,” or mass murder by government.











Dr. Rummel, who has painstakingly catalogued the top 15 of the mega-murderer regimes, puts the number of their victims during the 20th century at a conservative estimate of more than 151 million — and that was only up to 1987. The vast majority of those were slaughtered by Communist regimes that claimed to be the forces of “liberation.” A significant portion of that slaughter took place in Africa by those same forces of liberation. And it hasn’t ended. In fact, as we have reported, the stark ominous signs, as cited by genocide experts, are that the ANC is preparing to unleash a Communist-style genocide campaign in the “Rainbow Nation” against the remaining white population (see here and here) that will surely also be directed against Indians, Chinese, and millions of blacks.

The genocide campaign against white South Africans has already been underway for several years, but has not yet reached the all-out intensity of the slaughter stages witnessed in Rwanda, Burundi, or Sierra Leone. But that time may be coming soon, and if it does, Nelson Mandela will have helped to launch it. Chilling video footage of Mandela singing an ANC/MK genocide song about killing whites belies the sainted image.

Similarly, in another stunning video, Mandela’s longtime comrade in the ANC and the SACP (and current president of South Africa) Jacob Zuma, sings “Kill the Boer,” meaning kill the white farmer. Even more chilling than the words of the murderous song is the near frenzied behavior it stirs up in many of the assembled mob members. This is clearly incitement to genocide by the top members of South Africa’s ANC ruling regime, the same individuals who incessantly pose as peace advocates. (See both of the videos imbedded at the bottom of this article.)

Yet, the "hate speech" police in our media, who are quick to pounce on any real or fabricated racial or "homophobic" gaffe by politicians, celebrities, or common citizens, have hypocritically ignored the Mandela/Zuma genocide endorsements — or have attempted to exonerate them of any malice with lame excuses about the songs being mere cultural/political slogans.

But with the fires, violence, and chaos already burning in South Africa, these actions by the ANC's most revered leaders are pouring gasoline on the fire. They are stoking a genocidal inferno. We have already seen what this will look like and it is horrible beyond the ability of words to convey. Videos of the ANC’s “necklacing” torture/executions have documented the kind of grotesque “justice” that is meted out by the comrades and minions of Mandela, Mbeki, and Zuma. In this unutterably vicious method of terror/murder the victim is seized by a howling mob, beaten, stabbed, stoned, and then, while still alive, has a tire soaked in petrol placed around his/her neck and set ablaze. It can take agonizing minutes for the unfortunate victim to die. (See videos of necklacing here and here.)

Hundreds of victims, the vast majority of whom were black, were killed this way by ANC-led lynch mobs. Nelson Mandela’s second wife, Winnie Mandela, was caught on video infamously shouting to a huge mob: “With our boxes of matches and our necklaces we shall liberate this country!" Despite this and the fact that she was convicted in court in the torture/murder of 14-year-old Stompie Moeketsi and found by the South African Truth and Reconciliation Commission to be guilty in the kidnapping, torture, and murder of numerous men, women, and children, Winnie Mandela is free as a bird and still sits on the ANC’s Executive Committee. If Nelson Mandela and Jacob Zuma have any “moral authority,” it has not evidenced itself in the form of condemning and removing this murderess from the ANC’s highest body.

Necklacing is one of the ANC’s enduring “gifts” to humanity; it has been exported to Haiti, Zimbabwe, Nigeria, Mexico, and many other countries. And, over the past couple of years, many news stories from South Africa report on its revival there.


Overwhelming evidence: guilty beyond reasonable doubt 


The evidence that Nelson Mandela was a member of the South African Communist Party is so enormous that we will be able to detail only a tiny fraction of it. Dr. Henry R. Pike solidly established the record on this matter in 1985 with his 600-page monumental work, A History of Communism in South Africa, which is massively documented with many photographs and reproductions of official court records and SACP, ANC, and MK documents.

Important new evidence has been made available since 2012, with the publication of historian Stephen Ellis’ extraordinary book, External Mission: The ANC in Exile, 1960-1990. Dr. Ellis, a professor based at the Free University of Amsterdam is no conservative and no apologist for apartheid; he is a former researcher for Amnesty International and was a researcher on the Mandela-appointed Truth and Reconciliation Commission in South Africa. In fact, he seems to bend over backwards to put the best slant possible on Mandela’s SACP involvement. Nevertheless, the facts speak for themselves — and they are damning. (For articles on and reviews of Dr. Ellis’ book see The New American here and The Telegraph (U.K.) here. A lengthy abstract of an article by Ellis surveying much of the material in External Mission is available here.






In addition, we now have many admissions against interest from interviews and articles over the past decade in the official Communist Party press and in the books and articles of Vladimir Shubin, a Soviet official who was stationed in South Africa for many years and played a key role in the Kremlin’s policies vis a vis South Africa and, more specifically, its aid to and direction of the SACP and the ANC.

In his book, ANC: A View from Moscow (Bellville, South Africa: Mayibuye, 1999), although Shubin is careful to still put the Kremlin spin on his revelations, he nonetheless confirms much of what anti-communist critics had long claimed (and which the so-called intellectuals and media mavens had long scorned), as well as providing details not previously in the public domain.

Here is a brief sampling of the mountainous record documenting Mandela’s long, conspiratorial role in the South African Communist Party:

• Among the evidence uncovered recently by Prof. Ellis are the official minutes of a secret 1982 SACP meeting at which veteran Party leader John Pule Motshabi explains to the comrades that Mandela has been a (secret) SACP member for two decades;

• Rowley Israel Arenstein, a lawyer and leading SACP member since the 1930s, said that Mandela was chosen by the SACP to create Umkhonto we Sizwe (MK), and Mandela was the SACP’s main instrument in “hijacking” the ANC and marginalizing its longtime leader and president Albert Lithuli, an opponent of the SACP’s program of “liberation” through armed struggle.

• During the Rivonia Trial (October 1963-June 1964), Bruno Motolo, a black member of SACP, ANC and MK, provided devastating testimony of Mandela’s involvement in all three groups. Despite death threats, he later provided even more details in his memoir, Umkhonto we Sizwe: The Road to the Left;

• Other prominent SACP members that have publicly identified Mandela as a fellow Communist include Paul Trewhela,3 Joe Matthews, Hilda Bernstein and Brian Bunting;

• Paul Trewhela, an SACP member who was imprisoned (1964-1967) for his communist activities, and more recently assisted Prof. Ellis in his research in the archives of the Stasi (the KGB’s East German subsidiary), has said: “Mandela was indeed a member of the Central Committee of the South African Communist Party.”

• During the Rivonia Trial, more than 10 documents in Mandela’s handwriting were introduced into evidence, totaling hundreds of pages. One, entitled, “How to be a good communist,” stated: “Under communist rule, South Africa will become a land of milk and honey… In our country the struggle of the oppressed masses is led by the South African Communist Party and inspired by its policies.” He also wrote: “The people of South Africa, led by the South African Communist Party, will destroy capitalist society and build in its place socialism.”

• Mandela’s Rivonia documents also declared that “traitors and informers should be ruthlessly eliminated,” and he recommended “cutting off their noses” — among other barbarities — a tactic he had adopted from Algeria’s communist FLN terrorists and which he put into practice by MK;

• Mandela did not deny writing the damning material, but merely attempted to explain it away by claiming they were notes he had taken down for study purposes;

• A Rivonia trial surprise witness was Gerard Ludi, a top SACP member who was actually an infiltrator, Agent Q-018, for the Special Branch of the South African Police. Ludi provided detailed incriminatory evidence on the SACP’s leadership and illegal activities. He identified Mandela as “a top man in the central committee of the underground communist party.” Subsequent revelations have proven the reliability of Ludi’s testimony.

• In the category of a picture being worth a thousand words, one of the most striking images of Mandela is of him standing beneath a giant Communist hammer and sickle symbol, side-by-side with Joe Slovo, top leader of the SACP — with both men delivering the communist clenched fist salute. Mandela declared: “I salute the South African Communist Party for its sterling contribution to the struggle for democracy.” It is worthy of note that this occurred not once, but many times, as Mandela and Slovo toured South Africa;

• Comrade Slovo, a Lithuanian-born Communist and a colonel in the Soviet KGB, was for decades one of Mandela’s closest associates in the SACP, ANC, and MK;

• Slovo himself stated, in his 1986 propaganda article, "The Sabotage Campaign": “To constitute the High Command [of Umkhonto we Sizwe] the ANC appointed Mandela and the Party appointed me.” Since Mandela was himself a secret top member of the Party, this constitutes a admission that the SACP appointed and thereby controlled MK from the start.






So, Nelson Mandela was not only a SACP member, but a top Communist at that, a member of the ruling Central Committee. And not only that, but he was selected by his fellow top Communists to be the key Red who would launch the Kremlin-approved, Soviet-backed terror war against the South African government.

The ANC had begun as a non-communist organization, and, as a broad-based mass organization, always had many non-communist and anti-communist members. However, they were no match for the rigidly disciplined and conspiratorial SACP, which quickly infiltrated and took control. “The first real alliance between the ANC and the communists,” Dr. Pike wrote, “dates back to 1928, when E.J. Khalile, the ANC general-secretary, was elected to the SACP’s central committee. From this time onward, the alliance continued.” Albeit the alliance went through rocky periods when the non-communists tried to extricate themselves from the communist grip; but they never succeeded.


The new colonial masters: Moscow, Beijing, Havana 


Here is a small sampling of the overwhelming evidence of the SACP’s ties to Moscow and Beijing and SACP’s decisive control over the ANC and MK:

• In 1960, top members of the SACP went to Moscow and Beijing for aid. In Beijing they met personally with dictator Mao Zedong and Den Xiaoping, Mao’s assistant and eventual successor. It was only with the blessings of the Kremlin and Mao that the SACP-led ANC launched their armed wing, Umkhonto we Sizwe. The meetings with Mao and Deng had not been public knowledge until revealed by Dr. Ellis’ research;

• Bartholomew Hlapane, a former member of the SACP Central Committee, testified in court: “All policy-making in the ANC was first discussed by the Central Committee of the Communist Party.” He also stated: “Umkhonto we Sizwe’s policy was formulated by the communist party and the organization received its instructions from this party.” For this and other testimony Hlapane and his wife were brutally murdered and their daughter shot and left paralyzed;

• In 1982, Jorge da Costa, a personal friend of Joe Slovo and the head of security for Communist Mozambique’s dictator Samora Machel, defected to South Africa, bringing irrefutable proof of the Soviet/SACP/ANC connection. Regarding the SACP’s Slovo, da Costa said: “There is no doubt in my mind that Slovo is behind every operation launched by the ANC against South Africa. He has a brilliant mind and is one of the best-informed people about this country.”;

• SACP general secretary Joe Slovo, a KGB colonel, was in regular touch with fellow KGB agents, such as Vasily Solodovnikov, the Russian ambassador to Zambia, through which Moscow directives were channeled to the SACP/ANC/MK;

• The World Peace Council, a KGB-directed international communist front organization has been one of the ANC’s most durable allies and can claim much of the credit for organizing the decades-long “Free Mandela” media campaign that resulted in his release from prison;

• In his 2003 memoir, Nothing But the Truth: Behind the ANC’s Struggle Politics, SACP leader Benjamin Turok recalled “how easy it was for a small group like ours to exert much influence in the mass movement without giving away our existence.”

• In They Were Part of Us and We Were Part of Them: The ANC in Mozambique from 1976 to 1990, published in 2008, veteran ANC members reminisce on their experience. Among the many nuggets is an interview with Franny Rabkin and Ronnie Ntuli which contains this admission: Franny: “For us: We were Communists, and we were ANC.” Ronnie: “And so was everyone else.”

• Soviet official Vladimir Shubin wrote: “The Russian press has calculated that from 1963-1991, 1,501 ANC activists were trained in Soviet military institutions.” Thousands more were trained in the Frontline States. Communist veteran Gerald Horne, stated in Political Affairs, the official journal of the Communist Party USA (CPUSA): “There can be no doubt that the direct involvement of Soviet officers helped to raise the level of combat readiness of ANC armed units and, especially, of the organizers of the armed underground.”

• Mandela passed on control over the ANC and South Africa to Thabo Mbeki, his longtime comrade and a “former” SACP member. Mbeki subsequently lost out in a power struggle with another Mandela comrade and prison mate, Jacob Zuma, also a “former” SACP member, who is accelerating the ANC’s destructive policies as the current president of South Africa.










• Zuma has continued the Tripartite Alliance, the formal agreement among the ANC, SACP and COSATU, which guarantees that the SACP and the Communist-dominated COSATU will back the ANC as the Communist-run front group that runs South Africa.

• In 1998, at age 80, Mandela married for the third time, to Graca Machel, the widow of Mandela’s longtime ally, Samora Machel, the ruthless Communist dictator of the People’s Republic of Mozambique. Graca was a longtime member of FRELIMO, the communist terrorist organization run by her husband that took control of Mozambique in 1975. For more than a decade, she was a partner in Samora Machel’s vicious reign of murder and torture of men, women, and children, including even many of his FRELIMO comrades whom he turned against.


Media propagandists unfazed by the evidence 


Again, we have barely scratched the surface. But the enormity of the damning evidence notwithstanding, the doyens of the Establishment chattering classes continue to sing the same pro-ANC, pro-Mandela rhapsodies and offer the same lame excuses. In a recent article in theNew York Review of Books, Bill Keller, the former New York Times executive editor and the Times’ former bureau chief in Johannesburg, attempts to dismiss the communist commitment of SACP members with the assertion that “Most [SACP] members weren’t all that Communist.” Yes, goes the argument, they were merely a bunch of African nationalists dressing up their rhetoric with some Marxist ideology for effect. That was the argument Keller, the Times and their ilk would drag out time after time during the 1960s, '70s, '80s, and '90s whenever a startling new revelation threatened to make it obvious that the ANC were not freedom fighters but instead a bunch of Kremlin-backed, bloodthirsty, communist thugs. South African author Rian Malan takes Keller to task, pointing out that among the many SACP veterans refuting Keller’s claim is Hilda Bernstein, friend of Slovo and wife of SACP Central Committee member Rusty Bernstein. “Joe and Rusty were hardline Stalinists,” she said in a 2004 interview. “Anything the Soviets did was right. They were very, very pro-Soviet.”

But Keller is unmoved. In a reply to letters to the editor from Malan and former SACP member Paul Trewhala, he dismisses their evidence and that of Prof. Ellis, saying he disagrees “that the alliance with the Communists damns the ANC as a Stalinist front. That is simply Red-baiting nonsense.”

It is virtually axiomatic that no matter how iron-clad the evidence presented, MSM “journalists” such as Keller will see any charges of communist conspiracy as “Red-baiting” and “McCarthyism.” And, conversely, no matter how contrived, flimsy and false the charges by leftists and communists against conservatives, anti-communists, pro-lifers, Christians, Tea Partiers, Birchers, military veterans, etc., the Kellers of the Fourth Estate will rush to give these smears credence. (See here, here, here, and here.)

We witnessed this dynamic in action in South Africa with a cruel vengeance during the 1960s-'90s, as the MSM joined the Communist press, not only in their glorification of the ANC, but also in viciously attacking (or completely ignoring) the moderate South African black leaders, many of whom had far larger constituencies and more legitimate claims to moral authority than Mandela and his ANC comrades. Those moderate leaders included: Zulu Chief Mangosuthu Bethelezi, who is also head of the Inkatha Freedom Party; Tomsanqa Linda, former mayor of Ibhayi township; Nelson Botile, former Mayor of Soweto; Bishop Lekganyane of the Zionist Christian Church; Bishop Isaac Mokoena, leader of the Reformed Independent Church Association, which claims a membership of four and one-half million members; Dr. Elijah Maswanganyi — and many others. Chances are good you never heard of any of them, or that you only heard nasty, negative things about them. But that wasn’t a matter of mere chance; it was according to a plan that was to insure that no serious challengers to Mandela and the ANC/SACP leadership would come to the fore. That same plan continues in place, guaranteeing that the thugs and thieves who are Mandela’s ANC heirs will remain in charge of South Africa (inThe New American, 03 July 2013).


Unsung Hero, Genuine Freedom Fighter: Tomsanqa Linda pictured on U.S. Speaking tour. Despite serious dangers to himself and his family, Tomsanqa Linda, the mayor of Ibhayi Township (population 400,000) and president of the Eastern Province Council Association (representing 74 townships with a total population of nearly 14 million) came to America in 1990 for a national speaking and media tour to expose Nelson Mandela and the ANC. In city after city, he preceded by two or three days Nelson and Winnie Mandela’s triumphal tour. Although he was ignored by the national media, he reached millions of Americans with his powerful message through local television and radio news programs and talk shows. He was sponsored on this important national tour by The John Birch Society. 


Update: After Nelson Mandela passed away on December 5, 2013, both the South African Communist Party and the African National Congress acknowledged in official statements that Mandela was a high-level member of the South African Communist Party. For an updated article about this admission after decades of denial, click here.


See here


E se mais mundo houvera lá chegara

$
0
0
Escrito por Luís de Camões




Basílica do Bom Jesus. É uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo e faz parte do conjunto arquitectónico de Igrejas e Conventos de Goa.



Mas entanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltaram cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa lusitana.
Na África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todos soberana;
Na quarta parte nova os campos ara
E se mais mundo houvera lá chegara.

Os Lusíadas (Canto VII, XIV).



Placa comemorativa da passagem do Apóstolo do Oriente



25 de Abril de 1974: Apostasia e Traição na retaguarda

$
0
0
Escrito por Luís Sanches de Baêna









«Se, em 1488, el-rei D. João II visionava que a expansão do reino de Portugal além-fronteiras só poderia conseguir-se caso se obtivesse vantagem concorrencial por via de informações secretas recolhidas pelo seu espião Pero da Covilhã, já no decorrer da guerra colonial, entre 1961 e 1974, o Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, teve de atribuir à máquina das informações um papel central no apoio às operações políticas, diplomáticas e militares nos três teatros de guerra que ocorriam em simltâneo.

Pero da Covilhã, o preferido de D. João II para missões secretas devido às suas perícias excepcionais e talentos múltiplos (mormente o domínio da língua árabe), foi enviado, com Afonso de Paiva, para chegar por terra às almejadas especiarias da Índia, ao mesmo tempo que o navegador Bartolomeu Dias desbravava o caminho marítimo. O rei D. João II já enviara frei António de Lisboa e Pero de Montarroio numa missão similar, que esta acabou por se revelar um fracasso. Nenhum dos dois espiões, a soldo de Sua Majestade, conseguia proferir sequer uma palavra em árabe, pelo que a dificuldade em ganhar contactos entre as populações locais os obrigou a retornar a Portugal uma vez alcançada Jerusalém. A falta de perícias linguísticas já na altura constituía uma barreira para o estabelecimento de laços de confiança com as gentes de outros idiomas.


Portugal vivia uma época em que o secretismo era a condição essencial para rivalizar com a vizinha Espanha em busca de novos mundos, pelo que a espionagem se tornou basilar para garantir a vantagem sobre os mais directos competidores. Esta actividade secular traduz-se na procura incessante de repostas às interrogações, ambições e desafios que se colocam aos supremos interesses nacionais, sejam eles de cariz económico, securitário, político, cultural, etc. Para tal são utilizadas inúmeras artimanhas ardilosas, habilidades, mentiras, imaginação e jogos que permitem discernir as motivações e intenção dos oponentes. A actividade reveste-se de enorme complexidade, pois, para além das acções para desvendar segredos normalmente bem guardados, há que contar com os inerentes mistérios de difícil descodificação. A complexidade da mente humana, mormente o processo cognitivo subjacente, introduz um coeficiente de dificuldades adicional a todos aqueles que tentam decifrar as motivações e potenciais decisões futuras dos alvos de interesse.


(...) Pero da Covilhã tinha perícias linguísticas e intelectuais que lhe permitiam misturar-se e encarnar personagens e, assim, descobrir as intenções dos líderes mouros contra as praças portuguesas, detectar movimentos de mercenários e exércitos na preparação de campanhas militares, e registar todos os detalhes que pudessem corrigir as cartas traçadas pelos astrónomos de D. João II.


O desígnio de garantir a segurança e a preservação dos interesses nacionais face a uma ameaça iminente seria abordado na obra do padre Fernando Oliveira Arte da Guerra do Mar, publicada em 1555. Este sábio alertava para o facto de as ameaças irem sempre mais além, se não existisse uma resposta proporcional em defesa dos superiores interesses do País, pois "não somente [roubariam] o mar os corsários, mas se os deixam ir em frente sem oposição, atravessarão a terra e provocarão inquietação". Para tal era necessário quebrar o ímpeto dos corsários e demais inimigos, e, nisso, as informações exerciam vital importância, pois "de muito longe além horizonte onde não conseguimos avistar, [poderá surgir] na costa sobre os nossos portos" um conjunto de ameaças que, se não estivermos dotados de um conhecimento superior, podem causar danos incomensuráveis aos supremos interesses de um país. É, portanto, notório que durante este período da História houve a preocupação de adquirir um conhecimento robusto acerca das ameaças e dos competidores que conflituavam com os interesses de Portugal. Os serviços de informações transformaram-se, então, num pilar de toda a estratégia nacional».


Fernando Cavaleiro Ângelo («Os Flechas. A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola»).


«(...) estariam os Portugueses a mais em África? A resposta é um redondo "não!". Como é óbvio, à questão da licitude da sua presença, a única resposta possível é um "sim!". Há muitas razões para isto. A primeira tem que ver com os nossos direitos históricos. Tínhamos chegado a África fazia quase 600 anos, o que não era propriamente o mesmo que ter chegado há meia dúzia de dias. Fomos, primeiro por razões geoestratégicas, com o objectivo de conseguir apoios que nos defendessem de uma Castela unida a Aragão e, depois, para descobrir o desconhecido, para procurar "pimenta e cristãos". Estabelecemo-nos em muitos lugares e, salvo raras excepções, sempre iniciámos amigavelmente os contactos com os indígenas. Não usurpámos terras a nenhum Estado reconhecido como tal e, se atacámos Turcos e Mouros, foi porque eles estavam em guerra contra a cristandade. As acções portuguesas, não estiveram, naturalmente, isentas de erros e de críticas, porém, em comparação com outros povos em situações semelhantes, resta-nos a certeza de que a nossa actuação foi bem mais humana. Além do mais, os acontecimentos devem ser analisados à luz da época e não segundo os conceitos ético-morais e filosóficos de hoje.



Estátua de D. Afonso Henriques



Castelo de Guimarães






Estátua de D. Gualdim Pais e a Torre da Igreja de S. João Baptista. Ver aqui




O argumento segundo o qual nós não podíamos ficar com os territórios porque neles já havia gente antes de nós aí termos chegado, ficou respondido, em parte, um pouco mais atrás. Todavia, se quisermos levar a argumentação ao absurdo, poder-se-ia dizer que nenhum país podia sê-lo hoje, pois antes dos actuais habitantes, quantos outros e de diferentes etnias já lá tinham estado? O Algarve, por exemplo, foi incorporado na coroa portuguesa cerca de 150 anos depois de Afonso Henriques ter individualizado o Condado; porque é que não se pede à ONU a descolonização do Algarve? E quanto aos territórios desabitados, como a Madeira, os Açores, S. Tomé e Cabo Verde? Por que razão têm de ser independentes? E porquê só Cabo Verde e S. Tomé? Será porque nestes a maioria da população é negra? Mas desde quando é que isso é razão? Será que os EUA irão conceder a independência a um Estado só porque nele a maioria da população é negra? Já para não falar nos índios, que foram dizimados (como bisontes) e vivem, hoje em dia (os que sobraram), em reservas.

A Portugal assistia ainda o direito de estar no ultramar pelo modo como colonizou esses territórios. A nossa presença nunca teve m carácter passageiro, mas sim permanente. Onde chegavam, os Portugueses consideravam que as terras e suas gentes passavam a estar integradas na coroa portuguesa. As populações autóctones não eram isoladas dos metropolitanos, antes se promovia a miscigenação (ao contrário do que faziam Ingleses, Holandeses e Franceses). As conversões ao cristianismo eram feitas muito mais pelo dom da palavra do que pela força (ao contrário do que acontecia com os Espanhóis). E cedo se desenvolveram formas de tolerância e adaptação que ainda hoje se podem constatar facilmente.

Sobre a integração de populações de outras etnias e a igualdades entre raças e credos, não temos lições a receber de ninguém. Os EUA, que se autoproclamam os defensores dos Direitos Humanos, quando declararam a independência não libertaram os escravos. Tiveram de passar pela experiência de uma guerra civil para finalmente abolirem a escravatura, isso numa época em que os Portugueses já há vários anos perseguiam o tráfego esclavagista como ilícito. O problema racial nos EUA só começou a ficar resolvido no fim da década de 60 do século XX, depois de uma vaga de violência racial. Nessa época, já Portugal contava com indivíduos de todas as raças no seu corpo de oficiais, na magistratura, na cátedra e, de uma forma geral, em todas as actividades. Nem consta que tivesse ocorrido, em qualquer altura, discriminação nas escolas, nos transportes, etc., ou que se verificassem, nas ruas, cenas de pancadaria entre indivíduos de pele distinta.

A vida criada pelos Portugueses não foi, certamente, um mar de rosas, mas também ninguém disse que a natureza humana é perfeita. O desenvolvimento dos territórios nem sempre foi realizado da melhor maneira, nem nos prazos mais apropriados, é verdade, porém, que o desenvolvimento está directamente relacionado com a capacidade da nação para o realizar e a Portugal, ao longo dos séculos, nem sempre foi possível acudir a todos os lados. [Ainda hoje isso acontece, mesmo reduzidos a 90 km2, o país está cheio de assimetrias]. Isso, no entanto, era um problema interno, que só a nós dizia respeito. No período aqui considerado, não nos parece que houvesse em África (excepção para a Rodésia e para a República da África do Sul) qualquer país que se pudesse comparar positivamente com Angola, Moçambique e Guiné, onde havia guerra, e com Cabo Verde e S. Tomé, onde sempre reinou a paz. O desenvolvimento alcançado durante os catorze anos que durou a luta suplantou o registado nos últimos quatro séculos, antevendo-se a criação de uma grande comunidade de raças. Este seria o ponto mais importante que qualquer observador imparcial registaria.

Não vemos assim qualquer razão imperativa que na altura levasse Portugal a abandonar a sua presença fora das fronteiras europeias, a não ser, e essa seria a justificação primeira, que as populações indígenas e/ou brancas quisessem tornar-se independentes. Pode dizer-se, sem receio de errar, que havia pessoas que defendiam a independência. Mas qual era a sua expressão? Ainda subsistem algumas dúvidas de que a agressão veio do exterior e que foi, na sua esmagadora maioria, apoiada, sustentada e inspirada pelo exterior? Alguém em consciência pode afirmar que havia bases permanentes da guerrilha em território nacional? Não houve um fluxo constante de refugiados que se expatriaram ameaçados pelos primeiros recontros? Não se verificou um aumento constante do recrutamento local para as Forças Armadas? E quantas povoações estavam organizadas em autodefesa? Para os mais cépticos, adianto que a "sentinela" da Messe Militar de Luanda era a D. Nazaré (e nem sempre estava) e que não há memória de ter havido um único rapto de um militar ou de um familiar seu durante o tempo em que durou a guerrilha. Teria isto sido possível caso a maioria da população, ou sequer uma parte significativa da mesma, odiasse assim tanto os portugueses e quisesse mudar de nacionalidade?






Pode ainda ser alegado que a subversão começou por causa da proibição da criação de partidos ou organizações que pudessem advogar uma separação. Mas qual o país, no mundo, por mais democrático que seja, que permite impunemente a existência de organizações que pratiquem a violência? Acaso a Espanha dá a independência ao País Basco? E a França permite a secessão da Córsega? E nós, será que vamos autodeterminar os Açores caso a FLA (Frente de Libertação dos Açores) passe a colocar bombas?

Houve também quem dissesse que se devia fazer um plebiscito em cada território. A ideia foi avançada para o caso de Goa, e logo recebeu uma resposta negativa da Índia. Se o tivéssemos feito em África, alguém acredita que os nossos inimigos iriam reconhecer algum resultado que não coincidisse com os seus interesses? E, mais uma vez, perguntamos: a soberania plebiscita-se? Aceitariam hoje em dia os espanhóis um plebiscito em Olivença?

Em súmula, a Portugal assistia o direito de estar politicamente presente fora da Europa, pela história, pelo sangue, pelas obras, pela razão, pelo esforço civilizador e evangelizador, pela alma criada e pela vontade maioritária das populações. E tinha o dever de o fazer, porque essa era uma das razões da sua existência, por espírito de sobrevivência, para proteger as vidas dos portugueses e salvaguardar o património material, moral e espiritual da nação. O projecto português não era um projecto de passado, mas sim de futuro. Futuro não só para os Portugueses, já que lhes garantia uma independência e um progresso que de outro modo jamais atingirão mas também para o mundo, porque a existência de uma sociedade multirracial e pluricontinental a viver em harmonia constituiria, no campo dos princípios e na prática, um dos mais elevados, senão o mais elevado ideal da humanidade. Seria a plenitude do "Quinto Império", mas isso é outra história.

Pelo que se sabe, quase todos os oficiais que formaram inicialmente o Movimento das Forças Armadas, bem como os próprios membros da Junta de Salvação Nacional, a começar pelo general Spínola, não eram adeptos nem defendiam a entrega do ultramar. [Ao general Costa Gomes, porém, já era mais difícil perceber o que lhe ia na alma...]. No entanto, logo após o golpe de Estado, cometeram-se tantos erros, uns atrás dos outros, e de forma tão inexplicável, que rapidamente se perdeu o controlo da situação (o que só foi retomado, e apenas parcialmente, a 25 de Novembro de 1975, já depois do grande desastre estar consumado). E assim se inviabilizou qualquer condução adequada da situação.

Seguiu-se o desvario e o oportunismo tão característicos quando assistimos à libertação dos sentimentos humanos sem qualquer freio e, de cedência em cedência, de traição em traição, "fugiu-se para a frente", não se respeitando nem princípios, nem interesses legítimos, nem a justiça, nem os objectivos nacionais permanentes, nem sequer o mais elementar bom-senso. O "poder" vindo da rua nunca é bom conselheiro... Assim se amputou a nação irremediavelmente. Se quisermos responder conscientemente à pergunta de quem ganhou com todo este processo, teremos de dizer que ninguém. Não ganhou o Ocidente, que se viu reduzido em apoios e em proveitos comerciais, já que os novos países entraram em declínio e afundaram-se em guerras sangrentas; não ganharam os marxistas, pois os benefícios que obtiveram no curto prazo já foram esbanjados, devido aos erros cometidos. Além disso, o comunismo entrou entretanto num processo inelutável de descrédito e está actualmente em decomposição por todo o mundo. Perderam os países do Terceiro Mundo, pois apenas viram juntar mais pobreza e desgraça àquela que já tinham. Perderam os Portugueses que restaram, pois a nação ficou reduzida e limitada. Portugal deixou de ser um protagonista com peso na cena internacional, a consciência nacional foi profundamente abalada, algo de que ainda não recuperámos, e o Estado Português passou a comportar-se como se não tivesse interesses próprios e ainda hoje hesita quanto a objectivos nacionais permamentes.

O fim da guerra não trouxe a tão almejada riqueza, que se criaria com os recursos afectos àquela. Pelo contrário, já se gastou parte das reservas em ouro e cada português passou, subitamente, a dever 500 contos ao estrangeiro. Em 1975, com o país quase à beira da guerra civil, cerca de 700 mil "retornados" (cerca de 9 por cento da população) caíram, de repente, no "jardim à beira-mar", com todo um cortejo de problemas que, graças a um "milagre" de solidariedade nacional, acabaram por se resolver sem crises de maior.












Ver aqui


Perdemos a maior parte da nossa liberdade estratégica e ficámos enfraquecidos e divididos como comunidade. Fomos "empurrados", mais tarde, para a CEE (onde corremos o risco de ser "colonizados"), quando podíamos ser uma CEE sozinhos! Tínhamos recursos, população e mercado para isso. Faltava-nos tecnologia e financiamentos, mas nada disso era difícil e muito menos impossível de obter. É bom não esquecer que ao longo de oito séculos de história, a Europa nunca nos ajudou quanto tínhamos crises, bem pelo contrário, sempre nos utilizou como moeda de troca para dirimir questões que em nada nos diziam respeito.

Finalmente, perderam as populações ultramarinas, nomeadamente aquelas em cujos territórios houve luta armada, que acabou por durar mais tempo e causou um número incomensuravelmente maior de mortos e foi muito mais destrutiva do que os 13 anos em que Portugal se defendeu da guerrilha.

A situação foi catastrófica. Houve guerra, fome, doença, corrupção, paralisação quase total da vida produtiva, ditadura, desrespeito pelos direitos humanos, negação da liberdade individual, endividamento galopante, desperdício de recursos, exploração estrangeira (essa sim neocolonial), racismo, etc. Apenas Cabo Verde atravessou toda esta fase com relativo sucesso.

Hoje, felizmente, há paz, mas também lambem-se as feridas. Porém, não há nos territórios que outrora foram Portugal qualquer sentimento de ódio contra os portugueses. Mas há muita nostalgia. Foi este o resultado final de um processo que se iniciou em Lisboa e que não se soube ou não se conseguiu controlar, por muito que isso nos custe a admitir».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«Na madrugada de 25, o presidente do Conselho sai da sua casa na rua Duarte Lobo, no Bairro de Alvalade, e dirige-se, na companhia do seu adjunto militar, comandante Coutinho Lanhoso, para o Quartel do Carmo, sede do Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana. É uma decisão estranha, para quem conheça Lisboa. Na verdade, o Carmo aparece, por toda a I República e mesmo durante o Estado Novo, como o reduto obrigatório dos governos ameaçados por rebeliões ou intentonas. Dada a fidelidade e a força da GNR era lógico que assim fosse.

Entretanto, muita coisa mudou. Com o armamento actual, com a existência de meios aéreos, o Carmo deixara de ser reduto seguro para ser uma ratoeira. Quem para ali vai, de lá só poderá sair abrindo caminho através das ruas estreitas daquele ponto da Baixa, pouco propícias a movimentos de tropas. É o último lugar para o chefe de um governo que, a braços com um movimento militar revolucionário, pretenda coordenar a defesa, para o que terá, naturalmente, de ter liberdade de movimentos.

Além disto há um plano de recolha de altas entidades, que funcionou no 16 de Março e prevê que o presidente do Conselho se dirija para a sede da 1.ª Região Aérea, em Monsanto, onde os ministros se lhe reunirão, vindos do ministério do Exército.

Alterando, incompreensivelmente, este dispositivo, Marcelo vai para o Carmo. Pelo caminho encontra já barreiras de unidades revoltosas que o deixam passar. (Esclareça-se que não atribuímos a este pormenor segundas interpretações, pois apesar de insólito, pode muito bem enquadrar-se num clima de nervosismo e improvisação que vai dominar todos os acontecimentos).

No Carmo, o presidente do Conselho é recebido pelo General-Comandante da GNR, que fica muito surpreendido ao vê-lo ali e se mostra preocupado com a sua segurança, fazendo-lhe notar que não é o lugar mais próprio para o chefe do Governo.

No ministério do Exército, Silva Cunha, Andrade e Silva, Moreira Baptista, os irmãos Luz Cunha, Viana de Lemos esperam em vão a chegada de Marcelo Caetano que não só não vem, como não lhes comunica nenhumas directivas, nem sequer os esclarece onde se encontra.

O mais estranho é a telefonia. O Rádio Clube Português, nas mãos dos revoltosos, transmite ininterruptamente. Debalde as pessoas procuram nas outras emissoras escutar um porta-voz governamental. E, pensam alguns, se o poder não tem força para silenciar o emissor da Sampaio e Pina, é porque está em maus lençóis, se é que não perdeu já o controlo da situação.






Mas será que ninguém se lembrou desta medida elementar que é calar a transmissão do Rádio Clube? Logo no início dos acontecimentos, a DGS entrou em contacto com o presidente do Conselho. Que há um "comando" de 20 homens pronto para atacar as instalações do emissor. Contando com gente bem treinada neste tipo de golpes de mão, com larga experiência da guerra em África e ainda por cima com nada a perder, é de esperar que a iniciativa seja coroada de êxito. De qualquer modo é preciso fazer alguma coisa.

Marcelo proíbe a DGS de levar por diante qualquer acção desta natureza. Recusar-lhe-á autorização por todo o dia, mesmo quando, em desespero de causa, se pensa que o seu pessoal, sozinho, poderá acabar rapidamente com o golpe em Lisboa. Do mesmo modo proibirá a GNR e a PSP de actuarem, sob o pretexto de que não quer sangue. Também ao 2.º Comandante em exercício da Região Militar de Évora, que lhe comunica estar pronto a marchar para a capital com unidades fiéis ao Governo, o presidente do Conselho diz que aguarde as suas instruções. Que nunca vêm.

Sem qualquer coordenação ou orientação superior, as forças leais ensaiam manobras mais ou menos desencontradas para resistir ao "inimigo". Evitam-se os choques, que o chefe do Governo parece ser o principal interessado em evitar. Alguns indecisos resolvem aderir, como a Escola de Fuzileiros. Os decididos a atacar os revoltosos, como sucede entre oficiais da Força Aérea, esmorecem perante a inoperância dos seus superiores, paralisados também pela falta de comando governamental. A maioria assiste, espera. [Muitos hão-de estranhar que o núcleo de oficiais generais conservadores, mais atentos ao problema e pouco confiantes na fidelidade e competência da Administração, não tivessem preparado nada para uma hipótese do tipo 25 de Abril. Havia, ao que parece, um plano, que repousava na lealdade e eficiência, de então, das tropas pára-quedistas, que tinham várias companhias operacionais na metrópole: as instruções eram para que, estas forças, em caso de qualquer ocorrência subversiva militar entrassem em acção, ocupando, subsequentemente, os objectivos que fossem sendo tomados pelos revoltosos, forçando estes, pelo menos, a negociar. Na manhã de 25 de Abril, em cumprimento do estabelecido, o general Kaúlza de Arriaga accionou o sistema, através do general Troni, que pelas funções que ocupava na Força Aérea era a pessoa competente para dar as ordens. Passada cerca de meia hora, Troni comunicou a Kaúlza que pusera em execução o projecto mas que as unidades se recusavam a marchar, pelo que não havia nada a fazer. Meses depois do 25 de Abril, o general Kaúlza de Arriaga foi procurado por alguns oficiais pára-quedistas que se queixaram, amargamente, de nunca terem recebido ordens para actuar no momento da revolução, ao contrário do que ficara estabelecido. Surpreendido, Kaúlza informou-os de que as instruções as transmitira, a tempo e horas, pelo canal que ficara concertado. Dir-se-ia que o general Troni se absteve de fazer seguir o plano].

É a dêbâcle. Através de palavras de ordem, o Partido Comunista atirou para as ruas a sua gente, que se mistura e confraterniza com o militares. Ninguém sabe do chefe do Estado, afora um curto período de tempo em que, a partir do forte de Giribita, tenta convencer algumas unidades a intervirem. Alpoim Calvão corre Lisboa, sob instruções do Chefe do Estado-Maior da Armada, à procura de um morteiro de 81 para calar o Rádio Clube. Cerca das nove da manhã dirigira-se à sede da DGS, de que fora instrutor. Quando aí se encontra, chega uma força de fuzileiros navais que aparentemente se destina a atacar as instalações. O pessoal da Segurança mostra-se disposto a resistir. Receia-se a confrontação, que seria sangrenta.

Calvão consegue, entretanto, parlamentar com os atacantes, alguns dos quais comandou e convence-os a retirar sem mais problemas. Dali continua a sua busca sem êxito, de um modo de calar o Rádio Clube. Ainda vai a Lanceiros 2, onde se refugiaram os ministros militares, depois de se escaparem do Terreiro do Paço. Também ali acabam de sair, num helicóptero, para Monsanto.

Reina perfeita confusão. No Estado-Maior do Exército, as notícias são contraditórias. Alguns chefes de Repartição informam que a situação está praticamente controlada. De facto, a dada altura, a coluna da Escola Prática de Cavalaria, comandada pelo capitão Salgueiro Maia, que se encontra nas imediações do Carmo, cercando o aquartelamento, parece por sua vez estar cercada por forças de Cavalaria 7 e da GNR, isto é, apanhada entre dois fogos. Mas também, inexplicavelmente, nada acontece. As forças leais retiram-se, sem dar um tiro, deixando os blindados da EPC, à mistura com muitos civis, em frente do que simboliza, aparentemente, o poder constituído - o chefe do governo, Marcelo Caetano, que para ali foi de madrugada, como que à espera deste momento. Para além do ambiente de kermesse, dos pormenores ridículos que vão rodear o final do drama, há um elemento curioso. Os sitiados são em maior número que os sitiantes. Mas isto importa pouco, pois, mais que o início de uma tragédia, trata-se da última cena de uma comédia, estudada e preparada no melhor estilo do teatro de enganos - a transmissão de poderes, para que o poder não caia na rua.






O final é tão equívoco e surrealista como o entrecho. Na manhã de 25 o secretário de Estado da Informação e Turismo, Pedro Corte Real Pinto, entra na história do regime pela porta de saída. Diplomata de carreira, está no Governo desde a remodelação de Novembro, quando substituiu Moreira Baptista. Considera-se um "liberal" e fora dos meandros da política interna dos últimos anos. Conhece de fresca data o general Spínola, com quem teve encontros episódicos e cordiais. Acordado de madrugada por um alto funcionário da Emissora Nacional, Pedro Pinto dirige-se ao seu gabinete no Palácio Foz. Impressiona-o o espectáculo de Lisboa, nessa manhã. Receia uma hecatombe.

Dirige-se ao Grémio Literário, no coração da Baixa. Daí vai tentar, assegura que por sua iniciativa, uma "solução pacífica", que evite o que lhe parece poder ser uma jornada sangrenta. Redige então uma carta, dirigida ao general António de Spínola, a quem pede que utilize o seu prestígio para tomar o comando do Movimento e da Revolução. Nuno Távora, secretário de Pinto, recebe a incumbência de levar a missiva à residência do General. Este, que se encontra protegido por oficiais da sua confiança, recebe, com aparente relutância, a proposta. Que é tarde, que o tivessem ouvido antes. Távora liga para o Grémio Literário, dando conta desta recepção a Pedro Pinto; este pede então para falar pessoalmente com o antigo governador da Guiné. Muito instado, Spínola acede a tomar uma iniciativa, no sentido de intervir na situação, desde que sejam satisfeitas duas condições: uma, que um grupo de oficiais do Movimento, um dos quais, pelo menos, com a patente de Coronel, lho solicitem; a outra, que o chefe do Governo assine um documento pelo qual, formalmente, lhe entregue o poder.

Exigências estranhas ou uma preocupação de legalidade face à nova e à velha ordem? Neste último caso, a pessoa competente para transmitir o poder não seria Marcelo Caetano, mas o almirante Thomaz, chefe do Estado, que é, na ordem vigente, o detentor dos poderes constitucionais.

Equívoco ou cumprimento de um plano predeterminado, congeminado nestas semanas derradeiras? As dúvidas persistem e tentar adiantar explicações para estes factos um tanto estranhos e desconexos é ainda (e sê-lo-á por muito tempo) entrar em meras conjecturas. Que ficam para quem as quiser arriscar.

Prosseguindo nos seus bons ofícios, Pedro Pinto contacta o quartel do Carmo, cujo telefone responde normalmente. Pede que lhe liguem ao presidente do Conselho. Atende Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros, a quem o secretário de Estado da Informação expõe as linhas gerais da sua ideia, pedindo de seguida que lhe passe Marcelo Caetano, que aceita também fazer a sua parte no esquema, assinando a tal declaração de transmissão de poderes.

Nesta sequência surrealista, em jornada onde o trágico estará sempre ao lado do grotesco, Távora e Pedro Feytor Pinto (alto funcionário da SEIT de conhecidas simpatias spinolistas que, entretanto, se reunira ao grupo), correm à Pontinha, onde se encontra o PC do Movimento, para recolher as assinaturas pedidas por Spínola. Que são conseguidas.

Daí vão ao Carmo, passando através do cordão sitiante (Távora conhecia o capitão Maia, que fora seu instrutor) para receber o documento onde Marcelo Caetano põe termo, sem sangue nem competência para o fazer, a quase meio século de regime.

"Em que estado me entrega este país, Sr. Presidente!" - as palavras de Spínola para Marcelo Caetano, quando chega ao gabinete onde o chefe do Governo vencido passou o dia, sem uma palavra para ninguém, nem mesmo para os que ainda tentavam organizar a defesa.

Lisboa está deserta neste fim de tarde cinzento, afora a multidão que se concentrou no largo do Carmo para assistir ao espectáculo. É um pátio dos milagres, com Francisco de Sousa Tavares a falar ao povo por um megafone.

Num fecho que os moralistas interpretarão a seu gosto, Marcelo sai no interior de uma Chaimite que a multidão acompanha com palmadas, pontapés e vaias, enquanto vitoria o general Spínola. Mas tudo é já simbólico, para a História. Grupos de esquerdistas aproveitam estes primeiros momentos de liberdade para apedrejar os Bancos no quadrilátero pombalino, onde se situam as sedes destes santuários da burguesia, enquanto a eterna bafejada das revoluções, a populaça, saqueia lojas na rua Nova do Almada.

Mas o poder não caiu na rua. Por enquanto... A PM começa a patrulhar a cidade e alguns populares clamam, contra os garotos que ameaçam estragar uma jornada brilhante.

Há uma mistura de euforia e nervosismo. Os bons conservadores, à falta de comunistas e assaltos ao domicílio, sossegam-se mutuamente, com os boatos sobre a composição da Junta. Há mesmo quem abra champanhe para celebrar. "Isto é um golpe das direitas", adianta um espírito mais sibilino, reforçando a tese com o comunicado do Programa do Movimento das Forças Armadas que fala em Portugal pluricontinental!

Nem toda a gente pensa assim. Um pessimista, ao ver passar no topo norte do Campo Grande, sob a chuva miudinha, empoleirados nas "Berliets" os galuchos vitoriosos, que dão gritos e vivas, saudando não se sabe quem, comenta com amargura - "Portugal acabou!"



Ver aqui


Na sala não dão muita atenção ao prognóstico. Alguém acaba de perguntar, distraidamente, como se não lhe interessasse muito saber - "Onde estará o Costa Gomes?"

Na altura não se faz ideia. Mais tarde virá a saber-se, como muitas coisas mais. O futuro presidente da República passou todo o dia fora de jogo. Como sempre, não se deu por achado. No Hospital Militar da Estrela, acompanhava sua mulher num check-up que, com a devida antecedência, marcara para 25 de Abril.

Vai de lá para a Junta.

Cai o pano».

Jaime Nogueira Pinto («Portugal - Os Anos do Fim. A Revolução Que Veio de Dentro»).


«Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente».

António José Saraiva («O 25 de Abril e a História»).


«Em relação ao Ultramar, tudo o que se passou depois do 25 de Abril foi uma traição. Incluindo o acordo de Alvor. Uma traição praticada contra o próprio povo da Metrópole.

O 25 de Abril, com as suas consequências que os revoltosos não quiseram prever, resultou no desmoronamento dantesco de uma Nação com raízes seculares. Uma nítida traição, reconhecida num documento da Revolta Activa, o expoente máximo da intelectualidade que concebeu o MPLA, desviado e deformado do seu programa inicial pelos despautérios e pela autocracia de Agostinho Neto, claramente denunciados através, até, das emissões de Angola Livre e de Angola Combatente, a partir da Rádio Brazzaville.


Correndo, embora, o risco de me repetir, quero insistir na certeza do fim da guerra. Decrescera o número de operações e diminuíram, em igual proporção, os acidentes causados pela movimentação das tropas. As estatísticas militares o confirmaram, apesar de omitirem elementos vitais.

O documento da Revolta Activa, a que aludi, prova, à saciedade, em pontos essenciais, que o MPLA estava exausto; não tinha quadros; não tinha armamento; não tinha organização logística. O MPLA não tinha absolutamente nada. Chipenda, em 25 de Abril, comandava, no Leste, trinta homens armados. O grupo de Agostinho Neto tudo perdera.

Conhecido pela declaração dos dezanove intelectuais de Angola do MPLA, tal documento traduz, exuberantemente, alarme e pedido de socorro, apelo à união dos dissidentes; do grupo de Agostinho Neto, do grupo da Revolta Activa; e do grupo do Leste, dirigido por Chipenda.

Os dezanove intelectuais da Revolta Activa puseram por escrito o seu ansioso pensamento antes da reunião de Lusaka, em 1973, na qual Chipenda apresentou um relatório em que acusou, frontalmente, Agostinho Neto de hediondos crimes, como o de ter assassinado companheiros de luta, porque discordavam da orientação que ele impunha ao movimento. Agostinho Neto abandonou a sala da reunião e Chipenda foi eleito presidente do MPLA.

Talvez por interferência de Mobutu (desconheço os pormenores), Mário Pinto de Andrade, Chipenda e Agostinho Neto reuniram-se pela segunda vez. Inesperadamente, Chipenda abdicou da presidência, em favor de Agostinho Neto, mantendo-se na vice-presidência com Mário Pinto de Andrade. Mas, logo a seguir, Mário Pinto de Andrade e Chipenda falaram aos microfones da Rádio Brazzaville, para uma emissão destinada a Angola Combatente, que Agostinho Neto proibiu.


Reacendeu-se, abertamente e irredutível, a incompatibilidade dos três chefes. Agostinho Neto manteve-se no MPLA; Mário Pinto de Andrade, na Revolta Activa; e Chipenda, na Revolta Leste. Mais tarde, o terceiro uniu-se à FNLA».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).



«Nunca pensámos que a independência [de Angola] seria o país convertido numa imensa prisão e num cemitério».  

Luís Fernandes do Nascimento



«É frequente ouvir-se dizer, nos círculos acomodatícios da capital, que em França ainda existem - hoje - campos para os retornados da Argélia. Porquê, assim, tanta celeuma e tanta desgraça com os "retornados" de Angola? Trata-se de uma atitude, como qualquer outra, para evitar o incómodo de pegar o toiro pelos cornos.

A França, na Argélia, perdeu a guerra. A guerrilha urbana era tão intensa, dramática e quotidiana, que tornava impossível qualquer administração. O facto de o exército francês ser obviamente superior não significava - na política e na psicologia dos cidadãos - praticamente nada. A guerra tinha chegado ao quarto de dormir de cada um. Ao terrorismo respondia-se com terrorismo, à bomba respondia-se com outra bomba... no café, no cinema, na rua, na casa de banho. As populações urbanas passaram a odiar-se de morte. E viviam aterradas. Não havia nada a fazer senão negociar e "retornar". Mas, mesmo assim, os portos argelinos não ficaram transformados em bases de guerra soviéticas em frente da França. Houve previsão e bom senso».

Paradela de Abreu (in Nota do Editor ao livro de Pompílio da Cruz, «Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«Fala este livro de um drama. Do meu - talvez o mais pequeno de todos. Do de todos esses que conheceram o inferno prisional angolano nos anos que se seguiram à independência, no contexto de uma guerra que encarcerou o povo angolano em fronteiras de violência sem medida. A máquina de guerra sustentou o poder do MPLA, perpetuou uma luta fratricida e enredou na repressão o quotidiano de muitos, angolanos e estrangeiros, fazendo da jovem nação campo de refugiados, deslocados e orfãos. Falo de holocausto, não por desconsiderar aquele que a história contemporânea da Europa viveu - o holocausto por antonomásia -, mas porque a desumanidade tamanha desse não pode ocultar outros holocaustos que o curso dos anos somou à história de muitos povos. Dessa nação angolana falo eu aqui, nação a fazer-se cujas dores não eram de parto mas de luto por tantos filhos supliciados e exterminados com a ajuda de exércitos estrangeiros».

Américo Cardoso Botelho («Holocausto em Angola»).


«Dia-a-dia se cavava mais fundo o fosso que dividia os movimentos e a população. Aumentavam os roubos, os assaltos, os saques, a selvajaria, cujos autores nem sempre eram marginais, mas pessoas que, até ao 25 de Abril, se comportavam como cidadãos decentes e zelosos no cumprimento do dever e no respeito pelas relações entre as etnias.

Havia constantes incidentes que punham frente a frente o MPLA e a FNLA. Desordens quase sempre originadas pelo MPLA, que as tropas portuguesas aplaudiam quando não favoreciam em participação activa.

Era vulgar militantes do MPLA e militares portugueses saudarem-se amistosamente, com as mãos levantadas e os dedos em "V", acamaradando e insultando-nos com uma identidade ideológica, que, simultaneamente, nos ameaçava. As Forças Armadas Portuguesas ajudavam o MPLA a apossar-se de Luanda, mantendo-se passivas ante os ataques à etnia branca.

Ninguém se enganava sobre o que o destino lhe reservava, em meio ao confusionismo e à incoerência absoluta.

Chegou a fome. A anarquia reinou nas regiões que a FNLA ocupara, escorraçando não só as FAPLA, como também as populações aderentes ao MPLA. Forças daquele movimento desceram para o Ambriz, para Carmona, para a zona da etnia Quicongo. O MPLA garantia que, contra ventos e marés, prosseguiria a guerra até à "libertação" de Angola.

Saltava aos olhos, perante o fracasso do Governo de transição, que os movimentos nunca se reconciliariam num território quase independente. Usavam, qualquer deles, a mesma linguagem: ocupar, desmantelar, esmagar, vencer e - pior - vingarem-se.

Em Maio, numa reunião convocada pela OUA para Kampala, Idi Amin Dada e Mobutu concordaram que a solução do conflito seria internacionalizá-lo, com a participação da ONU e da própria OUA. Amin propôs que um exército de dez mil homens, armados pela OUA, interviesse.

Em Junho, na capital angolana, a ferocidade não conheceu limites. O MPLA, com a colaboração de militares portugueses, reduziu a escombros as delegações da FNLA. Móveis e documentos juncarem as ruas de destroços, aos quais foi largado fogo.






Seguiu-se uma campanha desenfreada para explorar o obscurantismo de brancos e negros. Dizia-se que a FNLA assava crianças, arrancava corações, bebia o sangue dos inimigos; que, na delegação da Avenida do Brasil e no quartel do Casenga tinham sido descobertas salas de tortura onde se escondiam, dentro de frigoríficos, frascos com sangue e corações humanos; que havia corpos de pessoas queimadas e mutiladas.

A médica encarregada do laboratório da Faculdade de Medicina desmentiu esse tipo de propaganda, divulganddo que o sangue e os corações pertenciam ao Museu Anatómico. Foi presa, ante o pavor dos filhos. A ameaça de greve geral dos médicos salvou-a. Libertaram-na, expulsando-a para Lisboa.

Todavia, mesmo das mais absurdas afirmações, que os factos contradizem, alguma coisa fica. E, assim, a posição da FNLA tornou-se insustentável em Luanda. O MPLA, com forças portuguesas, iniciou uma perseguição tenaz. Presenciei, na Rua D. João II, à entrada da Rua coronel Artur de Paiva, "chaimites" dispararem sobre soldados da FNLA, que fugiam desarmados e cujo medo era tão grande, que, enquanto corriam, despiam a farda, para salvar-se. Pretendiam alcançar o Bairro do Saneamento onde viviam os ministros da FNLA e o largo do Palácio, na esperança de, ali, conseguirem protecção. Na Calçada de Santo António, defronte da Rádio Iglesia, repetiu-se igual caça ao homem. A tropa portuguesa sorria perante o espectáculo e as balas não paravam de chover. Os mortos - não sei quantos - lá ficaram, tombados nos passeios ou no pavimento das ruas. Os que viveram foram retirados pela UNITA e levados para as terras donde eram oriundos.

Restou, à FNLA, em Luanda, a Fortaleza de São Pedro da Barra cuja guarnição resistiu, durante muito tempo, aos assaltos do MPLA. Recebendo reabastecimento à custa de subterfúgios que ultrapassam as mentes mais imaginosas, os militares cercados não se rendiam. Uma ambulância foi destruída e nela morreram enfermeiras e enfermeiros. Granadas explodiram nos depósitos da Petrangol, da Refinaria de Luanda. A cidade inteira esteve prestes a sumir-se num mar de Labaredas que nada poderia apagar, se o combustível derramado se inflamasse.

Para desespero da FNLA, um dos seus representantes no Governo, o ministro da Agricultura, Neto, assinou a rendição dos sitiados e fugiu para a Suíça onde se reuniu à mulher e aos filhos. Os defensores da Fortaleza baixaram os braços e saíram da cidade sem serem molestados pelo MPLA. Constou, na altura, que a FNLA minara o porto de Luanda e que, portanto, o MPLA não poderia receber armamento desembarcado de navios da Cortina de Ferro.

Não foram necessários muitos dias para que a UNITA seguisse as pisadas da FNLA, abandonando Luanda. O Governo, naturalmente, desapareceu. O MPLA dominava a cidade e os subúrbios.

O "poder popular" inaugurou a era dos grandes assaltos, dos raptos, das buscas domiciliárias sob nenhum motivo, das violações de mulheres e raparigas, até de crianças em plena via pública, e diante dos maridos e pais, das torturas, das mutilações, dos assassínios a sangue frio e só pelo prazer de matar, das casas incendiadas por desfastio, e das prisões.

O MPLA possuía diferentes tipos de cadeias e felizes eram aqueles que escapavam às sevícias mais abjectas ou à detenção nos curros da praça de touros.

Um funcionário do Matadouro foi preso com um filho de vinte anos, bateram-lhe durante horas e abriram-lhe a cabeça à catanada, inutilizando-o para o resto da vida.

Ao marido de uma escriturária da DGS, depois de quase o matarem à pancada, enrolaram-lhe, nos testículos e no pénis, um rastilho de pólvora. Quando se preparavam para atear fogo, um soldado das FAPLA "condoeu-se" e convenceu os camaradas a colocarem o rastilho num dos antebraços da vítima, onde o fizeram arder.

Homens e mulheres enlouqueceram ou morreram nas masmorras secretas dos muceques.

O engenheiro Bandeira, administrador da Petrangol, ficou com os braços e pernas deformados por uma sessão de tortura, finda a qual o amarraram com tal força que o sangue não circulava.

Um pasteleiro, morador no bairro da Cuca, foi espancado e obrigado a assistir à violação da mulher e das filhas. No dia seguinte, a família foi ao Palácio, relatando a sua odisseia ao general Silva Cardoso. O governador desceu ao pátio e, perante o que ouviu, chorou. Não podia fazer mais nada.






Não chegariam as páginas de um volumoso livro para registar, caso a caso, o que sofreram os luandenses nessa época.

É então, em Junho-Julho, que se prenunciou o grande êxodo, avalanche indescritível da miséria de seres humanos acossados por feras.

Agosto, Setembro, Outubro de 1975 são três meses que os angolanos de várias etnias jamais esquecerão, a dor, o luto, a fuga sem esperança e sem destino, fabricando-lhes uma cruz insuportável. Se não foste tu, foi o teu pai - o aforismo ressuscitou na inversão dos valores mais caros ao Homem.

O MPLA não escolhia, na bestialidade dos meios para atingir o fim: ser o único detentor do Poder. A complacência e a cobardia das tropas portuguesas eram encorajamento para os carrascos.

Dentro da boa técnica comunista, o MPLA sempre aproveitou a propaganda para mobilizar as massas e atraí-las, emocionalmente a si. Foi o que fez, em Dezembro de 1974, com a morte de um negro, o enfermeiro Benge - Catarina Eufêmia angolana e de calças. Assassinado a tiro, em discussão de taberna num muceque, não se curou das causas, nem da identidade do criminoso. Para o MPLA, o incidente calhava às mil maravilhas para montar um espectáculo de envergadura e de resultados de antemão assegurados. Por mor de convocações profusamente distribuídas, por apelos na Rádio, por notícias nos jornais, multidões acompanharam o funeral do enfermeiro, que foi promovido a mártir. Pobre do Benge, um indivíduo sem qualidades, ignorado habitante de Luanda, que, cortada a sua vida numa infeliz altercação de taberna, serviu ao MPLA de bandeira para atrair adeptos, principalmente nos muceques.

A criminalidade correu em Angola, como rio caudaloso de amargo e farto primitivismo».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«A guerra ganha por todos nós, no terreno e com galhardia, acabou por se perder no Terreiro do Paço. Como disse Camões, "dos portugueses alguns traidores houve algumas vezes"».

Óscar Cardoso (in prefácio a Fernando Cavaleiro Ângelo, «Os Flechas. A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola»).


«O livro Purga em Angola, de Dalila Cabrita e Álvaro Mateus, refere-se aos milhares de mortos do 27 de Maio de 1977, decorrentes da "depuração" feita no seio do Movimento para a Libertação de Angola (MPLA). Por outras palavras, foram arbitrariamente mortos, por fuzilamento ou execuções sumárias, membros do Comité Central, ministros, comissários ou governadores das províncias, pessoal do Departamento de Informação e Segurança de Angola (DISA), bem como das Forças Armadas de Libertação de Angola (FAPLA). Enfim, um sem-número inacreditável de mortos num cenário apocalíptico caracterizado por decapitações, pessoas famintas que desenterravam os mortos para comer, pessoas sepultadas vivas em valas comuns, e outras que, depois de fuziladas, eram lançadas de avião ou de helicóptero para o mar ou para a mata. Demais, uma tal purga atingiu igualmente amigos, simpatizantes e familiares das dezenas de milhar de mortos presos, interrogados, torturados e, por fim, executados sem julgamento».

MiguelBrunoDuarte («O "Gulag Angolano"»).


«A 5 de Dezembro de 2009, uma patrulha de soldados das Forças Armadas Angolanas (FAA) enterrou 45 garimpeiros vivos que se encontravam num túnel a trabalhar, em Cavuba, na fronteira entre a comuna do Luremo, 30 quilómetros a norte de Cafunfo, e o município de Xá-Muteba.

Linda Moisés da Rosa afirma que "os soldados avisaram o Soba Ngana Katende, do Bairro Cavuba" para que este ordenasse a retirada imediata dos garimpeiros da área, sob pena de morte.

"O meu filho Kito Eduardo António [primogénito] estava lá e avisou o irmão a retirar-se. O Pereira disse que não, porque tinha recolhido cascalho e tinha antes de o lavar. Os soldados chegaram com barra minas, arrancaram os paus que reforçavam a cobertura do buraco [escavado em forma de túnel] e fizeram-no desabar. Estavam lá 45 garimpeiros. [Os soldados] foram-se embora", explica a camponesa.







Ver aqui


Segundo Linda Moisés da Rosa, "morreram ao todo 45 garimpeiros. As pessoas não tinham coragem de retirar os cadáveres. O Kito recuperou o corpo do irmão, do Marco João, que é aqui do bairro da Antena, onde vive a mãe; e de um congolês chamado Karinike, seu amigo".

"Eu, pessoalmente, a mãe do Marco e muita gente do Luremo, onde muitas mães perderam os filhos também, fomos à polícia. Estes mandaram-nos ir ter com as FAA. Os militares correram connosco, com as armas, na unidade ao lado do Hospital de Cafunfo", afirma a mãe.

Em Março de 2010, durante uma das visitas de pesquisa ao Cuango, gravei a conversa que tive com Linda Moisés da Rosa, em companhia do editor do Wall Street Journal, Michael Allen.

No regresso a Luanda, dirigi-me ao Estado-Maior General das FAA, com o propósito de dar a conhecer a gravidade dos abusos do exército no Cuango às chefias militares. A secretaria do Estado-Maior General das FAA encaminhou-me para a Direcção de Educação Patriótica, do outro lado da rua, onde tive a oportunidade de escutar, com os membros do secretariado da referida direcção, o depoimento de Linda Moisés da Rosa. Estes manifestaram horror perante o que ouviram e tomaram nota dos meus contactos para informação à sua chefia. E eu mais não soube das diligências internas.

A 3 de Abril de 2010, o Semanário Angolense revelou o conteúdo do depoimento de Linda Moisés da Rosa, enquanto as FAA ignoraram o caso. O mesmo aconteceu quando, a 19 de Junho de 2010, o Wall Street Journal publicou uma longa reportagem - "Diamantes Ressurgem em Angola" -, fazendo referência aos 45 garimpeiros enterrados vivos pelas FAA. O exército nem sequer respondeu às solicitações para comentar sobre o assunto.

Por sua vez, o secretário de Estado dos Direitos Humanos, general António Bento Bembe, disse ao jornalista americano: "Sei que muitos desses casos acontecem, e sei de muitos outros sobre os quais [o jornalista] ainda não ouviu falar".

Apesar da sua disponibilidade para falar, a posição do secretário de Estado dos Direitos Humanos é controversa. Contra o general Bento Bembe pende um mandado internacional de captura por suspeita de terrorismo. Em 2005, os Estados Unidos da América solicitaram a intervenção da Interpol para a captura do então comandante das forças separatistas da FLEC - Renovada, pelo sequestro de um cidadão americano em 1990, em Cabinda. [Uma fonte de informação norte-americana reconheceu que o mandado de captura, solicitado pelo seu país à Interpol, se mantém em vigor. Admitiu, no entanto, que na manutenção das boas relações bilaterais entre ambos os estados, a administração Obama prefere guardar silêncio sobre o caso].

A manutenção do general no cargo revela o nível de arrogância e a falta de seriedade com que o executivo desqualifica o respeito pelos direitos humanos. A mesma atitude se aplica ao diálogo com a comunidade internacional sobre a questão.

E é este o general que serve de interlocutor principal do executivo junto da comunidade internacional, na abordagem dos direitos humanos.

Por dever de ofício, contactei algumas vezes o porta-voz do Governo Provincial da Lunda-Norte, António Mussumari, para uma entrevista com o governador. Pretendia obter a versão oficial sobre os casos ora tratados. Apesar da simpatia do interlocutor, não houve qualquer resposta oficial aos pedidos.

O MPLA, na pessoa do seu secretário do Bureau Político para a Informação, Rui Falcão Pinto de Andrade, acedeu ao pedido de audiência, a 11 de Fevereiro de 2011. O também deputado tomou nota da narração sobre o estado actual dos direitos humanos no Cuango e dignou-se a consultar a sua direcção para eventuais medidas a tomar. Para suporte, o deputado recebeu, via e-mail, a 14 de Fevereiro de 2011, a narração de grande parte dos casos imputados às FAA. Não mais respondeu.

O massacre cometido pelas FAA, ao qual se aditam mais 54 casos, devidamente identificados e incluídos no presente relatório, pela sua escala ultrapassam a medida jurídica. A Lei dos Crimes Militares (Lei n.º 4/94 de 28 de Janeiro) proíbe o militar de realizar actos de violência contra cidadãos indefesos, mesmo em tempo de guerra e no decurso de acções combativas (Art.º 47.º).







Em suma, a necessidade de se combater o garimpo ilegal e de regular a actividade mineira de exploração artesanal em momento algum confere ao exército o poder de assassinar cidadãos indefesos e pacíficos. Tal foi o que aconteceu no caso dos garimpeiros enterrados vivos.

A Constituição actual, por sua vez, responsabiliza o Estado (Art.º 75.º. I.º) em actos como o acima descrito, nos seguintes termos:

"O Estado e outras pessoas colectivas públicas são solidária e civilmente responsáveis por acções e omissões praticadas pelos seus orgãos, respectivos titulares, agentes e funcionários, no exercício das funções legislativa, jurisdicional e administrativa, ou por causa delas, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular destes ou para terceiros".

Num artigo publicado meses antes do massacre, o juiz presidente do Supremo Tribunal Militar, general António dos Santos Neto, alude às virtudes da justiça militar em Angola:

"Para além de ser uma justiça eficiente, é também uma justiça preventiva, na justa medida que muitas vezes se antecipa ao crime, indo às unidades catalogadas com maior índice de criminalidade, para in loco, através de palestras, exemplos práticos, divulgação de leis e outras actividades de âmbito jurídico, criar nos efectivos militares a cultura de respeito às leis vigentes no país e, em particular, às leis militares e aos regulamentos em vigor das FAA para coesão combativa e defesa da Pátria".

Na realidade, a retórica do alto-magistrado da justiça militar, na região dos diamantes, é letra morta.

Uma das consequências imediatas sobre a imagem das FAA, no Cuango, tem sido a sua caracterização pejorativa por parte da juventude, que as considera como uma milícia, devido ao seu comportamento bárbaro e delinquente. Nos depoimentos registados, vários populares referem-se sempre aos soldados como sendo "milícias das FAA".


 Teleservice: morte à catanada

A 5 de Fevereiro de 2010, a camponesa Linda Moisés da Rosa perdeu o seu segundo filho, Kito Eduardo António, de 33 anos, morto à catanada por um guarda da Teleservice, em Cafunfo, sua terra natal.

A mãe explica o sucedido. Tendo notado a ausência do seu filho, ante o regresso dos seus colegas de garimpo, decidiu procurá-lo juntamente com outros membros da família, sem sucesso.

No dia seguinte, os colegas de Kito, identificados apenas como Russo, Fezadeiro e Smith, formavam um grupo de garimpo, "dirigiram-se ao bairro e contaram a verdade sobre a morte de Kito", afirma Linda Moisés da Rosa.

Segundo a camponesa, e de acordo com depoimentos das testemunhas oculares, os guardas da Teleservice enfureceram-se com Kito Eduardo António quando este revelou não ter dinheiro para lhes pagar o acesso à mina, insistindo em continuar a lavar o cascalho, para poder depois efectuar o pagamento. "Mataram-no com um golpe de catana na nuca, outro na testa e um terceiro no rosto, do lado direito, e atiraram o corpo ao Rio Cuango", revela a mãe. "Os [guardas da] Teleservice costumam receber dinheiro dos garimpeiros [...] e autorizam-nos a retirar o cascalho da lavaria", denuncia a entrevistada. Linda Moisés da Rosa lamenta: "O Kito não tinha o dinheiro. Pediu para lavar o cascalho e pagar depois. Por isso, mataram o miúdo".

A mãe acrescenta que, para comprarem o silêncio e a cumplicidade dos outros garimpeiros, os elementos da segurança da Teleservice "entregaram quatro baldes de cascalho aos rapazes [Russo, Fezadeiro e Smith]. Os guardas disseram-lhes que o cascalho servia de pagamento para não descobrirem a verdade".

Juntos, familiares de Kito e colegas dirigiram-se à lavaria do Dunge, na área do Pone. "Os rapazes [sobreviventes] vivem no Pone e acompanham-me até ao posto da Teleservice, na lavaria, onde o meu filho foi morto", diz a mãe. "Eles [guardas da Teleservice] perguntaram-me o que eu fazia aí. Eu expliquei que procurava o corpo do meu filho que eles mataram", afirma Linda Moisés da Rosa.

A camponesa relata que os guardas a convidaram a entrar no seu acampamento e com ela se reuniram no jango. Informaram-na de que estavam a cumprir ordens superiores e levaram-na até à zona da lavaria industrial onde os garimpeiros têm feito a recolha de cascalho.

"Eles [guardas da Teleservice] ligaram ao posto do Tximbulaji. O gerente deles ordenou que os seguranças me acompanhassem à beira do rio para procurar o corpo".








Vencidos pelo cansaço e pelo cair da noite, familiares e guardas regressaram ao jango depois de muita procura. Quando os guardas afirmaram terem cumprido com a parte que lhes cabia, Linda Moisés da Rosa resolveu permanecer no jango. "Eu disse que não sairia daí sem ver o corpo do meu filho. Então, o chefe autorizou a guarda a conceder-me cinco dias para localizar o corpo".

Segundo a camponesa, "no terceiro dia de buscas, os guardas disseram-me que estavam a cumprir ordens. Era uma missão mandada. Diziam 'se não matarmos, o governo vai dizer que combinamos com os garimpeiros para dividirmos o dinheiro'".

A camponesa afirma ter informado pessoalmente a Polícia do seu infortúnio. De seguida, soube que as autoridades já estavam a par do caso e que consideravam o seu filho e os outros garimpeiros como culpados pelas suas próprias mortes. Para além da Polícia, a mãe também contactou a administração local e diz que esta se manifestou incapaz de tomar quaisquer medidas "porque é uma missão mandada".

"Eu disse, está bem! Então assim o governo vai governar com quem, se está a matar os jovens?

Eles respondiam que o governo não conta connosco [Tchokwe]. 'Quando dizem o povo, vocês [Tchokwe] não estão incluídos, O governo não vos conta. O governo conta o povo de fora. Vocês [Tchokwe] não'.

Nós não sabemos agora o que somos. Nós nascemos aqui. O rio dos diamantes está aqui, na nossa terra, onde dei à luz o meu filho. O meu Kito bebia a água do Rio Cuango. Foi desta água que lhe dei banho.

Os estrangeiros estão a apoderar-se dos diamantes. Os nossos filhos não podem beneficiar dos diamantes, são mortos.

Os [guardas da] Teleservice disseram-me: 'O teu filho é um zé-ninguém'. Disseram que eu sou ninguém na sociedade e que o meu filho não faz falta em Angola".

A 4 de Março de 2011, a direcção-geral da Teleservice teve um encontro comigo. Houve discussão aberta e cordial sobre os direitos humanos, mas off the record, por solicitação da empresa. Finalmente, a meu pedido, no mesmo dia, Linda Moisés da Rosa pôde expor directamente a sua tragédia familiar a Valentim Muachaleca, director-geral da Teleservice. Este solicitou à camponesa que relatasse o sucedido por escrito e agendou novo encontro. Enviei-lhe por e-mail, a 8 de Março de 2011, o relato que redigi sobre o caso. No dia seguinte, Muachaleca conversou com Linda Moisés da Rosa. No mesmo e-mail, em prol da transparência e da resolução dos actos de violência, descrevi grande parte dos restantes casos. Não obtive retorno.

"Ele disse que os garimpeiros se mataram entre si e que a empresa dele não tinha nada a ver com o assunto", revela a mãe.

Para além de constituírem crimes violentos, os assassinatos como o de Kito Eduardo António não beneficiam em nenhuma medida a política de combate ao garimpo traçada pelo executivo. De forma clara, o caso ilustra, assim como os demais constantes no Capítulo 7, que os efectivos da Teleservice no Cuango controlam o acesso ao garimpo para benefício próprio. Recorrem à violência, em vários casos, para venderem o acesso a uma área de garimpo duas ou mais vezes, escorraçando os seus anteriores clientes, nos esquemas de corrupção, e substituindo-os por outros, mediante novos pagamentos.

Do ponto de vista legal, a Lei sobre as Empresas Privadas de Segurança (Lei n.º 19/92) proíbe-as de realizarem actos de justiça, como investigação ou instrução criminal de qualquer tipo (Art. 4.º, 1.º, a), assim como proíbe "a instalação de sistemas de segurança susceptíveis de fazer perigar directa ou indirectamente a vida ou a integridade física das pessoas" (Art. 4.º, 1.º, b). Por sua vez, de forma específica, a Lei sobre os Diamantes (Lei n.º 16/94 de 7 de Outubro) confere às concessionárias e empresas privadas de segurança ao seu serviço o dever de "prender preventivamente em flagrante delito os agentes dos crimes previstos na presente lei" (Art. 2.º, c), ou seja, os garimpeiros. A mesma lei determina que, imediatamente, "os bens apreendidos e as pessoas detidas devem ser entregues ao Ministério Público ou posto da Polícia Nacional que se encontrar mais próximo do local da detenção ou apreensão, nos termos e no prazo do Artigo 9.º da Lei n.º 18 - A/92, de 17 de Julho" (Art. 4.º). A Lei dos Diamantes realça ainda que "o pessoal das empresas especializadas de segurança deve reger-se pelo mais escrupuloso respeito pelos direitos legítimos dos cidadãos e as disposições legais em vigor" (Art. 26.º).


Os casos registados neste livro revelam, sem quaisquer dúvidas, que a Teleservice viola a legislação em vigor, pois não entrega os garimpeiros à Polícia Nacional, preferindo, com toda a impunidade, torturá-los, assassiná-los, colocando-se acima da lei. A Constituição proíbe a pena de morte (Art. 59.º), mas a Teleservice, com o maior à-vontade, sentencia, de forma arbitrária, garimpeiros à pena de morte e executa-os à catanada ou a tiro.


 O potencial de revolta

A situação prevalecente no Cuango tem revelado um sério potencial de conflito entre as comunidades locais, a administração do Estado, as empresas mineiras e as empresas privadas de segurança. Com frequência, a região tem sido palco de motins.

Como exemplo, a 2 de Outubro de 2008, guardas da empresa privada de segurança K&P torturaram até à morte o jovem Luciano Mauango Kandundu, 23 anos, natural de Malanje. Este saíra do banho, no Rio Kinzamba, e dirigia-se para casa quando foi apanhado, de surpresa, numa correria que os guardas empreendiam contra os aldeães do bairro de Muacassengo, na comuna do Luremo. Os guardas haviam torturado, no dia anterior, vários jovens do bairro que se dedicavam ao garimpo na área de Milo Senga. A comunidade decidiu protestar em peso contra a violência, dirigindo-se à zona onde se encontravam os guardas. Os guardas receberam-nos a tiro. Na caça aos manifestantes, detiveram Luciano Kandundu, que, inocente, caminhava à vontade.

Segundo Bartolomeu Kalandula, 27 anos, irmão da vítima, os guardas torturaram Luciano Kandundu com catanas e coronhadas de arma. A seguir, "despejaram-lhe um produto químico que lhe despelou o corpo todo. Ficou como se tivesse sido todo queimado", acrescenta o irmão. No uso da força, a K&P atingiu, com um tiro, o soba Bango-Cafuxi na perna direita.

Em reacção, a população dirigiu-se em massa à empresa Luminas, a contratante da K&P, para proceder à entrega do morto aos mandantes dos actos de violência.

As FAA e a Polícia Nacional foram chamadas a intervir para pôr termo à rebelião da comunidade do Luremo, às portas da empresa Luminas. Na berma da estrada, à entrada da vila do Luremo, a população colocou uma placa de ferro grande e improvisada, homenageando o jovem assassinado e a coragem da comunidade local: "SEJAM BEM-VINDOS À SEPULTURA DO HERÓI LUCIANO: 02-10-2008: DIA DA REVOLTA".

A 1 de Outubro do mesmo ano, na sede do Cuango, guardas da empresa privada de segurança Alfa-5 detiveram indiscriminadamente vários garimpeiros e camponeses que se encontravam nas suas lavras. No dia seguinte, a comunidade local montou barricadas na via para impedir a circulação de viaturas da Sociedade de Desenvolvimento Mineiro (SDM) e a sua contratada Alfa-5. Em resposta, no terceiro dia, as FAA, a Polícia Nacional e Alfa-5 dispararam contra os manifestantes, atingindo mortalmente os cidadãos Adriano Rafael Tchambunga e José Carlos. A camponesa Nelinha Já sofreu ferimentos graves, mas sobreviveu. Ao todo, a força conjunta deteve cerca de 200 cidadãos, na sua maioria adolescentes.

No mês anterior, durante uma semana, a contar de 6 de Setembro de 2008, a sede municipal do Cuango foi palco de uma intifada. De um lado, a comunidade do Bairro de Camarianga, armada com pedras, paus e garrafas, revoltou-se contra a destruição das suas lavras por parte da SDM. Os revoltosos montaram barricadas na via e impediram a circulação das viaturas do projecto mineiro e da Alfa-5. A empresa solicitou, de imediato, a intervenção conjunta do exército e da Polícia Nacional. As forças de defesa e segurança iniciaram um forte tiroteio contra os mais de cem jovens que se manifestavam.

Em reacção, a 8 de Setembro, os jovens de Luzamba decidiram manifestar a sua solidariedade aos concidadãos de Camarianga, juntando-se aos protestos.

Um agente da Polícia Nacional atingiu mortalmente o jovem António. Saíra do quintal para ver o que se passava, conforme depoimentos dos seus familiares. Enfurecidos, os manifestantes de Luzamba pegaram no corpo do jovem e dirigiram-se ao posto policial da localidade, invadindo-o. Os efectivos da Polícia Nacional fugiram em debandada do posto.

Situação similiar ocorreu em Maio de 2005. A população da sede municipal do Cuango montou barricadas na via entre a vila de Luzamba e o centro da administração municipal, para apedrejar as viaturas da SDM, como forma de protesto. A Alfa-5 atingira um garimpeiro a tiro. A SDM, contratante da Alfa-5, recusara-se a tratar da vítima na sua clínica, ante os clamores da população que acorrera à empresa transportando o ferido. [A informação consta de um relatório da Endiama, datado de 26 de Maio de 2005, assinado pelo então delegado na Lunda-Norte, José Pontes Ramos]. Um Relatório da Endiama, redigido na sua qualidade de sócia paritária da SDM, referiu, taxativamente, que "a situação foi normalizada com a pronta intervenção dos orgãos de defesa e segurança".


A pronta repressão tem sido a política do executivo no tratamento dos episódios de indignação colectiva das comunidades locais. Estas, de forma extraordinária, têm evitado o uso de armas nas suas acções de protesto.

O caso mais recente e exemplar do modo como as vítimas objectam ao uso de armas reporta-se ao dia 25 de Janeiro de 2011 e ocorreu na outra margem do rio, em Xá-Muteba. Cerca de cem grupos, congregando mais de 500 garimpeiros, pagaram, cada um, mil kwanzas aos agentes da Esquadra Policial do Yongo, na aldeia de Domingos Vaz, para trabalharem "à vontade" na área de Camussamba. Dois agentes policiais, identificados apenas pelos nomes próprios, Cândido e Leite, fizeram a recolha dos pagamentos às primeiras horas da manhã. Segundo testemunhos de vários garimpeiros, os agentes, por iniciativa própria, regressaram ao local, perto do meio-dia, para extorquirem mais dinheiro aos garimpeiros numa segunda ronda de cobranças e exigirem a partilha de cascalho.

Miguel André João, 38 anos, natural de Malanje, explica o sucedido:

"Eles [agentes policiais] vieram de motorizada Shineray azul até ao nosso txibulo [buraco de garimpo] [A Shineray é uma marca chinesa de motorizadas, que detém o monopólio de vendas na região]. Pararam a motorizada e o Cândido fez um disparo para o ar. Os garimpeiros espantaram-se com o acto, porque é o Cândido que efectua as cobranças. Ele mandou chamar quatro garimpeiros para recolherem o cascalho dos grupos que estavam a trabalhar. Os garimpeiros entenderam que os agentes se queriam apoderar do cascalho e todos retornaram ao seu trabalho.

O agente sentiu-se desautorizado e fez disparos contra os garimpeiros. Atingiu-me na coxa direita.

Os garimpeiros espancaram o agente autor dos disparos. O Leite fugiu. Os meus colegas apreenderam a motorizada, agora em minha posse, e a pistola, que entregaram à esquadra.

Nenhum agente tomou conta do caso. A esquadra tomou conhecimento do assunto mas não fez nada".

Kito da Silva Mutesa, 29 anos, natural do munícipio do Cuilo, também foi atingido pelo agente Cândido, nos testículos, tendo a bala perfurado a nádega. "Um dos garimpeiros pegou numa catana e atingiu a cabeça do Cândido", conta. Segundo fontes policiais, que preferiram o anonimato, o agente Cândido foi suturado com 32 pontos. "Fomos ao comando apresentar queixa e entregar a pistola. O comandante disse-nos que tínhamos de aguardar até sermos chamados. Até ao momento não fomos chamados", informa o garimpeiro, cuja ida pessoal à esquadra ocorreu após ter recebido tratamento médico em Malanje.

O clima de terror, violência e impunidade associado ao garimpo no Cuango dá origem, inevitavelmente, a episódios de rebelião por parte dos garimpeiros e aldeães. No geral, os protestos populares são inconsequentes, apesar de algumas vezes causarem reacções desproporcionadas por parte do regime, que, para o efeito, mobiliza meios de guerra».

Rafael Marques («Diamantes de Sangue. Corrupção e Tortura em Angola»).





25 de Abril de 1974: Apostasia e Traição na retaguarda


LUÍS SANCHES DE BAÊNA alistou-se na Armada em 1971 e, como oficial fuzileiro integrou um destacamento de fuzileiros especiais na guerra da Guiné em 1972 e 1974. Comandou diversas unidades de fuzileiros e fez parte dos gabinetes do general Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e do almirante Chefe do Estado-Maior da Armada. Chefiou ainda o Gabinete de Heráldica da Marinha. Reformou-se em 2010 no posto de capitão-de-fragata. É autor do livro Fuzileiros - Factos e Feitos na Guerra de África 1961/1974, (2006) co-autor e coordenador da obra Escola de Fuzileiros - 50 anos (2011) e co-autor do livro Alpoim Calvão - Honra e Dever (2012).


As acções de contra-guerrilha que durante 13 anos Portugal sustentou em África, nas então Províncias Ultramarinas, conheceram um fim abrupto em 1974 quando o golpe revolucionário de 25 de Abril, servindo objectivos meramente políticos, pôs fim à ordem vigente sem sequer se preocupar com o destino das populações que se abrigavam à sombra da bandeira portuguesa.

As operações militares levadas a cabo a partir de 1961 no ex-Ultramar, a milhares de quilómetros da Mãe-Pátria e dispersas em áreas imensas por três frentes, representaram um esforço que não tem paralelo na história militar contemporânea de qualquer estado europeu.















É pois pertinente perguntar se, como apregoam alguns esclarecidos profetas da desgraça, sob o ponto de vista militar, aquela era uma guerra condenada ao fracasso.

Os três Teatros de Operação onde se desenvolveu o esforço militar português eram totalmente distintos. Dos rios e tarrafo da Guiné às matas densas e chanas de Angola ou aos morros de Moçambique, vivia-se a guerra em cenários completamente diferentes. Era pois imperioso utilizar tácticas e estratégias diferenciadas para cada caso.

Para além disso, a distância de onde decorriam as operações militares até às fronteiras dos países vizinhos que apoiavam a guerrilha, era fundamental para condicionar as acções.

Comecemos pois por considerar Angola, a primeira Província a sofrer a acção do inimigo.

Quando em 1960 é proclamada a independência do Congo, torna-se desde logo evidente que a onda de nacionalismos que varria toda a África, sem a barreira do Congo Belga a contê-la, rapidamente atingiria Angola. Apesar disso, a Província encontrava-se mal guarnecida, contando apenas com 9.600 homens (dos quais cinco companhias de soldados nativos) para defender um território muitas vezes maior que a Metrópole.

É com esses escassos meios que, logo no início de 1961, Portugal susteve e defendeu as populações civis que em pânico fugiam frente à barbaridade da avassaladora horda de terrorismo que, atingindo o norte de Angola, chegou às portas de Luanda.

À data a Marinha apenas dispunha em Angola de uma fragata, dois patrulhas e um navio hidrográfico e os homens das suas guarnições, armados de espingarda Mauser, capacetes de aço na cabeça e grevas nas pernas, mal equipados para actuar em terra.

No final do ano de 1961 a Marinha tinha lançado em Angola um Destacamento de Fuzileiros Especiais, unidade exclusivamente vocacionada para combate e pouco depois uma companhia de Fuzileiros Navais, utilizada em patrulhamentos e acções de segurança e defesa.

Foi então traçado o Plano de Operações "Ferrolho", consistindo num dispositivo contando com diversas lanchas e postos montados ao longo da frente fluvial do rio Zaire, guarnecidos por Destacamentos de Fuzileiros, com o objectivo de tornar estanque a passagem de guerrilheiros entre a margem portuguesa e a congolesa do rio.

Até 1964 a Marinha foi aumentando as suas unidades de fuzileiros no território, chegando a contar com quatro Destacamentos e uma Companhia. A situação mantinha-se controlada mas o conflito decrescia de intensidade pelo que foi decidido reduzirem-se os Destacamentos, por desnecessários tantos efectivos mais úteis noutras Províncias.

Angola passou a dispor somente de dois Destacamentos de Fuzileiros, aumentando por sua vez as Companhias para quatro. E isso fazia todo o sentido pois mais que acções de guerra era necessário afirmar a presença de Portugal no terreno.

Quando em 1964 a Zâmbia alcança a independência passa a dar abrigo e apoio não activo aos movimentos que combatiam Portugal e sentiam dificuldades a Norte abrindo assim uma nova Frente a Leste. O MPLA vai instalar as suas bases na Zâmbia, enquanto a UNITA prefere fazê-lo no interior de Angola.

O MPLA abre então em 1968 corredores que permitem a sua infiltração em território nacional, naquela que chamou "Rota Agostinho Neto". Porém, desavenças entre os dois Movimentos levam-nos a frequentes confrontos, situação habilmente aproveitada pelas autoridades portuguesas para, através de um discreto entendimento com a UNITA, utilizar as potencialidades do Movimento a seu favor.

A Marinha desloca então os seus dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais para o saliente do Cazombo onde seriam de maior utilidade para se oporem aos desígnios do inimigo, enquanto confia às Companhias a patrulha da Frente fluvial do Zaire.



Constrói também no Sudeste de Angola, nas chamadas "Terras do Fim do Mundo" um aquartelamento designado Vila Nova da Armada, onde instala uma Companhia e faz transportar para os rios do Leste e Sudeste várias lanchas de desembarque que, para isso, têm de percorrer milhares de quilómetros sobre comboios ou camiões.

Algumas das lanchas apenas podiam operar durante poucos meses do ano, os restantes, por o rio não levar água suficiente para navegar tinham de varar em terra. Aquele não era na verdade o cenário propício à intervenção de fuzileiros, pois o meio aquático onde estavam vocacionados para operar encontrava-se muitas das vezes distante das áreas de operações.

Mas a guerra pouco se fazia já sentir, apenas raras emboscadas, uma ou outra mina semeada nas picadas, faziam sentir que a tranquilidade não era total, chegando a haver Destacamentos de Fuzileiros que chegaram a estar muitos meses sem ouvir um único tiro.

De resto, as operações militares não passavam de rotineiros patrulhamentos, meras acções de polícia, como afirmação de que naquela terra quem mandava eram os portugueses.

Nos 13 anos de contra-insurreição os fuzileiros sofreram apenas 43 mortos dos quais somente 12 em combate. E nos três últimos anos do conflito apenas cinco mortos foram registados nas forças especiais da Marinha: três numa emboscada em local insuspeito por nunca se ter registado qualquer acção inimiga, um por efeito de mina e outro no ataque a uma lancha.

Em Luanda, apenas os numerosos militares que circulavam nas ruas faziam lembrar a tragédia que 13 anos antes chegara às portas da capital. As áreas de conflito - se assim lhes podemos chamar - estavam a milhares de quilómetros de distância.

O ambiente que se vivia era de paz total. As escolas funcionavam normalmente, com brancos, pretos e mestiços sentados lado a lado nos mesmos bancos; os hospitais eram exemplares na costa ocidental africana, os restaurantes e os cinemas sempre cheios, as praias pejadas de gente, o futebol e as touradas levavam as gentes aos campos e praças, viajava-se de automóvel, sem qualquer escolta, de Norte a Sul da Província.

A soberania portuguesa era inquestionável. Quando ao pôr-do-sol era arriada a Bandeira Nacional o trânsito parava e todos os condutores e passageiros das viaturas civis ou militares, se apeavam e respeitosamente perfilados aguardavam o final da breve cerimónia para seguir viagem.

O ritmo de construção era frenético com novas estradas a rasgarem a Província, os portos, aeroportos e caminhos-de-ferro com um vigor extraordinário, a indústria em franco crescimento, o comércio pujante, a agricultura com um desenvolvimento extraordinário, as minas em plena extracção e o petróleo começava a ser explorado nas plataformas marítimas. Nada fazia lembrar o estado de guerra. Porque na verdade, já não havia guerra.

Nas escolas militares ensinava-se que uma guerra de guerrilha ou contra-guerrilha nunca poderia ser vencida, destinava-se apenas a ganhar tempo para os políticos resolverem a situação.

Mas em Angola não foi assim. A guerra imposta pelos ventos da história inspirados por ideologias marxistas e apoiados pelos países do Leste europeu e asiáticos foi ganha por Portugal. Sem qualquer sombra de dúvida.

Já na grande Província Portuguesa do Índico a situação era diferente. Era a segunda maior província, mas foi a última onde a subversão assentou arraiais.

Em 1964 apenas uma companhia de fuzileiros navais se encontrava em Moçambique quando nos meses de Agosto e Setembro e se registaram as primeiras acções violentas inimigas a Norte, nos distritos de Cabo Delgado e do Niassa. A Marinha reage de imediato e em Novembro envia um Destacamento de Fuzileiros Especiais.









As acções são levadas a cabo inicialmente naqueles dois distritos, com os fuzileiros instalados no Lago Niassa, nas bases de Metangula e no Cobué.

Como o Lago é quase um mar interior, a Marinha transporta diversas lanchas e pontões desde a costa criando a Esquadrilha de Lanchas do Niassa.

Face à necessidade em efectivos, nos dois anos que se seguiram o Teatro de Operações de Moçambique é reforçado com mais meios da Marinha chegando os fuzileiros a contar com quatro Destacamentos, e duas Companhias.

O inimigo evitava o contacto directo, sendo necessário persegui-lo através de terrenos muito ásperos, morros e florestas. No entanto nunca deixava de estar presente, manifestando-se principalmente através de minas e armadilhas abundantemente espalhadas por trilhos e picadas.

O apoio que o inimigo recebia dos países vizinhos era-lhe vital, mas a longa distância a que se encontrava da fronteira obrigava-o a estabelecer grandes bases em Território Nacional, sempre alvos privilegiados para as forças portuguesas.

Apenas o Malawi, fronteiro às costas portuguesas do Lago Niassa se mostrava benévolo a Portugal, actuando no entanto com o cuidado e a discrição que a política africana impunha.

O semi-abandono a que estavam votadas as populações nas áreas em conflito não eram favoráveis à boa vontade dos indígenas para com as autoridades portuguesas.

A política dos reordenamentos que levou à retirada de populações inteiras dos locais onde viviam, subtraindo-as à influência do inimigo, para as instalar em aldeamentos controlados pelas autoridades longe das suas regiões de origem e sem grandes meios de subsistência, também não ajudava.

Era necessário haver uma política de desenvolvimento que cativasse para o lado português as populações do mato.

Lourenço Marques (actual Maputo) era a cidade portuguesa mais britânica, face à influência que se fazia sentir da vizinha África do Sul. A vida na cidade decorria tranquilamente com os laurentinos a frequentarem os clubes, os hotéis, esplanadas e praias. Só a constante presença de fardas militares por todo o lado faziam lembrar que a milhares de quilómetros de distância havia um conflito na profundeza das matas. E os tranquilos habitantes não gostavam de ser confrontados com essa incómoda realidade, encarando os militares com indisfarçável desagrado.

Em 1970 iniciava-se a construção da Barragem de Cabora-Bassa e, prevendo-se o aumento da actividade da Frelimo naquele sector, com a abertura de uma nova frente, um dos destacamentos de fuzileiros do Niassa é deslocado para Tete.

Em 1973 o dispositivo dos fuzileiros na Província é reduzido de um Destacamento. Quando rebenta o 25 de Abril na Metrópole, o inimigo em Moçambique pouco se manifestava com confrontos directos; os números provam-no pois desde 1970, nos últimos anos de guerra, os destacamentos de fuzileiros especiais apenas tinham sofrido quatro mortos em combate!

A guerra fora interrompida pela revolução. Militarmente tinha sido vencida? Não. Estava perdida? Longe disso. Mas estava controlada. E mesmo com os escassos recursos de que Portugal dispunha era uma situação que se poderia manter indefinidamente. Com tempo, com o investimento no desenvolvimento do bem-estar das populações não resta qualquer dúvida que a vitória acabaria por sorrir a Portugal.

Na Guerra de África era na Guiné que a situação se apresentava mais complicada.

No final de 1962 tiveram lugar as primeiras manifestações de uma insurreição latente e no ano seguinte já se encontravam no Teatro de Operações quatro Destacamentos de Fuzileiros Especiais e uma companhia de Fuzileiros Navais.

Geograficamente o território era uma intrincada rede de rios, lodo e matas densas, insalubre para os europeus e difícil de percorrer. Mas as cartas topográficas de uma precisão extraordinária, e o minucioso Guia de Navegação para lanchas permitiam aos marinheiros navegar em qualquer parte, em terra ou nos rios, sem problema.








Por sua vez a exiguidade do território fazia com que qualquer ponto da Guiné se encontrasse a curta distância dos países vizinhos onde os guerrilheiros encontravam abrigo: a Guiné Conacry a Leste e Sul que os apoiava francamente e o Senegal a Norte, onde eram tacitamente aceites.

Sob a liderança forte do Engenheiro Amílcar Cabral, personalidade internacionalmente muito conceituada entre os países afro-asiáticos e muitos países e organizações ocidentais, os aguerridos guerrilheiros do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) eram adversários temíveis.

Treinados na União Soviética e nos Países de Leste, perfilhando a ideologia marxista, fortemente armados pelos países comunistas, os guerrilheiros do PAIGC demonstravam grande agressividade. Não evitavam o confronto frontal, recorriam a flagelações constantes sobre os aquartelamentos e proclamavam a posse de"Regiões Libertadas" onde os "colonialistas" não se atreviam a ir.

Recorrendo a meios de propaganda eficazes como a rádio, o PAIGC apregoava as suas vitórias, não perdendo ocasião para fazer ouvir as vozes dos desertores nem críticas abertas ao "colonialismo" com que tentavam fazer frente à acção psicológica do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné.

A par de numerosas vitórias, as Forças Armadas Portuguesas sofreram alguns revezes: em 1964 quando quatro Destacamentos de Fuzileiros foram por lapso metralhados por uma aeronave T6 da Força Aérea; em 1969 durante a retirada em boa ordem do aquartelamento de Madina do Boé, por uma decisão estratégica que visava transferir aqueles efectivos para posição mais favorável, que se saldou num desastre por se ter virado a jangada que servia para transpor o rio Corubal; a desorientação inicial quando em 1973 surge uma nova arma nos céus da Guiné, o míssil terra-ar "Strella".

É posto em causa o domínio do ar, mas rapidamente a Força Aérea encontra soluções para tornear o problema; nesse mesmo ano o vergonhoso abandono do aquartelamento de Guileje a sul, na fronteira com a Guiné Conacry, por uma companhia do Exército que em pânico, não resiste às fortes flagelações a que fora sujeita, apesar de dispor dos abrigos mais fortes de toda a Guiné.

Por outro lado, vão-se somando os sucessos nas operações contra-guerrilha como na ocupação temporária da ilha do Como em 1964 numa operação conjunta das Forças Armadas, o bem sucedido assalto a Conacry que levou à libertação de 26 prisioneiros portugueses das prisões do PAIGC e à destruição da sua marinha, em 1970, a corajosa defesa de Guidaje, cercada pelo inimigo na fronteira do Senegal (que se deu quase em simultâneo com a vergonha de Guileje).

Com o assassinato de Amílcar Cabral em Janeiro de 1973, perpetrado por uma facção do PAIGC, o Partido torna-se mais ambicioso e passa à ofensiva com os mísseis terra-ar e os cercos e flagelações a Guidaje e Guileje. Alguma perplexidade inicial das Forças Armadas da Guiné é rapidamente ultrapassada. A moral Portuguesa, abalada pelos desaires, reage às adversidades e a guerra continua com o mesmo entusiasmo que até então.

O cansaço de muitos anos de guerra fazia-se já sentir na Marinha. Os fuzileiros contavam com praças nos quadros permanentes, muitas com várias comissões em teatros de guerra; havia sargentos que somavam 4 e 5 comissões. No entanto, iam sendo encontradas soluções ajustadas para minimizar o problema da escassez de efectivos.

Em nenhuma guerra moderna houvera tão poucos desertores como naquela onde Portugal se vira envolvido, nem tantos mancebos que se encontravam emigrados no estrangeiro e, chegada a altura se apresentavam para cumprir o seu dever, apesar do trabalho de desgaste entre a população que o Partido Comunista e outros desenvolviam na retaguarda.

Por outro lado, Portugal procedia paulatinamente à africanização da guerra: até 1970 operavam na Guiné 4 Destacamentos de Fuzileiros Especiais metropolitanos, mas naquele ano foi constituído o primeiro de fuzileiros africanos; em 1971 é formado o segundo e em 1974 o terceiro destacamento africano que vai substituir um metropolitano, passando a estar no terreno três africanos e três metropolitanos.

Como o Exército já tinha diversas companhias de comandos e companhias de caçadores africanos constituídas, e muitas tabancas se encontravam em auto-defesa contando com milícias armadas por Portugal, era evidente a africanização da guerra na Guiné.




No campo inimigo a ofensiva não conseguia esconder a desmoralização dos guerrilheiros. O desgaste de tantos anos de luta era evidente, o ódio aos cabo-verdianos que ocupavam lugares proeminentes no aparelho do partido tornava-se insuportável. No Senegal, em 1973, havia discretas negociações para os guerrilheiros deporem as armas e integrarem o Exército Português, como testemunharia o coronel Vaz Antunes anos decorridos. Talvez isso viesse a suceder se não se desse a revolução do 25 de Abril.

Cabe então agora aqui a pergunta, estava a guerra perdida? A resposta parece-me simples. Não, de modo algum. Não fora ainda ganha no terreno, onde poderia manter-se indefinidamente até à deposição das armas por um inimigo desmoralizado e cansado por tantos anos de combates. A Guerra não foi perdida na mata, militarmente de armas na mão, mas a vitória foi-nos assim atraiçoada na retaguarda (in Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Guerra d'África 1961-1974. Estava a Guerra Perdida?, Fronteira do Caos Editores, 2015, pp. 183-192. O título é de nossa autoria).


A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão» (i)

$
0
0
Escrito por João M. da Costa Figueira









«(...) manipulando despudoradamente a opinião pública, [os mentores da descolonização de Angola] conseguiram cativá-la para as suas teses e atravessaram incólumes este quarto de século.

Naquilo que me diz respeito, afirmo que a descolonização, tal como se cumpriu, será considerada como o episódio mais catastrófico, mais desprezível e mais estúpido de toda a História de Portugal; naquilo que me diz respeito, e que é Angola, sei que é meu dever contribuir para a formulação do juízo da História.

Este livro será o meu contributo».

General Silva Cardoso («Angola, Anatomia de uma Tragédia», 2000).


«Sofro, penosa e angustiadamente, de dois grandes arrependimentos. À sociedade confesso que, mesmo expulsando os meus arrependimentos mudos, venho pagando bem caro - eu e os milhares de Refugiados de Angola - bem caros, sim, esses arrependimentos. O primeiro, o de não ter permitido o rapto do general Silvino Silvério Marques! Tudo estava planejado com determinação e firmeza, para realizar no Aeroporto, na noite do seu inopinado regresso a Lisboa!

O segundo, não ter consentido no assassínio de Rosa Coutinho, à sua chegada a Luanda! Esta confissão deve encher de raiva o almirante Leonel Cardoso, que tanto sonhava com a tal lista (de que fazia parte) dos assassínios a cometer pelos homens da FRA... A pretensa matança dos confessos traidores e carrascos.

A sua importância na época era bem passível de desprezo e até de escárneo. Mais tarde, sim, quando Alto-Comissário, quando como "vira-latas" meteu o rabo entre as pernas e deixou a população de Angola à mercê de uma minoria radical, o MPLA! O erro de uns foi o êxito de outros. Aqui reproduzo as afirmações proferidas pelo General Silva Cardoso, Alto-Comissário Português em Angola, e dirigida aos "Refugiados". Essa figura carismática diria: "Trago ainda nos ouvidos os discursos demagógicos em que sistematicamente se afirma que tudo se faz pelo povo e para o povo, quando no fim, é o povo que sofre, é o povo que morre. Isto tudo devido a ambições desmedidas, a ambições que não conhecem meios e que sacrificam tudo para atingir os fins (...). Missão (como Alto-Comissário) na qual empenhei todos os esforços, todas as minhas capacidades, missão que causou grandes desilusões. Já não acredito nos homens, principalmente, nos políticos e estou cansado da mentira, das falsas promessas e das atitudes de fachada. Venho cansado da miséria, de ver a miséria, de ver o ódio, de ver o desespero. Venho cansado do egoísmo, da crueldade e da ambição desmedida (...) Quero dirigir as últimas palavras àqueles milhares, milhares de portugueses europeus brancos escorraçados daquela terra que já consideravam como a sua nova pátria e que têm perdido tudo e deixado tudo se vieram refugiar em Portugal. Muitos já vieram, muitos outros infelizmente hão-de vir, ou terão mesmo que vir. Para eles o meu carinho e o desejo de um voto sincero de melhores dias e mais sorte. Nunca é tarde para se recomeçar. Tenham fé nos destinos do nosso País".

O general Silva Cardoso foi vítima do Governo Português, então enfeudado à minoria, e que permitiu, alarvemente, que fosse criado um clima de terror, quando se proclamava e pedia, na praça pública, proselitismo democrático para ajudar o nascimento dum novo País. Então já circulavam por Angola a dúvida e a angústia, o pânico gerado pelos antagonismos do campo político e propagandeava-se um receituário de astúcias que ofuscou uma camada social, uma classe dominante que passou de entusiasta e temerosa, de acomodatícia e incrédula a confiante. Mas, como S. João Baptista, os que amavam Angola e a queriam defender de situações danosas, continuavam a clamar no deserto.

Silva Cardoso, para além de ter feito parte da Junta Governativa de Angola, como Rosa Coutinho, período em que o terramoto político tudo subverteu e levou à vitória da demagogia sobre a colectividade e lançou Angola e a sua população no vórtice da mistificação, da mentira, da violência, da indisciplina, da miséria, da anarquia, da dor e da desesperança, prometeu agir contra os males que proliferavam, mas não concretizou as suas vãs e piedosas ameaças. Homens que aparecem e a quem Deus entregou o testemunho para redimir a Pátria em todas as ocasiões marcantes da sua História e se demitem na hora própria. Nesta altura dependia muito dos próprios "brancos" o saber dosear a paciência e a prudência, as suas virtudes, as suas palavras e acções e até as suas esperanças! Nem sequer para o "Refugiado", Portugal foi o seu oásis! Em vez de Amor receberam ódios. Em vez de compreensão, desprezo! Em vez de auxílio, criaram-lhe dificuldades. Em vez de palavras amigas, apodos ignominiosos. Marcaram-no com os ferretes mais odiosos e aviltantes. Tornaram-no réu de todos os crimes. Marginalizaram-no. Tornaram-no pária! Como vinha pobre, insultaram-no.

Irracionalmente, confundiram, a seu gosto, o "colono" com o "colonialista". Trataram-no como mandrião e explorador. Numa visão política mesquinha não aproveitaram as suas virtudes. Trataram-no como "manada" que tivesse entrado na sua quinta. Tornaram-no no sinistro "bode expiatório" de todas as culpas dos seus erros, da sua inconsciência e da sua ruína. O Refugiado ficou em Portugal, "como a grama dos jardins: tem direito a viver (?), mas sem direito de crescer". E continua como "intocável" esperando que Deus lhe cure as chagas!


(...) SILENCIADOS A TIRO...

18 de Maio de 1976, 2 horas da manhã.

Um mar de refugiados, milhares, dirigiam-se ordenadamente, pelas ruas de Lisboa, do Pavilhão dos Desportos, no Parque Eduardo VII, onde tinham assistido a um comício do CSI, para a estação do Cais do Sodré. Regressavam aos hotéis fixados para a sua residência, na linha do Estoril.















Ao chegarem à estação, os refugiados depararam com as entradas obstruídas por bancos. Ainda antes de penetrarem na gare, agentes da PSP foram ao seu encontro, falando-lhes rispidamente e agredindo os da frente, entre os quais algumas senhoras.

No conflito que se gerou, os agentes abriram fogo sobre a multidão. Ao mesmo tempo, forças de choque da PSP, "emboscadas" atrás dos comboios, carregaram sobre toda aquela gente, perseguindo grupos em fuga até ao largo da Assembleia da República. Ali estavam, há dias, outros refugiados, que protestavam contra as sub-condições de vida em que o Governo os mantinha.

Vejamos o relatório apresentado no dia seguinte e assinado por 87 testemunhas:


"Ao Exmo. Presidente do CSI

A IOR (Inter Organização de Refugiados) informa V. Exa. que esta madrugada, por cerca das 2.30 horas apareceram em S. Bento um grupo de 30 indivíduos, refugiados, fugidos à tristemente célebre polícia de choque, vindos do Cais do Sodré, vindo entre eles um indivíduo (refugiado) ferido a tiro numa mão e numa perna.

Minutos depois fez a sua apoteótica aparição a tristemente polícia de choque, munida de escudo e todo o aparato bélico, subindo as escadas, partindo os primeiros inimigos (bandeiras e dísticos) e enfrentando o "muito bem armado" inimigo (mulheres e crianças refugiadas que residem na escadaria de S. Bento, entre elas senhoras grávidas).

Depois de uma 'heróica' actuação esta polícia findou a sua batalha com ultimatos para abandonar S. Bento, dando-lhes escassos minutos, ao que o "exército" feminino e infantil de refugiados se recusaram a cumprir, dizendo "Ninguém arreda pé".

Esta célebre polícia, heroicamente, enfrentou a nossa Bandeira, a Bandeira Nacional, partindo a sua improvisada haste e espezinhando-A. Espezinharam o símbolo da nossa Pátria, o símbolo que nos norteia, o Bandeira Verde-Rubra, a Bandeira Nacional. Além de a espezinhar levaram-na consigo, talvez sob prisão, como refém".


IOR, em S. Bento, aos 19 de Maio de 1976

A Comissão 

(87 assinaturas).


Dos incidentes resultaram bastantes feridos, parte deles identificados, como João Manuel Nunes dos Santos, de 22 anos, natural de Nova Lisboa, atingido numa das mãos e numa das pernas. Doutros não se sabe o nome, porque foram transportados em carros da Polícia para local desconhecido. Dezenas de testemunhas assinaram depoimentos.

O relatos da Imprensa foram, na maior parte, falseados pelas informações governamentais.

Os antecedentes:

O CSI vinha realizando comícios e conferências de Imprensa, no sentido de unir os refugiados e fazê-los lutar pelos seus direitos. Para o Governo, bem como para certos Partidos e personalidades, o CSI tornava-se incómodo.

Muitos dos refugiados presentes, naquela noite, no Pavilhão dos Desportos, residiam - como disse - na zona do Estoril e de Cascais. Não tendo dinheiro para o transporte, invocaram a sua "qualidade" de refugiados e a sua carência de bens, perante os revisores de um comboio da companhia nacionalizada "Estoril-Sol", insistindo em viajar, gratuitamente, para Lisboa.

O comboio parou na Estação da Parede, e os revisores contactaram a direcção da Companhia, pedindo instruções quanto à atitude que deveriam tomar. Três quartos de hora passados, o comboio seguiu, normalmente, até Lisboa, onde os refugiados desembarcaram e, como vulgares transeuntes, foram para o Pavilhão dos Desportos. Saliente-se, entretanto, que, se muitos refugiados viajaram gratuitamente, muitos outros tinham "passes" ou bilhetes.

Findo o comício, ao pretenderem voltar aos hotéis, deram-se os injustificáveis incidentes já descritos.

O CSI não apresentou queixa: investigações posteriores indicaram por detrás dos acontecimentos, pressões e chantagem sobre militares, exercidas por certas forças políticas, receosas dos Centros e dos refugiados. E os termos das notícias nos jornais e na Rádio reflectem, com límpida clareza, ter havido o objectivo de, a todo o custo, fomentar, na opinião pública, animosidade contra os refugiados, equiparando-os a delinquentes e arruaceiros, marginalizando-os e incitando a PSP a tratá-los como criminosos e inimigos da sociedade».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).







Ver aqui e aqui



«O secretário-geral do PS, António Costa, disse este sábado, em Torres Novas, que o país "precisa de imigração" e de "atrair talento" para resolver o seu problema demográfico».

DN/Lusa, 23 de Abril de 2018


«O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou hoje que a verdadeira Europa, na qual ainda acredita, é a que acolhe os refugiados, honrando os valores com que foi fundada, e não a dos populistas.

(...) Depois, falando em inglês, defendeu que, "se a Europa não está à altura deste desafio, então deixou de ser a Europa", porque "a Europa foi feita com os valores da dignidade humana, da justiça social, da paz".

"Há populistas que dizem o oposto, mas estão errados. A Europa deles não é a nossa Europa, não é a Europa. A verdadeira Europa é a vossa Europa, é a nossa Europa. Vale a pena lutar por essa Europa. Eu ainda acredito nos valores dessa Europa e acreditarei sempre. Essa Europa que vale a pena", afirmou».

Lusa, 14 de Março 2018


«Outros termos abundam igualmente na gíria globalista usada e abusada pela Organização das Nações Unidas, sobretudo quando a referência aos“países em vias de desenvolvimento” quer apenas dizer os regimes autocráticos do terceiro mundo, ou quando a “governança global” significa apenas o “governo mundial”, ou mesmo quando o “desenvolvimento sustentável” equivale tão-só ao “controlo da população mundial”. Por outro lado, não deixa de ser altamente significativo o facto de António Guterres, o actual secretário-geral das Nações Unidas, ter andado a apelar, num tom marcadamente extremista, socialista e globalista, para a “liderança multilateral” ou para a “acção colectiva” que, na gíria da actual globocracia, subentende o“controlo governamental dirigido pela ONU”, ou ainda o “conjunto de organismos internacionais em estreita cooperação com os regimes regionais projectados em uniões transnacionais”. O que, aliás, não admira, se tivermos em conta que António Guterres foi eleito o nono secretário-geral das Nações Unidas por, em grande parte, ter sido, entre 1999 e 2005, o presidente da Internacional Socialista que, como se sabe, nunca deixou de exercer, mediante o controlo do poder de voto dos seus membros, uma poderosa influência sobre as instituições burocráticas da ONU.

Fundada a 3 de Junho de 1951, a Internacional Socialista, sedeada em Londres, sempre deu a entender que o seu principal objectivo é nada menos que o estabelecimento do governo mundial. Para que tal seja possível, esta organização internacional tem, de facto, exigido a submissão das nações ocidentais a sistemas burocráticos de planificação global a nível da recolocação de grandes fluxos migratórios adentro das suas fronteiras, e, nessa medida, sustentada pelos respectivos contribuintes. Trata-se, em poucas palavras, do socialismo à escala mundial, cuja agenda totalitária passa pela redistribuição da riqueza global em nome da redução das desigualdades e, portanto, do indispensável, justo e equilibrado controlo dos recursos planetários. Ao contrário do que vem sendo ensinado nas instituições universitárias, o comunismo não está morto, estando até mais fortalecido do que nunca se nos dermos ao trabalho de verificar como os seus actuais proponentes, entre os quais se encontra António Guterres, persistem em perpetuar as estimadas “glórias” totalitárias do socialismo internacional com base em cargos de poder nas mais altas instituições de controlo e administração planetária.

Não chegou ainda, de maneira nenhuma, a experiência quase apocalíptica de milhões de seres humanos mortos, atormentados e selvaticamente reduzidos à miséria, à fome e ao terror decorrente de práticas e ideologias de raiz predominantemente colectivista, extremista e desumana. Enfim, professamente católico, António Guterres já esteve assim, enquanto chefe para os refugiados das Nações Unidas, no centro de um processo inteiramente responsável pelo tsunami da migração islâmica que já invadiu e continua a invadir o Ocidente, e a que não faltou a sistemática discriminação contra os cristãos do Médio Oriente, os quais vêm brutalmente morrendo às mãos dos extremistas islâmicos – veja-se o caso da Síria, onde em 10% de cristãos apenas 1% tem sido recolocado no Ocidente no seguimento do programa de refugiados da ONU, ou veja-se ainda o caso da comunidade cristã no Iraque cuja ajuda se tem praticamente reduzido a um conjunto de tendas e lonas, para não falar nos campos de “refugiados” da ONU onde os cristãos são sistematicamente brutalizados, espancados e até assassinados por “refugiados” islâmicos.

Guterres, sempre pronto a reivindicar para as Nações Unidas o privilégio de ser a única instituição capaz de dar solução aos problemas globais da humanidade, não tem, felizmente, conseguido enganar toda a gente. Assim, não obstante a insidiosa campanha consagrada à suposta protecção humanitária dos “refugiados”, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, já veio igualmente denunciar a “conspiração criminosa” dos internacionalistas instalados no quartel-general da União Europeia, em Bruxelas, já que a eles também se deve, a par da agenda externa dos EUA para o Médio Oriente, a política de portas abertas à “invasão islâmica” com vista a minar os alicerces da Cristandade e da Civilização Ocidental baseada nos Estados-nação. De modo que, um tal processo, já nem sequer esconde o seu verdadeiro rosto por entre as ostensivas e múltiplas declarações dos mais variados agentes internacionalistas, dentre os quais releva aquele que foi, entre Janeiro de 2005 e Março de 2017, o Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Migração Internacional.

Referimo-nos, obviamente, a Peter Sutherland, um irlandês que já chegou a desempenhar inúmeros papéis de ordem política e empresarial numa variedade de organizações internacionais, entre as quais estão a General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), de que foi director-geral fundador entre 1993 e 1995, a Global Forum on Migration and Development (GFMD), a International Catholic Migration Commission (ICMC) e a Goldman Sachs International, da qual chegou a ser presidente entre 1995 e 2015. De resto, Sutherland fora ainda, entre 1985-89, o Comissário Europeu para a área dos assuntos económicos e empresariais, bem como, a partir de 5 de Dezembro de 2006, o conselheiro financeiro do Vaticano no âmbito da Administração do Património da Sé Apostólica – um dicastério da Cúria Romana que funciona como uma espécie de Banco Central do Vaticano. E, como não podia, de maneira alguma, faltar no seu currículo de insider, considere-se, em última instância, aquele que tem sido o seu papel activo no domínio da comissão directiva do Grupo Bilderberg, ou ainda o facto de já ter sido o presidente honorário da Comissão Trilateral, bem como o vice-presidente da European Round Table of Industrialists, entre 2006 e 2009.


























Ver aqui



Segundo Peter Sutherland, a soberania nacional, seja ela considerada do ponto de vista abstracto ou concreto, é uma ilusão absoluta que deve ser reconhecida por todos os “governos” do mundo de ora avante libertos de fronteiras geográficas, económicas e culturais. Resumindo, não existem mais nações, povos e pátrias a serem considerados na esfera do novo sistema mundial entendido como a realidade primeira e última a ser totalmente cumprida, empreendida e obedecida. A este perigoso quão alarmante extremismo, corresponde, pois, a “parlamentarização” do sistema político global, ou ainda o que, nas palavras do anterior secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, constitui o novo “Parlamento da Humanidade”, protagonizado pela ONU.

Advogando, propagando e impondo a agenda emergente do “cidadão global”, o socialista António Guterres foi, em estreita cumplicidade com os seus demais congéneres, o agente internacionalista que, no cargo de Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, possibilitou, com a política das fronteiras abertas a Ocidente, a morte de vítimas inocentes do jihadismo transnacional, a ponto, inclusive, de não se coibir de condenar os governos que, preocupados com a segurança dos seus cidadãos, viram-se na iminência de, por justa precaução, não acatar semelhante política. E não acatando, foram, cinicamente, rotulados de racistas e xenófobos por simplesmente não colaborarem na progressiva destruição dos seus países, entre os quais se incluem a Hungria, a República Checa e a Polónia, entre outros. Logo, se há quem, porventura, acalente ainda quaisquer dúvidas sobre o facto de a Organização das Nações Unidas representar, hoje mais do que nunca, um perigo de proporções incalculáveis para a coexistência pacífica da humanidade, só não deixa de as ter se não quiser atender, na sua justa e devida consideração, aos factos acima referidos».

Miguel BrunoDuarte («ONU: O Supergoverno Mundial»).


«(...) Importa desmistificar o 25 de Abril, em relação ao que poderia ter oferecido ao Ultramar português - e não ofereceu. Importa denegar a promessa contida no primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas, pelo qual tudo se faria por via política, que se respeitaria a unidade territorial do Ultramar, e que, naturalmente, se encontraria uma solução para a luta, à data, branda e de quase nulos efeitos na vida normal das populações, que continuava nas terras angolanas.

Importa desmistificar um 25 de Abril que entrou em nossas casas com a alegria de uma libertação, com o engano de que encerrara um doloroso período em que até o pensar era subversivo. Um 25 de Abril florido (que mau presságio foi a cor dos cravos...) abrindo as portas da democracia aos portugueses e fechando-lhes as das perseguições, as das inimizades ideológicas, as dos compadrios. Um 25 de Abril que substituísse, para bem de todos nós, as estruturas políticas da ditadura, que impedisse a destruição do património nacional, que trilhasse a estrada larga da harmonia, que se opusesse a prisões arbitrárias, à opressão, aos favores para alguns, dando lugar à justiça para todos.

Importa desmistificar o 25 de Abril, trágico logro em que caíram os de boa-fé, vazadouro de invejas, ambições, vinganças pessoais, incompetências, crueldades, ódios e cobardias.

Importa desmistificar a revolução dos cravos (vermelhos), que sangrou o País dos seus técnicos, da sua inteligência, do seu equilíbrio emocional. Um 25 de Abril talhado à medida dos medíocres, dos falhados, dos senhores com alma de lacaios».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«(...) durante todo o ano de 1973, a agitação nas Forças Armadas começou a atingir proporções preocupantes e conheceu desenvolvimentos que iriam desembocar no golpe militar do 25 de Abril, no ano seguinte.

Para a opinião pública, porém, pouco transpirou do que se estava a passar.

Entretanto, assumiu relevo a visita a Inglaterra do chefe do Governo, em Julho, a convite do seu homólogo inglês, no âmbito das comemorações dos 600 anos da Aliança Luso-Britânica e como retribuição da visita, feita pouco antes a Lisboa, pelo duque de Edimburgo, marido da Rainha Isabel II. Estas duas visitas foram precedidas por fortes manifestações em Londres e críticas na imprensa internacional contra o governo português e a sua política ultramarina. A essas manifestações associou-se o próprio Partido Trabalhista Inglês e durante a visita de Caetano foi posta a correr na imprensa a notícia de um alegado massacre, cometido por tropas portuguesas em Moçambique.

Ainda assim, o governo inglês recebeu Marcello Caetano com todas as honras de Estado e foi reafirmada a aliança entre os dois países, independentemente das vicissitudes dos tempos.

Apesar de ter sido organizada uma manifestação, após o regresso de Marcello Caetano, de apoio e desagravo ao governo, os acontecimentos de Londres impressionaram de tal forma a opinião pública portuguesa que o chefe do Governo se viu obrigado, numa das suas "conversas em família" (26 de Julho), a "reiterar as posições portuguesas e repudiar os ataques".



Marcello Caetano com o primeiro-ministro britânico, Edward Heath.



Após as eleições de 7 de Novembro, o chefe do Governo remodelou novamente o gabinete. O ministro da Defesa Nacional. Sá Viana Rebelo, o alvo principal de críticas, foi apontado como o grande responsável pela crise militar e foi substituído por um civil, Joaquim da Silva Cunha, que vinha do ministério do Ultramar (esta última foi ocupada por Baltazar Rebelo de Sousa, que apoiava a autonomia e a independência dos territórios africanos). A pasta do Exército separou-se da da Defesa e foi ocupada pelo general Andrade e Silva, por recomendação do Presidente da República, ficando como secretário de Estado o coronel Viana de Lemos. A pasta do Interior mudou também de mãos, sendo agora o seu novo titular Moreira Baptista; por último, Almeida Costa deixou a pasta da Justiça, cargo que passou a ser ocupado pelo magistrado António Lino Neto, e transitou para a presidência da Câmara Corporativa.

A agitação política e social recrudesceu após essa remodelação ministerial e atingiu praticamente todas as forças vivas do país, o que gerou na opinião pública uma sensação de desconforto e de receio em relação ao futuro. Como costuma acontecer nas alturas de crise, o individualismo ganhou força, ou seja, cada qual pensava apenas em salvaguardar a sua própria situação na tormenta que pressentiam estar a aproximar-se.

Mas foi nas Forças Armadas que a situação se tornou particularmente grave. Uma vez terminado o seu mandato como governador da Guiné, o general Spínola regressou a Lisboa, sendo substituído no cargo pelo general Bettencourt Rodrigues, um dos mais prestigiados e competentes oficiais das Forças Armadas.

Regressado a Portugal com o prestígio de ter desempenhado altos serviços na Guiné - o que não era totalmente verdade -, colocou-se imediatamente a questão se saber que cargo atribuir-lhe.

Ficou decidido que seria criado, expressamente para o general, o cargo de vice-chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Spínola foi empossado em meados de Janeiro de 1974. Entretanto, correram alguns boatos desencontrados sobre a eventualidade de um ou de mais golpes de Estado de tendências opostas. Algumas personalidades deram a entender ao almirante Tomás que seria aconselhável demitir o chefe do Governo, argumentando com a necessidade de encontrar uma liderança mais forte e assim encontrar um rumo mais coeso e eficaz para o país. Precisamente nessa altura, o chefe do Governo foi afectado por problemas de saúde e sentiu-se limitado na sua capacidade de actuação política.

Pensou então num plano, um pouco teatral, mas que lhe permitiria pôr-se a salvo das críticas e que consistira em suscitar um problema entre o ministro do Ultramar e um governo de uma província (nomeadamente Angola). Agravado o problema (artificialmente), o governo central procuraria resolver a questão, embora sem êxito. Na sequência disso, o governo local revoltava-se e formalizava a sua separação, que Lisboa declararia não estar em condições de impedir. Quanto às consequências internacionais, logo se veria. E se o chefe do Governo desistiu de levar o plano para diante, não deixa porém de ser revelador de uma certa angústia psicológica que estaria a atormentar o professor Marcello Caetano.

Surgiu então a notícia de que o general Spínola pretendia lançar um livro onde defendia uma política diferente para África. Um facto que suscitou grande curiosidade na opinião pública e fez correr o rumor de que o chefe do Governo tinha conhecimento do conteúdo do livro.

Spínola pediu autorização superior para publicar o livro, o que lhe foi concedido, primeiro por um parecer positivo do CEMGFA, o general Costa Gomes, e depois pelo ministro da Defesa, Silva Cunha. Este, porém, fê-lo por pressão do chefe do Governo e sem sequer ter lido a obra. O livro Portugal e o Futuro foi editado em Fevereiro de 1974 e, analisado o seu conteúdo, o que se verifica é que nele não encontramos uma solução clara para o problema ultramarino, mantendo os territórios e os seus povos dentro do conceito da portugalidade arregimentados numa espécie de federação, usando-se, além disso, o plebiscito como método de consulta popular.

O livro teve ampla divulgação e colheu um apoio generalizado. À excepção dos meios anticolonialistas da ONU, que insistiam aceitar exclusivamente a independência africana, completa e imediata.

Porém, os meios conservadores e nacionalistas mobilizaram-se fortemente contra o livro e os dois generais, Spínola e Costa Gomes, e, por arrastamento, contra o governo. O chefe do executivo apercebeu-se da gravidade da situação criada e tentou inverter a situação sem abandonar, todavia, a sua atitude dúbia: por um lado, insistindo na defesa e na soberania do ultramar e, por outro lado, defendendo a sua autonomia política e administrativa. Talvez por isso a credibilidade do governo tenha continuado em queda livre.





A 11 de Março de 1974, Marcello Caetano pediu a sua demissão ao chefe de Estado que a não aceitou, advertindo-o de que era sua responsabilidade tentar sair da crise.

O chefe do Governo obteve ainda uma declaração de apoio de todas as chefias militares, convocando todas as figuras cimeiras da hierarquia para uma sessão na Assembleia Nacional, em 14 de Março. Todavia, alguns oficiais-generais recusaram-se a comparecer, incluindo o chefe e o vice-CEMGFA, como foi o caso do almirante Bagulho e do general Amaro Romão, bem como o caso dos generais Kaúlza de Arriaga e Silvino Silvério Marques, embora por razões distintas.

Costa Gomes e Spínola foram de imediato demitidos e para o CEMGFA foi nomeado o general Joaquim da Luz Cunha, que na altura, era Comandante-Chefe em Angola.

Na madrugada de 16 de Março, houve uma revolta militar e uma coluna foi vista a sair do quartel de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, com a intenção de marchar sobre Lisboa. O governo teve conhecimento disso e mandou avançar forças úteis contra a coluna das Caldas. A maioria dos membros do governo recolheu entretanto, às instalações da Força Aérea, em Monsanto.

Porém, como não se registou mais nenhuma movimentação relacionada com a coluna revoltosa, esta regressou às Caldas, depois de ter chegado a Sacavém, e rendeu-se sem oferecer resistência. Na sequência disso, foram presos alguns oficiais. Quanto a represálias, o governo ficou por ali, passando para a opinião pública a ideia de que não possuía nem força política nem força militar. Antevia-se o fim do regime. E, de facto, na madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974, foi desencadeada uma vasta operação militar, agora devidamente concertada, que derrubou o regime e prendeu os membros do governo e o Presidente da República, além de ter dissolvido a Assembleia Nacional e revogado a Constituição de 1933, a mesma que governara o país durante cerca de 41 anos. Um golpe que provocou, logo a seguir, o fim das operações militares em Angola, Moçambique e Guiné, e precipitou a independência daqueles e dos restantes territórios portugueses de além-mar».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«Relativamente à pergunta colocada sobre se a guerra que travámos em África entre 1961 e 1974, estava militarmente perdida, quando se deu o golpe de estado ocorrido em 25/4/1974, a resposta é não.

Os postulados seguintes - e vou referir apenas os menos falados - servem de suporte a esta afirmação.


"Quando um Exército deixa de querer combater, os militares passam a dizer que a guerra era injusta".

Max Weber


1. O inimigo não conquistou a população.

Neste tipo de guerra a conquista das populações é fundamental, sob pena de quem a desencadeia perder a legitimidade.

Como é que se sabia de que lado é que a população estava? Em 1973 sentia que a população não estava do lado do inimigo.

O General Spínola pediu-me para organizar as comemorações do primeiro 10 de Junho, após o 25 de Abril.

Foram organizadas duas manifestações com o objectivo de apoiar o general e evitar a Descolonização. A palavra de ordem era "Referendo sim, independência não".

Logo se ouviram vozes, na Metrópole dizendo: "e se eles disserem que sim, depois temos que os aturar?!"

Estive a almoçar, na altura, com o então Coronel Lemos Pires e alguns oficiais da sua equipa, no Instituto de Altos Estudos Militares, antes de ele embarcar para Timor, e tentei convencê-lo da necessidade de se fazer um referendo naquele território. Ninguém fez comentários...

Anos mais tarde, Ramos Horta, em entrevista, a propósito do referendo que ia ser feito no âmbito da ONU, disse que não deviam ser apenas colocadas duas perguntas, mas três, sendo a terceira, se a população queria manter-se ligada a Portugal. Sorriu e acrescentou: "não era a minha opção, mas estou convencido que a maioria ia optar por essa terceira hipótese".

Após o regresso do então Major Otelo, de Moçambique, onde tinha participado em negociações, perguntei-lhe, na Messe de Caxias: "então o que vamos fazer em Moçambique?" Respondeu-me, "independência imediata para a Frelimo".






Signatários do Acordo de Lusaka




Ver aqui






Hóspedes sentados na varanda do Hotel Polana (1927).



O Lobby do Hotel Polana em Lourenço Marques (anos 1930).



O Bar do Hotel Polana (anos 1950).



A zona anterior do Hotel Polana (anos 1960).



O primeiro aeroporto de Lourenço Marques, na zona de Mavalane.




Uma vista geral de Lourenço Marques em 1939.



A Praça Monumental em Lourenço Marques (anos 1960), a meio caminho entre a cidade de cimento e o Aeroporto. Hoje está em ruínas.



Durante uma tourada



Disse-lhe: "independência, mas tu sabes perfeitamente que eles nem 10% são!"

- "10%", respondeu o Otelo - "nem sete";

- "Mas isso é traição à Pátria";

- "Mas é o que eles querem". E assim terminou a conversa com ele.

Creio que Mário Soares ainda falou ao Samora Machel em fazer um referendo, apenas para o ouvir dizer, "referendo? Mas vocês perderam a guerra" (contado pelo então Major Manuel Monge).

Ora tudo isto prova que ninguém envolvido nas negociações (nem a maioria dos restantes países) queria fazer um referendo pois todos sabiam que o resultado do mesmo, em cada parcela ultramarina, teria como resultado que a maioria da população iria querer manter-se portuguesa.

E se tivéssemos feito o referendo na Metrópole?

2. A guerrilha à medida que ganha força, tende a passar para operações do tipo convencional. Ora "eles" nunca passaram de uma guerrilha ordinária, que nunca dispôs do controlo do Mar ou do Ar.

3. Nunca houve ocupação permanente por parte da guerrilha, de qualquer parte do território. Nós íamos a todo o lado e duas companhias, por norma, chegavam; só não íamos quando não havia interesse militar ou político.

4. Não houve guerrilha urbana, pois nunca tiveram capacidade para tal.

5. Existiam unidades inteiras quase só constituídas por africanos, tendo-se registado casos mínimos de deserção; não se conhecem casos de traição, tão pouco desapareceram armas!

Nós perdemos a guerra, psicologicamente, na retaguarda; o estado moral do IN era muito pior que o nosso - no final da guerra eles queriam quase todos entregar-se.

6. Constituíram-se e auto organizaram-se, desde o início da guerrilha, unidades de voluntários, juntando brancos e negros, para combater a subversão. A primeira foi a Brigada Salazar, em Angola, que até utilizaram armas gentílicas.

7. Não se concebe um território em guerra, com o desenvolvimento económico e social, registado.

A guerrilha era tão fraca que nunca conseguiu travar o desenvolvimento, mesmo nas zonas onde havia operações de contra-subversão.

Uma vez um dirigente da Frelimo que foi à ONU, quando Cabora Bassa estava a ser construída, dizia com indignação, que Portugal estava a fazer o maior crime em África que era conseguir que as populações que não eram portuguesas se sentissem portuguesas.

8. Por exemplo, ainda, a maioria dos cozinheiros das unidades militares, eram autóctones, mas nunca se registou um caso de envenenamento; não há memória de um soldado ter sido assassinado, ou de ter ocorrido um rapto de um familiar de um militar.

Os militares movimentavam-se por todo o lado, à vontade, mesmo nos bairros tidos por mais problemáticos. Nem lhes passava pela cabeça que lhes fizessem mal.






Em conclusão, e face aos exemplos apontados - muitos outros se poderiam dar - não tenho dúvidas em afirmar que a guerra que travámos em África em defesa da soberania dos nossos territórios ultramarinos, à data do 25 de Abril, não estava militarmente perdida».

Coronel José Caçorino Dias (in Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).


«[Costa Gomes] escapou milagrosamente à depuração resultante da tentativa de golpe de Estado de Abril de 1961; foi comandante-chefe em Angola; chegou a CEMGFA, no consulado de Marcello Caetano; foi Presidente da República após os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974 e, mais tarde, foi promovido a marechal do Exército. Entretanto, após ter deixado o cargo de Chefe do Estado, passou a militar no Conselho Mundial da Paz, organismo manipulado pelo Partido Comunista da União Soviética».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«(...) A aranha tece a teia

Tudo era contestado, tudo devia mudar. A febre partidária tinha-se instalado na vida nacional. Organizações como a CIC, LUAR, CBS, LCI, URML, lançavam a mais completa desordem e anarquia nas instituições. A 23 de Maio anunciaram um comício para o dia seguinte e uma manifestação para o dia 25 a fim de afirmarem que o único caminho para impedir a restauração do fascismo era liquidar imediatamente a criminosa guerra de agressão nas colónias.

Mas não eram só os grupelhos que, logo após o 25 de Abril, começaram a fervilhar por todo o lado que condenavam a guerra no Ultramar. Ao lado deles alinhavam igualmente os futuros senhores do poder, a classe política civil mais proeminente, constituída em grande parte por exilados, fugitivos, desertores e oportunistas, que não perdiam o ensejo para se pronunciarem contra a "aviltante", criminosa, opressora, desonrosa, cruel, despótica, desumana" e outros epítetos com que qualificavam aquilo que chamavam de "guerra colonial". No fundo, apenas pretendiam autopromover-se, explorando em proveito próprio algum cansaço e insatisfação pelo arrastar de uma guerra de cuja justeza a maioria dos portugueses não tinha dúvidas. Foi uma desenfreada corrida para a conquista do poder ou simplesmente a busca duma notoriedade que nunca tinham conseguido por outros meios, pelo seu valor, pelo seu saber e, muito menos, pelo seu patriotismo. Importa referir que entre os militares, mesmo os "abrilistas" não se ouviram vozes de condenação da guerra onde participaram, mas tão só a necessidade de se encontrar uma solução política para o problema que ameaçava eternizar-se, pela inexistência duma estratégia global a nível nacional que ninguém teve a coragem de definir [???]. Cada qual fazia a sua política regional, segundo as suas convicções pessoais sem estar minimamente inserida em objectivos estratégicos claros dentro do todo nacional. "Ia-se fazendo a guerra" ao sabor e vontade de cada um, dentro de todo um conjunto de carências e insuficiências que com determinação e grande empenhamento se procuravam ultrapassar com grandes custos mas também com patriotismo. Conhecia a guerra por dentro e por fora. Desde o seu início até ao seu termo embora num único teatro de operações: o de Angola. Hoje, quando este país e o seu povo continuam passando os piores momentos de toda a sua existência, interrogo-me de quem é a responsabilidade? Para uns, aqueles que Camões referiu ao dizer:entre os portugueses, traidores também os houve algumas vezes, a responsabilidade continua a caber aos protagonistas do fascismo e da ditadura, à escumalha da PIDE, aos exploradores monopolistas, aos cabecilhas da União Nacional e a todos os que contribuíram para a manutenção de Salazar no poder. Para outros, eventualmente mais esclarecidos e bem informados, terá sido somente a grande riqueza daquela terra e toda a apetência que provocava nos mais poderosos. Para a grande maioria, apenas interessava sobreviver ao vendaval. Ontem, a luta desenvolveu-se entre os dois "grandes jogadores" dentro dos princípios da estratégia indirecta. Hoje, com o declínio dum deles, a luta desenrola-se entre o petróleo e os diamantes, sacrificando mais uma vez o povo angolano. Salazar, com a sua grande capacidade de análise, quando lhe comunicaram que tinham sido descobertas, em Angola, grandes jazidas de petróleo, terá afirmado "mais uma desgraça se vai abater sobre essa boa gente".

Mas nada disto importava à nova classe dirigente do País no pós-25 de Abril, quando defendiam a imediata e total independência para as colónias, quando sabiam ou deviam saber que estavam colaborando num projecto da entrega da tutela daqueles territórios a um dos jogadores que tinha perdido no terreno, no confronto armado com os portugueses.

Iniciava-se uma página nova da história naquela terra africana, desconhecendo-se quase tudo, mas não restando grandes dúvidas quanto aos seus promotores, uns operando nos bastidores, outros por ambição ou simples protagonismo e, ainda alguns, tão-somente instrumentalizados ou usados (tinham a oportunidade de se tornarem importantes).

Ver aqui









Naquela altura só importava gerar a confusão, a anarquia, a agitação que absorvia a atenção dos principais responsáveis pelo poder, eliminando os que tentassem opor-se à nova ordem, deixando assim o terreno livre para que uns tantos, bem poucos, pudessem levar a efeito um dos principais objectivos do 25 de Abril: entregar os novos países, resultantes da independência das províncias ultramarinas, aos senhores do Kremlin».

General Silva Cardoso («ANGOLA: Anatomia de uma Tragédia»).


«Dizer que Salazar foi um génio político será impolítico. Mas foi. É uma consolação da esquerda imaginar um provinciano manhoso, teimoso, cheio de sorte e obedecendo pura e simplesmente aos grandes deste mundo para conservar o poder. Eis um engano com o qual nada ganhamos. (...) É de repensar tudo acerca de Salazar. Num país atrasado, um grande conservador apoia-se fatalmente, embora não exclusivamente, em forças reaccionárias, mas os termos não são sinónimos. Melhor ainda: um conservador desses é em parte um reaccionário. Mas sabe evoluir, tem um plano capaz de digerir as modificações necessárias, de se limitar e enquadrar pelos princípios de sempre: Deus, Pátria, Família, Propriedade. Não quer voltar atrás ou sequer parar. Modela o novo pelo antigo, prudentemente.

(...) ao ser o único que reflectiu com certa largueza e ao mesmo tempo com realismo, sobre a questão do Estado, o pensamento político salazarista é o mais estruturado deste século em Portugal. É pena que assim seja, mas é verdade».

Manuel de Lucena («Portugal sem Salazar»).


«Nos finais de Agosto de 1974 cresciam o fanatismo, a intransigência e o ódio a todos quantos se opunham ao domínio do marxismo; estava em marcha o que veio a ser conhecido pela "perversão totalitária" do 25 de Abril e cujo primeiro grande passo viria ser dado com o 28 de Setembro e com o derrube de Spínola.

Escrevi então para uma nova revista, o Tempo Novo, um artigo verberante do que se estava a passar, sobretudo no campo da informação. O texto intitulava-se"A Agressão Ideológica" e nele dizia que a actual "agressão ideológica é o sucedâneo da 'caça às bruxas' e das denúncias do Santo Ofício. Trata-se antes de mais nada, para os virtuosos zeladores de uma ideologia, de nomear as bruxas ou os heréticos, sobrecarregando-os de uma carga moral e psicológica negativa, para depois os destruir com o assentimento ou mesmo o aplauso popular". Foi o que se fez antes do 25 de Abril? Foi. Mas hoje "nasceu e imediatamente proliferou a agressão ideológica de sinal contrário à do anterior regime"... "Mudaram os alvos e mudaram os caçadores de bruxas, mas o processo moral e psicologicamente inferior e inferiorizante"mantinha-se afinal, se é que não se agravava [e de que maneira!].

Este artigo foi publicado a 23 de Agosto de 1974. Cerca de um mês mais tarde dava-se o golpe totalitário do 28 de Setembro e algumas centenas de pessoas eram encarceradas no Forte de Caxias. É que toda a agressão ideológica, efectivamente, constitui o fogo de barragem que prepara a agressão física, a repressão, a prisão, procurando dar uma cobertura moral à violência e à intolerância do Estado de ditadura.

Quando o crítico Eduardo Prado Coelho, algum tempo depois, e a propósito desse artigo, me veio acusar do pecado de anti-comunismo, em artigo insolentemente intitulado "O anti-comunismo em patinhas de lã", a sua "agressão ideológica" não era inocente, visto que, já com Vasco Gonçalves no poder, visava justificar a boa consciência do neo-totalitarismo em formação. O que no seu artigo polémico verdadeiramente pesava, não era o seu discurso retórico em prol do marxismo, da luta de classes, da democracia popular, etc., era anomeação dos réus - em suma era a denúncia.

Assim, depois de algumas palavras condescendentes e irónicas a meu respeito, Eduardo Prado Coelho, prestava a informação de que "o vemos aqui, nas páginas do Tempo Novo, ao lado daqueles que apoiaram activamente o Governo fascista ou que dele um pouco se afastaram por não o acharem suficientemente fascista", para mais adiante se me dirigir farisaicamente:"Agora já viu qual a função que a tal conversa do costume tem aqui nas páginas do Tempo Novo, entre as colunas militantes do fascismo? Já viu a figura que faz? A do raposinho fascista que não é". Nunca dei por que o director do Tempo Novo, José Hipólito Raposo, outra coisa fosse do que um monárquico liberal. Mas o que era afinal se não fascismo de esquerda, a criação de um ambiente de violência, de suspeita e de denúncia, cuja consequência imediata seria a prisão de intelectuais da oposição e o encerramento dos jornais ou dos editores que não alinhavam com a ortodoxia revolucionária?




Se o Tempo Novo foi depois proibido pela ditadura gonçalvista, se José Hipólito Raposo foi parar com os ossos a Caxias e se eu próprio viria a encontrar dificuldades editoriais e jornalísticas, é claro que Eduardo Prado Coelho pode lavar daí as suas mãos como Pilatos e proclamar a sua inocência.

Mas a verdade é que o terror gonçalvista e otelista, quase liquidatário da pátria e deixando sequelas que tornam dificílima, se é que não impossibilitarão em termos democráticos a recuperação nacional, precisou de uma atmosfera para se tornar possível. E infelizmente houve escritores e jornalistas que colaboraram a fundo».

António Quadros («A Arte de Continuar Português»).


«Entre os crimes mais gritantes cometidos depois da "revolução dos cravos" devem contar-se os saneamentos, efectuados sem a menor base legal, ao arbítrio de quem quer que se arvorasse com poder para tal.


Nas empresas os operários "saneavam" os patrões e "saneavam" os colegas que bem lhes apetecia. Quem já esqueceu o saneamento no "Diário de Notícias" de 24 jornalistas?

Nos Liceus e nas Universidades foram "saneados" alunos por colegas e professores por colegas e até por alunos...

Na função pública nem se fala: não tiveram conta os saneamentos, sobretudo nos ministérios da Justiça e do Trabalho, nos quais Zenha e Carvalhas como que competiram: chegaram a trocar comunicados nos jornais sobre quem tinha feito mais saneamentos... Honra seja feita a Mário Soares e a Almeida Santos que, quando ministros, não promoveram quaisquer saneamentos».

José Dias de Almeida da Fonseca («LIVRO NEGRO DO "25 DE ABRIL"»).


«Porque não faz o Dr. Medina uma devassa mais completa à minha vida? Faça-a, que não tenho medo nem complexos...

É óbvio que nunca reneguei nem renegarei o meu Pai, António Ferro, que foi o primeiro director daquele organismo, mas toda a gente sabe que apesar das vantagens que tal poderia trazer-me, fiz toda uma carreira de trabalho longe de postos políticos ou de lugares oficiais, não me escusando nunca a criticar diversos aspectos do regime, como pode ler-se nalguns dos meus livros. O mais simples teria sido chamar-me fascista e pedir o meu saneamento, pois como demasiadamente vimos, estas coisas nem precisam provar-se, e para destruir reputações não são necessários processos jurídicos de culpa».

António Quadros («Portugalinho ou Portugal?», Dezembro de 1976).


«Sou, afinal, suspeito de ter participado (ou tentado participar) numa alteração da ordem, através de meios violentos, entre os quais um assassínio. 

Suspeito de ser um fora-da-lei - eu que sempre tive a preocupação de a respeitar. Que sempre a respeitei. 

Suspeito de ser um desordeiro, um agitador e - quem sabe? - um assassino em potência! 

Repeti estas palavras, vezes sem conta. Indignado e - confesso - também estupefacto. Percebi que tinha os olhos dilatados e acabei por fixá-los, apenas, num ponto do tecto branco da cela. 

Eu, suspeito de delito comum? 

Eu, que nada fiz de condenável em toda a minha vida. Cujos "crimes" se resumem em ter sido, tantas vezes, iludido na minha boa-fé. Que tenho tido problemas - alguns bem graves - por ter sido enganado por certos senhores muito respeitáveis. Eu, que não roubei, que não matei - que sempre abominei actos de violência, prepotências e injustiças. Eu, que sempre procurei contribuir para o bem dos outros, na medida das minhas possibilidades. Eu, que me recusei, sempre, a tirar qualquer proveito de situações menos claras. 

E, preso como suspeito de prática de delito comum! 






Aqui, metido numa cela, privado de liberdade que tanto amo - com a consciência de que estou inocente - enquanto lá fora se pavoneiam alguns dos que iludiram a minha boa-fé. Que me enganaram miseravelmente. Que, afirmando-se "senhores muito respeitáveis" me prejudicaram com a maior das sem-cerimónias. 

Mas então como é isto possível? 

E já não falo dos que roubaram e continuam roubando. Dos que assaltaram e continuam assaltando. Dos que exerceram prepotências e continuam a exercê-las - agora talvez mais cautelosamente. Dos que cometeram - e continuam a cometer - injustiças. Dos que se entregaram à violência e são capazes de voltar a fazê-lo. 

Quantos desses andarão, tranquilamente, a passear pelas ruas de Lisboa, como pessoas de bem? A frequentar os bons restaurantes e alguns "tascos", onde certa "gente bem" gosta de exibir a sua... democracia? 

Quantos continuarão a "assinar o ponto", regularmente, nos bares e boites, não dispensando o seu tão apreciado whisky velho - pago, muitas vezes, com o dinheiro com que não pagaram as suas dívidas?

Quantos desses andarão agora a apregoar os seus ideais que dizem que sempre tiveram, mas que não podiam revelar? Quantos se utilizarão dos meios de comunicação social para se tornarem arautos dos... "princípios" pelos quais - dizem - sempre lutaram? Os mesmos que não se eximiam a "conviver", intimamente, com figuras destacadas do antigo regime e que não tinham o menor pejo em lhes solicitar constantes ajudas ou subsídios. Que nunca se esqueciam de convidar essas figuras destacadas, para almoços e jantares, ou para um simples drink em qualquer recatado bar de primeira categoria. Isto sem falar dos cartõezinhos de cumprimentos, a propósito de mais um aniversário da sua posse, ou de bons presentes na quadra natalícia. 

Mas esses continuavam a ser livres como as andorinhas na Primavera. A ser pessoas muito respeitáveis e, nalguns casos, muito... influentes.

E eu? Eu continuo aqui, enjaulado, a falar sozinho e a olhar o tecto branco que não tem nada para ver... Eu, continuo aqui como um incriminado de "direito penal comum". 

A "apodrecer" ou a tirocinar para... louco! 

O mundo é, de facto, uma coisa maravilhosa...». 

Artur Agostinho («Português sem Portugal»). 





A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão»


Natália Correia, das inteligências mais lúcidas deste País, que nos momentos mais dramáticos e críticos do gonçalvismo (com Vera Lagoa e Fernanda Leitão), foi a voz da coragem, da firmeza, do patriotismo esclarecido, a verdadeira pedra no charco de uma revolução em epilepsia permanente - escreveu, com grande rigor de forma e de observação: «com o 25 de Abril, propiciaram os militares liberdades que excediam a capacidade para as suportar no quadro histórico em que elas irrompem?» E volta a interrogar, pondo o dedo na ferida: «Romantismo? Precipitada alternância descontractiva de um longo período de repressão? Inabilidade para suster num ponto de equilíbrio os acontecimentos que desencadearam?». E conclui: «Seja como for, as liberdades foram generosamente prodigalizadas e orgiasticamente festejadas». Por fim este seu artigo remata com esta rara felicidade: «Há que entender, finalmente, que a liberdade serve para aperfeiçoar. Não para piorar».

Para lá do desbragamento da liberdade concedida à maluca, o mais chocante e comprometedor da Revolução Traída é a ofensiva irracional, que autênticos tarados mentais, como o caso de um João Medina qualquer, desencadeiam contra os valores da nossa cultura e, no campo histórico, denegrindo os vultos e símbolos da Pátria, que somos no Mundo.

Apequenando tudo, arrazam-se os valores da cultura e os grandes feitos da História. Elimina-se, na Escola, a disciplina de história, porque alienante e fascizante, porque não democrática, como se chegou fingidamente e lorpamente a dizer-se. Cometeram-se atentados abomináveis, nesse domínio, sem que força alguma ou qualquer assomo de uma autoridade responsável o impedissem. Deixou-se de ler Camões e outros poetas e escritores de antologia, que tantos e tão belos temos - pondo-se a crianças a ler Fidel Castro e até essa figura simiesca de Samora Machel. Em cadernos editados pelo Ministério da Educação e Cultura, para divulgação do Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis (FAOJ), através do Movimento Alfa, escrevia-se, em letra de forma, como ofensa aos sentimentos religiosos do Povo Português, o sacrilégio máximo que, com perdão de Deus, transcrevemos para edificação de um processo revolucionário inclassificável:












Esta ofensa gratuita ao que de melhor e mais puro existe na alma e no coração dos portugueses: o seu sentimento pela religião e pelos símbolos e valores supremos da Pátria, condenaram, inexoravelmente, para sempre esta Revolução da Vergonha, este Enxovalho, este Capitólio de lama, em que se transformou!

Com efeito, quer ao tempo do gonçalvismo, quer já ao tempo do governo constitutional, essa ofensiva de nos amesquinharmos e de nos apoucarmos como identidade histórica, como povo culturalmente adulto - procura abalar a nossa crença de povo, a nossa «imagem» nacional. Um tal João Medina, produto espúrio do meio cultural português, escreveu no «Diário de Notícias», de 22 de Setembro último, um artigo intitulado «Portugal, Portugalinho», em que avança considerações deste jaez, depois de afirmar que «não somos uma nação com maiúsculas, não somos já Portugal, somos um Portugalinho»: «somos uma espécie de arménios, somos superficiais, não temos profundidade - somos um País sem distância, e, apesar de contarmos com uns quantos poetas, ensaístas, romancistas ou "intuidores", somos talvez uma choldra, como dizia o escarninho Eça e ainda por cima somos um Povo sem pensamento, isto é, somos muito pouco, quase nada, somos nada».

Esse espírito repugnante e asqueroso, como diria em resposta a única voz digna que se saiba ter vindo à estacada, contra o reles escrevinhador - referimo-nos ao brilhante ensaísta António Quadros - «apesar de agressivamente antiportuguês mas publicado com destaque num grande jornal é infundamentado e gratuito», além de que, pelas conclusões do articulista, «fica assim resolvido o famoso problema da identidade portuguesa: o País não é nada».

Este «Portugal, Portugalinho», além de um escarro infecto, é uma inadmissível afronta feita à Pátria de todos nós, aos nossos mortos, a todos quantos no passado, de geração em geração, a ergueram às culminâncias da glória e das gestas imperecíveis.

Antes deste escrevinhador desvirilizado, outros, no Outono de 1974, a poucos meses do 25 de Abril, em clara e aberta obediência à destruição dos nossos valores históricos, patrocinados sempre pelas mais altas instâncias oficiais deste País, se insurgiam ao que entendiam «contrariar o processo de democratização», como é o caso de Manuela Alves, no «Diário de Lisboa», em que se referiam, graficamente, as «enormidades» que se continham ainda em alguns manuais do ensino primário, «servindo o fascismo», e que terão sido entretanto possivelmente reduzidos a cinzas pelo célebre despacho desse infeliz secretário de Estado, Rui Grácio, de seu nome, cognominado como o «Grande Incendiário» de toneladas de obras literárias que pelo fogo puderam ser purificadas...

No «grito de alarme» dessa esclarecida Manuela Alves, e como se encontra devidamente posto em evidência, consideram-se ultrajes à democracia, um pequeno trecho de Trindade Coelho, de «Saudação à Bandeira» nacional; um outro, ilustrado pela reprodução de um mapa, em que se situa Portugal no Mundo; a condenação de uma referência, num livro da quarta-classe, ao facto do Estado da Índia ter sido violentamente ocupado pela União Indiana; outro, ainda, por num texto escolar se exaltarem como «heróis» os chefes indígenas timorense e goês: D. Aleixo Corte-Real e Aniceto do Rosário; em que se contesta a legitimidade da entrega de condecorações por feitos de campanha a militares brancos e de cor, no «Dia de Portugal», etc., etc., - perante o qual não sabemos que mais espantar e como se tornou possível que tais coisas ocorressem, num País dito civilizado, na época que vivemos. Triste, mas verdadeiro!

(...) De toda uma conduta de excessos e de trapaças pseudo-revolucionárias se podem entretanto totalmente ufanar os desavisados e ignorantes «capitães» do MFA e com eles todos os oportunistas e medíocres que tortuosamente se lhes colaram: o de terem efectivamente destroçado o País, traindo o Povo, e ganho, em escassos meses, de desordem e anarquia, a olimpíada do disparate revolucionário.






Foi Tocqueville quem escreveu que o movimento democrático se faz, com o auxílio do cesarismo, pelo concurso de dois movimentos: uns descem, outros sobem ... Num dado ponto intermédio, ocorre o encontro, e tudo se funde numa espécie de mediocridade: e temos aí a mediocracia.

O 25 de abril da traição, conduzido em condições primárias, por celerados mentais, forjou a sua «balalaika»: de início, o desenho para um projecto de democracia, que abriria de par em par aos portugueses a prosperidade e a abundância, uma antecâmara do Paraíso; instalada esta fase anedótica do processo revolucionário na engrenagem manipuladora das massas a canção passou a ser outra - um misto de liberdade, que depressa virou libertinagem, e de socialismo também em liberdade ... temos portanto instaurado o culto da santíssima trindade: democracia, liberdade e socialismo, o endeusamento das respectivas palavras, a sedução da demagogia que passou a fazer-se, despudoradamente à sua sombra, confundindo e transviando as pessoas e com elas o País.

Pretendia-se e incensava-se uma prática democrática, de amplas liberdades, como forma insidiosa de abrir caminho, de atropelo em atropelo, predeterminando-se o povo português, por uma acção repetitiva em obediência às melhores técnicas de manipulação - às «vias» para ... aos «projectos» para ..., às «pistas» para ... Nesta conversa fiada, o 25 de Abril deixa de ser uma Revolução: é um enxovalho, um ultraje, à inteligência e à dignidade dos Portugueses.

(...) Ora, na perspectiva do tempo, aquele 25 de Abril da utopia, não é mais do que um 16 de Março (o pronunciamento das Caldas) que desce de Sacavém ao Terreiro do Paço, sem um disparo, sem qualquer oposição de natureza militar. A História faz-se por vezes destas bagatelas, com pequenos e insignificantes factos. A História é um acidente, por vezes sem grandeza nem símbolos. São os acasos que fazem a História. Em 25 de Abril, os homens de uma determinada época, de um determinado estilo social - capitularam pura e simplesmente, sem condições. Não há feitos gloriosos nem heroísmos a exaltar: nem de um lado nem de outro. Há pusilanimidade, um encolher de medo de farda para farda, uma certa perplexidade e uma certa expectativa. O acaso ditaria uma vez mais a História, quase sem se dar por isso...

A Revolução criara a sua mitologia: fez-se por si. Nascera de um parto sem dor. Não há homens, ensandecidos, a combater outros homens. Não há disparos mortíferos. Não corre sangue. A Revolução que vence no Largo do Carmo, não é uma ideia: é a imagem da resignação, que se transformaria no calvário da Pátria. É deste modo, tão frouxo, que se vira uma página de história, para um destino desconhecido, que se antevê cruel.


(...) PARTICIPAÇÃO COMUNISTA NO PROCESSO

(...) Destruir para edificar de novo


Vascolejada, a vida nacional, de ódios e de ambições, cedo começou a desenhar-se a traição do 25 de Abril: traição descabelada e torpe à Revolução, traição abjecta e iníqua ao Povo Português. Com efeito, tudo começaria, de forma atrabiliária e trágica, admitida que fora a participação do Partido Comunista no primeiro Governo Provisório, sob a chefia do Prof. Adelino da Palma Carlos. A aceitação dos comunistas, como parceiros democráticos, não lembraria ao diabo. De inspiração stalinista, portanto da linha ortodoxa, de total obediência a Moscovo, colocar comunistas no governo do País era abrir logo uma grande fenda no processo revolucionário com vista à democracia burguesa, pluralista, que teria de ser o primeiro projecto sério a realizar no pós-revolução.

Destruído pela traição de alguns dos seus destacados membros de cúpula, o PCP estava, por altura de 1974, praticamente desfeito ao nível de direcção. Não era, e estava mesmo bastante longe de ser, a força que a sua «imagem» sugeria por anos de luta clandestina e subversiva. Os quadros de que dispunha em 25 de Abril, eram escassos e pobres. Sobrevivia com base nos chamados «históricos» do Partido, indivíduos sem o mínimo de craveira mental e política para o desempenho de cargos na governação do País - país esse que, pela prolongada clandestinidade dos seus membros mais influentes, desconhecia por completo. Para mais viviam na obsessão do ódio, primeiro do regime salazarista e depois do caetanista. Não representavam uma potência, uma força: eram um «bluff» ... Um balão cheio de ar.

Inicialmente relutante a aceitar uma participação comunista ao nível de governo, que se lhe oferecia como prematura e arriscada, o general Spínola terá tentado ainda tornear essa tentação. Com efeito, aceitara o general como mau prenúncio que, logo no dia 26 de Abril seguinte à Revolução, e da responsabilidade do grupo pró-comunista CDE, tivessem sido profusamente espalhados pela cidade e noutros pontos do País manifestos de empolamento demagógico nos quais se escrevia, com notório destaque, que «o caminho da liberdade é, hoje, o caminho da rua»... Que no apelo lançado pela direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP com vista à manifestação programada para o 1.º de Maio, se apontassem as transformações que no entender do referido partido se tornavam inadiáveis, nomeadamente, entre outras, «o fim da guerra colonial pela suspensão imediata de todas as operações militares nas colónias, pela abertura de negociações com o MPLA, PAIGC e Frelimo» (em aberta e flagrante oposição ao Programa e às normas fixadas ao Governo Provisório). Isto quatro dias depois do 25 de Abril! Na mesma data, a 29 de Abril, logo que chegado do seu exílio, ainda no Aeroporto de Lisboa, Álvaro Cunhal entre várias tarefas prioritárias ou urgentes, que enumerou, indicou como uma delas o fim imediato da guerra colonial.





Pressões de vária ordem se fizeram no entanto sentir junto do General por forma que fosse dado um lugar de relevo ao PC no Governo Provisório, empolando-se ao presidente da Junta de Salvação Nacional a força de mobilização de que aquele partido dispunha, o que, como se disse mais atrás, não passava então de um descarado «bluff». As sucessivas eleições a que aquele partido tem concorrido revelaram isso mesmo: que o PC continua a jogar com uma força que não tem, autêntico «tigre de papel»...

O próprio líder socialista, Mário Soares, tornou público logo que em 28 de Abril regressou do seu exílio de Paris, o que depois faria na visita que daí a dias empreenderia a algumas capitais europeias, que o Partido Socialista não tomaria parte no Governo Provisório caso os comunistas nele não estivessem representados. Idênticas e não menores pressões se fizeram no mesmo sentido por parte do sector «progressista» das Forças Armadas. Tal facto a verificar-se, como se verificou - os acontecimentos que se lhe seguiram no processo revolucionário são bem eloquentes - viria a abrir caminho, como abriu, à desdita imensa que se abateu como um pesadelo sobre o Povo Português, da Metrópole e do Ultramar.

Amparados pela linha chamada progressista do MFA, que havia de dar quase toda em patanas no 25 de Novembro, e de que apenas alguns mais cobardes se escaparam por um triz - os comunistas foram sacando dividendos de uma força e de um prestígio falsamente fabricados, pelo que, sentindo-se reconfortados começaram logo, como diria deles Barros Queiroz, no parlamento da Primeira República, «a deitar os corninhos de fora»... Nem outra coisa seria de prever!

Regressado a uma legalidade tumultuária, com o País sem rei nem roque, apoiando-se nalgumas das suas células, o PCP desencadeou sem perda de tempo (como vimos, a 4 dias do 25 de Abril, começou a deitar balões...) uma actividade organizada, com os olhos fitos na subversão que desde logo lhe interessava alimentar a nível do País. Daí o aproveitamento que fez da total ausência de autoridade, do vácuo político que, entretanto, e apesar das «penteadas» palavras do Programa e do decreto-lei n.º 203/74, se fizera por força dos acontecimentos e da confrangedora incompetência de grande parte dos militares que detinham o processo. Por outro lado, as forças políticas de «direita», face à onda de feroz demagogia que varria o país de uma ponta a outra, imobilizaram-se pelo medo e bem assim muitos milhares de portugueses que, por motivos ideológicos ou pela simples prestação de serviços anódinos, receavam vir a ser, como sucederia em inúmeros casos, considerados «comprometidos» com o regime deposto.


(...) Bases para uma conquista do Poder


O assalto à direcção dos sindicatos e a ocupação metódica que começou por fazer de grande parte dos orgãos de administração local (câmaras municipais e juntas de freguesia) por militantes seus ou por activistas do CDE, ao serviço do Partido, depressa conferiria aos comunistas uma aparência de força que, habilmente explorada, desequilibraria, a seu favor, tal como sucedeu, o quadro político do País abstracto que não real. O quadro político desse País «imaginado» serviu de escudo aos militares semi-ignorantes e semi-analfabetos do processo, que na altura ocupavam posições influentes nos sectores de decisão, para imporem, pouco a pouco, a hegemonia do PC em todos os escalões da hierarquia do Estado. Esses mesmos militares, ao fazer abertamente o jogo do Partido, autoconvenceram-se da impossibilidade de poder o País ser conduzido para os objectivos extra-Programa do MFA e do próprio Governo Provisório Civil, sem uma cooperação íntima com os comunistas...

Vendo-se como por encanto numa posição oferecida de mão beijada e que há um mês atrás seria de todo em todo impensável, chefiado por um homem obstinado, que de português só conservava o nome  - Álvaro Cunhal - que se aureolara de um halo de mistério e de martírio, vivendo em Moscovo num «exílio doirado», com todas as honras de cidadania, considerado um herói soviético, o Partido Comunista passou praticamente a mexer todos os cordelinhos do processo revolucionário em curso, pondo e dispondo a seu belo prazer. Começa por se proclamar hipocritamente desinteressado na construção de um socialismo marxista, de cariz totalitário, stalinista. Finge hipocritamente colaborar num projecto de uma «democracia burguesa», com que procura «ganhar tempo», até dominar todo o aparelho burocrático. Delineia todo um processo de agitação ao nível laboral, de incitamento à greve, de unidade sindical (unicidade), de reivindicações salariais, usando e abusando do método leninista de repetição de «slogans» demagógicos, explorando o baixo instinto das massas proletárias, dando-lhe a falsa ideia de que a revolução somente se tornará possível quando os trabalhadores controlarem todo o processo produtivo. Propõe uma luta irracionalmente antimonopolista e destrutiva das grandes empresas, incluindo a banca e os seguros. Lança desse modo a semente do ódio e toda uma seara cresce a partir daí. Não é mais a revolução: é o inferno...

Curiosamente, estávamos a poucos dias, menos de um mês, do 25 de Abril e já o PC era o patrãozinho. Adoptando o melhor da sua técnica e usando da maleabilidade ajustada a cada circunstância, procurava paralisar toda e qualquer reacção dos sectores militares menos permeáveis ao canto da sereia comunista, grande parte dos quais na altura eram os únicos detentores legítimos de uma certa força real. Daí os expurgos levados a cabo nos diversos ramos das Forças Armadas, de oficiais de carreira, passados compulsivamente à reserva com a cobarde conivência de camaradas e amigos. Eram depurações, à boa maneira stalinista!











(...) O PC propõe as grandes linhas de actuação - É o caos...


Em entrevista concedida em 28 de Janeiro aos orgãos de Informação em pleno surto gonçalvista, e o Partido Comunista vive aí o seu período de maior triunfalismo, é Álvaro Cunhal quem afirma, ao referir-se à grave situação económica e financeira, situação essa que, no seu entender, exige medidas que capitula de urgentes e operativas:

«O País aguarda com profundo interesse o programa de emergência que o Governo prepara (1). É legítimo esperar medidas enérgicas para restabelecer o equilíbrio financeiro e para atacar e impedir a sabotagem económica com que o grande capital e os grandes agrários (2) estão minando a economia portuguesa». E acrescenta sempre a mesma ladaínha: «Os monopólios retiram das empresas os capitais criados pelos trabalhadores e aumentam as fortunas privadas, deixando que as empresas caminhem para a falência e o encerramento. Os grandes agrários abandonam as culturas». Finalizando, diria ainda que «Portugal não poderá sair das dificuldades actuais sem uma consequente política antimonopolista e antilatifundiária e sem a intervenção criadora das massas trabalhadoras nas actividades económicas nacionais»...

Todo o Povo Português teve ocasião de viver horas de amargura e inquietação justamente por se ter pretendido, inconscientemente, transferir para as massas trabalhadoras a responsabilidade da direcção das actividades económicas da Nação. Viu-se, à saciedade, até que ponto a intervenção criadora das massas conduziu este País... Algumas dessas acções, apreciadas à distância dos factos que as geraram, permite-nos a possibilidade de avaliar, com maior serenidade e objectividade, até que ponto foi possível, num clima tumultuário, anárquico e irresponsável, fazer imperar a mediocridade, a incompetência, o espírito mesquinho de vingança, o nu das frustrações, dos recalcamentos, a demagogia, e, sobretudo, a porca necessidade de mentir, grosseira e indigníssimamente!


(...) PARTICIPAÇÃO SOCIALISTA NO PROCESSO

(...) Mário Soares, motor da desgraça Nacional...


Não é possível dissociar a pessoa do dr. Mário Soares do número daqueles exilados que, de regresso à Pátria, mais poderosamente contribuíram para precipitar o processo político na situação de anarquia e de irresponsabilidade que o País viveu tumultuariamente até ao 25 de Novembro. De certa maneira, não poderá isentar-se o líder socialista da situação de desgoverno actual e da iminência dum colapso do corpo social da Nação.

Verdadeiramente, à data do 25 de Abril, o Partido Socialista não era uma organização hierarquizada de quadros: mas um rebanho tresmalhado, por aqui e por ali. Algumas da suas ovelhas baliam no estrangeiro, atacando e denegrindo a Pátria, numa conspiração permanente. Em Portugal a única «presença» viva era a dos chamados «republicanos históricos», alguns de inspiração socialista, mas de um socialismo sério e patriótico que nada tinha a ver nem com o de Paris e menos ainda com o de Argel. Carlos Vilhena, Prof. Dias Amado, dr. Aresta Branco, dr. Aníbal de Castro, Comandante Cabeçadas, Moreira de Campos, Almirante Ramos Pereira, Eng.º José Hermógenes do Rosário, Roberto e Rui de Brito, e tantos outros, com igual estatura moral e política, são exemplos de fidelidade a um ideal, mas totalmente incapazes de vender-se por 30 dinheiros...

Com Mário Soares, dá-se este caso espantoso: a revolução foi a 25 de Abril e já a 28, três dias depois, ei-lo que, febricitante e apressado, rompe em Santa Apolónia, vindo de Paris, onde comprazera a sua solidão de político frustrado. Logo que chegado, entre palmas e vivas, apertado pelos braços de uns e outros, ao sol lusitano, começou por declarar ao «Diário de Notícias» que, como era evidente, «não trazia um programa na manga do casaco», repontando: «Mas, enfim, quais serão esses problemas a resolver? Naturalmente, visto em linhas gerais, a crise económica, a inflação, a imigração, as actividades sindicais e, com certeza, a guerra em África»... Nessa mesma miniconferência de imprensa, improvisada em Santa Apolónia, aproveita para acrescentar ser «o general António de Spínola um militar corajoso e respeitador a quem todos devemos estar gratos», esperando, por seu lado, «fazer do povo socialista português um verdadeiro povo socialista europeu» e concluía grandiloquentemente: «O Exército fez a revolução - agora o povo manda»...

Regressando, portanto, a 28 de Abril, vindo também, como o seu camarada Cunhal, de um «exílio doirado» - só que um de Paris e outro de Moscovo - logo a 3 de Maio arranca célere em direcção a Londres, para uma viagem «relâmpago» por algumas capitais europeias, para onde viajava não a título oficioso nem oficial mas apenas como enviado do seu Partido, fazendo-se acompanhar da mulher, Maria Barroso, e de Jorge Campinos.

Quatro dias depois, em conferência de imprensa, devidamente organizada, extensiva à rádio e à televisão portuguesa e estrangeira, Mário Soares iria desenvolver os resultados positivos da sua viagem, a posição do seu Partido face ao movimento político, do Governo Provisório a constituir em breve, a posição do PS perante o problema colonial, dispondo-se a satisfazer algumas questões que lhe fossem formuladas.





Ver aqui


A personalidade do líder socialista, o seu estofo moral, a sua categoria mental, o oportunismo político que, ao longo do processo revolucionário do pós-25 de Abril, havia de caracterizar, com rigorosa precisão, a sua trajectória em equilíbrio instável - começou verdadeiramente por se definir nesse contacto em grande com os orgãos de comunicação social. Efectivamente, sem tirar nem pôr, Mário Soares está todo ali, em corpo inteiro.


(...) Não à participação de homens comprometidos...


Aproveitou o chefe socialista para declarar que Portugal tinha já uma imagem (não haviam passado ainda 15 dias do 25 de Abril...) completamente diferente da de há duas semanas atrás, tendo o seu Partido contribuído em grande parte para esse volte-face. Relatou mesmo que os ingleses lhe terão dito que se o general Spínola quisesse ir a Londres seria ali recebido em apoteose (sic)...

No período de perguntas e respostas, que se seguiu, declararia que o PS não estava disposto de forma nenhuma a aceitar no próximo Governo Provisório qualquer antigo governante do regime fascista, embora considerasse que o seu Partido saberia, em qualquer caso, separar o trigo do joio...

Curiosas, esclarecedoras e não menos edificantes, para o que fizera «correr» na altura Mário Soares, são o feixe de revelações feitas, hoje aqui, amanhã ali, em nome do seu país, à medida que cirandava por algumas capitais da Europa, ora tendenciosas, ora disparatadas, reveladoras de um descoroçoante «infantilismo» político, característico aliás de certos homens de oposição que ainda arrastam as penas da sua profunda frustração. De jornais ou de simples despachos de agências noticiosas, aqui ficam alguns exemplos entre cómicos e confrangedores...


Soares e Spínola


Londres, serviço da «Reuter», 3 de Maio de 1974, dia em que Mário Soares empreenderia a sua famosa viagem-relâmpago:

O secretário-geral do Partido Socialista Português, afirmou nesta capital esperar o mais cedo possível um cessar-fogo entre as forças armadas do seu país e os movimentos de libertação em África. «Devemos negociar o mais depressa possível com os movimentos de libertação», observou o dr. Mário Soares a jornalistas londrinos. Respondendo a perguntas na conferência de Imprensa, declarou-se firmemente contra qualquer solução unilateral de independência nos territórios portugueses de África, semelhante à da Rodésia, em 1965. Disse que ficara enormemente impressionado com as duas entrevistas pessoais que tivera em Portugal com o general Spínola, chefe da nova Junta de Salvação Nacional, que assumiu há pouco o poder em Lisboa, e exprimiu a confiança que os socialistas depositavam nesse ilustre militar. Interrogado acerca de notícias de que poderia vir a sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros num novo Governo português - o dr. Mário Soares retorquiu que ninguém lhe falara sobre isso e que o assunto não fora discutido no seio do seu partido. Tornou, porém, bem claro que os socialistas esperariam ter certa influência em qualquer nova união das forças democráticas em Portugal.

Em declarações prestadas à mesma agência de notícias, definiu as duas maiores dificuldades que o Portugal Novo enfrentava como sendo a de evitar uma divisão entre as diversas forças políticas e a possibilidade de paralisia ou deterioração económica (3)... Pensava deverem os comunistas participar no futuro político de Portugal, porque pertenciam à comunidade nacional e representavam uma tendência política, salientando que os socialistas nunca participariam num governo não eleito, nomeado pela Junta de Salvação Nacional, se esse mesmo governo não incluísse partidos da oposição...

Em entrevista concedida em 8 de Maio, no próprio dia da conferência de imprensa a que aludimos, à «Newsweek», publicada em Portugal em exclusivo de «O Século», pode ler-se como proferido por Mário Soares em respostas a perguntas que lhe foram sucessivamente apresentadas:

P. - Estaria disposto a fazer parte de um Governo Provisório que incluísse comunistas?

R. - Absolutamente, embora saibamos o que os comunistas defendem; eles têm um partido forte, que se manteve na vanguarda da luta contra a ditadura. Não podem ser excluídos.

P. - Vê qualquer possibilidade de formar uma Frente Popular com os comunistas?

R. - Não temos um programa comum com os comunistas. De momento, não há uma Frente Popular, e não sei se viremos a estabelecer um pacto com os comunistas para as eleições. Para já, temos muitos e grandes problemas a resolver. Embora disponhamos de uma forte base (trabalhadores e intelectuais), temos de garantir a adesão de outras da vida portuguesa à nossa aliança. Precisamos da classe média, porque o seu apoio é essencial se quisermos alcançar a mudança revolucionária da nossa sociedade, que há tanto tempo nos é negada.

P. - Em sua opinião, qual o maior problema que Portugal tem de enfrentar nos próximos meses?

R. - A libertação das colónias africanas. Temos de começar a trabalhar imediatamente, no sentido de obtermos um cessar-fogo com as guerrilhas. Não podemos esperar doze meses por um Governo eleito, para tratar este assunto. É um problema que o general Spínola e o Governo Provisório devem tratar sem demora...









(...) Independência pura e simples para o Ultramar - Maio/1974


P. - Segundo o general Spínola, audeterminação não significa independência. Essa linha de orientação não será muito diferente da que o Partido Socialista está a tomar?

R. - O general Spínola conhece a nossa posição. É a de independência pura e simples...

P. - Vê qualquer possibilidade de os colonos brancos dos territórios africanos tomarem o Poder, se sentirem que Portugal tenciona afastar-se?

R. - Devo avisar os separatistas brancos dos nossos territórios africanos que queiram seguir esse rumo de que os esperam novos Vietnames. Tenho-me encontrado com dirigentes dos movimentos de libertação, em conferências internacionais, e eles dizem-me que a sua luta não é contra o Povo Português, mas contra o fascismo e o colonizador... (4)

P. - Se o Partido Socialista vier a alcançar o Poder político em Portugal, que espécie de política económica pensa seguir?

R. - Não devemos afastar a burguesia. Mas a situação é explosiva, perante os chocantes contrastes entre riqueza e pobreza, neste País. Como sabe, o nosso nível de vida é o mais baixo da Europa Ocidental (5). Se nada se fizer para atenuar as evidentes diferenças de riqueza, as tensões aumentarão rapidamente, agora que o povo pode exprimir livremente os seus pontos de vista. Sob o anterior regime, tínhamos uma classe económica «dirigista» que lucrou enormemente com a ditadura. Os seus privilégios ser-lhes-ão retirados...

P. - No campo da política externa: prevê qualquer modificação da atitude de Portugal para com a aliança ocidental?

R. - Enquanto o outro lado mantiver o Pacto de Varsóvia, creio na cooperação com o Ocidente e na aliança de segurança colectiva que a NATO representa. Quanto à base dos Açores - é assunto que pode esperar. Temos coisas mais importantes a resolver neste momento.

P. - Receia qualquer contragolpe da parte dos que ainda acreditam no antigo regime?

R. - Temos de estar atentos. Creio na tolerância. Mas não podemos permitir a ameaça de uma contra-revolução que venha fazer do País um novo Chile. Penso que devemos depurar todos os responsáveis pelo assassínio de tantos dos nossos dirigentes políticos durante a ditadura. Se nada fizermos, eles podem subir, tomar o poder e executar-me, como aconteceu no Chile...


(...) Situação catastrófica da economia - Maio/1974...


Entretanto, na rádio belga, no mesmo dia, declarou o líder do PS viajar por algumas capitais europeias com o objectivo de «informar o mundo da situação do seu País» e mais: «Há que agir agora em duas direcções: salvar a catastrófica situação financeira de Portugal (6), recebendo por isso auxílio dos países aliados e amigos, e encetar o processo de descolonização, acabando com a guerra nos territórios portugueses de África». O dr. Soares pronunciou-se no sentido da independência dos territórios ultramarinos e de negociações imediatas com os movimentos africanos de libertação. Um dos pontos salientes do comunicado final das suas conversações com os dirigentes socialistas belgas aponta justamente para a esperança de que Portugal democrático ocupe o seu lugar dentro das organizações europeias...

O chefe do PS, por sua vez, pediu, também, o reconhecimento rápido, por parte de todos os países, do novo Governo militar de Portugal e mais auxílio financeiro e técnico para a sua Pátria (7). O jornalista que o entrevistou na rádio belga ter-lhe-ia perguntado se era a favor de uma Federação ou da Independência, ao que aquele respondera prontamente: «Sou abertamente pela independência e na minha opinião e na do meu partidoé necessário negociar urgentemente com os Movimentos africanos de Libertação»...






Vala comum dos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas assassinados às ordens de Luís Cabral (1980).



Acordo do Alvor


















 (...) Soares, quando não mente - inventa...


Terminado o retrato, a corpo inteiro, feito por Soares a ele próprio, que mais dizer do novo astro que, vindo de Paris, sôfrego de ambição e do poder, surgiu luminoso, enriquecido pelo exílio, por entre as chaminés da Pátria?

A filosofia do homem, como escreveu Ficht, depende da espécie de homem que ele é. A deste é assim: com tanto articular, desarticulou-se de todo. Viajando por conta e risco, ainda em cima do 25 de Abril, por essas capitais europeias, perorou de alto, como se fosse já o primeiro-ministro que pensaria ser... Era esse o seu alvo. Em aceleração contínua, despejando hoje aqui, amanhã ali, opiniões levianas e desmioladas, comprometeu, com frequência, o futuro Governo Provisório a constituir, especialmente quanto a questões de fundo, de grande melindre, que inconsequentemente avançou. No seu inveterado vício de «globe-trotter», deslumbrou-se amiúde na asneira piramidal, proferindo hoje neste país, amanhã naquele, chorrilhos de despautérios, de mentirolas, de grosseiras e inqualificáveis distorções da realidade portuguesa à data do 25 de abril, numa palavra: todo ele se desencaixou, sem o mínimo aprumo, numa apojadura irreprimível de disparates e leviandades. Na sua ignorância, ou na sua esperteza saloia, no sectarismo hermético que não lhe permitia uma réstea de luz ou de razão - não era fonte donde brotasse a água cristalina e pura da verdade humilde, mas um chafariz de água salobra, inquinada de escorrências fétidas.

Dizia Swift que para sustentar uma mentira é preciso forjar pelos menos vinte. Nunca Mário Soares iludiu essa exigência: quando não multiplica a mentira, inventa dislates sem conta...

Ler à distância afirmações por si produzidas, quer quando da sua viagem-relâmpago, quer quando do regresso do seu exílio «valorizador» («eu próprio sou hoje outro homem»), é sentirmo-nos perplexos, sem saber que mais admirar: se a sua ignorância, se a sua bonomia. Se este homem não desempenhasse o alto cargo que desempenha, não valia a pena gastar dez réis de tempo com ele. Atirávamo-lo para o caixote do lixo da história política deste País, como a um Cunhal, e outros tantos cáca-ralas que, em carne limpa, não valem dois vinténs...

Não será este o caso. O líder socialista, no transcurso da sua chegada a Portugal, a 28 de Abril, até à primeira crise do processo revolucionário, em Julho de 1974, somou erros sobre erros, concorrendo largamente, pela sua fatuidade, para o descalabro da descolonização, para a destruição das estruturas económicas do País, para uma prática política confusionista, na sombra do Partido Comunista, o seu grande complexo - que acabaria por conduzir à desgraça que se abateria inclemente sobre a Pátria.


(...) Lusaka: A Traição


É como ministro dos Estrangeiros que vai a Lusaka apunhalar o Programa do MFA no respeitante ao problema do Ultramar e dar satisfação a compromissos firmados, há muito, com os seus comparsas do estrangeiro, decidindo nas costas do Povo Português sobre a questão mais transcendente da vida nacional.

Tem consigo a rabulice do advogado citadino, mas falta-lhe o quid que define os grandes homens de Estado: sagacidade, poder de previsão, inteligência ponderada. As suas mais espectaculares intervenções públicas - retratam-no como um político sem dimensão e sem craveira, confinado nos estreitos e apertados limites de uma capacidade mais do que duvidosa. A demagogia é a sua grande arma, a sua força. Utilizou-a quanto pode em seu favor e do seu partido, e dela vai fazendo o mau uso que, umas vezes em nome da democracia e, noutras, em nome do socialismo sem liberdade, se lhe consente.

Quanto se desprende deste homem, em termos de acção política consequente, é toda uma situação de vazio, de desconsolo e de desconforto. Estamo-nos nas tintas com as suas «habilidades» forenses. Sentimo-nos é cada vez mais alarmados por nos darmos conta de que estamos a ser «dirigidos» por homens deste coturno. Terão aprendido muito nos seus exílios, a cinquenta contos por mês, ou lá o que fosse. Vida grande não se faz com pouco dinheiro. São homens que o exílio «valorizou» imenso, que muito aprenderam e deram nas vistas nessas universidades famosas da Europa e da América. Certo: os cérebros eram deles, nós uma casta de burricegos; seriam eles que defendiam e davam o nome a Portugal, o melhor mesmo da nossa massa cinzenta...



Álvaro Cunhal e Samora Machel





(...) Do elogio dos exilados às borracheiras de Soares...


Ao contrário do que seria de esperar, nesta viagem da história pátria, em vez de remediados descemos à pobreza extrema; em vez de fortalecidos estrategicamente, debilitámo-nos, amputando-nos a nós próprios na geografia das fronteiras seculares; em vez de glorificarmos através da Revolução os símbolos da Pátria, apoucámo-nos, rebaixando-nos na escala dos valores humanos; em vez de mais riqueza, empobrecemo-nos sem remédio - e de tudo quanto nos foi demagogicamente prometido somente nos deixaram, até ver, liberdade, liberdade para destruir, para criar ódios, forjar vinganças, cavar abismos sociais...

Esqueceram-se os «dirigentes» desta nova época histórica que esse supremo bem que é a liberdade não enche barrigas. Como diria Ramalho, nas Farpas, «porque a liberdade, por mais bela que ela seja, é na existência uma circunstância; a ordemé a condição essencial - intrínseca - da vida, a garantia do trabalho e a segurança do pão».

Os quatro anos e meio de exílio de Mário Soares, bem exprimidos, não deram mais do que a porcaria que está aí bem à vista de todos os portugueses. A sua estultícia de que iria escrever história e fazer a felicidade de um Povo terá sido fatal, não só para este homem como para todos os que, iludidos na sua pequenez pigmaliónica, parvamente se autoconvenceram de que seriam capazes de governar minimamente este País, em termos de eficiência e de dignidade. Ilusões que têm o seu preço. Ilusões que se pagam caro. Ilusões que se matam a si próprias.

Com muito acerto diria Jules Lamaître: «A tolice triunfante faz quezílias à gente, mas por muito que nos arrelie, que se lhe há-de fazer? Porque os tolos nunca saberão que são tolos senão no outro mundo, quando já não serve para nada»...


(...) Anarquia do Estado - O Poder na rua...


Referimos já que ainda o Povo Português se não apercebera completamente do ocorrido a 25 de Abril e logo no dia seguinte se faziam distribuir pelos militantes do CDE panfletos incendiados a clamar vinganças, a convidar ao atropelo e à violência revolucionária, apontando que «o caminho da liberdade é, hoje, o caminho da rua»...

Quando se fizer a história miúda do 25 de Abril da traição, hão-de surgir à superfície os responsáveis, os que consentiram, com a sua pusilanimidade, na destruição do País. A demagogia delirante dos chefes socialistas e comunistas, orquestrada ao nível dos orgãos de comunicação social - levaram rapidamente a uma rotação de 180 graus do corpo social da Nação. As contestações de rua, os plenários nos locais de trabalho, os saneamentos selvagens nas empresas e nos próprios organismos públicos, a desarticulação nos orgãos administrativos do poder local, o retraimento das forças de segurança pública, a quebra da autoridade e do respeito da lei - teriam fatalmente que gerar o caos, a desordem institucional, as reivindicações irrealistas, a agressividade dos trabalhadores, numa palavra: o pandemónio da desorganização total. Teimava-se chamar a isto uma revolução. Mas revolução de quê? Revolução da vergonha, dos ódios, das vinganças, das ambições desmedidas de certos homens pela inversão completa dos valores supremos. Apoucam-se os símbolos da Pátria na pessoa dos seus heróis, dos seus santos, dos seus grandes poetas e escritores, dos seus homens de arte, dos seus estadistas eméritos, que a História projecta no tempo, na dimensão que só o tempo dá!

Qualquer cáca-rala vindo de exílios equívocos, entre políticos e homens de letras e de ciência, de cambolhada com desertores, refractários, salteadores de bancos - os «grandes cérebros" de que falava Mário Soares -, arrogava-se falar de alto sobre complexos problemas da vida nacional, com tamanho desgarro e atrevimento, que as pessoas de bem quedavam-se perplexas e aturdidas. Foi a essa ralé, a essa escória entornada do esgoto de uma Europa em crise, que se fez presente do País que éramos em Abril de 1974!


(...) Carta de um Português a Galvão de Melo...


Menos de um mês depois do 25 de Abril, a 22 de Maio, recebia o general Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação Nacional, uma carta escrita por um só português e que, conforme foi referido aos écrans da televisão, onde foi lida pelo general, poderia ter sido escrita por todos os portugueses autênticos. Vivia-se já então uma situação de desordem e de anarquia, de desencadear de ódios e de ambições reprimidas por anos de frustração, de inveja, de recalcamento. Estávamos a viver já o 25 de Abril da traição, da insídia, do golpe baixo, do saneamento, do tira-te daqui tu, para me pôr cá eu. Faziam-se apelos ao baixo instinto das multidões, adulando-as, apontando-lhes metas utópicas, impossíveis. Esse trabalho teve o seu tenebroso início logo em 26 de Abril, menos de 24 horas depois do pronunciamento militar. De facto, num panfleto, de pequeno formato, profusamente distribuído, o CDE dava o grito de ordem: «o caminho da liberdade é, hoje, o caminho da rua»... Com efeito, antes de 22 de Maio o poder estava mesmo na rua, e assim se manteve por muitos tempos e bons, como alimento dos mais vorazes revolucionários da nossa praça.

Vamos, no entanto, reproduzir o texto integral da alocução ao Povo Português que o general Galvão de Melo proferiria frente às câmaras da RTP, por elucidativa do processo, que bem cedo começaria a degradar-se:

«Com data de 22 de Maio, recebi uma carta que, embora dirigida à Junta de Salvação Nacional, vinha ao meu cuidado. Escrita por um português, poderia ter sido escrita por todos os portugueses autênticos. Vale a pena torná-la conhecida. Por isso qui estou. Ora escutai»:


À Junta de Salvação Nacional -

«Aderi desde a primeira hora, ao Movimento das Forças Armadas e ao programa da Junta de Salvação Nacional. Não represento ninguém, senão eu próprio. Mas, passadas quatro semanas sobre o 25 de Abril, começo por perguntar, e não obtenho resposta, se isto será a Liberdade que o Povo Português sonhava. Isto, que é libertarem-se terroristas sem pátria e transformá-los em heróis. Isto, que é permitir-se e fomentar-se a "caça" ao homem, o insulto gratuito, as ofensas corporais, o saque de casas. Isto, que é o boicote de "alguns", criado nas estações de rádio e televisão, com noticiários vergonhosos e impunemente parciais, em que aos próprios locutores se permitem atitudes mais impróprias e nos martelam com programas e reportagens de nível baixo de todos os limites, não permitindo pôr a claro as meias verdades e as mentiras propagadas nas emissões que são pagas por todos nós; e tudo isto sem que nenhum locutor ainda tenha sido suspenso, como já teria acontecido em qualquer País civilizado. Isto, que é permitir-se a ignóbil transcrição em jornais que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de imoralidade sem precedentes em qualquer país, em que a família e a moral existem ainda como valores.






Isto tudo será a liberdade?

A resposta a isto tudo começam a dar os jornais estrangeiros e bem insuspeitos que já troçam e nos apontam como a "democracia carnavalesca".

Em consciência, portanto, não podia deixar de me dirigir à Junta de Salvação Nacional e manifestar as minhas enormes apreensões pelo clima de anarquia que se vive e respira a todos os níveis e que está em total desacordo com a liberdade responsável que o Movimento das Forças Armadas veio trazer aos portugueses da Metrópole e do Ultramar.

Por último, pergunto: Poderá o País aguentar a crise económica que dia a dia se vai desenhando diante de todos, com a paralisação da indústria e do comércio, com o aumento de desemprego, consequência da falência inevitável de pequenas e médias empresas que soçobram perante as exigências demagógicas de oportunistas que se dizem representar o trabalhador honesto, o qual, na sua boa fé, assim se deixa enganar por gente sem escrúpulos? Que Deus guarde Portugal!».


(...) Spínola em dificuldade para salvar a Revolução...


Ao tentar a recomposição de um novo gabinete ministerial, o presidente Spínola experimenta no entanto dificuldades inusitadas, com que não contaria, enquanto por outro lado suporta pressões fortes que o impediam de consumar a nomeação de um Primeiro-Ministro de sua escolha e confiança, como viria a suceder com o tenente-coronel Mário Firmino Miguel. Contra a sua vontade, é praticamente levado a aceitar para idêntico cargo o então obscuro oficial de engenharia, tenente-coronel Vasco Gonçalves, apenas conhecido num meio militar muito restrito como de uma linha pró-comunista. Em circunstâncias quase idênticas, prisioneiro da mesma teia de que não consegue já desembaraçar-se, Spínola cede manifestamente ao chamado sector «progressista» do MFA e subscreve a nomeação para governador militar de Lisboa e adjunto do comando do COPCON (força militar recém-formada e que se achava na dependência directa do Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, general Costa Gomes), o então major de infantaria, Otelo Saraiva de Carvalho, que não navegava nas mesmas águas do presidente, bem pelo contrário.

(...) é conferida posse ao presidente da Junta Governativa de Angola, Almirante Rosa Coutinho. Em curtíssima cerimónia, o presidente da República lembra ao empossado as responsabilidades do «orgão agora criado em hora particularmente difícil da vida desse território, conturbada nos últimos dias por convulsões cujas origens se encontram detectadas»... Nessa mesma cerimónia, e no seu discurso, Spínola dá a entender de que algo vai passar-se relativamente à sorte dos territórios portugueses de Além-mar, quando diz: «Aliás, o País vai tomar muito brevemente conhecimento, em toda a a sua extensão, dos novos horizontes que se lhe abrem». A finalizar a sua curta alocução, o general lembrava ao empossado que a «população de Angola carece de ser devidamente esclarecida, pois presentemente vive-se ali um ambiente de dúvida, de incerteza, de inquietação, e de legítimos e justificados anseios. Cabe, portanto, a Vossa Excelência Senhor Almirante levar uma palavra de confiança ao povo de Angola, esclarecendo-o acerca das perspectivas dum futuro próspero em ambiente de paz e de convivência humana no quadro do desenvolvimento de um processo de descolonização que estamos vivamente empenhados em levar a bom termo».


(...) «27 de Julho»: entrega do Ultramar aos inimigos de Portugal


Efectivamente, três dias depois, em solene comunicação ao País, amplamente divulgada, o presidente Spínola, a 27 de Julho, fazia perante milhões de portugueses, emocionados e estupefactos, o seu «hara-kiri» político. Cedendo definitivamente a pressões internas e externas, acabava de proceder por esse modo brutal à entrega pura e simples do Ultramar aos inimigos da pátria portuguesa, com grave atropelo ao estabelecido no Programa do MFA e no decreto-lei n.º 202/74. Satisfazia-se, desse modo, a aspiração máxima de socialistas e comunistas, de Soares e de Cunhal: deixar, por qualquer preço, os territórios, com vidas e haveres de milhões de negros e de brancos portugueses, à voracidade de interesses neo-colonialistas estranhos a Portugal, com todas as suas dolorosas consequências. Seria o começo da descolonização exemplar...

A Lei constitucional n.º 7/74, decretada pelo Conselho de Estado, promulgada na véspera, havia criado o quadro de legitimidade constitucional à perpetração deste crime de lesa-Pátria. Removida essa última barreira, era reiterado assim o reconhecimento do direito dos povos dos territórios ultramarinos portugueses à autodeterminação, incluindo o reconhecimento do seu direito à independência.


(...) Quem fez «Trair»?


(...) Igualmente é de espantar que, em Dezembro de 1974, Almeida Santos, na ONU, apresentasse um calendário completo para as independências de Moçambique, Angola e Guiné. Não menos espantosa a revelação feita pelo ministro português de que Portugal havia já contribuído, ou dispenderia, até final do ano, 230 milhões de dólares (seis e meio milhões de contos) com a assistência financeira, não reembolsável, para apressar o processo de descolonização...

Quem faria, pois, «correr» estes homens?!




(...) Perda do Ultramar por abandono - Crime sem perdão!


Uma certa falta de preparação política tornou António de Spínola presa fácil dos que, por ambição e sem escrúpulos, o rodearam e lisonjearam, servindo-se, apenas para os seus tenebrosos desígnios, do seu prestígio e da sua farda honrada de militar e de patriota. No que se refere às teses relativas ao Ultramar e que já haviam levado o anterior regime a sustentar, no interesse do País, uma luta de guerrilha imposta de fora para dentro dos nossos territórios africanos, era de uma transparência cristalina que tudo se passaria como passou logo que franqueados esses territórios ao apetite e às cobiças que há muito se exerciam sobre eles. A política de defesa promovida nesses territórios, impondo uma guerra de mato desgastante e incómoda, não resultava de um mero capricho de dirigentes teimosos, obstinados ou pouco esclarecidos. A resistência, de armas na mão, constituía, na circunstância, um dever nacional indeclinável. Jogava-se nessa guerra, que nunca quisemos e não merecíamos, o destino de Portugal. Todos os portugueses, combatentes e não combatentes, estavam conscientes que esse esforço visava acima de tudo defender, contra os golpes traiçoeiros do terrorismo, as populações, na sua vida, no seu trabalho, na sua fazenda. A defesa, de armas empunhadas, visava essencialmente preservar a unidade moral e política da Nação.

Ora, perder o Ultramar, nas condições desastrosas que se verificaram, abandonando as populações à sua sorte, permitindo autênticos genocídios - é mais do que um crime: uma traição sem nome.

Que haja serenidade possível, perante o que foi o horror da descolonização na Guiné, Moçambique, Angola e até em Timor, permitir que se intitule «conselheiro» de uma revolução um Vítor Crespo qualquer que publicamente afirme ter sido essa mesma descolonização uma tarefa tão grandiosa como a dos descobrimentos marítimos dos portugueses de quinhentos - equivale à demissão completa da qualidade de português! (in 25 de Abril: A Revolução da Vergonha, Literal, 1977, pp. 17-19; 33-34; 54; 56-59; 62-65; 71-75; 78-83; 88-91; 95 e 102).


Notas:

(1) Referia-se ao Programa de Política Económica e Social, conhecido pelo nome de «Plano Melo Antunes» e que apesar do seu elevado custo, estadia de técnicos no Hotel do Mar, em Sesimbra, composição, impressão e distribuição, etc., foi deitado para o caixote do lixo...

(2) A obsessão de Cunhal com «os grandes agrários» é uma mania como outra qualquer, e demonstrativa do elevado grau de desconhecimento e ignorância da situação portuguesa e de quanto o PC se serve de música de ouvido para melhor endrominar os pobres de Cristo que ainda o vão escutando. Não admira que Álvaro Cunhal e seus acólitos cometam tantas e tão frequentes gafes, especialmente o seu chefe de fila que viveu entre prisões e exílio cerca de 30 anos afastado dos problemas reais do País. Num quadro de distribuição relativo às explorações agrícolas com cultura arvense, por classes de extensão, cadastro levantado por volta dos anos 70, verificava-se a seguinte situação no respeitante ao Alto e Baixo Alentejo:



Portanto, de um total de 43.587 explorações agrícolas, considerados «grandes agrários» apenas 315, com uma média de exploração por hectare da ordem dos 2.300... além de que para alcançar as actuais relações entre homem activo por Ha. de terra arável e por número de cabeças de gado dos países desenvolvidos - ter-se-ia que reduzir pelo menos a nossa força de trabalho agrícola para um terço ou para um quarto do número actual, o que, a manter-se a taxa de momento, empolada pela pseudo-reforma agrária, levaria nada menos do que duas gerações, tempo que se entende incompatível com a existência mínima do progresso social e económico desejável.

(3) (...) a actuação irrealista dos partidos socialista e comunista, por uma série de violências praticadas nos mecanismos da economia do País, logo após o 25 de Abril, conduziriam a uma situação próxima da bancarrota; esse irrealismo teve a sua origem na ignorância por um lado e num grosseiro erro de avaliação por outro da situação real e concreta do todo nacional nos anos 70. Possibilidade de paralisia ou deterioração económica existe de há dois anos para cá - não existia de modo nenhum ao tempo do anterior regime, apesar dos encargos com a guerra colonial. Éramos um País económica e financeiramente arrumado, empenhado num bem programado plano de desenvolvimento que em breve daria os seus frutos, colocando-nos ao nível dos melhores índices europeus. Falar como falava Soares, por todo o lado, de dificuldades económicas e de necessidades de auxílios, era a capa de que desonestamente se servia para justificar uma posição de luta ideológica - que, ao fim e ao cabo, desgraçaria o País, destruindo-o.

(4) A doce ilusão de que a luta que nos era movida em África não se dirigia contra o Povo Português, mas contra o fascismo e o colonialismo, apresentava-se nas tertúlias internacionais como um isco... Morderam-no os opositores activos que no estrangeiro, exilados, desertores ou refractários, conspiravam sem descanso contra a sua Pátria. Oferecida de mão beijada a Independência - logo surgiu a manifestar-se contra o branco português o mais feroz racismo negro, como sucedera sempre, em todos os outros territórios africanos libertados. Não pode ter sido pior o comportamento dos responsáveis negros. Porquê, agora?!...

(5) Da Europa Ocidental, com certeza que sim: mas superior ao da Grécia, Jugoslávia e de todos os países socialistas do leste europeu, e a par da Itália e Espanha. É evidente que não chegara o esforço feito de recuperação de um País destroçado em 1926, para atingir o nível de vida da França, Alemanha, Grã-Bretanha, Suíça e Países Nórdicos. Só por milagre. Mas pelo que se está vendo, o Dr. Mário Soares depressa nos levará lá. A que ponto chega a ignorância e o sectarismo!















Ver aqui


(6) Esta tecla seria obsessivamente tocada pelo líder do PS. Para falar com tamanho despudor de uma catastrófica situação económica em Portugal atinge as raias da demência. Tal facto, demonstraria, poria a nu, quanto Mário Soares desconhecia a situação económica e financeira do seu País, especialmente quanto a este último aspecto em que desfrutava de uma situação ímpar em todo o Mundo, a tal ponto que tem sustentado e amparado as loucuras e sandices revolucionárias de todos os Soares e Cunhais à beira mar plantados...

(7) Ridículo e irrisório o mercadejar por toda a parte um auxílio financeiro, quando Portugal dispunha por então de reservas em ouro e divisas que faziam a inveja de muitos países ricos. Pedir, pois, auxílio financeiro a que título? Para forçar a nota de que éramos um País arruinado ao tempo do anterior regime? Mas isso era tão estúpido, senhores!

Continua



A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão» (ii)

$
0
0
Escrito por João M. da Costa Figueira




Jean-Paul Sartre



Ver aqui



Alioune Diop, o "Sócrates negro".













«O pan-africanismo ou doutrina da negritude está na base do pan-africanismo político e é também um pan-africanismo cultural. O movimento representava um esforço de revalorização da cultura africana face às outras, nomeadamente a europeia. A doutrina da negritude foi concebida por intelectuais negros franceses, tinha como orgão a revista Présence Africaine e encontrou um poderoso aliado em Jean-Paul Sartre, que na sua obra L'Orphée Noir procurou teorizar as bases da doutrina como fundamento da revolta dos africanos contra a Europa».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).



«Lá estão vocês a inventar revoluções».


Resposta do ministro da Defesa, Silva Cunha, quando foi informado às 00:20 de 25/4, de que uma coluna militar tinha saído de Santarém...


«Correu auspiciosa a tomada de posse de Marcello Caetano como presidente do Conselho de Ministros, envolta numa atmosfera de destendimento e esperança. Durante largos anos, Caetano tinha tecido a sua teia de apoios e ia começar a dispô-los nos principais lugares. Tentou liberalizar o país, embora com passos comedidos e seguros - a tal "evolução na continuidade" - e tentou desenvolver a economia do país de forma a reflectir-se numa melhoria das condições sociais da população (o "Estado Social"), o que conseguiu.

Liberalizou o regime dando ordens para que houvesse uma maior tolerância na censura, cujo nome acabou por mudar para "exame prévio"; permitiu o despontar de formações políticas, como a SEDES e a "Ala Liberal", tentou revitalizar e modernizar a União Nacional, que crismou de Acção Nacional Popular; permitiu o regresso do exílio ao bispo do Porto e a Mário Soares, ainda antes das eleições de 1969, e "suavizou" a actuação da PIDE, que rebaptizou de DGS.

No entanto, relativamente ao problema maior que o país tinha em mãos, a defesa do Ultramar, nunca se conseguiu perceber muito bem aquilo que pretendia ou que desejava fazer. Tentou criar uma via intermédia entre os ortodoxos do regime - conhecidos na gíria popular como "ultras" - e a oposição dita democrática, com óbvia exclusão do PCP.

Porém, não conseguiu consolidar uma força autónoma e acabou por ir desagradando a todos, o que, numa escalada dolorosa para o próprio e dramática para o país, acabou por o deixar quase isolado e sem saber o que fazer. Algumas "ingenuidades", quase inverosímeis, marcaram também o seu percurso. Eis, em síntese, as principais etapas deste "calvário".

Começou por reabilitar o grupo de personalidades que tinham entrado na "Abrilada" de 1961, a quem, aliás, tinha estado ligado. Deste modo, Costa Gomes foi logo promovido a general e Almeida Fernandes foi para presidente do Conselho de Administração da CP.

Outra das medidas tomadas por Marcello Caetano foi proibir a PIDE, quando mudou o seu nome para DGS, de desenvolver qualquer acção contra o PCP. [Dados obtidos em entrevista ao inspector António Capela, da DGS, em Março de 2008]. Não por acaso, foi precisamente nessa altura que ocorreram vários atentados e sabotagens de certa gravidade, como foi o atentado à bomba contra o navio Cunene, no porto de Lisboa (Outubro de 1970); o triplo atentado no mês seguinte, em Lisboa, contra a Escola Técnica da DGS, ao Centro Cultural Americano e aos armazéns do Cais da Fundição; em Março de 1971, destruição de cerca de uma dezena de aviões e helicópteros na Base Aérea de Tancos; no mês seguinte, desapareceu o navio Angoche, ao largo de Moçambique, o que causou 23 desaparecidos. Estas acções foram desencadeadas pela Acção Revolucionária Armada, embora também se tenham verificado muitos atentados provocados por outros grupos e focos de agitação social. Ao fim de oito meses, a ordem foi revogada.

No seu primeiro discurso, a 17 de Novembro de 1968, na Assembleia Nacional, Marcello Caetano introduziu alterações de semântica e usou de ambiguidades que fizeram nascer dúvidas no ideário da defesa ultramarina e na justeza das razões até então defendidas.

Durante a campanha eleitoral de 1969, Marcello referiu-se à "progressiva autonomia" das províncias ultramarinas, o que abriu fissuras no seio do regime e, na sequência disso, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, demitiu-se. Com efeito, o discurso onde essa ideia foi avançada, proferido a 27 de Setembro de 1970, caiu mal entre os indefectíveis do Estado Novo. A sua análise da situação em África mostrava que o novo chefe do Governo estava disposto a abandonar um conjunto de valores que eram precisamente os pilares que sustentavam a defesa do Ultramar. Não surpreende por isso que os conservadores se tenham afastado definitivamente e que não tenha agradado aos "progressistas" e liberais, que o acusavam constantemente de ficar aquém das expectativas.






Durante a revisão constitucional de 1971, que fixou a autonomia progressiva das províncias, Angola e Moçambique subiram à categoria de Estados e todos os territórios passaram a dispor de orgãos electivos de governo próprio, o que convenceu os meios internacionais de que o governo português pretendia mudar a sua política ultramarina. No entanto, estas medidas foram mal recebidas nos meios conservadores, o que obrigou Marcello Caetano a inflectir à direita no discurso comemorativo dos 45 anos do 28 de Maio, em Braga.

Entretanto, começaram os equívocos com Spínola. Em 1972, era necessário eleger o Presidente da República. Houve discussão, mas ninguém parecia ter coragem de substituir o almirante Tomás, que já levava 14 anos no cargo. Chegou a pensar-se em Spínola (isso talvez tivesse evitado o 25 de Abril), embora sem grande convicção, o que a avaliar por aquilo que se passou mais tarde não teria sido muito prudente. Ainda assim, consideramos um erro grave de avaliação não se ter sentado outra pessoa em Belém. Do mesmo modo, dever-se-ia ter preparado as coisas - se bem que isso fosse um gesto arriscado para os defensores do regime - para que a eleição do Presidente da República voltasse a ser feita por sufrágio directo e universal.

As eleições legislativas realizaram-se em 1973. A oposição reuniu em Aveiro, onde a política ultramarina foi atacada sem piedade. Houve distúrbios. Os liberais, por sua vez, também se reuniram e fizeram uma viragem à esquerda. Pela mesma época, o Congresso dos Combatentes reuniu no Porto, com o objectivo de insuflar novo ânimo e levar a cabo novas acções tendo em conta a luta que estava a ser travada, um encontro que foi mal recebido pelo governo. Marcello Caetano estava cada vez mais isolado.

A partir de 1973, a agitação nas Forças Armadas começou a aumentar e as relações político-militares complicaram-se. Para o agravamento da situação nos quartéis contribuíram decisivamente duas questões: numa conversa entre Marcello Caetano e António de Spínola, à data governador da província da Guiné, onde a situação militar se tinha agravado (em resultado da transferência do esforço da acção socioeconómica da área do Chão Manjaco para sul, mas agora para bater militarmente o PAIGC), este último terá aventado a hipótese de se encetarem negociações com o PAIGC. O chefe do Governo recusou formalmente a proposta, dizendo-lhe que "para defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho a outras negociações".

Spínola não terá digerido bem a resposta de Marcello Caetano e uma vez mais começou a circular nas Forças Armadas o "fantasma" de Goa, Damão e Diu, cuja derrocada militar provocara um grande mal-estar em 1961.

A segunda questão teve que ver com a falta de candidatos às academias militares, na verdade as instituições que alimentavam as fileiras dos quadros permanentes, sobretudo nas armas combatentes. Essa situação obrigou a uma multiplicação de comissões nos teatros de operações, por parte dos oficiais do quadro permanente, o que originava, naturalmente, um grande cansaço físico e psíquico (embora fizesse parte das vicissitudes da profissão), mas também um deficiente enquadramento das tropas (o número de unidades aumentava desproporcionalmente aos quadros), o que obrigou a recorrer mais frequentemente aos oficiais milicianos. Com o tempo pensou-se inclusivamente em facultar o acesso de milicianos com o curso liceal e com experiência de campanha às escolas militares e assim reforçar os efectivos do quadro permanente. No início, estes oficiais faziam o curso normal da Academia Militar e entravam na escala hierárquica à esquerda dos oficiais oriundos de cadetes do mesmo ano. No entanto, como este artifício não resolveu o problema da falta de efectivos, foi criado um curso especial, mais acelerado, e permitiu-se que os oficiais que o concluíssem fossem integrados no quadro permanente com a antiguidade de miliciano, ultrapassando assim muitos oficiais oriundos de cadetes. Esta medida estava contemplada, em termos sintéticos, no decreto 353/73, de 13 de Julho. O diploma foi imediatamente criticado por uma grande parte dos oficiais de carreira, sobretudo capitães, tendo muitos deles enviado exposições através da cadeia hierárquica. Ao mesmo tempo que o governo tentava corrigir a matéria através do decreto 409/73, foi redigida contra o decretos uma exposição colectiva de oficiais em serviço na Guiné. O governo convenceu-se que se tratava de uma manobra concertada e começaram a circular rumores de um movimento de capitães. Resultado: as regras da disciplina começaram a ser desafiadas. No fim do ano, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general Costa Gomes, apresentou ao chefe do governo as reclamações que lhe tinham feito chegar.

A opinião pública pouco se apercebeu do que se estava a passar. No entanto, os acontecimentos precipitaram-se. O "movimento dos capitães" transformou-se rapidamente e as reivindicações corporativas assumiram um pendor político, onde pontificavam as ideias-mito que assaltavam a sociedade da altura e que foram inoculadas e espalhadas nos meios castrenses através dos oficiais milicianos oriundos dos meios académicos, onde tais ideias estavam mais arreigadas e que iam ao arrepio da permanência portuguesa em África e dos princípios em que se baseava o Estado Novo. Viviam-se os ideais da fraternidade, do amor livre, da paz mundial, da sociedade da abundância e do bem-estar para todos; as ideias progressistas na Igreja estavam na moda, que muitos associavam, ao Concílio Vaticano II; fala-se na necessidade do diálogo, do pacifismo, do desarmamento e da ilicitude de qualquer guerra, etc.



Papa Paulo VI









Juntamente com o movimento dos capitães, havia novidades nas forças políticas hostis ao governo. Segundo algumas informações, tinha sido assinado um pacto entre socialistas e comunistas, no sentido de condenar em conjunto a permanência de Portugal fora da Europa. Foi então que surgiu a exigência da "solução política" para o problema ultramarino, o que, obviamente, significava entregar o poder aos movimentos independentistas, e no mais curto espaço de tempo. É de crer que muitos dos oficiais envolvidos nas conspirações que levariam ao derrube do governo e do regime não se apercebessem destas movimentações e muito menos das consequências que resultariam da sua acção.

Marcello Caetano estava cansado e desgostoso dos homens e da vida. A 11 de Março de 74 pediu a demissão ao Presidente da República. Este demorou três dias a responder-lhe, mas a verdade é que não procurou alternativa (tendo morrido o prof. Salazar, o velho almirante - pessoa, aliás, de excelente compleição moral - não estava preparado para ser o "número um"). Limitou-se a convidar o presidente do Conselho de Ministros para um café, na sua residência, onde lhe disse que estavam os dois juntos naquilo e que agora era tarde para mudar. Outro erro.

Marcello Caetano, aparentemente sem saber o que fazer, concebeu um plano em que iria inventar uma crise para sair da crise: um conflito entre o ministro do Ultramar e um governo de uma província (Angola), que seria agravado artificialmente e que resultaria numa declaração unilateral de independência! Tinha-se entrado no desvario! Em seguida, apareceu o livro de Spínola, que terá recebido mais inputs de outros do que do próprio, com ideias requentadas, que jamais seriam aceites por quem nos combatia -, e, por isso, não resolveria nada - e cuja autorização para publicação foi dada sem aparentemente ninguém o ter lido, baseado num parecer do general Costa Gomes, que há mais de 20 anos ia passando entre os intervalos das crises que cruzava, dando uma no cravo e outra na ferradura. Uma história que parece muito mal contada.

Enfim, o resto é conhecido: intentona frustrada nas Caldas, a 16 de Março; convocação dos oficiais-generais para uma sessão de apoio ao chefe do Governo e da política ultramarina; demissão dos generais Costa Gomes e Spínola (que se recusaram a estar presentes); Grândola Vila Morena a 25 de Abril. Entre as Caldas e Abril foram presos três oficiais. Outra história incompreensível. A explicação (não exaustiva) encontra-se num artigo intitulado "Uma missão (quase) impossível". [Publicado na revista Macau, II série, n.º 56, de Dezembro de 1996]. O tenente-coronel Mariano Tamagnini Barbosa foi encarregado de uma missão secreta em Macau, em Fevereiro de 1974. Como precisava de um passaporte diplomático especial foi levantá-lo à sede da DGS, em Lisboa. O subdirector da polícia, Barbieri Cardoso, estranhou o caso e quis saber o que se passava. A certa altura da conversa, o subdirector disse o seguinte: "Já que o senhor coronel me parece boa pessoa e pertence à Força Aérea onde o meu irmão é médico, deixe-me dar-lhe um conselho: vá para onde for, não volte tão cedo a Portugal, fique por lá, se regressar encontrará o seu país irreconhecível, dominado por comunistas". Depois, prosseguindo num tom de voz cada vez mais exaltado, declarou: "O responsável por essa desgraça é esse f. da p. do Marcello Caetano, que não permite que metamos na linha esses seus colegas capitãezinhos, que andam para aí a conspirar e a fazer reuniões para derrubarem o regime. Nós estamos a par de tudo, sabemos o que dizem, o que planeiam e onde se reúnem, mas esse canalha do Marcello é que nos dá ordem para não actuarmos.

"É preciso ter paciência e compreensão para com essa juventude", diz-nos. Nós estamos manietados, não podemos fazer nada. Com o doutor Salazar era diferente, ordenava-nos logo "dêem uns abanõezitos nesses garotos e ponham-nos na ordem".

Note-se que este episódio se passou no dia 2 de Março de 1974, a menos de dois meses do 25 de Abril, o que mostra bem como a DGS estava por dentro do "movimento dos capitães" e Marcello Caetano devidamente informado.

Aquelas palavras foram premonitórias e se juntarmos a todas as peças deste puzzle ainda mal ajustado o facto de Marcello Caetano se ter recusado a seguir para Monsanto no 25 de Abril, como estava previsto, obrigando o agente da DGS que o foi buscar a casa a levá-lo para o Quartel do Carmo, onde recusou a fuga (que era possível e que lhe foi proposta) e se obstinou em receber Spínola; de se saber (por exemplo) que este não iria acabar com a DGS, apenas substituir o director pelo inspector Coelho Dias, seu condiscípulo do Colégio Militar; o facto ainda de ninguém ter dado ordens e assumido a condução das operações para conter o golpe em curso, etc., tendo tudo isto em conta, pode concluir-se, sem grande margem para erros, que o então chefe do Governo "desejaria" o golpe ou que, no mínimo, não estava disposto a anulá-lo e, nesse caso, teria havido alguma forma de entendimento com Spínola (ficaria Marcello Caetano como Presidente da República e Spínola como presidente do Conselho de Ministros?). [Marcello estava, aliás, preocupado com um possível golpe de "ultras", encabeçado pelo general Kaúlza de Arriaga (uma das principais figuras que fizera abortar a "Abrilada" em 1961!), tendo chegado a dar instruções à DGS para o vigiar. De facto, houve algumas movimentações na área mais conservadora do regime, que foi habilmente esvaziada após uma denúncia pública do então major Fabião, numa reunião no Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, em 17 de Dezembro de 1973].









M47 leais ao regime vs. blindados da EPC, na Rua do Arsenal.



Feytor Pinto e Nuno Brito partem de jipe para a residência de Spínola com mensagem de Marcello Caetano.



25 de Abril de 1974: Quartel do Carmo






No entanto, a vaidade de Spínola, que só encontrava paralelo na sua falta de preparação política, como aliás se viu na longa série de equívocos e desencontros que nos últimos anos marcaram as suas relações com Marcello Caetano e as pressões e contradições existentes no Movimento das Forças Armadas, que o general do monóculo nunca dominou ou influenciou maioritariamente, a sua vaidade, dizia, ditaram a saída rápida do presidente do Conselho de Ministros para o Funchal e dali para o Brasil. Fim de história e início de outra».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«(...) julgo justo e exacto afirmar: a revolução começou por ter um âmbito muito restrito quanto à sua origem e objectivos, que se diriam quase disciplinares e de grupo; dado o estado em que se encontrava a sociedade portuguesa, todavia, forças políticas e ideológicas exteriores logo compreenderam a oportunidade que podiam aproveitar ou provocar, e tomaram em mão um processo que foi rapidamente conduzido sem que a massa do povo português se apercebesse do que se passava».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


«Nesse dia [25 de Abril] do ano de 1974, um golpe de Estado militar alterava pois drasticamente o rumo histórico nacional, tomando o poder com o duplo objectivo expresso (Programa do MFA) de restaurar a democracia e de promover a auto-determinação do Ultramar português.

Mas em 28 de Setembro do mesmo ano, com a resignação de Spínola e com a ascensão do sector revolucionário e marxista do Movimento das Forças Armadas, principiava a desfiguração daquele Programa inicial e começava a eliminação pessoal dos partidários da auto-determinação referendada e da democracia pluralista, lançando-se ao mesmo tempo uma operação de lavagem ao cérebro do povo português ou de agressão ideológica maciça, de proporções entre nós nunca vistas.

Em 11 de Março do ano seguinte, no seguimento de uma estratégia já experimentada com êxito noutros lugares, como a Checoslováquia e a Hungria, o mesmo grupo em fusão, assenhoreando-se dos postos-chaves do Governo, das Forças Armadas e dos Meios de Comunicação Social, estabelecia os fundamentos da Revolução comunista e do Estado totalitário, criando uma força policial-militar de repressão, o Copcon, encerrando os Partidos e os jornais sumariamente classificados de reaccionários e fascistas, efectuando prisões em massa sem culpa formada, realizando vertiginosamente a nacionalização de toda a Banca e das principais empresas e unidades industriais, precipitando ocupações de terras no Alentejo, criando unidades colectivas no modelo dos Kolkozes russos, organizando por todo o lado sovietes ou comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados, de marinheiros, etc., ao mesmo tempo que lançava uma ofensiva de grande estilo contra a democracia "burguesa", aconselhava ostensivamente o voto em branco nas prometidas eleições para a Assembleia Constituinte e mais tarde deixava que os deputados fossem sequestrados dentro da própria Assembleia, por uma multidão manipulada e bem enquadrada.

Tudo isto foi possível devido à erosão do regime anterior, como já sublinhei, nomeadamente devido à despolitização, à impreparação e à inocência intelectual da maioria dos portugueses, ao que é preciso acrescentar os complexos de culpa, o oportunismo e o medo de muitos dirigentes políticos e militares que, não sendo comunistas, fizeram contudo o jogo comunista, tornando-se assim cumplíces conscientes ou inconscientes de uma tentativa totalitária que ia destruindo completamente o país e cujos efeitos foram de qualquer modo catastróficos. Efectivamente, numerosos foram os socialistas liberais, os sociais-democratas, os tecnocratas, os funcionários públicos, os cristãos-progressistas e os oficiais da Forças Armadas ontem conservadores, liberais ou patriotas, que aceitaram de braços cruzados ou até sancionaram uma política de terra queimada destinada patentemente à colectivização do país, à instauração de uma ditadura do proletariado e a uma descolonização sem referendo, sem garantia dos interesses portugueses e sem quaisquer concessões aos nossos colonos e assimilados, esses que mais tarde foram compelidos a fugir em massa das terras que desbravaram, das plantações que semearam e das cidades que edificaram, num dos êxodos mais pungentes e aviltantes da história contemporânea».

António Quadros («A Arte de Continuar Português»).




Orlando Vitorino e António Quadros



«Fora do quadro das Forças Armadas, cujos movimentos subterraneamente dirige, o Partido Comunista na esfera civil procura apresentar-se como pessoa de bem, como um comunismo contemporizador e humanizado, diferente do do camarado Staline, que sacrificara 20 milhões de vidas humanas para criar o paraíso soviético. Usando e abusando do mesmo expediente trapaceiro, contando para o efeito com larga divulgação na Rádio, Imprensa e Televisão, num comunicado do Comité Central em que analisava o momento político, em Junho de 1974, o PC declarava textualmente: "... É particularmente importante a participação dos católicos na vida política portuguesa. O Comité Central desaprova a divulgação pelos meios de informação de massas (TV, rádio, etc.), de obras literárias, teatrais e outras que firam as crenças e sentimentos religiosos. Fomentar conflitos em torno do problema da religião só pode conduzir a divisões e confrontos no movimento popular, num momento em que a unidade é mais necessária do que nunca"...

Em 26 de Janeiro de 1975, no auge do gonçalvismo, Cunhal em entrevista a alguns jornalistas franceses, no Centro de Trabalho de Alcântara, que os jornais portugueses largamente noticiaram, voltaria ao assunto, afirmando a propósito:

"O entendimento de comunistas e católicos é também uma das realidades positivas do movimento popular e democrático. Esse entendimento tem por base o acordo quanto a objectivos essenciais e o respeito sempre demonstrado pelos comunistas das crenças e da prática de culto". [Ora, a verdade, desde Marx e Engels, mais tarde com Staline e outros ditadores do Kremlin, não é que o comunismo respeite as crenças religiosas e as práticas de culto: muito pelo contrário. O comunismo além de "intrinsecamente perverso" (Pio XI), é por essência ateísta. Assim, o poder soviético luta contra a religião. Primeiro, por meio da separação das Igrejas e do Estado; em seguida pela organização da educação anti-religiosa nas escolas e pela educação anti-religiosa das massas. Com efeito, enquanto nos países capitalistas a separação da Igreja e do Estado permite à religião que se desenvolva ampla e livremente, na União Soviética esta separação leva a religião a uma morte natural e definitiva. Só há perfídia e cinismo nas palavras do líder comunista...].

É pois com esta mise-en-scène e falseada caracterização que se processa a primeira fase da estratégia do PC, ou seja a sua participação no primeiro Governo provisório, em 19 de Maio de 1974, logo a seguir à proclamação do general Spínola como Presidente da República.

No número de reaparição do "Avante!", orgão do Partido Comunista Português, em grande formato, e fora do regime de clandestinidade, publicado em 17 de Maio, aparentando uma força e um poder que não correspondiam a qualquer realidade - escrevia-se em tom de advertência: "A não-participação dos comunistas no Governo Provisório (seja porque o PCP recusasse, seja porque se formasse uma coligação com exclusão dos comunistas) comprometeria irremediavelmente o prosseguimento do processo de democratização. Provocaria sem qualquer dúvida sérias divisões no movimento democrático"... Este "papão" seria abusivamente utilizado pelo PC».

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: A Revolução da Vergonha»).


«Em cada dia que passava maior era a confusão no País, onde tudo se desmoronava, levando a crer que a estratégia conduzida por mão oculta estaria orientada para a chamada "terra queimada". Surgiria então a mão salvadora que evitaria o naufrágio completo mas da qual ficaríamos eternamente credores e dependentes.

Tinha vivido na Alemanha, em 1968, a dramática Primavera de Praga, em que a voz do povo que se levantou contra a opressão de Moscovo, foi prontamente esmagada pela força demolidora das armas, fazendo silenciar aquela gente que apenas pretendia um pouco de liberdade. Os alemães constituíram de imediato um "gabinete de crise" onde a evolução da situação na capital da Checoslováquia era permanentemente avaliada e medidas concretas tomadas a fim de prevenir quaisquer reflexos na RFA. Neste Gabinete, os adidos militares dos países da NATO eram, com frequência, postos ao corrente da situação e participavam na discussão da atitude soviética que em nada surpreendia o Ocidente e, apenas, reforçava a convicção de que estavam absolutamente determinados a prosseguir na sua estratégia. Dentro do seu "espaço" não havia dúvidas de que toda e qualquer tentativa para se libertarem de Moscovo seria, de imediato, neutralizada pela força. Fora deste espaço, seriam aproveitadas todas as insastisfações, reais ou forjadas, em qualquer parte do mundo, para intervirem prontamente sempre no apoio dos desprotegidos contra os senhores do poder ou do capital. De forma insidiosa mas firme, iniciava-se o processo de conversão dos "insatisfeitos" a potenciais agentes ou forças subversivas onde, naturalmente o vocábulo "comunista" não tinha cabimento para, sem levantarem suspeitas, mais facilmente e sem receios aliciarem os descontentes. Assim nasciam os gérmens que, bem orientados, iriam produzir os seus frutos dentro da estratégia definida.






























A Cambada. Ver aqui


Tudo isto, naquela altura, povoava os meus pensamentos e começava a preocupar-me, não em termos pessoais mas nacionais. Continuava totalmente fora do processo, procurando apenas manter-me bem informado. O que não era nada fácil, graças à autêntica hecatombe que desabara sobre quase todos os sectores da vida nacional. Num ápice as cadeias foram esvaziadas dos seus inquilinos, independentemente das razões que os tinham levado até lá e, quase no mesmo instante, foram novamente ocupadas por outros hóspedes, mesmo sem culpa formada. Pura e simplesmente, as pessoas eram escorraçadas das suas funções porque tinham servido o regime derrubado no 25 de Abril, por vinganças pessoais, por poderem constituir obstáculos ao andamento do processo ou por qualquer outro fundamento infundamentado. Quem não se recorda dos célebres mandados de captura em branco do COPCON? Tudo era possível e já nada nos surpreendia! Desconhecia em absoluto que entre os militares, os meus camaradas de armas, houvessem tantas "competências", tanta gente politicamente esclarecida nos mais diversos campos de actividade pública. Todo o aparelho do Estado, em pouco mais de um mês, mas principalmente após a queda do primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos, surge totalmente controlado pelos novos senhores do poder, os "capitães" do MFA segundo as directrizes emanadas de forças ocultas de acordo com os planos previamente estabelecidos. Tudo parecia acontecer por mero acaso como que duma forma totalmente anárquica, ditada pelas forças de circunstância. Puro engano, pois não podiam deixar de se inserir dentro duma estratégia que visava a tomada do poder por outras forças, pregadoras das amplas liberdades e da democracia. A insegurança da grande generalidade das pessoas e dos seus bens aumentava em exponencial. Falava-se na fuga para o estrangeiro de personalidades ligadas ao antigo regime que ainda não tinham sido presas e da saída de capitais. Era o "salve-se quem puder".

Entretanto estabelecem-se relações diplomáticas com os países do Leste, entre as quais se deve salientar a União Soviética que em 11 de Junho abriu uma embaixada com mais de trezentos, digo trezentos, funcionários, tendo à frente o senhor A. Kallinin que, curiosamente, tinha estado anteriormente no Chile a "instalar" Allende e em Cuba a orientar Fidel de Castro. Corria que se tinham apresentado com um verdadeiro exército do KGB, todos falando correctamente o português!

Outro factor bem significativo e não menos preocupante, traduzia-se no controlo, por elementos do MFA, de todos os níveis de comando nas estruturas das Forças Armadas. Ignorava-se quem mandava e o pânico instalara-se um pouco por toda a parte, pois só num dia foram saneados cerca de quarenta oficiais generais e uns tantos metidos na prisão sem culpa formada.

Das Províncias Ultramarinas as notícias eram escassas, sabendo-se que os governadores-gerais haviam sido demitidos e substituídos por entidades, aparentemente, da confiança dos novos senhores do poder. Apesar de tudo chegavam sinais de alguma inquietação com perturbações em algumas unidades militares, enquanto no sector civil as greves e manifestações faziam a sua aparição. Parecia, no entanto, que tudo estava muito mais tranquilo que cá por cima, embora se sentisse que, com as palavras de ordem que entretanto surgiram de "nem mais um soldado para a guerra" e os impedimentos ao embarque de novas forças militares no aeroporto do Figo Maduro, se procurava interferir na problemática ultramarina. Com uma certa frequência se ouvia que o 25 de Abril ainda não tinha chegado às colónias, que certamente não escapavam à estratégia global montada pela revolução.

O novo primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, removia todos os obstáculos levantados pelo seu antecessor, visando um controlo total do aparelho do Estado pelos revolucionários, e o PREC surgia em toda a sua força. Conhecia-o de Angola quando o Gen. Costa Gomes desempenhava as funções de comandante-chefe, tendo a ideia de que se tratava de uma pessoa moderada, tecnicamente capaz e colaborante. Quanto me havia enganado! Ainda hoje recordo perfeitamente como o Rosa Coutinho descrevia a forma como o tinham instalado no poder. Após a demissão de Palma Carlos, foram propostos vários nomes ao presidente da Repúblicam Gen. Spínola, que, por uma ou outra razão, real ou fictícia, foram sistematicamente rejeitados. Até que um dos homens do MFA diz para o Presidente, quando uma solução não parecia fácil de encontrar:

- E se perguntássemos ao Coronel Vasco Gonçalves?

- E ele vai aceitar?

Os proponentes saíram do gabinete, entrando quase de imediato com o futuro primeiro-ministro. Posta a questão, naturalmente que a sua resposta foi afirmativa visto que a sua entrada para estas funções também constava dos "planos". Dizia então o Rosa Coutinho com o eterno sorriso triunfante: "Quando montámos a ratoeira ao Spínola, o Vasco Gonçalves estava mesmo ali atrás da porta, aguardando a nossa chamada". Foi o relato feito pelo próprio, cerca de um mês mais tarde, já em Angola. Era uma das vitórias das muitas batalhas da "guerra" em que estavam empenhados.


Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e o 'Almirante Vermelho' (Rosa Coutinho).




António de Spínola e Costa Gomes. Ver aqui



Mas, face a todo o panorama que se desenhava aos olhos dos portugueses, interrogava-me com frequência quais tinham sido as verdadeiras determinantes do 25 de Abril e os seus objectivos concretos. No imediato, parecia claro que as "amplas liberdades" repetidamente apregoadas pelos novos detentores do poder não passavam duma miragem no horizonte de todos aqueles que se atreviam a mostrar a sua discordância face à ordem revolucionária instituída pela novel força política, onde grassava a anarquia, a incompetência, a sede de vingança e o desprezo pelos mais elementares direitos dos cidadãos. Todos os pretextos eram válidos para se atingir na sua dignidade um qualquer português que decidisse não alinhar com a ordem instituída. E não podia deixar de recordar algumas das conclusões a que se tinha chegado na Alemanha durante a já referida Primavera de Praga e, mais concretamente sobre a expansão da chamada "mancha vermelha" por onde a oportunidade da situação o aconselhasse ou os responsáveis do "outro lado" vislumbrassem quaisquer hipóteses de êxito, mesmo parcial».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Sobre o refugiado caiu a maldição de um povo ingénuo e bom, mas instrumentalizado nas mentiras do "25 de Abril".

Tarde, demasiadamente tarde, os portugueses da Metrópole se aperceberam da burla, em cuja voragem os "heróis" (que não o foram em África) sumiram a Nação, a sua História, a sua Economia. E compreende-se. Andar na mata ou na picada, enfrentar o inimigo, aguentar emboscadas e meses de isolamento em climas insalubres, não é para todos. Permanecer no Maiombe, tendo, sobre si, a ameaça da floresta e dos homens, só o aceitaram os militares com espírito de missão.

Lamentavelmente, eu que fui, oficial, tenho de reconhecê-lo: não foram os soldados, não foram os rapazes das "berças", que iam às "sortes" e festejavam, nas suas aldeias, a honra de terem sido "apurados para todo o serviço", de ingressarem nas fileiras, os que se cansaram, os que se queixaram, os que se arrependeram de a farda que vestiam, atrair perigos e visões cruentas - a face mais feia da Humanidade, que é a guerra. Foram outros - os que enveredaram pela carreira das armas, que frequentaram a Academia Militar, talvez porque os seduzisse passear no Chiado de talabarte e esporas, talvez porque as continências dos subordinados lhes mitigassem frustrações e vaidades, talvez porque a "tropa" era emprego antecipadamente garantido, com ordenado certo e nada que fazer - que, a pretexto de ditaduras e baseando-se em sociologismos de alcova, deram o golpe. Não por patriotismo. Não por amor ao próximo. Não consciencializados pelo estudo da posição de Portugal no Mundo, pela justiça ou injustiça da guerra ultramarina. Deram o golpe por cansaço, por cobardia, porque, ao entrarem na Academia Militar, antiga Escola de Guerra, a guerra estava fora das suas cogitações.

Entre combater guerrilheiros perseverantes, treinados e corajosos, do PAIGC, do MPLA, da FRELIMO e assustar os pombos do Rossio com o troar dos carros de assalto (a cair aos bocados), não havia que hesitar. Imperioso, se quisessem salvar a pele, era achar uma bandeira, um slogan, a que se aferrassem, a mezinha que lhes soltasse os intestinos e impedisse que fossem exautorados na praça pública. Havia que puxar pela imaginação. A democracia, a anti-ditadura, a fraternidade dos povos - tanto fazia, contanto que ficasse garantida uma aparência de dignidade.

A fraternidade dos povos!... Seria de rir, se não escorressem as lágrimas.

Fraternidade em relação a quem? Foram fraternos os revolucionários do "25 de Abril" para os brancos do Ultramar, para os negros do Ultramar, para os povos do Ultramar? Protestaram contra o fuzilamento, contra o enforcamento dos que foram condenados, em Angola, na Guiné e em Moçambique, pelo crime de terem combatido a seu lado? Mais correctamente: assassinados porque os tinham defendido? Tiveram um gesto? Rezaram uma oração? Não terão saudades e remorsos lembrando os leais militares negros que confiaram nas Forças Armadas Portuguesas e a elas pertenciam?

(...) É o povo quem o afirma, na sua filosofia simples: "com papas e bolos se enganam os tolos". Os oficiais-combatentes comemoram as papas e os bolos dos companheiros de falinhas mansas, de ar circunspecto, de argumentação insistente, que lhes assopravam aos ouvidos segredos e intrigas palacianas. Confundidos, caíram na esparrela. Se tivessem pensado, se lessem, mesmo em "diagonal", as folhas de serviços dos mentores da revolução, certo que outro "cantar" seria o seu.

Souberam das razões porque Spínola recambiou Vasco Gonçalves da Guiné para Portugal? Conheciam as "tropelias" de Vítor Alves, na Academia Militar e no Leste de Angola? Informaram-se da austera vida do capitão Tomé, em Nampula? Interrogaram-se do comportamento de Melo Antunes em São Salvador do Congo? Admiraram a valentia de Fabião e de Rosa Coutinho, o aprumo do abstémio Vítor Crespo, a inteligência do Otelo?

Estou em crer que não. Os oficiais-combatentes, agora pejorativamaente chamados operacionais, tinham mais que fazer: tinham que justificar os galões que usavam nos ombros; que andar no mato; que lutar; que dignificar os postos que ocupavam. Foram eles os ingénuos que colaboraram na tragédia - de que se arrependem e que estão a pagar.

Infelizmente, com eles, por eles, pagaram e pagam milhões de portugueses. Os de lá e os de cá, "engolidos" pelos militares de opereta, pelos comunistas e criptocomunistas, engodados com a isca da (falsa) democracia.

Duplamente pagaram e pagam os de lá, os africanos, os que vieram e os que ficaram ao cimo ou debaixo da terra. Os refugiados não trouxeram milhões. Ninguém os quis receber. Todos os rejeitaram. Irmãos na desgraça não são da mesma família. Quando muito, são vagos parentes, que chegam inesperadamente, à hora da refeição e, pelo aumento do número de bocas, tem de se fazer o caldo mais aguado. Malditos sejam por isso. Que se quedassem por África e estoirassem - de fome ou com um tiro na cabeça. Que não viessem sobrecarregar as despesas da Metrópole. Que não viessem comer as côdeas e os ossos que podiam dar-se aos cães».






Parada do BC12, nos trágicos primeiros dias de Junho de 1975. O helicóptero evacua feridos para Luanda e vêem-se, ao fundo, "refugiados"à espera de melhores dias.



Refugiados de Carmona na parada do BC12, com o 1.º cabo Emanuel Miranda dos Santos, em Junho de 1975.



Um helicóptero a aterrar na parada do BC12, em Carmona. Ao fundo, um grupo de refugiados civis. À direita, algumas das suas viaturas.






Fuga e debandada de Angola: Costa dos Esqueletos















"Retornados" e suas bagagens em Belém (1975).

















Afirmou António José Saraiva, destacado antifascista, no semanário "Liberdade", de 5 de Maio de 1976: "Diz-se e escreve-se que eles (retornados) eram exploradores, brutais, ávidos de lucros, criminosos de delito comum, culpados de si mesmos (...) Esses que apontam os crimes dos retornados - que fizeram, durante vidas inteiras senão aproveitarem-se dos ditos crimes? Como foi possível a vida parasitária da maior parte da população portuguesa durante séculos, senão às costas do preto, accionado pelo colonizador? Donde vinha o café e o açúcar que se consomem ainda hoje abundantemente nas pastelarias de Lisboa? Donde vinha o algodão barato que permitia a tantos operários e patrões sustentarem-se de fabriguetas primitivas? Donde vinham as tonelas de ouro que faziam do escudo uma moeda forte, permitindo, com uma indústria deficiente e uma agricultura rudimentar, sustentar legiões de funcionários improdutivos? Todos somos responsáveis pela política de Portugal, em África, prosseguida com tenacidade desde os fins da monarquia, objectivo prioritário da primeira república, a que se dedicavam homens como Mariano de Carvalho, Brito Camacho e Norton de Matos. Os retornados não são mais do que boomerang do império que todos nós fomos. O retorno que nos atinge em cheio é a arma que o nosso braço lançou. Os retornados, com que o País foi solidário enquanto foram prósperos, são uma acusação viva lançada à cara da nação inteira. Uma dupla acusação. Em primeiro lugar, porque o fenómeno dos retornados é o resultado de uma política de descolonização cuja torpe inércia é tão profunda quanto o arranque das descobertas foi deslumbrante. A página da descolonização não foi menos sangrenta que a da expansão; só que foi um pântano podre, enquanto a outra foi fogo que alumiou a Terra (...) O ódio racial aos retornados a pretexto dos seus crimes é apenas uma maneira de a nação portuguesa querer ilibar-se dos crimes por que toda ela é absolutamente responsável. É um caso típico de bode expiatório. E lança uma viva luz sobre o mecanismo do racismo. Trata-se de discriminar uma parte da nação, lançando sobre ela o odioso dos males colectivos. O retornado é o cristão-novo dos nossos dias. Serve para o resto do povo imacular a sua consciência; convencer-se de que nada tem que ver com os malefícios e os abusos da colonização. Serve também para desviar as atenções dos erros cometidos em nome da nação: se eles retornaram é porque são inteiramente maus e porque a descolonização foi um fracasso vergonhoso. E servirá para desculpar outras inépcias que vão cometer-se... O racismo nasce fundamentalmente dessa necessidade de limpeza de uma dada comunidade. Nós portugueses pecamos puros, porque as culpas foram desse punhado de "criminosos". E se eles, tiveram de retornar, a culpa não é dos responsáveis dessa sangrenta e lamacenta descolonização: não, a culpa é dos retornados, culpados de si mesmos, como já foi escrito (...) Os retornados chegam no momento em que precisamos de uma desculpa para o maior fracasso da nossa História e de um objecto para cevar a nossa frustração irremediável".

António José Saraiva fez, em palavras, o verdadeiro retrato do povo português, ante a original descolonização. A "vanguarda revolucionária" do "25 de Abril" proporcionou ao País e às próprias Forças Armadas, uma tranquilizante lavagem ao cérebro.

Os refugiados são acusados de tudo. Muitos responsáveis pela governação permitem e auxiliam a intoxicação da opinião pública. Arenga-se nos jornais, na Rádio, na Televisão, nas ruas e praças, para desviar as pessoas da trágica realidade. Membros do MFA, alguns depois ministros, bradam, histérica e sistematicamente, que não se poderia chegar à democracia sem passar pela descolonização. Que nenhum povo é livre, quando oprime outros povos. Lava-se o povo no banho da culpa colonial. Forjam-se mitos. Inventam-se cambiantes. Mudam-se as tácticas, de um tipicismo caracterizadamente comunista e comunizante. Assim se vai destruindo o País. E o refugiado transforma-se em mexilhão... empurrado, espoliado, banido, na senda de um calvário de que não se descortina o termo.

A entrega de Angola, da forma como foi realizada, leilão de bens pilhados, tornou Portugal mais pequeno e mais pobre. Sem o aval do Ultramar, o País definhou. Como Povo "fazedor de nações", deitou fora a expansão da indústria, da agricultura, do comércio, da cultura.

Os refugiados "exploradores" ergueram obra que dignifica, engrandece e redime um país.

Segundo os dados fornecidos pelo Gabinete do Secretário de Estado dos Retornados, departamento do Ministério dos Assuntos Sociais, os valores deixados só pelo sector empresarial são os seguintes:































Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«(...) Portugal é hoje um país empobrecido, muito para além da realidade aparente. Abandonámos o Ultramar, simplesmente, sem negociação; e estamos endividados para gerações. Repito: para gerações. Isto basta para nos aterrar, para nos alarmar».

Franco Nogueira («Juízo Final»).







«Um jornalista estrangeiro da época classificou a situação em Portugal metropolitano de "manicómio em autogestão". Como classificaria esse mesmo jornalista a situação em Angola? Que se passava de facto naquela terra maravilhosa, de gente simples e alegre mas completamente confundida, desorientada, amedrontada e que uns tantos abutres abocanhavam para devorar o melhor bocado».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).





A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão»



(...) Franco Nogueira


O embaixador e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, por seu lado, ao tempo do anterior regime, marcou igualmente uma posição clarividente na análise dos vários problemas da política externa do País, nas assembleias de todo o mundo. A sua inteligência e cultura, o exacto e perfeito conhecimento dos problemas e das situações, o seu espírito realista e acendrado patriotismo - permite considerá-lo, com inteira justiça, uma das individualidades de maior evidência na vida portuguesa dos nossos dias.

Tal como o Prof. Oliveira Salazar (...), também Franco Nogueira seguiu coerentemente um pensamento político que se inseria profundamente nas coordenadas do interesse nacional. As palavras que vamos transcrever, são exemplo disso e constituem a resposta à pequenez dos que demagogicamente e vazios de alma se apresentaram em 25 de Abril como «salvadores da Pátria»...

Ouçamo-lo:

«... Eu diria, antes de mais, que afirmar a inviabilidade de o homem negro se integrar na sociedade portuguesa constitui uma atitude ou posição racista. Não se pode integrar, porquê? Acaso se considerará que o negro é tão inferior que não pode «atingir» o modo de vida português? Acaso se julgará a sociedade portuguesa tão elevada e tão superior que homens de outras raças não são dignos de se integrarem naquela? A verdade é que, no plano moral como no plano sociológico, as duas sugestões são de repudiar. Não há raças que por definição sejam superiores ou inferiores, e a história diz-nos que só os países formados por raças diferentes e misturadas têm sido criadoras e desempenhado papel de relevo. Por outro lado, reparemos em que a orientação ideológica dos que negam a integração do negro africano na sociedade portuguesa é idêntica à dos que reclamam e defendem, e com razão, a integração do negro americano na sociedade norte-americana, que é de maioria branca. Em que ficamos? Por que motivo essa integração é legítima e viável num caso e não é no outro? E o Brasil: não temos aí um caldeamento de raças? Por que não será praticável conseguir o mesmo em Angola e Moçambique? Por estarem geograficamente separadas? Mas não se conseguiu já aquele objectivo em Cabo Verde? E apesar das ilhas de Hawai e do Alaska serem habitadas por chineses, japoneses, malaios, indonésios, esquimós, não foram todos integrados na sociedade norte-americana? Poderia citar muitos outros exemplos e casos. Por que há-de ser um mito no caso português? Aliás, a democracia racial é uma funda tradição portuguesa».


O «Dossier» político do Ultramar


«Quanto ao "Dossier" político do Ultramar, é constituído pelas resoluções da ONU contra Portugal e pelas notas, declarações e respostas dos responsáveis portugueses. Tudo tem sido largamente divulgado, em várias línguas, e sempre a Imprensa portuguesa deu publicidade a todos aqueles documentos. A verdade é que a doutrina portuguesa e seus fundamentos tem sido repetida e exposta em refutação dos critérios arbitrários que as Nações Unidas nos pretendem impor, e esses critérios da ONU constam dos textos das resoluções votadas contra nós. Tais textos são bem claros: exigem a retirada imediata de todas as Forças Armadas e de Segurança, a criação de partidos políticos africanos que forem indicados pela Organização da Unidade Africana, o reconhecimento dos chefes terroristas que forem escolhidos pela mesma organização e a entrega do governo aos mesmos, depois de um processo organizado e supervisado pela ONU. Alguém de boa-fé terá dúvidas sobre os resultados inevitáveis a que tudo aquilo conduziria? Mas tudo isto está publicado e republicado, e parece-me inconcebível que possa alegar-se desconhecimento daqueles textos fundamentais. Será inacreditável que alguém possa debater a política ultramarina portuguesa sem haver estudado as resoluções da ONU contra Portugal e como os textos são bem claros teremos de concluir que os que recomendam a nossa anuência às decisões das Nações Unidas aceitam as consequências da aplicação de tais textos: a entrega do Ultramar.



Sede das Nações Unidas em Nova Iorque



Mário Soares apresenta à ONU a entrega do Ultramar português, na pele de ministro dos Negócios Estrangeiros (23 de Setembro de 1974).



Costa Gomes na ONU (Outubro de 1974).



Melo Antunes na ONU (1975).



«Com a ONU apenas seria viável negociar o «calendário» da entrega do Ultramar» (8)


(...) «Ora, o Ultramar não é negociável, e não sei de país que aceite compromisso sobre direitos nacionais. Por outro lado, temos de compreender que a ONU não é um orgão de negociação firme e final. Suponhamos que se chegava a um qualquer arranjo ou acordo com a ONU. Pensar-se-á que era final e definitivo? Seria ingénuo acreditá-lo. Nos termos do regulamento da Assembleia, esta pode "sempre" reabrir todo o qualquer problema por decisão de simples maioria. Um acordo a que chegássemos numa sessão da Assembleia, e desde que a não satisfizesse completamente, seria posto em causa na sessão seguinte; e assim, de compromisso em compromisso e sempre para "apaziguar" a ONU, cederíamos em tudo. Estávamos a praticar a política da organização de Nova Iorque e não a nossa. Tal atitude filia-se numa doentia tendência nacional para pensar que os princípiose as doutrinas "dos outros"é que são bons, e que a eles devemos confiar a protecção dos nossos interesses. Não: com a ONU apenas seria viável negociar o "calendário" da entrega do Ultramar, e mesmo assim sob condição de que a entrega fosse feita num período de meses muito curto».


«Em torno do fenómeno ultramarino se estabeleceu sempre a unidade nacional»


«A nossa História diz-nos que é precisamente em torno do fenómeno ultramarino que se estabeleceu sempre a unidade nacional, e que é o Ultramar que tem suscitado os grandes movimentos colectivos. Há mesmo quem sustente que a preocupação de salvar o Ultramar ajudou a impulsionar a revolução de 1640: a tese é lançada, por exemplo, por Jaime Cortesão. E já neste século [XX] o fenómeno se produziu. Basta ler textos de grandes vultos da I República, Augusto Soares, António José de Almeida, João Chagas, Teixeira Gomes, Brito Camacho, Bernardino Machado, e muitos outros, todos tinham a peito a defesa ou integridade do Ultramar. Não se disse, aliás, que foi para o defender que o País entrou e se bateu na Primeira Grande Guerra? Estes argumentos são de natureza histórica, e são válidos, mas não precisamos de nos socorrer deles para verificar que o Ultramar é a realidade que permite estruturar um autêntico movimento de base nacional - porque o Ultramar é que dá um sentido de destino colectivo e nos autoriza a ter uma ampla visão de progresso e de desenvolvimento» (Entrevista concedida a João Coito, para o «Diário de Notícias», em 1969).

São igualmente do embaixador Franco Nogueira as palavras que se seguem, proferidas em Abril de 1970, na Assembleia Nacional, e que não deixam também de se revestir do maior interesse e actualidade:

«Acaso alguém pensará que, amputados e cingidos ao território europeu, seríamos pelo menos mais prósperos?

A realidade básica da Nação Portuguesa é constituída pelo indissolúvel conjunto de Metrópole e Ultramar. É este conjunto que a todos nos dá a força económica, o potencial estratégico, a dimensão política. Acaso alguém pensará que reduzidos à Metrópole seríamos no Mundo o que realmente somos? E acaso alguém pensará que, amputados e cingidos ao território europeu, seríamos ao menos mais prósperos? Só podem julgar assim os que, há pouco chegados, e impressionáveis perante noções abstractas, e insensíveis a outros valores que não sejam os da sua tecnocracia, e nada vendo para além de horizontes limitados - são por tudo isso incapazes de distinguir o que é artificial e efémero do que é real e permanente, e por isso, no seu deslumbramento perante frases e noções aparentemente novas, não sabem ver quanto as mesmas têm de velhas, ou como são lançadas para servir interesses e objectivos alheios. Ou então só podem julgar assim aqueles que, sem coragem para explicar o seu pensamento integral, procuram na realidade propagar e fazer aceitar opções económicas que antecipadamente sabem conduzir depois a opções políticas que se tornavam então inevitáveis: e assim, através do pretexto de um progresso e de um desenvolvimento que por essa via não conseguiríamos, se frustrariam, os sentimentos e a vontade que ainda em Outubro último a Nação bem exprimiu por sufrágio».


(...) Salazar e a Descolonização


Para finalizar quanto de realista tinha a política ultramarina portuguesa, que resistiu ao longo dos séculos, pela vontade do povo e dos governos, na monarquia e na república, entendemos transcrever alguns passos dessa magnífica e jamais esquecida comunicação do Prof. Salazar, na homenagem que Angola lhe prestou em 13 de Abril de 1966. Não está somente em causa a extraordinária peça de filosofia política, a que infelizmente nos desabituámos, mas a clareza meridiana de um pensamento perante o qual nos temos que render:

Ei-los:

«... Em primeiro lugar, correspondia à vossa determinação, a determinação de ficar. O homem que fica, vivo ou morto, ocupa de facto o território; o que abala, deserta, abandona-o. Só o primeiro, perpetuando-se por gerações, adquire um direito de ocupação e de posse que a História consagra como base da sociedade e de participação no poder. Ao outro faltam os laços que, amassando terra e sangue, prendem as gerações, a sucederem-se em corpo e alma, em trabalho e cultura; e desiste de criar algo de parecido com uma nação que possa considerar sua pátria.

Mas havia também a tragédia que avassalava, em golpes de ferocidade, o Norte da Província e imolava as suas vítimas, por força só do ódio e em nenhum outro nome que o da destruição e do caos. Tirar a vida, incendiar fábricas, inutilizar as plantações, espalhar e fazer viver o terror às gentes indefesas eram antigamente actos criminosos; hoje, constituindo uma técnica, neles assenta uma teoria da revolução que abundantemente os pretende justificar. Mas à nossa maneira, que é a maneira antiga, um governo que em tais circunstâncias não intervém para cumprir o primordial dever de garantir a segurança e a vida das populações e a integridade do território perde toda a legitimidade e a sua própria razão de ser. E como cumprimento da sua principal obrigação, não tem esse acto de ser agradecido.


Um terceiro motivo da decisão tomada derivou do modo como encarávamos o problema da "descolonização", que se desenvolvera no continente africano a partir do final da última grande guerra. Mas este ponto exigiria largas reflexões: procurarei hoje resumi-las nalgumas palavras.

Os povos africanos - refiro-me sempre aqui aos situados abaixo da orla islamizada de nações mediterrâneas - os povos africanos, dizia, tentaram a sua descolonização, recebendo liberalmente ou reivindicando a independência das nações que detinham a soberania. Raríssimos territórios ofereciam porém pela sua configuração geográfica, população escassa, traçado de fronteiras aos acasos da ocupação, riqueza do solo ou subsolo, aquele mínimo de condições de viabilidade económica que é o sustentáculo de uma sociedade com vida organizada. O atraso cultural das populações fazia que também não dispusessem tais territórios do mínimo de elementos humanos capazes de traçar o rumo da economia, dirigir o trabalho, conduzir a administração, formar os governos e os altos corpos do Estado. A independência é cara e esses povos não dispunham de riqueza que a sustentasse; a independência é dificil e esses povos não tinham o número de homens preparados a enfrentar os problemas, não digo já de um Estado moderno, mas de uma sociedade que tem de saber organizar-se para poder viver. A organização social existente na maior parte dos territórios não se elevara ainda acima de um conceito tribal, ou estritamente racista, e por si própria muito dificilmente evolucionaria de modo a criar entre as populações elos de carácter e amplitude nacional. Só nós, com a ideia tradicional de integração, temos criado, à volta da realidade portuguesa e do nome de Portugal, a coesão necessária das Provincias Ultramarinas, todas consideradas membros de uma Nação. Era assim fatal que, nos territórios estranhos à soberania portuguesa, tornados independentes por uma espécie de surto epidémico, e fosse qual fosse o mérito da obra de colonização efectuada pelos povos europeus, nós assistíssemos ao aparecimento de Estados sem o suporte de nações, e sem os meios materiais e humanos de poderem estruturar-se e progredir. E porque é preciso acima de tudo viver, surgiram então dois factos da maior relevância na vida desses povos: os subsídios sistemáticos a substituirem-se ao trabalho, a técnica e o conselheiro estrangeiros a substituirem-se ao governante local. Como o facto da independência parece irreversível, afiguram-se-me esses povos condenados, uns a uma espécie de protectorado sem título, outros à fragilidade e instabilidade institucional, abertos por isso mesmo a todas as influências ideológicas e a todas as pressões políticas.

Uma coisa não percebi ainda - é que em tais condições os dirigentes africanos protestam ao mesmo tempo contra o colonialismo e contra o neocolonialismo, porque, destruído o primeiro, não têm diante de si senão duas alternativas: ou progredir sob os benefícios do capital estrangeiro e da técnica internacional, com as inevitáveis e chocantes limitações da independência - e a isto se chama com propriedade neocolonialismo; ou resignar-se à mediocridade, senão ao regresso a formas primitivas de vida em que a pobreza, a doença, as rivalidades e lutas tribais continuarão a ser o preço de uma independência, pelo menos precipitada. A verdade é que o amaldiçoado colonialismo - sem que eu pretenda defender erros ou excessos certamente cometidos - levou a paz à África, permitiu o convívio das populações, promoveu o crescimento demográfico, dotou o continente de mais largos meios de comunicação, descobriu e explorou riquezas e pôs os seus 270 milhões de homens em contacto com a civilização cujos segredos lhes desvendou e colocou ao seu dispor. Sem dúvida, que onde não vigorara o processo de integração, isso se fez através de uma clara discriminação de raças e certa inferioridade social dos africanos negros, e tal estado de coisas havia de modificar-se um dia, por ser contra a natureza manter-se indefinidamente. Mas a via política da independência não podia resolver o problema: este só lograria solução através da ascensão gradual das massas pelo trabalho e pela educação àquele nível de onde se pode aspirar a todas as posições, e onde as diferenciações sociais não têm já razão de ser. O caminho seguido, elevando às culminâncias do mando os ódios recalcados dos súbditos dos grandes impérios, era fatal fizesse eclodir outra espécie de racismo - o racismo negro, com o repúdio e o risco de destruição de tudo o que podia constituir e constitui ainda penhor e segurança de progresso. E assim se chegou à infeliz situação actual.

A nossa resistência a aceitar o padrão generalizado baseia-se em razões históricas que formam a estrutura da Nação portuguesa e enformam a sua Constituição; e os factos, aliás derivados de razões sociológicas, encarregaram-se de justificá-la. Apesar disso ela é largamente condenada, mas ninguém pode recusar-lhe ao menos o mérito de ter dado tempo à reflexão a brancos e pretos - europeus e africanos -, de permitir o balanço dos destroços, de medir a grandeza dos recuos e atrasos, de abrandar a violência das paixões e deixar verificar por comparação a bondade relativa dos métodos. A integração política e social que sempre advogámos leva-nos - leva hoje a maior parte da gente culta - à conclusão de que os países africanos ou se organizam na base do multirracialismo ou devem considerar-se perdidos para a civilização.

Que a sociedade multirracial é possível prova-o em primeiro lugar o BRASIL, a maior potência latino-americana e precisamente de raiz portuguesa, e seria portanto preciso começar por negar esta realidade, além de muitas outras, para recusar a possibilidade de constituição social desse tipo em território africano. Por outro lado, e é outra conclusão da experiência, o próprio racismo negro tem sido levado a reconhecer a sua incapacidade de criar ou de manter uma civilização em terras africanas sem o auxílio do branco. E, não se tendo encontrado, fora da precipitação concorrencial do começo, nem sendo possível descobrir meio de despersonalizar o capital e a técnica ao serviço da África, os países africanos, não estruturalmente ligados a uma potência europeia por laços políticos, ver-se-ão obrigados a aceitar as implicações das influências de poderio que inevitavelmente decorrem da presença actuante desse capital e dessa técnica. Podem muitos propalar ou manter ilusões acerca deste ponto, mas a criação de economias nacionais que possam, tendo incorporado abundantes capitais estrangeiros, determinar-se exclusivamente pelo interesse próprio, exige estruturas políticas que os povos africanos independentes estão muito longe de possuir.

Não posso infelizmente concluir estas reflexões com uma palavra de optimismo, porque devem continuar ainda por bastante tempo as nossas dificuldades e provações. Só posso transmitir-vos uma palavra de confiança na firmeza das nossas atitudes, e ainda fazer-vos uma advertência. Embora difíceis por vezes de apreciar os motivos da lentidão e a paciência com que agimos, devemos ter presente que uma regra se nos impõe como princípio de acção: não fazer em nenhuma circunstância o jogo dos que pretendem ou pelo menos agem como se tivessem a pretensão de combater os nossos interesses legítimos e ignorar os nossos direitos».


(...) O Plano Ponomarev para Portugal


Constituído que fora novo gabinente ministerial, agora sob a chefia de Vasco Gonçalves; criado o quadro de legitimidade constitucional que permitiria acelerar o processo de descolonização pelo reconhecimento do direito dos povos dos territórios portugueses de África à autodeterminação e à independência; vivendo-se num ambiente de contestação e de anarquia laboral; quebrados todos os princípios de ordem, de autoridade e de acatamento à lei - o Partido Comunista Português achava-se nas suas sete-quintas, manobrando o processo a todos os níveis do Poder, convencido que se abrira para o 25 de Abril da traição, finalmente, a sua «estrada de Damasco»... A permanência de Spínola na presidência e, sobretudo o estado de espírito que vinha denunciando, constituiria na oportunidade para o PC o único verdadeiro obstáculo à efectivação dos seus desígnios de uma conquista pura e simples do poder político, assim como de uma descolonização brutalizada e traumatizante, que seria apenas retardada de alguns meses.

Por estranha coincidência ou não, é precisamente no mês de Julho, em que o processo dito revolucionário entrava na sua fase de maior degradação, que se tem conhecimento de uma impressionante e significativa lista de instruções enviada de Moscovo a todos os partidos comunistas do Ocidente, que passaria a designar-se «Plano Ponomarev», uma vez que essa série de conselhos e instruções se encontrava subscrita por Boris Ponomarev (membro do Politburo, encarregado de dirigir a estratégia dos partidos comunistas que ainda não estavam no poder), e ainda por Kinachkine e Sobolev, tendo em vista especialmente as experiências chilena, portuguesa e grega, o qual pela sua importância e significado passamos a transcrever na íntegra:


1. Importância do factor tempo


É necessário mover-se rapidamente para consolidar no poder um governo de esquerda, antes que os contra-revolucionários consigam organizar-se.

Um futuro governo de tipo Allende somente poderia conservar o poder recorrendo a brutais instrumentos de coacção.

Considera-se necessário nacionalizar com a máxima rapidez o sector produtivo privado «sem perder tempo na definição de indemnizações que não têm cabimento».

A destruição do sector privado é premissa essencial para eliminar a base da oposição democrática e da imprensa independente.


2. Imprensa da oposição


Já que em Santiago do Chile, o mais autorizado jornal da oposição («El Mercurio») desenvolveu um papel de importância vital na derrota de Allende, os partidos comunistas do Ocidente, que eventualmente entrem na área do poder, devem subtrair da maneira mais rápida possível aos «inimigos de classe» todos os instrumentos de propaganda, para vencer a primeira batalha, a das palavras, obrigando a opinião pública a aceitar, pela insistência baseada na técnica leninista da repetição, slogans do tipo: «unidade das forças populares», «unidade antifascista», «tentativas divisionistas», «ameaça contra-revolucionária».



3. O poder extraparlamentar


Devem ser formados centros de poder, fora do poder central e a ele paralelos, recomendando-se a organização de grupos operativos controlados pelos PCs que afirmem a sua presença nos centros administrativos periféricos, para substituir o poder central, com o consentimento tácito dele, ou para lhe sabotar as directrizes, bloqueando-lhe a eficiência.

Um choque violento entre as forças progressistas e a direita reaccionária é inevitável: é mister, portanto, criar as premissas favoráveis e saber escolher o momento oportuno. Por conseguinte, «é dever de todo o PC montar uma organização capaz de obrigar as classes dominantes a dobrarem-se perante a vontade popular. Toda a tentativa de resistência deve ser quebrada pela força, quando necessário», atribuindo-se aos adversários intenções golpistas.


4. Controle Sindical


O controle dos sindicatos significa controle da força de trabalho do país. Daqui resulta a possibilidade de se condicionar a economia e de se controlarem os opositores nos locais de trabalho.

É necessário - para conseguir tal controle - chegar ao sindicato único ou através de um sindicato unitário actuando com firmeza contra os divisionistas que prejudicam a unicidade de todos os trabalhadores e favorecem as forças subterrâneas da reacção.


5. Forças Armadas


Já que as Forças Armadas podem, condicionar as actividades políticas, torna-se absolutamente indispensável procurar uma «aliança táctica» com o Exército; isto implica converter ou subverter elementos qualificados e importantes das Forças Armadas.







Boris Ponomarev







No entanto, a lição do Chile deve ajudar os PCs a entender que as alianças desta espécie não conseguem transformar as ideias anti-comunistas da maioria dos oficiais. Portanto, os comunistas não podem considerar-se livres do perigo de uma imprevista reacção conservadora.

Torna-se necessária a eliminação de todos os chefes tradicionais das forças de segurança que devem ser impreterivelmente reestruturadas em uma única força revolucionária, entregue a homens de segura fé política.

À distância do tempo, pode hoje avaliar-se, em toda a sua extensão, até que ponto o Partido Comunista Português seguiu caninamente a orientação estabelecida por Ponomarev (9). Com efeito, quer no problema dos meios de comunicação social (Imprensa, Rádio, Televisão); quer no controle dos sindicatos (problema da unicidade sindical e da Intersindical); quer na destruição apressada do aparelho económico pelas nacionalizações selvagens e pela arbitrária fixação de um salário mínimo nacional, incomportável para a grande maioria das empresas, desarticulando assim todo o sector da produção do país; quer pelo assalto aos centros administrativos periféricos (autarquias locais: câmaras municipais e juntas de freguesia); atribuição de intenções «golpistas» às forças mais conservadoras: o caso Palma Carlos, o da «maioria silenciosa» e do 28 de Setembro; a montagem maquiavélica do 11 de Março; o confisco das maiores empresas nacionais e da propriedade fundiária do Alentejo; as prisões arbitrárias de milhares de pessoas; a paralisação do ensino; a degradação dos critérios morais, pelo livro e pelo filme; os sequestros ao Governo na pessoa do Primeiro-Ministro e dos deputados não-comunistas da Assembleia Constituinte; a técnica «repetitiva» no emprego de «slogans» mentirosos, torpes e demagógicos; a manipulação dos elementos mais vulneráveis das Forças Armadas, tornados joguetes inconscientes ao serviço do comunismo internacional, e a destruição sistemática do aparelho económico e financeiro do Estado - culminaria na situação de desespero paranóico e suicida do 25 de Novembro, que pôs o País à beira da guerra civil.

Filme macabro e trágico, de como se destrói uma Pátria, que nos leva a reflectir nos perigos que os portugueses correram de não estarem a viver hoje, em pesadelo, a execrável experiência comunista, a níveis de opressão e miséria!


(...) O Prólogo do 28 de Setembro: degradação do MFA e do País


Reportando-nos, contudo, à cronologia dos factos mais salientes do 25 de Abril da traição, não deixa de ser curioso referir que o PC evitava hostilizar, na fase quente de Julho-Agosto de 1974, os agrupamentos políticos de centro e de centro direita, já por essa altura com certa implantação a nível nacional, como era o caso dos Partidos da Democracia Cristã, Centro Democrático Social, Liberal e do Progresso. No entanto, não deixava de afirmar posições e uma atitude crítica em relação ao PPD, apontando-o como cúmplice da iniciativa contra-revolucionária que teria sido assumida pelo Prof. Adelino da Palma Carlos.

A popularidade e o prestígio do general Spínola (interna e externamente), e bem assim o seu «peso político», obstavam à conveniência de uma confrontação prematura. Por isso, o PC, continuando a aparentar propósitos francamente cooperantes com o presidente da República e com as demais forças políticas, passou a empenhar-se num processo subterrâneo de actuação que visava a criação de condições propícias ao desencadeamento de uma nova crise que pudesse provocar a ruptura entre o presidente Spínola e o «sector progressista» do MFA, já por então directamente controlado pelos comunistas. Nessa acção solapada, desempenharia papel proeminente o CDE, que se achava afastado da coligação governamental por exigência expressa do general, embora constituído como «organização satélite» do PC, visto ter sido entretanto abandonada pelos socialistas e outras facções de esquerda e do centro.

A aceleração do processo de descolonização, acentuada especialmente a partir da «comunicação» do presidente Spínola, no final de Julho, reforçaria, naturalmente, as tensões potencialmente existentes e cristalizadas à volta da crise Palma Carlos. O mês de Agosto, viria assim a ser para o Partido Comunista um período de angústia e de receios - já que o facto de o presidente da República ser o efectivo detentor da força política e militar, lhe possibilitaria, a todo o tempo, o uso da iniciativa num campo e noutro. E esta só não veio a produzir efeitos, a despeito de sinais que a chegaram a dar como próxima em diversas oportunidades, pela acção retardadora exercida pelo controverso general Costa Gomes, que logrou, sempre, fazer adiar a eclosão de confrontos no meio militar, como única forma de clarificar a situação e de repor a autoridade do Estado. Por outro lado, a confrangedora inexperiência política dos mais próximos colaboradores do presidente Spínola e as hesitações deste, favoreciam os desígnios da chamada «facção progressista» que, desse modo, conseguiu ganhar o tempo necessário à montagem da sua própria conspiração de caserna - reservando-se a altura oportuna para actuar.

Enquanto isto, e na sequência de visitas a unidades militares de certa importância operacional, onde improvisava discursos dramáticos e patéticos, chamando os portugueses à razão, no meio da desordem institucional que ia pouco a pouco subvertendo a Nação portuguesa - o presidente Spínola teve ocasião de tomar posições muito firmes no Regimento de Pára-Quedistas, em Tancos, em 2 de Agosto, na comunicação ao País no dia da Independência da Guiné, em 11 de Setembro (do mais alto significado quanto ao seu «estado de espírito»); no improviso proferido no Quartel do Carmo, no dia seguinte, e, ainda, antes da sua mensagem de renúncia, em 30 desse mesmo mês, nas palavras proferidas no acto de posse do Governador de Cabo Verde, em 21 e no discurso proferido na abertura da reunião de trabalho com as Forças Vivas de Angola, em 27, a que se seguiria a «montagem» do 28 de Setembro e o acto de renúncia, e, com este, o fim do consulado Spinolista, de pouco mais de cinco meses, e o início da «galopada» para o desfazer da Pátria...






(...) O «28 de Setembro» e suas sequelas: o Abismo...


O «28 de Setembro» viria a ser, assim, o «magistral» aproveitamento, pelo Partido Comunista e forças suas aliadas, de uma longa crise que vinha preparando (dentro e fora das Forças Armadas), em estrita obediência às instruções de Ponomarev, com a «passividade colaborante» de militares e civis mais estreitamente ligados ao general Spínola os quais, por algumas horas, na noite de 28 para 29 de Setembro, apesar da sua incapacidade de resolução, chegaram a ter nas mãos a possibilidade de fazer regressar o 25 de Abril da Esperança à sua pureza original [???] e salvo desse modo o País das mutilações e das desgraças que tão duramente depois experimentaria em plena ditadura anarquista de Vasco Gonçalves e seus sequazes.

A «maioria silenciosa» e a eventual conspiração de um «golpe» reaccionário, para um regresso ao passado - mais não foram que uma trapaça idiota, habilmente «montada» pelo Partido Comunista... A renúncia do presidente Spínola, na manhã de 30 de Setembro, lida perante o Conselho de Estado e a designação do general Costa Gomes para a Presidência da República, marcaram o termo dramático de um primeiro capítulo da história do movimento militar do 25 de Abril e o início de uma escalada que conduziria à apropriação da «revolução dos cravos» pelo Partido Comunista e seus aliados naturais. De notar, que, entre estes, não se contavam apenas quantos ideologicamente se identificavam com ele, mas também todos aqueles (militares e civis) a quem a nova situação política permitiria um acesso fácil a orgãos de poder ou a posições de mando, ou de simples destaque na cena nacional e internacional - e que, naturalmente, por mero instinto de defesa, passaram a temer que qualquer recuo ou esmorecimento na marcha do processo impulsionado pela «esquerda activa» viesse a originar a perda dos privilégios acabados de alcançar de mão beijada... Exemplo expressivo, a este respeito, o do almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional, quando chamado a desempenhar as funções de presidente da República durante a ausência, nos Estados Unidos (em Outubro de 1974), do presidente Costa Gomes. Em declarações a um semanário pró-comunista de Lisboa, e referindo-se à potencial ameaça contra-revolucionária, afirmaria não ter dúvidas de que a sua cabeça e a dos restantes responsáveis do MFA estavam em jogo e, por isso, nem ele nem os outros se dispunham a perder...».

Ao apodo de «fascista», que já se aplicava, por tudo e por nada, a quantos não se mostravam dispostos a pactuar mais abertamente com actuações declaradamente esquerdizantes, somou-se, a partir do começo de Outubro, outro epíteto «infamante» - o de reaccionário, equivalente, no léxico comunista-internacionalista, a agrário, a patrão, a simples proprietário...

Por iniciativa selvagem, de um revolucionarismo primário e lorpa, dos empregados bancários (desde logo organizados num Sindicato de obediência comunista), foram «congeladas» dezenas e dezenas de contas de depósito, impedindo-se desse modo que os seus respectivos titulares movimentassem os seus dinheiros. Esta medida discricionária e irresponsável, começou por impedir que os titulares nessas condições, exercendo actividades comerciais ou industriais, pudessem proceder, a tempo e horas, ao pagamento de salários e ordenados aos trabalhadores das empresas ou firmas a que se achavam ligados.

Fazendo por ignorar as situações de facto consumado, assim criadas, a máquina de propaganda movida dinamicamente pelo Partido Comunista, pelo CDE, que voltara de novo ao primeiro plano no enquadramento governativo, no pós-28 de Setembro, e ao serviço de uma parte do Governo e do MFA, passou a acusar sistematicamente de «sabotadores económicos» aqueles mesmos reaccionários que praticamente colocara na situação de insolventes e de falidos - e isto relativamente aos sectores industrial e comercial assim como ao agrícola. Efectivamente, e sobretudo nas regiões rurais do Baixo e Alto Alentejo, como em parte do Ribatejo, as células locais do PC, depois da imposição da prática de salários que exorbitavam da realidade da própria exploração da terra, obrigaram, sem possibilidades de recurso, aos agrários, mesmo pequenos e médios agricultores, grande parte dos quais rendeiros e seareiros, a admitir ao seu serviço um número excessivo e desnecessário de trabalhadores rurais, com o claro objectivo de os exaurir financeiramente. Com idêntico objectivo, promoveram (em fins de Janeiro de 1975, e nos dois meses seguintes), a ocupação arbitrária das chamadas grandes propriedades agrícolas, especialmente aquelas que pelo apuro e esmero da sua exploração foram as primeiras a ser cobiçadas... Num grande comício em Beja, em Fevereiro de 1975, o Secretário de Estado da Agricultura, Dr. Esteves Belo, anunciara a «expropriação de terras e seu arrendamento compulsivo», medidas essas que então classificou como «um grande passo no caminho da reforma agrária», que viriam afinal a encontrar a sua consagração, num clima de violência e de atropelo a que o Decreto-Lei 406-A/75, pouco depois publicado, daria cobertura legal. Não era decididamente a «Reforma Agrária» mas um processo monstruoso de latrocínios e de confisco da propriedade fundiária alentejana.

Em documento distribuído à imprensa, em 9 de Janeiro de 1976, o Engenheiro Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura e Pescas, dizia que «o processo da reforma agrária se desenvolvera até esta data praticamente sem controle, nem enquadramento por parte dos organismos estatais a quem cabia justamente a sua condução». Mais: «O Decreto-Lei 406/75, impropriamente designado por lei da reforma agrária, longe de ter servido para disciplinar e orientar as expropriações que deviam constituir o ponto de partida para a reforma agrária, tem servido apenas para a legalização de situações de facto. É assim que enquanto se estima em cerca de um milhão de hectares a área actualmente ocupada, a área que foi objecto de expropriações nos termos da lei não excede os 300 mil hectares»...








Sabe-se quanto a economia da terra condiciona todas as outras actividades, por ser a base fundamental da vida de nações como a nossa, que não dispõem de grandes parques industriais. O Partido Comunista não resistiu neste ponto a aplicar no Alentejo uma política de terra queimada, explorando a situação de atraso das suas populações rurais, acenando-lhe com um falso «eldorado» e uma falsa ideia da entrega das terras a quem a trabalha. A trágica experiência da colectivização da terra, que só na Rússia sacrificou mais de seis milhões de camponeses à fúria bolchevique, pouco importava aos burocratas comunistas. O que interessava era a subversão pela opressão e miséria das classes trabalhadoras, como forma de atingir o tão cobiçado totalitarismo de Estado.

A luta anti-capitalista, contra todas as formas de monopólio, incluindo o ataque frontal a algumas empresas multinacionais a operar com os seus capitais e com a sua tecnologia no arranque do desenvolvimento económico, em franco processamento a partir dos anos 70, - luta essa acelerada desde os primeiros dias de Outubro, a seguir à renúncia do presidente Spínola - deveria vir a incrementar-se, brutalmente, a partir da madrugada de 13 de Dezembro de 1974, com a prisão, sancionada pelo Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, de numerosos banqueiros e de outras conhecidas figuras do nosso meio social, de algum modo ligadas aos meios financeiros e industriais. Essas detenções, do desconhecimento da quase totalidade dos membros do Governo, iniciaram-se a partir das 2 horas da madrugada, sendo a lista completa das pessoas a aprisionar apenas do conhecimento do PC e do CDE, lista essa confidenciada, particularmente, a alguns orgãos de Informação, pouco depois da 5 e 30. Alertados entretanto alguns membros do Governo, cerca das 7 horas, muitos dos mandados de captura, grande parte dos quais assinados em branco pelo COPCON, não chegariam a ser executados. E, muito embora a relação oficial das prisões feitas só tivesse sido divulgada pelo gabinete do Primeiro-Ministro às 12,30 horas desse mesmo dia, acontecera que, 3 horas antes (portanto pelas 9), já era profusamente distribuído nas ruas em Lisboa um comunicado do CDE dando conta da ofensiva revolucionariamente empreendida contra os «sabotadores económicos capitalistas». Em simultaneidade de acção, líderes desse mesmo agrupamento, correia de transmissão do PC, realizavam comícios de esclarecimento em diversos pontos da capital, aliás conforme viria a ser largamente noticiado na Imprensa.

Singular ou sintomaticamente, a execução dessa acção - que ficará como uma das mais vergonhosas da Revolução Traída - coincidiria com o início do Congresso do Partido Socialista, há muito aprazado para os dias 13, 14 e 15 de Dezembro. Essa onda de violência, desencadeada com objectivos puramente demagógicos, e de intimidação, contava igualmente com o apoio declarado da Intersindical, de influência comunista, à qual competiria a iniciativa da campanha contra os «sabotadores económicos», realizando, com o aparato adequado, manifestações de trabalhadores, quer nas ruas quer no seio das empresas.

O projecto da ofensiva anti-capitalista, que contou com a benevolência e indiferença do Chefe do Estado, general Costa Gomes, não foi, no entanto, executado em toda a sua extensão, sendo de presumir que a onda de reacções despertada a nível interno e externo tivesse obrigado a suspendê-lo. Certo é que as tensões aumentaram ao nível dos orgãos do poder, especialmente no seio do Governo, acentuando-se a partir daí as divergências já patentes entre o Primeiro-Ministro e os ministros sem pasta do ramo das Forças Armadas, a um dos quais cabia a coordenação do sector da Economia e estava confiada a elaboração de um «plano económico de emergência» (plano Melo Antunes), que se sabia estar a ser orientado para objectivos moderados e realistas, embora apontando uma «via socializante» em oposição a soluções radicais propugnadas pelo Partido Comunista e por muitos tecnocratas e intelectuais de formação marxista, alinhados em agrupamentos do Governo, como era o caso da CDE e do Movimento de Esquerda Socialista - MES.


(...) Unicidade Sindical - Prepotência comunista


Outro facto importante na altura e que viria a dar lugar ao extravasamento, para público, das dissenções que se registavam a nível de «caserna», quer no seio do Governo quer, reflexamente, nos orgãos de poder militar foi o da discussão do problema da «unicidade» sindical, iniciada pouco depois, com motivo na elaboração da Lei que regularia a organização e a actuação dos Sindicatos - os «novos patrões» das classes trabalhadoras... A imposição do Sindicato único pretendida pelo Partido Comunista e seus aliados, em obediência às inequívocas instruções de Ponomarev, como meio de garantir a força da Intersindical e o consequente controlo político dos trabalhadores, encontrou a oposição firme e tenaz do Partido Socialista, secundado, nesse aspecto, pelo Partido Popular Democrático e, também, por outras formações partidárias, como a da Democracia Cristã e do Centro Democrático Social. O próprio Episcopado Português não se eximiu, perante tão grave problema, a emitir opinião desfavorável ao «monolitismo sindical», aliás combatido de armas na mão, por assim dizer, pelo Partido Comunista, em 1934, quando foi adoptado sistema análogo pelo corporativismo salazarista.

A polémica estabelecida, ao nível do País, acerca da «unicidade sindical» pretendida à viva força pelos comunistas, decorreria, no entanto, em condições de grande desigualdade quanto aos meios utilizados na altura para divulgação dos pontos de vista de cada um dos sectores empenhados em tão importante debate. De facto, enquanto o PC e o seu filhote CDE já então transformado em partido político com a sigla MDP/CDE, e a própria Intersindical, monopolizavam, praticamente, todos os meios de comunicação social (Imprensa, Rádio e TV) para a divulgação das suas teses e ataque  violento aos defensores das posições que lhes eram contrárias - as forças políticas que se opunham ao «monolitismo» pretendido contavam, quando muito, com os jornais partidários, semanários de reduzida expansão, e com o recurso à promoção de comícios públicos, de que os orgãos da informação davam em geral parco noticiário.





O interesse posto pelo Partido Comunista nesta questão mostrou-se tão grande, que, em 14 de Janeiro de 1975, juntamente com os seus aliados naturais, promoveu, em Lisboa, uma manifestação pública de apoio à «unicidade», empenhando nessa realização vultuosos meios materiais, aplicados na deslocação de alguns milhares de pessoas vindas de regiões distantes, que se fizeram transportar em comboios e autocarros, a X por cabeça... Observadores estrangeiros e jornalistas portugueses, não comprometidos, estimaram em cerca de 80 mil os manifestantes, o que na óptica oficial do PC foi calculado em «mais de 200 mil» - número este, aliás, noticiado por todos os orgãos de comunicação social, em obediência à palavra de ordem imposta às direcções e redacções dos jornais e emissoras de rádio.

Denunciando esta e outras manipulações que obviamente se destinavam a falsear os dados do problema e a influenciar a opinião pública e os orgãos de poder militares - o Partido Socialista conduziu, por seu lado, uma campanha enérgica e corajosa que atraiu na altura aos seus quadros algumas dezenas de milhares de novos militantes, grangeando a simpatia e o respeito de uma larga camada de portugueses que, finalmente, entre surpreendidos e confiantes, puderam verificar a existência de uma força política capaz de «bater o pé» aos comunistas, e de contestar, a este, a «posse» do País. Alguns dos comícios promovidos, nesse período agitado e convulso, pelo PS, designadamente em Lisboa, Porto e Coimbra, registaram participações «record», que excediam em milhares de pessoas a lotação dos recintos onde tinham lugar. Organizações do mesmo tipo, realizadas por outras forças políticas, especialmente o PPD, concitaram igualmente enorme afluência.

Entretanto, a divergência publicamente debatida entre os Partidos originaria crescente enervamento dos sectores militares, sobretudo daqueles que mais próximo se achavam do PC e seus aliados - MES, FSP (cisão minoritária do PS), Liga Comunista Internacionalista (LCI) e, claro, MDP/CDE. A própria Comissão Coordenadora do MFA, que se aproveitara da controvérsia para incitar atitudes de franca reserva ao «plano económico de emergência» que estava a ser elaborado sob a orientação e responsabilidade do ministro Melo Antunes - não hesitou em fazer, perante os écrans da Televisão, uma declaração expressa de apoio à adopção legal da «unicidade»! Esta intromissão inqualificável dos militares responsáveis do Prec em tão controverso debate político, e o facto de ter vindo a proibir uma manifestação programada com 12 dias de antecedência pelo Partido Socialista, e com a qual este partido pretendia comemorar em 31 de Janeiro uma data histórica grata ao Povo Português (a primeira sublevação republicana ocorrida em Portugal, em 1891) - reafirmava aos olhos do País a convicção de que, efectivamente, o Partido Comunista continuava detentor do poder e que, único depositário da confiança do MFA, alargava, quanto podia, a sua influência nefasta no aparelho do Estado.

Certo é que, apesar de todos os protestos em contrário pela maioria esmagadora da Nação, com o beneplácito e ámen dos orgãos militares, o princípio da «unicidade sindical» foi incluído na lei. Embalado pelos ventos do triunfalismo, o Partido Comunista acentuava por essa altura nova e decisiva escalada no controlo dos meios de comunicação escrita, por meio de movimentos internos nas empresas que conduziriam à expulsão das administrações e ao saneamento de directores e jornalistas não declaradamente afectos à sua linha política. No quadro da procurada institucionalização do MFA, não fora, apenas, homologada a criação que se propusera de um Conselho Superior da Revolução (com poderes supragovernamentais), e que deveria substituir-se aos existentes: Assembleia dos Duzentos (com membros eleitos nos três ramos das Forças Armadas), Conselho dos Vinte e Junta de Salvação Nacional. O predomínio de oficiais de inspiração «spinolista» no primeiro dos orgãos atrás referidos impediria, na oportunidade, o «hara-kiri» pretendido pelos chamados «progressistas»...


(...) Prólogo do «11 de Março» - Montagem e sequelas


Ao arrepio do que sempre fora pretendido expressamente pelo PC, o Presidente da República - coagido por factores externos e por uma pressão interna, a que não puderam furtar-se os que se afirmavam continuadores do 25 de Abril - anunciou ao País, em 11 de Fevereiro, a realização das eleições para a Assembleia Constituinte, fixando a data do acto eleitoral para 12 de Abril. O facto foi compreensivelmente festejado pelo PS e pelo PPD e outras formações políticas que nunca tinham deixado de afirmar-se favoráveis à consulta do País por meio do sufrágio, considerando que só o voto consagraria e legitimaria a Democracia pluralista que o MFA prometera solenemente aos portugueses.

Mais uma vez, no entanto, uma actuação subterrânea viria a produzir-se em simultaneidade com o aparente conformismo das cúpulas do sector comunista: enquanto publicamente se apresentavam para a competição eleitoral, o PC e seus filhotes logravam fazer protelar a publicação dos diplomas legais que teriam de condicionar a realização das eleições e, dessa maneira, porque havia prazos a respeitar para a efectivação das formalidades pré-eleitorais (propositura das candidaturas, acordo quanto à utilização dos orgãos de comunicação social pelos Partidos, etc.), a breve trecho se depreendeu que a data fixada para a realização do acto eleitoral teria forçosamente de ser protelada. E veio de facto a sê-lo - para 25 de Abril, prazo limite admitido no Programa do «25 de Abril» de 1974.




Comício do PCP no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa.




Mas, mesmo assim, com este adiamento de última hora, os riscos de um teste a nível nacional eram, para o Partido Comunista e seus aliados, muito grandes - já que os responsáveis não ignoravam, e disso estavam conscientes, que a «influência» que exerciam se apresentava desproporcionada à implantação que, na realidade, desfrutavam no País: e a verificação de uma tão grave circunstância estimularia, perigosamente, os sectores militares discordantes da linha de «aceleração progressista», ao mesmo tempo que desautorizaria, inexoravelmente, a minoria activista que, no seio do MFA, fazia a cobertura do PC e aliados.

É aqui que reside, sem dúvida, a génese do «golpe» de 11 de Março!

Pode dizer-se que como consequência do estado de grande anarquia em que o País passou a viver, desde o 25 de Abril - num regime de total ausência de autoridade ou com os orgãos do poder a «prestigiarem» permanentemente a ilegalidade - a ideia da «conspiração» passou também, ao pão nosso de cada dia, constituindo uma espécie de «estado de espírito» igualmente permanente. A nível civil, tal «conspiração» apresentava-se inconsequente e sem o mínimo de viabilidade, por carência de meios de acção e inexistência de grupos organizados, muito embora a progressão do descontentamento a nível geral tivesse vindo a produzir-se a um ritmo febricitante; a nível militar, identicamente inócua, por razões múltiplas e complexas, de que podem enunciar-se algumas: depurações maciças nos quadros de oficiais, sobretudo do Exército e da Marinha; comprometimento e responsabilidade de muitos dos oficiais «sobreviventes» no movimento de 25 de Abril e nas acções políticas que imediatamente se lhe seguiram; apertada vigilância exercida em relação a toda a oficialidade suspeita de simpatia ou ligação (sentimental ou política) com o general António de Spínola, designadamente sobre os comandos e pessoal da Força Aérea e formações para-militares: Polícia de Segurança Pública e Guarda Nacional Republicana; privação de meios operacionais (em equipamentos, munições e combustíveis) à quase totalidade das unidades consideradas como «potencialmente desafectas» ao processo de subversão e de acelerada comunização do País; actuação, à escala de todo o território do continente, de uma acção «pidesca» impiedosa, controlada pela chamada Comissão de Extinção da PIDE/DGS, 5.ª Divisão do Estado Maior das Forças Armadas e da 2.ª Divisão-Informação das FA, e executada pelos activistas do PC, do MDP/CDE e dos grupos extremistas que se lhes colaram, todos eles armados e municiados, como a LUAR, Brigadas Revolucionárias, de Isabel do Carmo, e ARA, dispondo de capacidade para mobilizarem milícias populares, milícias essas que, desde o «28 de Setembro», e em diversas outras oportunidades, haviam exercido já acções terroristas que levaram à intercepção de todas as comunicações rodoviárias, não apenas nos acessos aos grandes centros urbanos e aos postos de fronteira (onde exerciam actividade permanente, ao lado da Guarda Fiscal), como ainda em todas as estradas principais e secundárias da zona litoral como das regiões do interior; alargamento da «escuta» telefónica que, dos 2 100 postos existentes em todo o País anteriormente a 25 de Abril, veio a ser ampliada para cerca de 26 000, de controlo simultâneo, e em que mesmo ao nível de «cúpulas» se escutavam uns aos outros; por último, e principalmente, a completa e a mais torpemente generalizada indisciplina (fortemente fomentada) de soldados e marinheiros que, aliciados por forças esquerdistas, PC incluído, deixariam de acatar o mínimo princípio da obediência que deviam aos seus superiores.

Num tal quadro, como é evidente, as possibilidades de actuação real para quaisquer grupos conspirativos seria, fatalmente, votada ao mais rotundo malogro; e apenas uma acção «palaciana», um golpe de Estado, em que estivessem coniventes personalidades altamente colocadas, poderia conduzir, eventualmente, não a um retrocesso mas a uma recondução do processo revolucionário do 25 de Abril às vias originais: restituição das liberdades públicas, instauração de uma democracia substantiva, pluralista, respeito pela legalidade democrática, aplicação séria de uma política de progresso económico e social, sem prejuízo do desenvolvimento prático do princípio da autodeterminação, aliás tal como se estabelecera no Programa do MFA e recebera a aprovação da maioria esmagadora do Povo Português.

De qualquer forma, e apesar da «agonia» em que o País se debatia, a existência, ainda reconhecida na oportunidade, de um elevado número de oficiais que, usando da confiança da maioria dos quadros das várias Armas e Serviços Militares, figuravam, por eleição, em orgãos importantes, como a Assembleia do MFA, o Conselho dos Vinte e o próprio Governo, ocupando, outros, posições de comando em regiões Militares, Armas e Unidades operacionais - continuavam a constituir um sério obstáculo à consumação pura e simles do ambicioso projecto revolucionário que, decalcado, como vimos, do chamado «Plano Ponomarev», e inspirado nos objectivos imediatos da URSS, se destinava a criar no extremo ocidental da Europa um «ponto quente» que poderia inverter, substancialmente, o equilíbrio de forças no Atlântico Norte e no Atlântico Sul (Açores, Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Angola) e, no Mediterrâneo, contagiando uma situação revolucionária esquerdizante em Espanha, com «inquinações» possíveis, até ao nível do poder, quer na França, quer em Itália...

A uma situação explosiva de «conspiração latente» correspondeu, assim, o bem imaginado e melhor executado «contra-golpe» de 11 de Março - acção provocadora desencadeada pelo PC e seus acólitos, para criar o estado emocional propício a uma depuração e a uma radicalização do processo revolucionário tendente a influenciar, além do mais, o quadro em que iriam decorrer as eleições, se acaso não viesse mesmo a ser possível impedir a sua efectivação!...

António de Spínola



António de Spínola no Brasil, com seus guarda-costas.



Com efeito, ainda as pseudo-acções militares (ataque com balas simuladas a uma unidade da especial confiança do sector progressista do MFA, em Lisboa) se estavam a iniciar - 11 e 50 da manhã - e já a Intersindical, o MDP/CDE e outras organizações revolucionárias armadas, desenvolviam a sua actuação, mobilizando «as massas trabalhadoras» para as barragens nas estradas e caminhos, para a ocupação das fábricas e oficinas e bem assim para o cerco das unidades e estabelecimentos militares, tendo em vista paralisar o desencadeamento de quaisquer movimentos de tropas, designamente das forças motorizadas da Arma de Cavalaria (Lisboa, Santarém e Estremoz, afectas ao general Spínola); e civis armados, exibindo mandatos de captura assinados pelo comandante adjunto do COPCON (Otelo Saraiva de Carvalho), pelo Primeiro-Ministro (Vasco Gonçalves) ou pelo coronel Varela Gomes (5.ª Divisão do EMGFA) procediam à prisão, em Lisboa e noutros pontos do País, de capitalistas, empresários, banqueiros e militares, muitos dos quais haviam figurado na célebre «lista de 13 de Dezembro» e que, na altura, como se disse, não haviam chegado a ser detidos.

As circunstâncias em que ocorreu a morte da única vítima do famigerado «ataque» ao RAL1 (um soldado que se encontrava no dormitório da Unidade), nunca foi convenientemente averiguada nem explicada - mas forneceu, isso sim, o elemento passional «indispensável» para a criação de um ambiente dramático favorável à repressão e às drásticas medidas que o Partido Comunista e seus aliados logo prontamente exigiram e que, obviamente, estavam já preparadas: dissolução de todos os orgãos militares e sua imediata substituição por um Conselho Superior da Revolução, com plenos poderes e forte participação de oficiais de esquerda e pró-comunistas; nacionalização selvagem da Banca e dos Seguros, logo seguida da «confiscação» de todas as indústrias-base: siderurgia, combustíveis, química, cimentos, celulose, tabacos e empresas rodoviárias e de caminhos-de-ferro, e empresas públicas de águas, gás e electricidade... Seguiu-se, também, imediata recomposição do Governo, com exclusão do ministro sem pasta Vítor Alves, marginalização do major Melo Antunes (colocado nos Negócios Estrangeiros), a quem foi retirado o controlo do sector económico, alargando-se a coligação com a entrada de numerosos membros do MDP/CDE e de alguns tecnocratas do MES para os Ministérios e Secretarias de Estado das Finanças e da Economia; nomeação de um membro do Partido Comunista para o importante Ministério das Comunicações e Transportes (correios, telefones, marinha mercante, portos, caminhos-de-ferro, estradas, aviação e aeroportos), mantendo o mesmo partido o controlo, que vinha já, detendo desde Maio de 1974, do Ministério do Trabalho...

O número de oficiais aprisionados ou postos em fuga para o estrangeiro (com predomínio, entre os primeiros, dos que pertenciam aos quadros da Força Aérea), foi aproximadamente de centena e meia - sendo demitidos, imediatamente, por resolução do Conselho da Revolução, sem julgamento ou avaliação da prática de qualquer delito, cerca de 30. Grande parte de uns e de outros, eram homens do 25 de Abril e figuras gradas do Movimento das Forças Armadas, que o haviam tornado possível!

Em síntese, pode dizer-se que os ganhos alcançados pelo Partido Comunista e forças coligadas ou cúmplices no «golpe» de 11 de Março, confirmaram à generalidade da opinião pública e aos observadores estrangeiros de que, na prática, ficara instaurada em Portugal a «Democracia Popular». Daí que o «fantasma da reacção», da «ameaça fascista», da «conspiração do capitalismo internacional» e do «imperialismo ocidental» passassem a ser diariamente agitados na Imprensa, na Rádio e na Televisão, nos discursos de alguns dos principais responsáveis do Governo e das Forças Armadas, como nos comícios da «aliança comunista» (ibidem, pp. 111-134).


Notas: 

(8) Que assim era, provou-se com a viagem feita pelo Dr. António de Almeida Santos, no princípio de Dezembro de 1974, às Nações Unidas, levando consigo um «calendário» para as independências da Guiné e Cabo Verde, Angola e Moçambique, a conceder em prazo inferior a um ano. Punha apenas ressalva quanto a Timor que, segundo o ministro da Coordenação Interterritorial, «parece desejar continuar ligado a Portugal». Visão, pois, correcta a de Franco Nogueira!

(9) Em Novembro último, Ponomarev, visitou a Europa Ocidental, incluindo a Grã-Bretanha. Foi hostilizado em toda a parte, tendo sido mesmo reclamada a sua expulsão, quando visitou Londres. Em Portugal, por mais estranho que pareça, mereceu as «honras» de uma audiência presidencial...




Continua


A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão» (iii)

$
0
0
Escrito por João M. da Costa Figueira




Chegada de um carro celular do RAL 1 à prisão de Caxias aquando do 28 de Setembro de 1974.


«Os factos apurados pela Comissão indicam seguramente que militares, incluindo grande número de milicianos, assim como civis, entre os quais elementos afectos a organizações políticas, praticaram actos que são autênticos ultrajes aos direitos do Homem. Centenas de portugueses foram sujeitos a prisões arbitrárias, viram-se privados de garantias judiciárias, sofreram torturas físicas e morais e tornaram-se ainda vítimas de outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.

Os abusos e prepotências praticados devem levar os portugueses a reflectir sobre o perigo das condutas totalitárias».

Do Comunicado da Presidência da República quando da publicação do relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares.


«O MARTÍRIO DE UM HERÓI

Em agenda, quero registar as declarações, feitas em Janeiro de 1976, pelo alferes comando Marcelino da Mata, herói da Guiné, galardoado com a Torre e Espada - um militar que me honro de ter por camarada.

Marcelino da Mata, preso e torturado, no período gonçalvista, é o símbolo de muitas outras vítimas dos cobardes assassinos pêcêpistas, que quase puseram Portugal a ferro e fogo. A defesa dessa gente, a defesa de companheiros de armas, arrastados para a ignomínia da sujeição à arrogância dos tais rapazinhos muito novos, muito "valentes", muito sebentos no corpo e na alma, também a chamámos a nós, os do MDLP.

Declarações do Alferes Comando, MARCELINO DA MATA, sobre a sua prisão e tortura sofridas no RALIS.

- No dia 17/5/75, quando me encontrava em Queluz Ocidental, ouvi pela rádio ser comunicado que me encontrava preso, no RALIS. Perante tal absurdo, dirigi-me ao Regimento de Comandos na Amadora, Unidade onde estava colocado, e falei com o Oficial de Serviço, capitão Ribeiro da Fonseca, ao qual contei o que acabara de ouvir e pedi que esclarecesse a situação.

O capitão Ribeiro da Fonseca, na minha presença, telefonou para o RALIS e falou com o tenente Coronel Leal de Almeida, tendo o mesmo respondido que me deviam levar imediatamente escoltado para esta Unidade. Telefonou ainda o capitão Fonseca para o COPCON falando directamente com o brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, o qual confirmou que me devia entregar ao RALIS pois estavam concentradas todas as operações nesta Unidade. Foi assim que escoltado por tenente-comando e duas praças fui levado para o RALIS. Uma vez chegado à Unidade referida e enquanto o tenente que me escoltava se dirigia ao oficial de serviço, aproximou-se de mim um furriel armado que me disse ter ordens para me levar para a casa da guarda e manter-me aí incomunicável. Apareceu entretanto um aspirante que me levou para uma sala do edifício do Comando onde permaneci sozinho até às 24.00.

Apareceu depois das 24.00 um indivíduo alto, forte e de cabelo e barba compridos que, intitulando-se segundo comandante do RALIS, mas que depois vim a saber que se tratava de um militante do MRPP conhecido por "RIBEIRO", me estendeu um papel para aí eu escrever tudo o que sabia sobre o ELP.

Mais tarde apareceu um aspirante e um furriel chamado DUARTE e o capitão QUINHONES que tornaram a fazer a mesma pergunta. Uma vez que jamais tinha ligação com o ELP ou qualquer organização outra, respondi-lhe negativamente. Entrou então o capitão QUINHONES MAGALHÃES, disse-me que me ia fazer o mesmo que se fazia na Guiné aos "turras" quando não queriam falar e puxou do seu cinturão no que foi secundado pelo furriel Duarte. Saíu o capitão QUINHONES e regressou acompanhado de outro indivíduo, baixo e forte, que também vim a saber ser do MRPP e conhecido por "JORGE", e mais outro furriel, aos quais o capitão QUINHONES ordenou que me fossem batendo à bruta até que eu confessasse. Apareceu então o tenente coronel LEAL DE ALMEIDA que me disse que os pretos só falavam quando levavam porrada e eram torturados e que não tinha outra solução senão ordenar que me fizessem isso.

Ordenou o capitão QUINHONES que me encostassem à parede e despisse a camisa, o que tive de fazer. Após isto, fui agredido sete vezes com uma cadeira de ferro nas costas o que me provocou vários ferimentos. Não resistindo caí, mas o capitão QUINHONES disse que me pusesse de joelhos e um outro indivíduo que entrou, intitulando-se oficial de marinha agrediu-me mais duas vezes com a cadeira. Após isto o capitão QUINHONES e furriel DUARTE, um de cada lado, agrediram-me com o cinturão por todo o corpo, e eu, que já sentia dores na coluna, senti dores nas costelas e caí novamente no chão.

O capitão QUINHONES ria-se e dizia que o tenente-coronel LEAL DE ALMEIDA queria que eu falasse nem que eu ficasse todo partido e que ele ia mesmo fazer-me falar.



Marcelino da Mata














Passados uns momentos, quando me encontrava novamente sentado, e como fizesse tenção de reagir às agressões, algemaram-me e perguntaram-me se eu conhecia uns indivíduos, os quais haviam entrado mais ou menos quando me começaram a agredir com a cadeira de ferro. Como eu dissesse que conhecia alguns deles e outros não foram-me dizendo os nomes apontando para eles e enunciaram um COELHO DA SILVA, um Doutor MAURÍCIO, que não conhecia, e o JOÃO VAZ, ALVARENGA AUGUSTO FERNANDES (BATICAN) e o ARTUR, todos africanos, os quais já conhecia da Guiné. Então o capitão QUINHONES ordenou ao tal "JORGE" que pegasse num fio eléctrico e me torturasse, tendo-me este dado choques nos ouvidos, sexo e no nariz. Pela terceira vez que me fizeram isto desmaei, pois não aguentei.

Quando recuperei tornaram, o capitão QUINHONES e o furriel DUARTE, a agredir-me com os cinturões e a cadeira de ferro, sentindo eu nessa altura que devia estar com fractura da coluna e costelas e tinha vários ferimentos grandes em todo o corpo. Mais uma vez não aguentei e desmaei.

Ao recuperar os sentidos encontrava-me todo molhado e ensanguentado, não tinha movimentos nas pernas e quase não podia respirar além de fortes dores por todo o corpo.

Por volta das 6h do dia 18 trouxeram para junto de mim e dos outros indivíduos que estavam ali presos e já mencionados, o FERNANDO FIGUEIREDO ROSA, também da Guiné, ao qual agrediram com a cadeira de ferro e arrastaram para fora da sala. Entretanto entrou também uma senhora que dizia ser mulher do COELHO DA SILVA à qual o furriel apalpou as nádegas e seios e outras partes do corpo, frente ao marido. Fui algemado, logo a seguir à entrada da senhora, e conduzido à prisão onde um furriel encheu com água, até ao nível dos tornozelos a cela.

Por volta das 23.00 fui retirado da prisão e vi o tenente fuzileiro CORTE REAL e o ex-tenente fuzileiro FALCÃO LUCAS cá fora, os quais ao ver o meu estado me disseram que a eles também lhes tinham dado um "bom tratamento" mas não tanto como o meu. Fui metido, a seguir, numa Chaimite e levado para Caxias onde cheguei já pelas 01.00 ou 02.00 do dia 19/5/75. Chegado a Caxias o capitão tenente XAVIER, e o qual conhecia da Guiné, tratou-me com termos ordinários e obscenos e mandou-me levar para uma cela, apesar de ver o estado em que me encontrava e de me ter queixado e afirmado que necessitava ser assistido clinicamente. Só no dia 21/5/75 e depois de muito insistir com pedidos ao oficial de serviço, aspirante de Marinha, FERNANDES, fui levado à enfermaria de Caxias onde me fizeram os primeiros tratamentos, mas quando era necessário ser radiografado faziam-no sempre às zonas do corpo que não eram aquelas de que me queixava.

Permaneci 150 dias em Caxias e só quando fui libertado e colocado com residência fixa consegui ser tratado convenientemente e soube ter tido fractura de duas costelas e da coluna.


Lisboa, 24 de Janeiro de 1976

MARCELINO DA MATA
ALF. COMANDO».


Alpoim Calvão («De Conakry ao MDLP - dossier secreto»).


«Importa desmistificar o 25 de Abril, em que os aptos cederam o passo aos incapazes, em que, desiludidos, muitíssimos bons cidadãos preferiram o refúgio no estrangeiro, contribuindo para o desafogo alheio, a sujeitarem-se ao fluxo e ao refluxo das marés dos humores de garotos, de ladrões, ou de bêbados.

Os beirões - os rudes homens da Beira-Baixa - têm um rifão: "Quem parte e reparte e não guarda a melhor parte, ou é parvo ou não tem arte". Desfazendo no adágio, a esmagadora maioria dos "fabricantes" do 25 de Abril foi parva, mas teve arte. A diabólica arte de consumir em cinzas, no espaço de semanas, a obra secular dos Portugueses. Semeando divisões e inimizades, que nem os rudes e honestos homens da Beira-Baixa serão capazes de anular, porque a honestidade e a rectidão de carácter não bastam para apagar incêndios, nem para minorar crises de autoridade, nem para ressuscitar os mortos, nem para convencer ao regresso os que fazem falta (remendões de sapatos estragados) a um país carente de tudo - até do mais singelo bom-senso...

Importa desmistificar o 25 de Abril... por culpa dos que seguravam as rédeas do Poder, o povo português, generoso, equilibrado, trabalhador, imbuído de religiosidade, apegado a antiquíssimas tradições - abertos os diques da opressão - confundiu liberdade com licenciosidade; despolitizado, não sabia - não podia saber -, na sua transbordante alegria, que se transviava nos esconsos da indisciplina, da anarquia e do caos. Portanto, que se afastava da institucionalização da verdadeira democracia.

O histerismo colectivo apresentou aos maus observadores uma falsa imagem dos portugueses. Basta-nos pensar no relançamento de uma economia fraca, ainda mais debilitada pela alta de salários que deslumbrou as camadas laborais (e de que se aproveitaram os espertos, os menos aptos e os preguiçosos), no entanto sem a contrapartida de uma subida de produção). Males agravados pela redução do espaço territorial do País; pela pobreza dos solos; pela quase inexistência de um parque industrial, sobretudo competitivo a nível internacional; pela perda das matérias-primas do Ultramar e dos mercados desses territórios africanos. Produtividade, custos e salários estão intimamente ligados. Desprezar esta realidade é política de insensatos e de loucos.

Apontar nomes dos responsáveis? Para quê? Todos os conhecem... Talvez distinga, apenas, Melo Antunes, que ambicionou ser um filósofo social. É, quando muito, um capitão de Artilharia a ler obras político-sociais entre o arame farpado de São Salvador do Congo.



Melo Antunes










O 25 de Abril, cópia da Primavera de Praga, não foi, em rigor, uma revolução. Certo é que os oficiais que se abalançaram a derrubar o antigo regime tiveram a decisão e a força das armas para vencer. No entanto, logo, incompetentes e ingénuos, manipulados pelos estrategas comunistas, se deixaram despojar da "sua" revolução. Que admira, em consequência, que tenha aparecido, como de geração espontânea, os chamados progressistas, eufemismo que serviu de capa a desvairados e oportunistas? Que admira, em consequência, que, no mare magnum da nossa sonolência política, tenham surgido, como cogumelos após chuvada em terra fértil, tantas vítimas, muitos torturados, demasiados perseguidos, numerosos envelhecidos pela Polícia política da "deposta senhora"? A procissão dos antifascistas foi tão majestosa, que não pode ter sido verdadeira.

(...) Em Angola, só passadas 24 horas soubemos, em pormenor, o que acontecera na Metrópole.

(...) Em Luanda, como em Lisboa, os progressistas vieram à superfície com espantosa rapidez e abundância. Também lá, os antifascistas, em infindável cortejo, se apressaram a jungir ao carro do triunfo. Anteriormente, não deramos por eles...

Em Angola, como em Portugal, tombámos de humilhação em humilhação. A "revolta dos cravos" foi trampolim para monstruosas injustiças que, ainda hoje, irremediavelmente, fazem milhões de inocentes. É necessário dizer com clareza que o 25 de Abril gerou um rato feroz e insaciável, acarinhado pelos que se pavonearam na evidência nacional, chocalhando, na algibeira, os seus pequenos dinheiros de Judas. Uma revolta cuja efectivação é ponto de partida e nunca de chegada para a autêntica revolução criadora. Os traidores não souberam - e os comunistas não lho permitiram - colher os frutos apodrecidos pelo gelo da inumanidade.

Ali, como aqui, o "saneamento", a autogestão, o desrespeito pelo trabalho e pela propriedade alheios, os direitos inalienáveis individuais, a repartição das riquezas, as ocupações selvagens, as "nacionalizações", ficaram à mercê de meia-dúzia de mentecaptos e fanáticos, acolitados por um Governo sem governo. Os presos por delito comum, assassinos, vigaristas, vadios, liambistas, pelas artes mágicas de uma intrigante democracia, "viraram" presos políticos. Do delírio nos subterrâneos da criminalidade, da insensatez geral nasceram mártires. Exibiram-se mãos defeituosas pelo derrube de árvores no deserto (a angústia secara-nos o sentido do humor e não ríamos), como provas de torturas pidescas. Não foram poucos os criminosos elevados à categoria de heróis antifascistas.

Oito séculos de História foram pó, moídos nas lages da inconsciência e da má-fé. Desmobilizou-se o povo, em cantatas bombásticas, mas ocas para a prática da democracia. Momento a momento, o Programa do MFA se modificou e levedou por quiméricos arranjos (ou desarranjos) de gabinete, que não se estribavam nas tradições, nos costumes, nas aspirações dos portugueses. Ao invés, desprezando-os, prevaleceram o partidarismo desagregador, o desabrochar da inveja, o florescer da incongruência e do arrivismo, que os mesquinhos hortelãos do voto cultivaram como plantas, no jardim da desgraça. Sem que os atormentassem escrúpulos da consciência que não têm; sem se incomodarem a explicar o desrespeito pela primeira proclamação do MFA, em que se garantia a unidade interterritorial da Nação [para enganar os parvos, os tolos e os idiotas].

O processo, trasladado para o Ultramar, teve maior acuidade, de face mais sangrenta e cruel, porque o ódio racial, virulento e perverso, submergiu a obra comum. Campanhas miseráveis acirraram as etnias que se digladiaram como num circo romano. Empurraram-se os negros contra os brancos: que exploravam, que oprimiam, que escravizavam, que eram colonialistas, que eram neocolonialistas, que eram vendilhões às ordens do imperialismo (americano, inútil dizê-lo).

Aos que se arvoraram em paladinos da democracia que não instituíram em Portugal, nós, os ultramarinos, poderíamos ensinar-lhes e provar-lhes (o que não lhes conviria) que trabalhávamos, ombro a ombro, brancos e negros. Nem um Cunhal, nem um Soares, nem um Otelo, nem um Vasco, nem um Antunes, com as suas moradias e piscinas; e automóveis de luxo; e refeições sumptuosas; e clubes privativos; e honras de visitantes ilustres - pagos por nós - pensaram no convívio de raças que se estimavam e respeitavam.

Cunhais, Soares, Otelos, Vascos e Antunes, na comodidade das suas pantufas, negligentemente recostados em almofadas de impunidade, excederam as convenções internacionais e o que preconizava a ONU: o princípio da autodeterminação dos povos [salvo seja!], generosidade gratuita para eles e fatal para milhões de homens, mulheres e crianças. Que lhes custava a eles - alcandorados a postos cimeiros, de mesa farta e colchão convidativo - o sangue de uma revolução que não cumpriu nenhuma das suas promessas? Quem sabe se não aspiram ao Prémio Nobel da Paz? Escasseiam as divisas e as coroas suecas têm alta cotação na Bolsa...

Atendo-me aos factos, o 25 de Abril foi, paradoxalmente, a democracia de uma banda só - em Portugal e no Ultramar. Uma democracia trágica e grotesca para a Metrópole e para as colónias.



Ver aqui






Mário Soares e Léopold Sédar Senghor (1974).


José Eduardo dos Santos, Soares e Jonas Savimbi.




Errata: Jardim Mário Soares: um dos maiores "idiotas úteis" que esteve na origem da perda da Independência de Portugal.







Ver aqui


Em Angola, como nos demais territórios, o povo foi imolado a ideologias importadas. Sobrava aos angolanos génio para criarem uma força, para ganharem a batalha do futuro, já que os militares, ao executarem o golpe de Estado, sem inteligência e senso político que o continuasse, só reconheciam legitimidade, para quaisquer negociações, aos movimentos que lhes tinham imposto a lei das armas. E, desde logo, os autores do 25 de Abril se hipotecavam a um grupo disciplinado e mentalizado que lhes conhecia os mecanismos e os botões que devia pressionar.

Afirmava Mao Tsé-tung, repetindo os filósofos chineses, que, há mais de dois mil anos, pelas orelhas se apanham os coelhos e pelos ouvidos os homens. Os políticos "apanharam" os militares - pelos ouvidos (?) - na condução de um processo a que a "legalidade revolucionária" sancionou crimes inauditos, cobertos por uma democracia em que o povo não teve voz, salvo para aclamar os que se punham em bicos de pés, a fim de serem vistos e gritarem meias-verdades, que as hostes pró-comunistas ou sociais-imperialistas transformaram em mentiras de que se aproveitaram.

Os condicionalismos que inibiram os portugueses situavam-se muito longe da Metrópole. Tivesse Spínola lido atentamente Lenine, o seu procedimento seria outro. Para os russos, é vital exacerbar os nacionalismos no Mundo. Não o escondem: está publicado em livros que editaram.

Nesse contexto, Paris foi a cidade escolhida para, em Setembro de 1973, os partidos comunista e socialista portugueses talharem e retalharem o Ultramar. Se o moscovita Barreirinhas lutou por sua "dama", Mário Soares foi o cavalo de Tróia, como agente-motor da estratégia global do PC. Ambos são réus de alta-traição ao povo português. Eles e os seus satélites. Os dois partidos melhor organizados no País dispõem - e dispuseram antes do 25 de Abril - de fundos inesgotáveis para minguar Portugal até às dimensões de uma quinta abaixo da pontuação contemplada pela mais benevolente Reforma Agrária.

Turza Ferreira, presidente da Associação dos Agricultores de Angola, que o diga, como assistente anónimo, em Lusaka, de um encontro em que Mário Soares implorou a Samora Machel, "por amor de Deus", que aceitasse a independência de Moçambique. Samora Machel sabia as linhas com que se cosia. Não queria aceitar. Talvez o dorido queixume de Soares o comovesse. Cedeu. Possivelmente estará envergonhado - ou arrependido [nem isso!].


As "liberdades" do 25 de Abril originaram, em Angola, a constituição apressada de partidos políticos, como se fossem cardos ou as flores silvestres que pululam no território. Cerca de trinta partidos, à compita na angariação de adeptos, na organização de quadros, sem atenderem à consciencialização do povo. Mercado de ideias, lota de rebanhos, incoerentes e falhos de escrúpulos, que depois os movimentos de libertação aproveitariam para mobilizar as grandes massas, com vantagem e gáudio do MPLA.

Das três dezenas de partidos - nado-mortos - destaco a UNA (União Democrática Angolana), cujos elementos, principalmente da etnia negra, eram pacifistas e prosseguiam uma sociedade multirracial; e a FUA, não da década de cinquenta, mas "revista e actualizada", moldada às circunstâncias, tão maleável como o eng, Falcão seu eterno dirigente.

Em 4 de Maio, elementos do PPM (drs. Santos e Silva e Paulo de Castro, Francisco Roseira e eu), deslocaram-se a Lisboa, onde, no dia seguinte, mantiveram uma demorada entrevista com o general Spínola, sobre os problemas angolanos, nomeadamente o processo para a autodeterminação.

Spínola foi cortês, gentil e claro. Estava entusiasmado com o rumo da revolução. Afirmou-nos que a sua maior preocupação era encontrar um governador-geral de Angola para ele muito mais importante do que a escolha do Primeiro-Ministro do Governo português. Pediu-nos que o auxiliássemos a procurar alguém que, prestigioso, tivesse um coração africano. Deu-nos directrizes até à autodeterminação, garantiu-nos a via democrática e a ascultação do querer do povo, fossem quais fossem a sua etnia e os seus credos, para definirem o futuro de Angola. Impressionou-nos com o relato da sua acção na Guiné e do carinho que recebera das suas populações. Isso me levou a escrever um artigo intitulado "O Preço de um Homem", pois Spínola nos garantira de que os guinéus teriam perguntado ao Governo português qual o preço que exigiria para o general continuar na Guiné. Conversou connosco, deu-nos alento e acabou por nos solicitar que colaborássemos o mais possível na concretização desse ambicionado fim que seria a autonomia progressiva dos territórios ultramarinos.

General Spínola na Guiné




Nem de perto nem de longe nos podia passar pela cabeça que o encontro com Spínola não teria resultados práticos, que a sina de Angola viria a ser desgraçadamente oposta às realidades e aos desejos da população.

Brotaram, como plantas daninhas, as tergiversações na condução daquilo que, em alta grita, se chamava a descolonização.

Nunca aceitei e continuo a não aceitar a palavra descolonização. Não aceito, porque a palavra é já de si vergonhosa e pejorativa para as próprias populações autóctones, mas principalmente para os mais evoluídos. Combati, logo de princípio, as directivas que nos eram indicadas para atingir a autonomia, eivada de desvios e alçapões.

Regressados a Angola, começámos imediatamente uma propaganda de tal ordem, que nos apelidaram do partido do bom-senso. Quer dizer, lutávamos e efectuávamos sessões de esclarecimento, convictos de que a via democrática seria realizada e toda a população teria o direito de optar por aquilo que melhor servisse os seus interesses e principalmente servisse o progresso, a paz e o trabalho em Angola [o que vos valeu de muito! Santa ingenuidade!]».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«Encontrava-me afastado de todo o processo, sem qualquer tipo de interferência, conservando-me atento e essencialmente preocupado em entender o que, de facto, se pretendia com o golpe revolucionário e quais os seus reais objectivos.

Algumas atitudes levavam à conclusão de que, na fase inicial, e para mais facilmente conseguirem a adesão dos media, pareciam camuflar toda uma estratégia em que os verdadeiros protagonistas actuariam na sombra, conduzindo o processo para fins em que o interesse nacional não seria minimamente salvaguardado. Uma primeira questão que constituía para mim um enigma, foi a escolha dos dois homens que, aparentemente e aos olhos dos portugueses, iriam assumir, ao mais alto nível, as responsabilidades pelo cumprimento da nova ordem constitucional deduzida do programa do MFA: Spínola e Costa Gomes. Sem dúvida de que se tratava de dois chefes militares de grande prestígio no seio da instituição castrense, mas cujas divergências e incompatibilidades praticamente em todos os campos da sua acção, eram por demais evidentes e conhecidas. Tratava-se do tal "casamento" impossível. Com ambos tinha servido o tempo suficiente para reconhecer ou suspeitar de que, mais tarde ou mais cedo, os atritos e discordâncias iriam surgir entre os dois homens colocados ou escolhidos para a cúpula do novo poder. Acreditava que não dispunham de muitas alternativas. Também não entendia porque tinha sido o Gen. Spínola e não o Gen. Costa Gomes, mais antigo, a assumir as funções de presidente da República. Talvez uma manobra táctica do segundo, esperando uma melhor oportunidade. Nas minhas lucubrações, cheguei à conclusão de que um deles iria ser sacrificado quando já não tivesse interesse para o processo ou tivesse cumprido a "missão" que lhe tinha sido destinada. Ele seria a face virtual dum rosto que não pretendia dar a cara para mais facilmente prosseguir nos seus objectivos. O evoluir da situação dar-me-ia razão porque o homem a abater, depois de ter sido alcandorado ao topo da hierarquia nacional, caiu e foi afastado. Já tinha cumprido as tarefas que lhe tinham sido reservadas na sequência do processo e agora não passaria duma fonte de problemas, um obstáculo a eliminar. A sua ingenuidade política e extrema confiança que sempre afirmou depositar nos seus subordinados, constituíam os atributos que os "grupúsculos" que militavam à sua volta souberam explorar até às últimas consequências, provocando a sua morte política e militar. Costa Gomes, muito mais calculista e inteligente, mas igualmente ambicioso, não se deixaria envolver em "golpadas palacianas" e, embora pressionado, saberia conduzir a sua nau com segurança pela rota possível, sem entrar em confronto directo com a "matilha", mas sabendo contornar os muitos escolhos que lhe iam surgindo pela frente. Sem afectar o seu prestígio entre aquela "rapaziada" soube sobreviver através de soluções de compromisso sem se deixar afundar no mar de contradições e traições em que se vivia [?], chegando mesmo a impor a sua vontade em situações bastante delicadas, enfrentando e procurando controlar todas as loucuras com que permanentemente era confrontado [?].

Mas, a pouco e pouco, a máscara caía e começavam a surgir indícios claros dos objectivos primários do movimento revolucionário do 25 de Abril. As bandeiras brancas da liberdade, da democraticidade e da paz que haviam galvanizado e mobilizado a maioria dos portugueses logo após o golpe, mas mais concretamente nas manifestações de rua do 1.º de Maio, ruborizavam-se, conduzindo à suspeição e à dúvida quanto aos caminhos que se propunham trilhar para a transformação da sociedade portuguesa como tão amplamente era propalado pelos mais altos responsáveis.

Tinha decidido ficar em casa nas comemorações do 1.º do Maio, mas não resisti ao chamamento incógnito e, num dia lindo de sol e talvez esperança, lá saí com a família associando-nos à grande massa dos portugueses que transformaram as ruas das nossas cidades, vilas e aldeias em autênticos rios de almas que, inocentemente, acreditavam e sonhavam com algo de inovador de âmbito nacional e nas suas próprias vidas, mas sem terem consciência do que realmente seria. No entanto, pouco tempo passado, a fachada inicial começava a desmoronar-se e, subitamente, o medo, a ansiedade e a intranquilidade instalaram-se na grande maioria dos portugueses. Poucos, mesmo muito poucos, saberiam para onde íamos e esses não davam a cara, limitando-se a mobilizar para a sua causa os mais ingénuos, ambiciosos ou que já se encontravam ideologicamente do seu lado.






Ao centro: Durão Barroso. Ver aqui e aqui








Os pequenos grupos trotskistas, maoístas, anarquistas, os chamados peões de brega, fazem a sua aparição em força e com uma capacidade de intervenção absolutamente impensável com destaque para o MRPP, levando-nos a concentrar a nossa atenção na tremenda agitação que provocavam por toda a parte. Esta agitação criava o clima ideal para que outras forças, as forças do aparelho desde há muito organizado, se infiltrassem no tecido público e privado mas, muito especialmente, nas Forças Armadas como a água se infiltra na areia. Em 1976, o capitão Sousa e Castro, um dos mais destacados do 25 de Abril declarava numa entrevista ao semanário Tempo: "todo o processo acabou por beneficiar grandemente a estratégia soviética e as forças políticas portuguesas ligadas ao Kremlin".

Não tinha dúvidas de que a grande maioria dos "nossos capitães" acreditava que a revolução que levavam a efeito era, na sua origem, bastante liberal na sua essência e objectivos. Mas, consumado o seu sucesso, de imediato os comunistas, através de elementos mais radicais do movimento, tomaram as rédeas do processo. Logo que deixaram de ter dúvidas de que as Forças Armadas, tendo sido o veículo da revolução, não demonstravam capacidade para servirem de suporte à criação da chamada "ditadura do proletariado" duas linhas de acção importava prosseguir:

- induzir no soldado a ideologia marxista, numa espécie de lavagem de cérebro;

- e se esta via se tornasse impossível, haveria que destruir a sua lealdade e coesão, tornando-as totalmente inoperativas ou, eventualmente, provocando o seu colapso.

Esta era, sem dúvida, uma das modalidades de acção da União Soviética dentro do plano estratégico do comunismo internacional visando o seu alargamento a todas as partes do globo. Eles sabiam que nenhum movimento revolucionário teria hipóteses de sucesso, em qualquer estado moderno, sem que as suas Forças Armadas tivessem sido neutralizadas; sabiam igualmente que as armas teriam de ser voltadas contra o poder político instituído, mas nunca contra as forças que eventualmente não alinhassem. Trotsky proclamara "o máximo de agitação deve ser conduzida no seio da tropa de modo a conquistar o homem por detrás da arma, em vez de simplesmente, o eliminar com outra arma". Eram algumas linhas de acção que agora revia nas minhas notas tiradas na Alemanha, durante a já referida Primavera de Praga.

(...) Mas não era só a comunização de Portugal europeu, a Cuba do extremo Oeste da Europa, que estava em causa. Era principalmente o aparecimento de cinco países africanos que iriam cair no mundo soviético, prosseguindo a estratégia definida por Lenine para mais facilmente e com maior segurança atingir os seus objectivos na Europa - o seu envolvimento pelo sul. Decorridos dois meses após o 25 de Abril e a realidade era que as Forças Armadas estavam praticamente nas mãos dos revolucionários, uns por convicção, bastantes por oportunismo e a maior parte por acreditarem nas boas intenções dos objectivos visados e, ainda uns tantos, por ingenuidade.

Mas se o processo no Portugal europeu seguia o seu curso e o cepticismo começava a instalar-se na maioria das pessoas quanto aos objectivos definidos no programa do MFA, nos Açores e Madeira surgiam evidentes sinais de revolta, em que forças separatistas fizeram a sua aparição numa clara demonstração de não quererem embarcar na "onda de socialização" reinante no Continente.

Tudo isto conduziu a um certo alheamento em relação ao que se passava nos territórios ultramarinos em que núcleos do MFA tinham sido constituídos e conduziam localmente os PREC's segundo princípios ou linhas de acção previamente estabelecidas pelas forças ou agentes interessados em criar os novos países satélites da União Soviética. Era a entrada gigante de um dos "jogadores", enquanto o outro, sem dúvida surpreendido, como tive oportunidade de constatar, procurava perceber o que realmente ocorria neste seu parceiro da NATO.

O programa do MFA dizia, concretamente no seu número oito da terceira parte, que a política ultramarina do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua definição competiria à Nação, orientar-se-ia pelos seguintes princípios:

- Reconhecimento de que a solução das guerras do Ultramar é política e não militar.

- Criação de condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino.

- Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz.






A chegada a Angola do Alto-Comissário, Silva Cardoso.






Ver aqui








Ver aqui, aqui e aqui






Estes princípios foram inseridos no Programa e Orgânica do Governo Provisório nos seguintes termos:

Instituição de um esquema destinado à consciencialização de todas as populações residentes nos respectivos territórios, para que, mediante um debate livre e franco, possam decidir o seu futuro no respeito pelo princípio da autodeterminação, sempre em ordem à salvaguarda de uma harmónica e permanente convivência entre os vários grupos étnicos, religiosos e culturais.

A interpretação jurídica que o Dr. Almeida Santos deu a esta cláusula era que ela obrigava "à consulta directa e universal das populações das colónias, na salvaguarda dos seus interesses dentro de princípios democráticos". Durante algum tempo e em quase todas as suas intervenções públicas, Almeida Santos e a maioria dos novos políticos da época reiteravam este princípio como essencial na definição da política ultramarina dentro da nova ordem democrática que se pretendia não só instituir como consolidar. Ao povo soberano, através do voto, ser-lhes-ia dada a possibilidade de decidir do seu futuro, salvaguardando os seus interesses. Inclusivamente Mário Soares, numa entrevista que em meados de Junho deu ao "Século", afirmou: "Portugal teria o respeito mais absoluto pela vontade das populações livremente expressa, aceitando a independência como uma das opções possíveis do direito dos povos à autodeterminação".

No me admirava que a grande massa do povo português de todos os continentes aceitasse e compreendesse os princípios que iriam orientar a sua vida nos tempos que se avizinhavam. No entanto, pessoalmente, estava bastante céptico quanto à viabilidade prática da sua aplicação nos territórios ultramarinos. Reportando-me apenas a Angola, onde conhecia bastante bem a situação no terreno, não tinha quaisquer dúvidas sobre a impraticabilidade duma tal consulta, a curto ou médio prazo, visto uma guerra que ali se arrastara durante treze anos ainda não estar completamente debelada. Eu sabia, mas o pior e mais preocupante, era que os senhores do MFA, também o sabiam e nada fizeram para arranjar soluções alternativas sempre subordinadas aos interesses das gentes desses territórios. Algo parecia pouco claro em toda esta formulação de linhas de acção para resolver o problema da guerra que parecia ser um dos grandes objectivos do movimento do 25 de Abril. Foi com esta e outras bandeiras da liberdade, paz e democracia e progresso que mobilizaram e quase convenceram a grande massa do povo português. No entanto, a aceleração que imprimiram ao processo levaria à inevitável reacção e às dúvidas que se começaram a levantar quanto aos verdadeiros objectivos da revolução.

As minhas preocupações, decorrentes da agitação que se vivia em todos os sectores da vida nacional, conduziam à conclusão de que a questão do Ultramar, do maior significado para todo o espaço nacional, não iria ser resolvida democraticamente como se pretendia fazer crer mas, tão-somente, por via revolucionária. Só estranhava que um homem com a larga esperiência e conhecimento de África como o Dr. Almeida Santos viesse convictamente a defender nas suas intervenções públicas este princípio inquestionável da consulta popular. Ele também devia saber ou ter a consciência de que esse processo era impraticável no contexto social das Províncias Ultramarinas.

Já não me admirava com a demagogia do Dr. Mário Soares quanto às soluções que defendia para o problema ultramarino que, em teoria, não se afastavam muito dos princípios constantes do programa do MFA, mas que na prática não tomavam em consideração os direitos da grande maioria das populações que nunca tinham estado envolvidas em qualquer tipo de conflito subversivo ou, tendo estado, acabaram por aderir voluntariamente às forças da ordem. Em Angola, onde tinha permanecido até Setembro de 1973, talvez mais de noventa por cento das suas gentes nada tinham a ver com a guerra e, por isso, a interpretação que Almeida Santos deu ao clausulado do programa relativo à política ultramarina me parecia correcta embora inexequível em termos práticos. O conhecimento que Mário Soares tinha de África, especialmente dos territórios sob administração portuguesa, advinha certamente, aliás como afirmou, dos contactos que mantinha com elementos e refractários das nossas Forças Armadas durante os seus exílios pela Europa, que condenavam a nossa presença naquela região do globo. Recordo a sua inoportuna presença na mesa da conferência de imprensa que o padre Hastings deu em Londres uma semana antes da visita oficial a Inglaterra de Marcelo Caetano sobre a morte de civis inocentes ocorridos em Wiriyamu no distrito de Tete, em Moçambique. Mário Soares nunca tinha visitado Moçambique, nem tão pouco Angola, não falara com nenhum dos protagonistas envolvidos na operação, mas estava ali para avalizar algo que só conhecia através das informações do próprio padre Hastings. Também este, por sua vez, não tinha estado no local e o seu relato era fruto do que lhe tinha sido dito por dois padres espanhóis duma missão de Tete. Estes também não eram testemunhas oculares do alegado massacre nem lá se tinham deslocado e baseavam a sua história em informações relatadas pelos sobreviventes que se dirigiram ao hospital de Tete para receberem tratamento médico sem qualquer receio dos portugueses, pois ali a situação era totalmente controlada pelas forças da ordem. Era esta informação difusa e dispersa que constituía a razão de ser daquela conferência de imprensa a que a presença de Mário Soares pretendia dar credibilidade.

Marcello Caetano e Alec Douglas-Home em Londres (17 de Julho de 1973).



Da esquerda para a direita: Sir Hugh Foot, Adrian Hastings e Mário Soares em Londres (11 de Julho de 1973).





Houve na realidade um incidente lamentável em Wiriyamu em Dezembro de 1972 como os que acontecem em todas as guerras e muitas vezes entre as próprias forças amigas. O que se passou não corresponde minimamente ao que foi relatado e as baixas entre a população local oscilaram entre as sessenta a setenta pessoas. Segundo foi apurado, a instabilidade que se vinha verificando na área era provocada pela presença de um grupo de guerrilheiros da Frelimo que se dissimulava no seio da população da qual recebia apoio logístico. Dentro dos princípios que regem toda e qualquer acção contra-subversiva, foi planeada uma operação naquela zona com o objectivo de neutralizar o inimigo armado e acolher os nativos à nossa protecção, transferindo-os para aldeamentos previamente edificados.

Infelizmente, ao nível da execução, devido a factores inopinados e que não foi possível identificar, algo falhou e teve como consequência o incidente que logo na altura e ao longo dos tempos tem vindo a ser empolado e explorado na condenação dos métodos utilizados na forma como foi conduzida superiormente a contra-subversão. É certamente de lastimar o ocorrido que se insere dentro dos riscos inerentes à própria guerra, em especial quando a técnica do inimigo é dissimular-se no meio da população. Mas é curioso e salutar constatar que Portugal, conduzindo uma guerra em três frentes de combate num período de onze a treze anos, apenas um incidente deste tipo tenha sido referenciado e objecto de especulação política a que Mário Soares lamentavelmente se associou, não respeitando Portugal e as centenas de milhares de portugueses que por lá lutaram e alguns morreram. A sua presença naquela conferência de imprensa não poderá deixar de ser vista como um gesto de protagonismo pessoal. Claro que houve outras situações em que pessoas inocentes foram sacrificadas, mas tudo isso se terá de inserir dentro dos "custos" dum qualquer conflito armado. A nós, militares combatentes, apenas nos competia vencer a guerra no terreno para que a solução política fosse possível em condições mais favoráveis e, para tal, dispúnhamos de duas vertentes em que a nossa acção se teria de concentrar: eliminar o inimigo armado ou forçá-lo à rendição e conquistar as populações. Estes objectivos, por exemplo em Angola, foram plenamente atingidos. Mas que sabia o Dr. Mário Soares da guerra ou da própria realidade africana? Da guerra, o seu conhecimento só pode ser teórico e muito longe das condições em que centenas de milhares de portugueses se bateram com coragem e abnegação apesar de todas as carências e dificuldades que tiveram de enfrentar e, na minha opinião, não tinha um suficiente conhecimento de África que lhe permitisse fazer um juízo concreto e realista da vivência das suas populações. Mas sabia e sabe as razões que o levaram a agir com tamanha destreza logo após o 25 de Abril».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«A "MATANÇA DA PÁSCOA"

A referência à célebre "Matança da Páscoa" devia situar-se no capítulo dedicado ao "11 de Março". Propositadamente decido localizá-la no final do texto que nos explica como deve processar-se a "tomada do Poder" pelo PCP. Há uma razão para isso: aquele texto foi elaborado depois do "25 de Novembro". Mas muito antes, em Março de 1975, houve uma tentativa de tomar o Poder pela violência, matando, à partida, as pessoas que poderiam desencadear a oposição. Essa tentativa falhou por acção de um golpe falhado que foi o "11 de Março" Foi um golpe de antecipação que - falhando - teve pelo menos a virtude de eliminar as condições propícias à matança decretada pelo PCP.

Um relatório manuscrito datado de Abril de 1975 e redigido no Rio pelo tenente Carlos Rolo é aqui portanto, transcrito do original. Um texto para o Povo Português ler e meditar. A célebre lista da "matança" tinha sido elaborada pelo PCP/LUAR. Os "revolucionários" encarregados de organizar a sua execução teriam sido segundo o relatório, Palma Inácio e Otelo (este último candidato agora à Presidência da República!...). Costa Gomes e Vasco Gonçalves "visaram" a lista! O relatório indica nomes concretos de pessoas concretas que podem testemunhar. Parece ser tempo de os portugueses começarem a compreender o que realmente se passou e que pode vir a passar-se.

"Encontrei-me em Madrid com o sr. Agostinho Barbieri, em casa dele, na rua Juan Bravo, 75-2.º, dizendo-lhe que ia lá para saber quais os apoios que haveria de Espanha e mais informações que permitissem fazer qualquer coisa em Portugal pois havia notícias de um golpe de esquerda. Que era enviado pelo general Monteiro e que também pretendíamos saber se havia dinheiro.

Respondeu-me que o melhor seria falar com o eng. Santos e Castro marcando um encontro para as 16 horas em casa dele.









Disse-me logo que o dinheiro prometido pelo António Champalimaud (50.000 contos) ainda não tinha vindo, mas que ele (António) tinha da sua autoria prometido mais 25.000 contos, ou seja um total de 75.000 contos, que seriam administrados pelo eng. Santos e Castro, prof. Soares Martinez e Agostinho Barbieri porque se encontrava fora.

Às 16 horas houve de facto uma reunião com o eng. Santos e Castro e Agostinho Barbieri e à parte dela, já no final, apareceu o Jorge Braga.

Depois de uma apresentação o eng. Santos e Castro falou, informando o seguinte:

1. Que iria haver um golpe da esquerda, notícia que aliás já tínhamos em Lisboa, mas deu como pormenores os seguintes:

a) Seria na noite de 12/13 de Março.


b) Tinha o nome de código de "Matança da Páscoa".


c) Seriam mortas 1500 pessoas: 500 militares e 1000 civis.


d) Tinham sido requisitados dois hospitais, talvez para prisões.


e) Que na lista estavam incluídos nomes de pessoas que se encontravam presas.


f) Que tinha sabido através de "ajudante de campo" ou "oficial às ordens" do Costa Gomes da existência dessa lista, por o Otelo a ter ido dar ao Costa Gomes para visar e que nessa altura, tendo o Costa Gomes pedido mais uma cópia, foi necessário, por não a haver, fazer uma fotocópia.


1. Foram feitas duas e uma delas acabou nas mãos de um oficial A.M. de nome, possivelmente, Rui Ribeiro que estava na Cova da Moura e ia avisando pessoas. Disse ainda que essa lista tinha sido elaborada por o PC/LUAR que a teria dado a Vasco Gonçalves e este tinha feito três cópias dando uma ao Palma Inácio, outra ao Otelo e uma terceira em arquivo. Este número de listas foi confirmado por conversa tida entre os "ajudantes de campo" ou "oficiais às ordens" do Costa Gomes e Vasco Gonçalves, para "controle de cópias" dos documentos secretos.


2. Que era necessário falar com o Luís Abecassis que tinha grande número de oficiais das F. A. ajuramentados com ele. Posteriormente em Lisboa o general Tavares Monteiro não foi dessa opinião.


3. Que o coronel Varela recebia diária e directamente informações do que se passava no Estado-Maior do Exército Espanhol.


4. Que à mais pequena coisa a Espanha estava pronta a invadir Portugal. Em dez horas estaria em Lisboa. Tinha três divisões prontas com dois comandos operacionais, uma na região de Badajoz (Cáceres) com um Batalhão de blindados e uma Divisão, e outro mais a Norte (Salamanca) com o resto das forças.


5. Que o Governo espanhol tinha feito circular uma carta entre os oficiais espanhóis autorizando a criação de unidades de "Viriatos".


6. Que os antigos telegrafistas da DGS estavam a trabalhar para o Varela Gomes.


7. Que tinha contacto permanente com o comandante da região aérea de Badajoz/Sevilha e que o Governo espanhol concederia asilo político e internamento de aviões.


8. Que tinha contacto com o Árias Navarro mas que quando houvesse qualquer coisa ele só seria avisado com três horas de antecedência.


9. A seguir falou de sistemas políticos».


Alpoim Calvão («De Conakry ao MDLP - dossier secreto»).








«O cerco continua a apertar-se e, em meados de Fevereiro de 1975, é elaborada uma lista de oficiais para serem presos, na qual consta o nome de Alpoim Calvão, segundo testemunha o capitão-tenente Geraldes Freire. "Nunca o vi como um opositor ao 25 de Abril, mas em Fevereiro de 1975 fui chamado pelo CEMA, Pinheiro de Azevedo, para ir ao COPCON [Comando Operacional do Continente: Criado a 8 de Julho de 1974, foi constituído sob o comando do general CEMGFA e destinado a intervir directamente na manutenção e restabelecimento da ordem, em apoio às autoridades civis e garantir a segurança em situações internas de ameaça à paz e tranquilidade públicas]. Lá mostraram-me uma lista de uma série de oficiais a prender. Havia vários oficiais da Escola de Fuzileiros, por isso, fui claro: 'Responsabilizo-me por eles mas não prendo ninguém. Depois, há aqui o Alpoim Calvão que não está debaixo da minha hierarquia, mas que também, deixem que vos diga, que acho uma grande estupidez prendê-lo, até porque vão fazer dele um herói'".

Quando António Spínola, desiludido, renuncia à Presidência da República e se afasta do poder, já Alpoim Calvão e os amigos estão organizados "para enfrentar o gonçalvismo, para salvar restos de uma Pátria que se desagregava". A estrutura é, porém, ainda muito incipiente e inofensiva. Para já, bem o sabem, organizar operações de envergadura é algo com que apenas podem sonhar.

Pelas 15h00 do dia 10 de Março, no entanto, tudo muda. O primeiro-tenente Nuno Castro Barbieri visita o antigo camarada da Guiné e amigo Alpoim Calvão para lhe transmitir que uma informação dos Serviços Secretos Espanhóis inclui o seu nome numa lista de diversas personalidades a abater. Tivera conhecimento dela numa reunião em Madrid em que participaram figuras como o seu pai Agostinho Barbieri Cardoso, ex-subdirector-geral da PIDE/DGS, Santos e Castro, ex-governador geral de Angola, e Otto Skorzeny, o famoso ex-oficial da SS que libertara Benito Mussolini, em 1943 [Oficial da Schutzstaffel (SS) e grande especialista em operações especiais durante a II Guerra Mundial, chegou a ser considerado pelos Aliados como "o homem mais perigoso da Europa". Foi escolhido pelo próprio Hitler para libertar Benito Mussolini, missão que cumpriu a 12 de Setembro de 1943, com a operação "Carvalho", no monte Gran Sasso. No final da guerra, foi preso mas não chegou a ser julgado em Nuremberga, ficando alguns anos num campo de desnazificação. Daí saiu para Espanha, onde faleceu de cancro a 6 de Julho de 1975]. O nome de código da acção: "Matança da Páscoa", de acordo com o próprio chefe do governo espanhol, Árias Navarro.

E havia mais detalhes: as execuções começariam a 12 de Março e estariam a cargo de elementos da extrema-esquerda, apoiados pelo RALI (Regimento de Lanceiros N.º 1 de Lisboa, comandado pelo tenente-coronel Leal de Almeida) e por elementos do Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros, que, alegadamente, se tinham deslocado a Portugal para essa missão [Movimento uruguaio de guerrilha urbana que operou nos anos 60 e 70, assaltando bancos e distribuindo comida e dinheiro nos bairros pobres de Montevideu, atacando as forças de segurança e executando raptos políticos]. Informações que seriam mais tarde dadas como provadas pelo juiz de instrução, Saraiva Coelho, no seu despacho sobre o processo n.º 12/76:

"Esta reunião tem efectivamente lugar na Rua Jau, casa do tenente-coronel Quintanilha, com o coronel Durval de Almeida, o tenente-coronel Xavier de Brito, o major Silva Marques e o tenente-fuzileiro Nuno Barbieri. Mais tarde chega o tenente Carlos Rolo acabado de regressar de Espanha. Confirma a existência de uma lista de pessoas a prender ou eliminar - cerca de 500 militares e 1.000 civis (...).

As prisões estavam planeadas para a noite de 12 para 13 de Março com o nome de código "Matança da Páscoa". Carlos Rolo não era portador de um exemplar ou cópia de tal lista. Esta parece que nunca ninguém a viu, nem um seu exemplar consta do processo. (...) Resolvem dar conhecimento destes factos ao general Spínola.

Também este general deveria ser preso ou eliminado em Massamá onde residia. (...)" [Despacho de instrução do processo n.º 12/76, in GUILHERME ALPOIM CALVÃO, JAIME NOGUEIRA PINTO, O 11 de Março - Peças de Um Processo, Editora Futuro Presente, Lisboa, 1995, pp. 19 e 20]».

Rui Hortelão, Luís Sanches Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão. Honra e Dever»).







«É evidente que (...) não seremos fáceis de manipular, ou de nos deixarmos iludir por qualquer fraldiqueiro em nome ou ao serviço de ideologias que escondem falsos propósitos de libertação da humanidade. Bem vos conhecemos, - oh, máscaras sem vergonha!

Daí que não iríamos por certo transigir agora, com uma vida quase feita, com as falsidades primárias deste carnaval revolucionário, nesta farisaica conspiração da história, com que se pretende subverter o mundo e com ele os seus valores supremos; daí que, entre o falar gratuito e demagógico, procuremos antes o viver audacioso e coerente; daí que nos haja repugnado tanto este assalto despudorado e avassalador de novos "hunos" revolucionários, que, em escassos meses, desfizeram e desfiguraram uma Pátria oito vezes secular; daí o horror com que assistimos, neste País em leilão, à tragédia da "descolonização" nos territórios portugueses de África, aos dramas inenarráveis de um genocídio ferozmente prosseguido, perante o silêncio comprometido e acumpliciado do Mundo!».

(...) Aquilo que desde logo condenou os socialistas que regressaram do exílio para tomar conta deste País, o mesmo se podendo dizer dos comunistas, cujo Comité Central, desfeito ao 25 de Abril, era constituído, na sua grande parte, por elementos "históricos", semi-ignorantes - foi o erro de avaliação do Portugal dos anos 70. No seu sectarismo e no seu ódio, na sua estupidez incomensurável, na sua paranóia política, não se deram contam de que se haviam estabelecido, de facto, ao longo de mais de quarenta anos, no "substracto" colectivo, padrões de desenvolvimento histórico indisfarçáveis, porque reais e concretos.

Essa realidade, que se pretendeu estultamente ignorar, ou infantilmente apagar com uma esponja - como se a História pudesse ser riscada ao sabor da irracionalidade de cada um - era a de um País em franco progresso e desenvolvimento, económica e financeiramente arrumado, pouco ambicioso, é certo, mas seguro de si próprio, consciente da sua força estratégica e da sua potencialidade, financeiramente poderoso, ciosamente independente.

Tem sido dessa situação, da força real e potencial existentes ao 25 de Abril de 1974, que tem vivido dos rendimentos e de algum crédito a "corja" salteadora. Se não fora isso, de há muito que estaríamos face a tensões sociais que, irreprimíveis, teriam estalado esse verniz falsificado da Revolução Traída. Dois escassos anos bastaram para pôr o País na situação de 1926, quando os republicanos iluminados o puseram a saque...

A apojadura revolucionária deu no disparate, com vivas à santa Liberdade. No dia 26 de Abril, imediato ao da Revolução, em papéis impressos aos milhares, os ideólogos da CDE, de má memória, em bicos de pés, davam o grito de ordem: "O caminho da liberdade é, hoje, o caminho da rua".

Lenine, há sessenta anos, exclamaria, desdenhoso: "Liberdade!... Para que serve a liberdade?". De facto, com razão se diz que se se oferecer a um asiático ou a um socialista africano, emancipado, a escolha entre quatro liberdades e quatro sanduíches - ele optará imediatamente pelas sanduíches...».

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: a Revolução da Vergonha»).


«(...) calcula-se que tenham sido cerca de 10.000 os portugueses que se radicaram no país vizinho, sobretudo em Madrid, a seguir ao 25 de Abril de 1974».

Rui Hortelão, Luís Sanches Baêna e Abel Melo e Sousa («Alpoim Calvão. Honra e Dever»).


«Sobre a coragem:

- A coragem nada é sem a razão.

- A intriga, a astúcia e as maquinações tenebrosas foram inventadas pelos cobardes para se ajudarem na sua cobardia.

- A coragem é o justo meio entre o medo e a audácia.



Orlando Vitorino. Ver aqui, aqui e aqui



- O homem corajoso actua virilmente nas circunstâncias que exigem energia e é belo morrer.

- Os homens corajosos são movidos pelo sentimento da honra.

- Os soldados profissionais fazem-se cobardes quando o perigo é grande e se sentem inferiores em número e armamento. São, então, os primeiros a fugir, ao passo que as tropas formadas por bons cidadãos morrem no campo de batalha. Para estes homens, a fuga é desonrosa e a morte é preferível à salvação pela fuga. Os profissionais, que de início defrontavam o inimigo confiantes em serem-lhe superiores, esses fogem logo que o vêem perto, receando mais a morte do que a vergonha».

(in Revista «Escola Formal», Quinto Número, Dez. 1977/Fev. 1978).




A Revolução dos Cravos: «manicómio em autogestão»



(...) As Eleições para a Constituinte - Antecedentes e consequências...


Foi, pois, sob o signo dessa campanha desabalada e feroz que veio, finalmente, a iniciar-se o período eleitoral, imediatamente antecedido pela arbitrária exclusão das candidaturas de três agrupamentos políticos: a Democracia Cristã (o partido de centro-direita considerado de maior implantação em vastas regiões, sobretudo a norte do País), a Aliança Operário-Camponesa (expressão eleitoral do partido marxista-leninista, de obediência chinesa, contrária ao social-fascismo cunhalista) e o MRPP, formação muito aguerrida, na altura, e com forte implantação nos meios escolares e universitários, de inspiração maoísta e irreconciliável adversário do Partido Comunista de Cunhal.

A tentativa de fazer envolver - aos olhos da opinião pública - os Partidos Socialista e Popular Democrático, o Centro Democrático eleitoral comum), nos acontecimentos «contra-revolucionários» de 11 de Março, passou, também, a ser uma constante da actuação dos propagandistas do Partido Comunista e dos grupos seus aliados, antes e no decurso da campanha eleitoral, apressando-se entretanto a «fabricação» de um relatório oficial mistificador dos «acontecimentos» que viria a ser divulgado, com pormenorização fantasiada, em repetidas emissões da Televisão nos três dias que antecederam as eleições em 25 de Abril de 1975, visando manifestamente desacreditar as forças políticas que, no plano nacional, mais forte concorrência faziam aos comunistas e seus associados.

Os boicotes (muitas vezes através de meios violentos) que desde há meses vinham sistematicamente a ser feitos a comícios, reuniões de esclarecimento e até a congressos de alguns partidos do centro e do centro-direita, denunciados pelo PC e outras forças esquerdistas como suspeitos de «ligações com o capitalismo e a reacção» - e que de forma especial afectaram o Partido Popular Democrático, o Centro Democrático Social e a Democracia Cristã - não deixaram de se produzir no decurso da campanha eleitoral, iniciada em 2 de Abril daquele ano. Daí que o PPD se tenha visto coagido a não promover comícios ou reuniões públicas praticamente a sul do Tejo (em Évora e Faro foram atacadas, destruídas, ou incendiadas, sedes deste partido), tendo de suportar confrontos e provocações graves em muitas outras localidades; o CDS viu-se limitado à utilização dos tempos concedidos na Televisão e na Rádio, pois os seus raros comícios realizados, e nunca anunciados, foram mesmo assim perturbados quase sempre por activistas da esquerda; a Democracia Cristã, que bem poderia ter sido a mais importante formação política a seguir ao Partido Socialista ou mesmo a par deste, viu a sua sede social, em Lisboa, assaltada e destruída, o mesmo sucedendo no rescaldo do dia 11 de Março às suas delegações do Porto e de Braga. Proibida discricionariamente do exercício de qualquer actividade até à data das eleições (...), ficou circunscrita a um papel de quase completa passividade, conferindo aos seus núcleos locais a liberdade para - de conformidade com as condições prevalecentes em cada círculo eleitoral - decidirem a orientação do voto dos seus filiados, aderentes ou simpatizantes.

Tudo isto a par da propaganda levada a efeito pelos partidos políticos, segundo a sua capacidade financeira - o PC e o MDP/CDE evidenciaram desde logo o maior dinamismo e a mais abundante disponibilidade de meios de apoio financeiro, promovendo, em conjunto, cerca de 200 comícios diários em todo o País, de uma profusa e insistente afixação de cartazes, além de disporem, a seu talante, do apoio quase unânime de todos os meios de comunicação social - e de o sector dito «progressista» do MFA intensificar, por todo o País, e designamente nas regiões do Norte, Nordeste e Centro, a suas famosas «campanhas de dinamização cultural», em curso desde Outubro de 1974, e sempre orientadas por uma actuação de tipo partenalista e intimidativo junto das populações católicas e conservadoras na província, no claro sentido de as procurar aliciar para o «socialismo revolucionário».
















Pouco contente com o apoio dado ao PC e seus filhotes, simultaneamente, em tempos de programa postos à sua disposição na Rádio oficial e na Televisão, a 5.ª Divisão do Estado Maior secundava aquelas campanhas - desencadeando, a certa altura, uma imensa e estranha acção de incitamento ao «voto em branco», contra os partidos e a afirmar adesão ao MFA... Esta caminhada, a favor do «voto em branco», foi iniciada pelo jornal «Movimento», orgão oficial do MFA, que se tornaria tristemente célebre pelo seu sectarismo, campanha essa desde logo secundada pelo ministro da Comunicação Social (Correia Jesuino) e pelo principal dirigente e orientador da Dinamização Cultural das Forças Armadas, 1.º tenente da Marinha, Ramiro Correia, ambos do Conselho Superior da Revolução e estreitamente vinculados ao vice-almirante Rosa Coutinho, antigo membro da Junta de Salvação Nacional e alto-comissário em Angola - e cuja ascendência política aumentara bastante depois do 11 de Março, o que lhe permitira assumir a direcção da Comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e designar para altos cargos no Governo, na administração da Televisão, e do mais importante matutino da Imprensa portuguesa, o «Diário de Notícias», pessoas da sua especial confiança. A campanha pelo «voto em branco» (inspirada, como outras, ao vice-almirante Rosa Coutinho pelo jornalista francês Serge Jully, prosseguiu, na Televisão e na Rádio, mesmo após terminada a propaganda eleitoral, até poucas horas do começo da votação... Isto, a despeito dos protestos do PS, do PPD e do CDS. O descaro foi tanto, que na própria madrugada do dia das eleições, a partir das zero horas de 25 de Abril, as estações de rádio controladas pelo Partido Comunista e pelo MDP/CDE, promoveram, com incitamentos e reportagens exaltantes, a realização de manifestações em todas as localidades do País, designadamente em Lisboa, onde os activistas percorreram em forte alarido ruas e praças, concentrando-se depois em frente ao Palácio Presidencial de Belém, onde se encontrava reunido o Conselho Superior da Revolução, até acerca das 4 horas!

A votação iniciada, como se sabe, às 8 horas, registou enorme afluência de eleitores, traduzida numa participação «record» superior a 90 por cento, e decorreu, de uma forma geral, sem incidentes em todo o País. As únicas perturbações da ordem haviam-se registado, de madrugada, em algumas localidades do Norte (Esposende, Braga, Porto e Guimarães), onde sedes e delegações do CDS foram atacadas ferozmente, sendo uma delas incendiada.

O País, emocionado, achava-se suspenso do acto eleitoral, pressentindo que nele se jogava qualquer coisa de muito sério para a vida e o destino dos portugueses. O primeiro apuramento dos resultados, a partir do começo da noite, oferecia alguns indícios desairosos, ainda que pouco significativos em relação ao total, para os partidos comunistas, provindo de assembleias de voto de zonas rurais e católicas do Norte do País. No entanto, cerca das 23 horas, as tendências reveladas no início das contagens mantinham-se, apesar dos resultados respeitarem a áreas já diferenciadas do continente. Pressentindo um forte desaire à esperança nesciamente posta de que o povo acudiria ao aliciamento feito - por volta da meia-noite, não apenas os partidos que viriam a ficar situados na posição de minoritários, mas os principais responsáveis do sector militar, encetariam nos programas contínuos da Televisão e da Rádio, com a açodada colaboração dos locutores, apresentadores e jornalistas, uma campanha inesperada - a da minimização das eleições, que passaram num ápice a ser apontadas, de uma forma geral, como uma irrelevante prática burguesa de que o capitalismo se serve (no Ocidente) para manipular as massas populares a fim de as afeiçoar aos seus objectivos de dominação e exploração das classes trabalhadoras...

Não podendo esconder o facto de mais de 90 por cento da população com idade superior a 18 anos ter participado com o seu voto - interpretava-se essa circunstância como «representando um referendum popular à actuação do MFA e à sua acção socialista», alegando-se que a repartição dos votos pelos partidos não tinha especial significado dada a «despolitização» e a «impreparação» do povo, consequência de meio século de dominação fascista; estas duas interpretações, entre si contraditórias, não mais deixariam de ser exploradas e acentuadas, quer na Imprensa, Rádio e Televisão, quer nos discursos e declarações do Primeiro-Ministro, bem como da grande maioria de alguns dos membros analfabetos do Conselho da Revolução - que ao mesmo tempo se empenhavam em explicar que os resultados apurados não teriam qualquer reflexo no desenvolvimento do processo revolucionário nem, tão pouco, na presente constituição do Governo, preconizando, unanimemente, a indispensabilidade, sim, dos «partidos sinceramente empenhados na construção do socialismo» se orientarem, unitariamente, para obstar desse modo a qualquer eventual e indesejável «divisionismo» das classes trabalhadoras...

No interior do edifício da Fundação Gulbenkian, à medida que se iam fazendo leituras de resultados, assistia-se a pequenas «batalhas verbais», a cenas entre o cómico e o trágico, de indivíduos que vinham a enganar-se a si próprios e a uma «realidade» que persistiam estulta e doentiamente em ignorar, fabricando uma «imagem falseada» do País e do Povo Português, pelo que se entreolhavam entre paranóicos e obtusos.


Fundação Gulbenkian






Começo da «Desilusão Comunista» - Eleições livres não são a sua vocação...


Ao princípio da madrugada, quando não restavam ilusões aos nossos revolucionários de opereta, Ramiro Correia, pedaço de asno, membro do Conselho da Revolução e da Comissão Dinamizadora Central, afirmara para as câmaras e para a rádio: «estas eleições são realizadas em liberdade, mas não são livres», focando as dependências sociais, económicas e políticas que amarram o povo português - levantando questões como esta: «Nas fábricas, nas obras, nos campos, em momentos de opção, votou-se bastante à esquerda; por que razão os trabalhadores, na altura da escolha nacional, tão importante, esqueceram os interesses que antes haviam defendido?».

Cerca de uma hora da madrugada, o Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves, com os seus poucos cabelos hirsutos, num esgar grotesco, declarava, por seu turno: «Uma nova sociedade, a sociedade socialista, é o que queremos construir, e para tal vive-se um momento que só encontra paralelo na história do ano de 1385, com Aljubarrota»...

Pouco antes, cerca da meia-noite, o Presidente da República, Costa Gomes, naquele seu ar de perplexidade exasperante, num socialismo meio gaguejado, como o de Jorge Campinos, não encontraria melhor declaração que esta: «O povo português acaba de nos dar a maior lição de civismo que nós poderíamos esperar. Eu não tinha dúvidas sobre a forma como as eleições iriam decorrer, mas estouconvencido de que a concentração extraordinária de elementos da informação de todo o mundo se realizou por que esperavam acontecimentos anormais em Portugal»...

Para o conselheiro Vasco Lourenço, a meio da madrugada, a opinião era de que o acto eleitoral e a adesão ao mesmo «fora uma vitória extraordinária para o processo revolucionário, independentemente do apuramento de votos e de percentagens. Fora uma prova extraordinária (a maior depois do 25 de Abril do ano passado) do povo português, que deixava assim bem claro que participara e fizera a Revolução em colaboração com o Movimento das Forças Armadas. Os resultados, por agora, são só parciais, mas já representam alguma coisa: querem dizer que o povo está com a opção socialista definida pelo MFA»...

Nunca a resposta ao principal cartaz publicitário do Partido Comunista, difundido aos milhares por esse País fora, obteve resposta mais pronta e adequada: O voto é a arma do Povo! Com efeito, dos 90 por cento, cerca de 80 foi um concludente NÃO ao comunismo.

A partir de 27 de Abril - o Partido Socialista, congregando centenas de milhares de votos da direita conservadora, que, por segurança, se acoitou no partido de Mário Soares, como melhor meio de se defender do assalto comunista ao poder, e o Partido Popular Democrático, respectivamente, com 37,87 por cento e 26,38 dos votos, apresentavam-se como grandes vencedores das eleições. Por essa razão, passaram desde então a ficar sob o fogo impiedoso não só dos partidos vencidos, com destaque para o Partido Comunista que não conseguiu somar só por si mais do que 12,53 por cento e o seu filhote MDP/CDE, com apenas uns escassos 4,1 por cento, como de, praticamente, toda a Imprensa, Rádio e Televisão. Por seu lado, a própria Intersindical, instituída pelo Conselho da Revolução, em 30 de Abril, como a única Central Sindical autorizada, ao assumir o exclusivo direito de comemorar o 1.º de Maio, imediatamente anunciou excluir da participação em tais festejos os partidos da «burguesia»: PPD e CDS (em conjunto, 34 por cento dos votos!). Perante o protesto do Partido Socialista, contra essa abusiva decisão e contra o predomínio que nas celebrações programadas se pretendia conferir ao recém-derrotado PC e seus satélites - a Intersindical acabou por anti-democraticamente, à boa maneira comunista, marginalizar, também, o próprio PS a pretexto de «inadmissíveis manobras divisionistas»...

Inteiramente a par do que se passava, e apesar disso, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Conselho da Revolução, na sua máxima força (homologando, dessa maneira, a feição marcadamente partidária e minoritária das comemorações), compareceram no comício promovido pela Intersindical no campo 1.º de Maio, tomando lugar na Tribuna apenas com os representantes do Partido Comunista e seus aliados, não se coibindo de proferir discursos em que (com excepção para o do presidente Costa Gomes) fora feita completa omissão ao acto eleitoral realizado cinco dias antes... Aos ministros Mário Soares e Salgado Zenha, foi violentamente impedido o acesso à tribuna presidencial, tendo-se exercido sobre ambos sérias e graves tentativas de agressão de que se conseguiram salvar por intervenção decidida e enérgica de militantes do seu partido e da Polícia Militar.

Vasco Gonçalves e Costa Gomes







Em atitude de desagravo, e mesmo sem terem conseguido que qualquer jornal, emissora de rádio ou da televisão, se fizessem prévio eco da notícia - os socialistas realizaram no dia seguinte, em Lisboa e Porto, manifestações que reuniram muitas dezenas de milhar de pessoas. O Governo, por paradoxal que pareça, não autorizou nenhuma dessas manifestações - pelo que tendo sido consideradas ilegais não mereceram dos orgãos de comunicação social mais do que breves linhas ou poucas palavras, mesmo assim menos noticiosas do que recriminatórias.


SITUAÇÃO PÓS-ELEITORAL

(principais partidos, com votação significativa)




De notar que o total de votos obtidos pelos grupos satélites do Partido Comunista: MDP/CDE, FSP e MES não foi além de 6 por cento, somando estes dois últimos, respectivamente, 1,17 por cento e 1,02 com 66 100 votos e 57 690...


(...) O malogro do voto em branco - Leitura dos resultados...


A primeira evidência que ressalta dos resultados apurados, respeita à insignificante «resposta» dada pelo eleitorado à intensa campanha do MFA a favor do voto em branco. Com efeito, se o número dos votos nulos, por preenchimento deficiente do boletim de voto, se situou na ordem dos 4 por cento, a percentagem dos votos «brancos» expressos não chegou a atingir 3 por cento! Ora, em declarações produzidas na Televisão perante os jornalistas nacionais e estrangeiros, no dia imediato ao das eleições, o ministro da Comunicação Social, comandante da Marinha, Correia Jesuino, que se fazia acompanhar do 1.º tenente Ramiro Correia, principal responsável da Dinamização Cultural das Forças Armadas e membro do Conselho da Revolução, afirmava que, de acordo com sondagens mandadas fazer pelo MFA, seria de prever que os votos em «branco» se situassem na ordem dos 40 por cento dos sufrágios a recolher!

Legítimo parece, pois, concluir que a votação popular não constituiu como se pretendeu fazer crer um plebiscito da adesão do Povo Português ao Movimento das Forças Armadas. E a reforçar esta conclusão (contrariando, igualmente, a afirmativa de que os votos expressos representaram uma «esmagadora aprovação» do País à opção socialista proclamada na sequência do 11 de Março), está o facto de o Partido Comunista e o MDP/CDE e seus aliados terem alcançado, em conjunto, apenas 19 por cento dos sufrágios recolhidos - ou seja menos de um quinto do total - apesar de serem, praticamente, ao longo de um ano, as forças políticas privilegiadas pelo MFA e pelos meios de comunicação social.

O Partido Socialista, com mais de um terço dos sufrágios relativamente à totalidade da população recenseada (6 176 559 eleitores), registou a votação mais homogénea em todos os distritos do continente, vencendo, destacadamente, em Lisboa e no Porto e, também, em distritos do Sul do País onde o Partido Comunista se presumia dominador incontestado, tais como Santarém, Portalegre, Évora e Faro; no fortemente industrializado de Setúbal e no predominantemente ruralizado de Beja, igualou, praticamente, o seu mais directo competidor - e, isto, apesar de todas as administrações municipais e de um dos governos civis, se acharem em mãos de elementos comunistas confessos...

O mapa dos resultados, sobretudo nesta zona do País, e um pouco por toda a parte, torna patente a verificação de um descolamento dos votos do centro e da direita (dos sectores mais conservadores da população), a favor daquele Partido que, no convencimento generalizado das pessoas, melhores condições reunia para se opor aos desígnios comunistas - ameaça real e mais imediata, exactamente, nos distritos do Vale do Tejo (Santarém e Portalegre), na grande zona urbana e industrial de Lisboa, como nas circunscrições de Setúbal, Évora, Beja e Faro. De facto, nem o PPD e muito menos o CDS registaram, nessas regiões, o número de votos que seria natural que lhes fossem endossados, aos quais deveriam acrescer-se os dos partidários da Democracia Cristã, impedidos de votar, como referimos.

Mas se o insucesso do Partido Comunista e do seu principal aliado (MDP/CDE) nestas regiões, pode ter surpreendido algum observador, os desaires sofridos pelos comunistas no Centro (e sobretudo nas zonas industrializadas do litoral), no distrito do Porto e no resto do Norte do País, é amplamente significativo de quanto o Povo Português repudia e detesta o totalitarismo de Moscovo. Verifica-se, aí, exceptuando Coimbra, que as três forças políticas mais votadas foram sempre o PPD (social-democracia), o PS (socialismo em liberdade) [?] e o CDS (democracia personalista, na linha da democracia cristã).






'Encontro' do MDP/CDE






Relativamente aos distritos insulares (três no arquipélago dos Açores e um constituído pela Madeira e Porto Santo), o PPD venceu largamente em todos; o PS registou significativas percentagens em Ponta Delgada e na Madeira, competindo razoavelmente nos outros dois; o CDS embora não recolhendo muitos sufrágios, marcou presença em terceiro lugar, em cada distrito - não passando os sufrágios recolhidos pelo PC e pelo MDP/CDE de insignificantes e, por isso, meramente simbólicos.


(...) Reacção comunista à derrota eleitoral... - Subversão social a todo o vapor...


Apesar de peregrina evidência deste quadro, verificou-se uma situação que seria cómica se não estivesse perto de conduzir o País para a tragédia de uma guerra civil. De facto, uma vez ultrapassado e minimizado o fenómeno eleitoral, como se o Povo Português não tivesse inequivocamente demonstrado o que queria e o que não queria - o Partido Comunista e os orgãos por ele controlados ou simplesmente influenciados, com o indisfarçável apoio dos militares «progressistas», iniciaram nova escalada, como se nada se tivesse passado, em ordem a recuperarem do fragoroso desaire registado nas urnas, tanto na reunificação e reforço moral dos seus militantes - no plano interno do Partido - como na reafirmação ou demonstração perante o resto do País, de que o PC continuava a constituir a verdadeira vanguarda da «revolução socialista» iniciada em 25 de Abril de 1974. No desencadear de novas e cada vez mais aceleradas actuações de tipo «revolucionário», não estaria ausente, por certo, a preocupação de restabelecer no plano externo (União Soviética e bloco socialista, PCs da Europa Ocidental) a ideia de que o Partido prosseguia, no processo em curso em Portugal, na efectivação segura e vitoriosa do projecto de «democratização popular», cuja estratégia fora estabelecida e viria a ser orientada por Álvaro Cunhal.

A violenta ofensiva contra o Partido Socialista (e os esforços desesperados que intentaria para desacreditar a sua chefia perante as bases); a insistência na marginalização do PPD e na ilegalização do CDS, atribuindo-lhes pseudo-actividades conspirativas; os termos em que vem a ser preconizado o maior reforço da unidade das massas trabalhadoras, impondo-lhes a subordinação a cúpulas sindicais não eleitas e ao controlo da Intersindical de exclusiva direcção comunista; a contribuição que continua a ser dada ao aniquilamento das estruturas da economia, provocando uma autêntica situação de «terra queimada» - ao mesmo tempo que, a nível de Governo, é lançado o grito de alarme a favor de uma «batalha da produção», que não passa de um «slogan» sem sentido, puramente demagógico; sabotada essa mesma batalha da produção pelo surto de nacionalizações selvagens, maciças, das maiores empresas nacionais para a administração das quais o Estado não dispunha de sistemas de gestão adequados, confiadas desse modo ao chocante amadorismo de indivíduos ignorantes; a intensificação de formas de apoio e interferência a acções de carácter subversivo em Espanha, assim como a virulência crescente da campanha contra a NATO, a CEE, as democracias do Ocidente Europeu e, em especial, os Estados Unidos e o Brasil; a pressão exercida a favor da neutralização da base aérea dos Açores, bem como a subtracção a qualquer influência ocidental dos territórios de Cabinda em Angola; a manutenção de grupos populares fortemente armados, no continente, e bem assim as cada vez maiores disponibilidades oferecidas à actuação do KGB soviética em Portugal - tudo isso, adicionado ao domínio por assim dizer total dos orgãos da Imprensa, Rádio e Televisão, tornava cada dia mais grave a ameaça que pesava então sobre o Povo Português, e sobre a Península Ibérica, da instauração de um regime ditatorial de opressão e miséria de controlo pró-soviético.

Minoritário e sem expressão nem dimensão nacional, o Partido Comunista e seus aliados activos ou passivos, pretendia a todo o custo reeditar neste extremo ocidental da Europa formas de efectivação do domínio comunista já experimentadas, com sucesso, no centro e no leste do Continente. As Forças Armadas portuguesas, na altura expurgadas dos seus quadros mais válidos e conscientes, deixaram-se tornar presa fácil dos oficiais «progressistas» que, corrompendo as estruturas da hierarquia e da autoridade, agiam em obediência a Álvaro Cunhal e seus sucessores, nacionais e estrangeiros.

Apesar do insucesso clamoroso das eleições para a Constituinte, nem mesmo assim o Partido Comunista desistiu dos seus claros intentos de bolchevização do País. Meses antes, com apoio do sector esquerdista das Forças Armadas, e por forma a «criar» um rosto humano contrário à sua vocação totalitária, mas através do qual pretendia cobrar dividendos para as eleições de Abril - havia sido estudada e montada a operação celebrizada como o nome de código «Nortada». Sabe-se como, por reacção espontânea das populações da região, foi ali agressivamente recebida a «embaixada humanitária» para promoção das classes mais desfavorecidas. Não duraria muito a experiência pedagógica, porque em muitos casos os «filantropos» foram corridos à pedra...






Ver aqui




Em fins de Maio, já depois do acto eleitoral, voltaram à carga e montam, em moldes sensivelmente idênticos, a operação agora denominada de «Maio-Nordeste», com vista a «emancipar» os povos de Trás-os-Montes. Representantes simulados das Forças Armadas para ali se deslocaram, em regime de voluntariado, a fim de construir a sua dinamização interna, fundindo-a no esclarecimento e dinamização das populações. Eles o disseram, na sua «extrema bondade» e acção desinteressada em favor dos desfavorecidos: «Por tudo isto (por todas estas aldeias, sem águas correntes, sem energia eléctrica, sem estradas, sem escolas, sem médicos) veio o MFA. Por tudo isto vai ficar. O tempo que, for preciso, para modificar de forma rápida e acentuada a situação socioeconómica das populações, sem esquecer que o problema deste «País real» se insere noutro mais lato - o da pátria portuguesa»... Ainda segundo o aspirante Mateus - um dos «reformadores» de Trás-os-Montes - «O MFA não pretende realizar uma acção esporádica de resultados duvidosos, mas proporcionar às populações uma ajuda concreta, dando-lhes capacidade de iniciativa capaz de vivificar a dinâmica da organização popular. Seguindo esse rumo, os militares têm fomentado a eleição de assembleias e comissões de aldeias e de utilizações de terrenos baldios, preparando o terreno para uma reforma agrária»... Este «benemérito aspirante», com ideias tão preclaras sobre como alterar rapidamente complexas situações sócioeconómicas, de uma zona extremamente pobre, acrescenta que nestes e noutros aspectos vive-se, por exemplo, em Vinhais, como se vivia na Idade Média, em pleno século XII. Mesmo assim vivendo, com um atraso de quilómetros da civilização dos países comunistas do leste europeu - a verdade é que durou pouco, também, esta tentativa de manipulação das populações transmontanas e o aspirante Mateus e a «cowboiada» do MFA foram dali corridos e enchotados a pau... E assim acabou, em pouco tempo, mais uma «dinamização cultural», perdendo-se o ensejo de uma ridente «reforma agrária», que tão promissora se mostrava. Uma pena...

Continuava, apesar de tudo, a escalada do PC e dos grupúsculos esquerdistas, com penetração ao nível dos Quartéis, por meio dos SUVs (soldados unidos vencerão), através dos quais se procurava veicular para as unidades do exército e da marinha um completo ideário de subversão, aliás fácil de instalar onde era já por então visivelmente patente a degradação da disciplina e máximo da libertizagem. Pretendia-se desse modo quebrar, a nível militar, o único elemento capaz de se opor a um eventual golpe de força para repor a autoridade do Estado que se achava praticamente inexistente. Com efeito, o que restava de Forças Armadas dignas desse nome era bem pouco. O exemplo dos oficiais, sem o mínimo de dignidade e de brio, nivelando-se praticamente com os soldados, desmobilizava completamente as unidades, tornando-as inoperantes e inofensivas.

A acção dos SUVs, neste contexto, arrastava os trabalhadores e outras camadas da população para uma prática sistemática de contestação, o que se repercutira ao nível das empresas por um índice de produção assustadoramente baixo, quer pelo tempo útil perdido em plenários, nas horas de trabalho, quer pela taxa de absentismo cada vez mais elevada. Às reivindicações irrealistas, não raro se sucediam, num ritmo alucinante, greves selvagens cujo objectivo era destruir o aparelho económico, elevando o clima de agitação social até um ponto de ruptura. Um pouco mais tarde, o 25 de Novembro, daria a explicação deste tumulto e desta anarquia. A complacência e a cobardia dos agentes do Poder, cobririam todos estes desmandos, estimulando-os mesmo, nalguns casos...

(...) Sequestro de 24 pessoas no Quartel-General da Região Militar do Sul, em Évora, à ordem de arruaceiros...


O episódio que seguidamente se relata, demonstra com eloquência todo este estado de torpor colectivo e de violência. Foi a 8 de Junho, em Évora. Um pequeno grupo de dirigentes do Partido da Democracia Cristã reuniu nesta cidade com delegados vindos de Castelo-Branco, Portalegre, Setúbal e Lisboa, para tratar de assuntos de organização do partido. Reuniões idênticas, haviam tido lugar em Braga, Porto e Aveiro. A este pequeno grupo, juntaram-se alguns elementos locais. Eram ao todo 24 pessoas, 11 das quais senhoras e uma pequenita de dois anos. Devidamente autorizada, a reunião efectuava-se numa das salas de aula do Colégio dos Salesianos, situada no piso superior, onde aliás decorriam noutras salas várias cerimónias, como as de um ensaio de um grupo coral. Sem que nada o explicasse, perto das 17 horas, já com os trabalhos praticamente terminados, viram-se os circunstantes atacados por um numeroso grupo de energúmenos, aos gritos de «morte ao fascismo e a quem o apoiar», «morte ao PDC», que começaram por forçar a porta, a parte superior da qual em vidro, que destruíram a murro e a pontapé, pretendendo penetrar na sala, no que foram inicialmente impedidos. Sem qualquer hipótese de saída do recinto, um dos sequestrados desceu ao piso térreo por meio de um algeroz, procurando rapidamente dar conhecimento do facto às autoridades.

Somente perto das 18 horas, ocorreu um pequeno destacamento vindo do Quartel-General da Região Militar do Sul. Neste impasse, os componentes do grupo em questão, foram alvo de vaias e insultos de toda a espécie, sendo contidos no entanto à entrada da sala de aula por elementos resolutos do PDC que procuravam salvaguardar, especialmente, a posição das 11 senhoras, então já praticamente sob sequestro.

A força militar entretanto chegada, comandada por um Aspirante, viu-se e desejou-se para preparar a saída do grupo.



Localização de Évora








Templo Romano de Évora


Consentiram, no entanto, sob a sua vigilância, uma completa inspecção da sala, o furto de documentação do partido e a identificação de todos os presentes. Findo este espectáculo degradante, a multidão de marginais, postou-se ao longo do corredor e da escada de acesso ao rés-do-chão até ao primeiro «jeep», embora elementos do destacamento militar procurassem, apesar do seu pequeno número, dar protecção à saída dos sequestrados, que perante os arruaceiros se comprometeram a conduzir ao Quartel-General.

No primeiro «jeep», de seis lugares, foram transportados apenas 4 elementos do PDC: dois homens e duas senhoras. Os restantes 20 seguiriam numa «Berliet» aberta do Exército. Postando-se, de mãos dadas, na frente do pequeno carro, em que se transportavam dois soldados da Polícia Militar, um à frente e outro atrás, forçaram este a seguir a passo, até ao Quartel General, distante cerca de 300 a 400 metros, se tanto, do Colégio dos Salesianos. Nesse curto trajecto, insultaram, cuspiram e escarraram sobre os 4 passageiros do PDC. A acção de qualquer dos soldados da PM limitou-se a impedir qualquer agressão física directa.

As restantes 20 pessoas do grupo, seriam positivamente passeadas, pela parte central da cidade, até à Região Militar. No trajecto, e perante a passividade dos militares, foram insultados grosseiramente, além de gravemente atingidos com objectos contundentes, que provocaram ferimentos nalguns deles. Neste grupo, com sua mãe, seguia a pequenita de dois anos. O problema mais agudo e grave, verificar-se-ia, por mais estranho que pareça, à porta principal do Quartel-General da Região, na altura do desembarque dos «clandestinos». A multidão, com o colorido e a excitação do «espectáculo», engrossara consideravelmente e só esse facto explica que o carro do exército tivesse gasto no percurso cerca de duas horas... A situação que seria fácil de resolver, se existisse o mínimo resquício de autoridade, agravou-se, assustadoramente, uma vez que se tornava dificílimo afastar fosse quem fosse para fazer descer as pessoas, sem riscos graves, pois alguns dos arruaceiros trepavam ao carro e socavam os «passageiros», a seu belo prazer. Uma das senhoras, atingida a soco na cabeça cairia desmaiada. Foi a muito custo que se manobrou o carro por forma a que a sua traseira entrasse praticamente no portão do Quartel e que só no final desta complicada manobra foi possível, finalmente, proceder-se ao desembarque dos transportados.

Uma vez ali, o oficial de dia esclareceu que não havia qualquer detenção, e que logo que os ânimos serenassem podiam as pessoas sair quando assim o entendessem. Não se estava prisioneiro: uma «consolação», no meio daquela cena vergonhosa! Uma multidão ululante, no largo fronteiro ao Quartel-General, gritava histericamente «slogans» fantasistas, exigindo a prisão dos sitiados, talvez cabeças... Instalados, por extrema amabilidade do oficial de dia, na Casa da Guarda, sem alimentação de qualquer género, ali se foram arrastando horas sobre horas. Até que... passava das 23 horas, foi solicitada a presença de um elemento qualificado do grupo a fim de explicar a Sua Ex.ª o Comandante da Região Militar, brigadeiro graduado Pezarat Correia, Conselheiro da Revolução, a origem dos acontecimentos e o porquê da reunião do PDC em Évora. Achou-se o representante deste partido, acompanhado de um capitão, numa ampla e confortável sala do andar superior do edifício do Quartel-General. Presente, ainda, uma terceira pessoa, que se disse governador civil do distrito, capitão Conceição Cardoso, de seu nome. Vestiam ambos à paisana, camisolas de malha vermelha e calça escura. Explicou-se a Sua Ex.ª todo o ocorrido, desde as 5 horas da tarde até cerca das 11 e 30 da noite, em que decorriam as explicações solicitadas. Por deferência para com os marginais, soube-se que Sua Ex.ª ouvira estes momentos antes. Sua Ex.ª ouviu com muita atenção... Terminada a sumária narração dos factos, o delegado do PDC formularia um protesto respeitoso, mas enérgico, permitindo-se estranhar como era possível uma situação daquelas, em que 24 pacíficos cidadãos depois de enxovalhados, de agredidos, se acharem sob sequestro de uma multidão, dentro de um Quartel-General de uma Região Militar, incapaz de pôr cobro ao desacato. Seguidamente, o Sr. Brigadeiro gaguejou desculpas, que tinha sido uma imprudência do partido promover uma reunião em Évora, que a gente daqui é tremenda, que até a delegação do PPD na cidade havia sido já atacada e incendiada e que teria sido preferível reunir em Estremoz, Elvas ou mesmo Portalegre, porque é outro o ambiente, porque são outras as pessoas... Prometeu, no entanto, muito peremptoriamente, que ia mandar «desmobilizar a rua», pôr fim ao incidente e permitir que as pessoas pudessem seguir para os seus destinos. Desceu o representante do PDC ao piso térreo, não viu mais sombra de Sua Ex.ª e somente a partir das 3 horas e 30 da madrugada começaram as pessoas residentes na cidade a ser conduzidas a suas casas, em carros militares, com soldados armados de G-3, pois os restantes só dali saíram pelas 7 horas, em pleno dia, sabedores, como estavam, que pequenos grupos de «heróis» formavam piquetes à saída das estradas para Estremoz e para Lisboa, com o propósito de atingirem os carros e as pessoas que neles se transportariam.

Este episódio não terá grande importância no contexto das muitas e infindáveis misérias desta revolução traída. Mas não deixa de ser francamente elucidativo do ponto a que desceu a cobardia, a cedência, a fraqueza, perante a demagogia e a pequenez de certos homens. Simplesmente vergonhoso! Simplesmente espantoso! Simplesmente caricato!



Pezarat Correia






(...) Cerco ao Patriarcado de Lisboa. Impunidade à solta...


Em 18 de Junho de 1975, manifestantes católicos que se propuseram dar o seu apoio ao Patriarcado, na questão que se arrastava na Rádio Renascença, viram-se subitamente cercados e atacados por contra-manifestantes da esquerda revolucionária, tendo que procurar abrigo no edifício do próprio Patriarcado. Algumas pessoas ainda conseguiram ser evacuadas, em «carros abertos» do exército, por forças do COPCON, enquanto várias centenas, encurraladas, só puderam deixar as instalações do Patriarcado pelas 11 e 30 do dia seguinte. Ninguém nem nenhuma autoridade responsável deste País teve possibilidade de intervir ou de impedir tão desagradável ocorrência. O que se passava no Patriarcado de Lisboa, em plena capital, era a denegação pura e simples da autoridade constituída: o saque, a libertinagem, o fim de uma Nação que até há pouco preservava os valores supremos como expressão de um Povo, de uma ideia, de uma Pátria, de uma Religião. Era o começo da peça final, dum fim próximo!

Entretanto, em 25 do mesmo mês, o quinzenário «Movimento», boletim pró-comunista informativo das Forças Armadas, dirigido pela Comissão Coordenadora do Programa do MFA, que nos textos publicados e na doutrina expendida pouco se diferençava do orgão do PC «Avante!» - escrevia: «Os verdadeiros problemas do País são os problemas da construção do socialismo. Assiste-se em Portugal a uma luta muito dura e difícil entre as camadas exploradas e os estratos que pretendem manter essa exploração». E, para apaziguar os ânimos, acrescentava: «Sabemos bem que os que pretendem manter os privilégios e a exploração, utilizam todos os meios para conseguir os seus fins, desde o subtil boato, até à opressão armada, passando pelo tenebroso aproveitamento de todas as divergências surgidas entre nós». Terminava a sua arenga sobre os verdadeiros problemas do País, declarando, como sempre, a sua isenção, nos seguintes termos: «O MFA reafirma a sua posição suprapartidária, a intenção de caminhar com o povo português para o socialismo, que não será no entanto possível em Portugal sem os Partidos Comunista e Socialista»...


(...) País em Saldo - País de Opereta


A situação, no entanto, no Verão quente de 1975, degradava-se de forma assustadora. Os grandes matutinos de Lisboa e Porto inseriam títulos em 1.ª página como «UM PAÍS DE OPERETA», «UM PAÍS DE DOIDOS», «UM PAÍS EM SALDO». Um soldado do Regimento de Cavalaria de Santarém, falava para um jornal diário e dizia, referindo-se ao comandante do COPCON: «esse general de merda do Otelo»... Outro, por seu lado, em relação ao comandante da Região Militar do Centro, desabafava: «esse corrupto lambe-botas do Charais»... Pouco tempo antes, com grande destaque da imprensa diária e não menor divulgação da Televisão, que passou o filme por duas vezes nos seus noticiários de ponta, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos referir-se-ia ao ministro do Trabalho, capitão Tomás Rosa, nos seguintes termos, iracundos: «O senhor ministro Tomás Rosaé um cobarde, um ignorante e um incompetente»... Como este tivesse conhecimento dos qualificativos e não retorquisse, nem mesmo o Governo, em relação ao seu ministro, foi admitido que o operário metalúrgico não andava de todo fora da razão, embora seja impensável que uma tal situação fosse publicamente possível através de um orgão estatal...

Como Primeiro-Ministro do VI Governo, Pinheiro de Azevedo falou ao País. Logo em seguida à sua comunicação, que refere com muita objectividade os «pontos quentes» da situação, especialmente ao nível laboral, aprestam-se ataques contundentes contra o Almirante e o VI Governo, o que interessava ao Partido Comunista. Desencadeia essa luta, como está bem de ver, a Intersindical, que, atacando com grande agressividade o discurso de Pinheiro de Azevedo, terminava mais ou menos um dos seus comunicados neste tom: «O povo português, aquele que trabalha, não entendeu a linguagem usada, ou melhor, é muito capaz de ter desconfiado, mas desconfiou. E desconfiou porque atrás da linguagem dos números não encontrou as medidas urgentes que apontassem para o progressivo controlo da economia pelos trabalhadores, a nível de empresa, de sector, de região e a nível nacional, que permitindo o combate à sabotagem interna e externa, abrissem as portas à orientação e planificação do aparelho produtivo, de acordo com as necessidades dos trabalhadores e sob a sua direcção. Socialismo significa - acrescentava a Inter - o total controlo pelos trabalhadores dosmeios de produção e, consequentemente, o fim da exploração do homem pelo homem»...

Por seu lado, na mesma data, num comunicado do secretariado da União dos Sindicatos do Porto (Intersindical), a propósito da visita do general Fabião ao RASP - é apontado como consequência da luta do CICAP e do RASP uma vitória dos militares e trabalhadores revolucionários, «embora os resultados não contentem totalmente as justas aspirações dos militares em luta». Depois de afirmar ter estado sempre ao lado desta justa luta, o secretariado da USP apela para a «união estreita entre todos os soldados e trabalhadores no combate à nação fascista e capitalista», terminando: «O secretariado da USP/Intersindical esteve, está e estará sempre, juntamente com todos os trabalhadores e militares revolucionários, pronto a dar o necessário apoio ao prosseguimento da revolução portuguesa, em direcção à sociedade sem classes»...



Vasco Gonçalves, Fabião e Costa Gomes






(...) Rádio Renascença - Silenciado à bomba, à falta de outro argumento...


Por meados de Outubro, depois de um Setembro de viva contestação através de plenários e de manifestações de rua - outro acontecimento eleva ao rubro, de novo, as tensões que iam aumentando num crescendo: por uma ordem (nunca se soube de quem !...) da presidência da República foram mandados selar os emissores da Rádio Renascença, da Buraca, e ocupadas as instalações por forças dos Comandos. Estas haviam de retirar dias depois, ficando cometida às forças militarizadas a segurança das instalações, isto a 17 de Outubro. Tal medida levou desde logo a grandes manifestações de protesto, destacando-se entre essas a que resultou de uma moção aprovada por unanimidade e aclamação na «Escola Prática de Serviço de Material», concebida nos seguintes termos: «As unidades presentes na reunião de praças, na EPSM, no dia 15-10-75, ao terem conhecimento de mais uma repressão puramente fascista, exercida sobre os trabalhadores da Rádio Renascença, aprovaram o seguinte: Apelar para todos os verdadeiros antifascistas e anti-imperialistas, operários e camponeses, soldados e marinheiros, no sentido de se mobilizarem para o posto emissor da Rádio Renascença, na Buraca, visto o mesmo ter sido selado nas costas do povo. Todos à Rádio Renascença, já! Morte ao fascismo e a quem o apoiar! Viva a justa luta da Rádio Renascença! Viva a aliança dos soldados e marinheiros, operários e camponeses. Organizados, venceremos!».

Por seu turno, seguindo a mesma orquestração, os trabalhadores da Rádio Renascença emitiram um comunicado, muito expressivo, em que, depois de se descrever a ocupação, se diz: «Os trabalhadores ocupantes da Rádio Renascençaconsideram este facto uma sequência lógica da escalada da burguesia ainda no Poder, para tentar calar uma voz ao serviço dos trabalhadores. Para além disto, esta acção, comandada não se sabe por quem, é uma provocação declarada. Não somos ingénuos! Compete a quem selou retirar as marcas da opressão» e finalizava do seguinte modo: «Nós queremos reafirmar aos poderes deste País: a Rádio Renascença está ao serviço dos operários, camponeses e do povo trabalhador em geral. Não se rende, não se troca, não se vende!».

Como se sabe, em 30 de Setembro havia sido superiormente mandado silenciar a Rádio Renascença, neutralizando a sua antena principal. Explode, simultaneamente, um movimento de forte contestação a tal medida e as massas populares, acudindo à mobilização feita através do Rádio Clube Português, aglomeram-se junto à Rádio Renascença, ao Rádio Clube e à Emissora Nacional, montando barricadas no acesso aos três locais. Na madrugada de 30 de Setembro para 1 de Outubro, um comunicado emanado do gabinete do Primeiro-Ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, e distribuído através do Ministério da Comunicação Social, dava conta de que iam ser retiradas da Emissora Nacional, Radiotelevisão Portuguesa e Rádio Clube Português, as forças militares, mantendo-se no entanto, a Polícia de Segurança Pública de «guarda aos edifícios». Enquanto isto, tal como se refere na imprensa diária de 1 de Outubro, «os trabalhadores explorados, povo e outros militantes revolucionários, mantêm-se na firme disposição de incentivar formas de luta conducentes à ligação, de novo, da antena. A Rádio Renascença - é ponto assente - voltará ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador»...

Em resumo noticioso à hora de encerramento dos jornais, dizia-se que «não obstante a determinação do Primeiro-Ministro no sentido de forças da PSP substituírem as forças militares na guarda às estações emissoras - militares do RIOQ e da PM mantinham-se vigilantes em defesa da liberdade de Informação nas instalações do Rádio Clube Português, recusando-se firmemente a serem substituídos pela PSP. Junto do RCP mantinha-se a vigilância popular, que, de modo algum, deve abrandar em torno das estações emissoras de rádio, TV e jornal República»... O próprio comandante do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, garantiria que as forças militares não seriam substituídas pela PSP ou pela GNR no Rádio Clube Português, isto em clara oposição à citada ordem do Primeiro-Ministro...

Todos sabem que perante este estado de degradação do País, de ordens e de contra-ordens superiores que não se cumpriam e se anulavam umas às outras - o único recurso para «legitimar» uma saída para o grave contencioso desde há tempo aberto com o Episcopado, em relação à Rádio Renascença, foi mandar proceder à sua destruição a dinamite, por especialistas do Exército, silenciando, assim, definitivamente, um dos pólos da agressão ao povo português. Porém, tão estranha e maquiavélica decisão, nem pela sua originalidade deixou de constituir um índice revelador deste tristíssimo processo revolucionário parido pelo 25 de Abril da traição. Impedindo de se fazer ouvir e de impor uma autoridade discutida ao nível da rua - não tendo meios nem coragem para fazer actuar os mecanismos da autoridade legítima - esta infelicíssima resolução é a prova provada do «amadorismo» e do «primarismo» característicos desta Revolução Traída, numa palavra, a mais frontal negação de um Estado de Direito, que se demite a si próprio quanto àquilo que representam as suas prerrogativas mínimas de se fazer impor e respeitar!

Num Outubro cada vez mais «quente», no resvalar para o abismo da mais completa subversão, a agitação a nível laboral, em obediência à palavra de ordem do Partido Comunista, que, na sombra, habilmente, mexia todos os cordelinhos, com vista ao derrube do VI Governo e à imposição de uma «democracia popular» - crescia de todos os lados, multiplicando-se, a contestação e a greve, como meios de pressão. É assim que surgem também os «padeiros» com a exigência de um horário que lhes permitisse não laborar de noite, procurando desse modo alterar o hábito do consumidor ao pão fresco pela manhã... A Imprensa saúda o facto festivamente: «Os padeiros conquistaram o direito a trabalhar de dia». Por sua vez, os trabalhadores do sector da alimentação procuraram justificar a alteração que se propunham aos hábitos do consumidor, acrescentando em reforço da sua argumentação: «Quem é que, nos tempos que correm, come pão fresco ao pequeno-almoço?»... Claro que poderia muito facilmente responder-se que em todo o mundo comunista ou não, onde se fabrica pão. Na própria União Soviética, as padarias têm horário nocturno. Portugal, no entanto, seria a excepção, para completar a «originalidade» do processo revolucionário...

Ver aqui


(...) Outubro quente - Revolução às 4 da manhã...


Não menos sensacional seria também em Outubro a revelação feita pelo matutino «O Século» de um «Plano da reacção para restaurar o fascismo»... Informa, com efeito, que segundo fontes absolutamente fidedignas, de origem militar, as forças militares de direita tinham, nesse momento, em curso, um plano concreto que visava a instalação de um regime de ditadura militar, vincadamente direitista, que rapidamente evoluiria para o fascismo. Tal plano, denominado«Plano dos Coronéis», visava a ocupação militar da rádio e TV, com restabelecimento automático de censura prévia. Tal acção reaccionária, na altura já em execução, teria como objectivo final a criação de condições óptimas para que os orgãos de comunicação social, depois de devidamente controlados, procedessem a uma orquestrada campanha de desinformação que reforçasse, nas massas populares mais despolitizadas, as ideias de caos, desordem e bancarrota, um clima já criado no campo prático pela actuação dos elementos activistas contra-revolucionários.

Este seria mais um «ensaio» para justificar a montagem de um novo 11 de Março. Que assim era de facto, a comunicação não menos sensacionalista feita em plena Assembleia Constituinte pelo deputado Socialista, José Luís Nunes, «leader» parlamentar, quando na sessão de 2 de Outubro pediu para ser interrompida a «Ordem do Dia» em virtude de uma notícia de «extrema gravidade» que devia comunicar: Que havia um golpe de Estado preparado para essa madrugada... Como foi relatado pelos jornais - a notícia causou celeuma no hemiciclo, bem como a intervenção de José Luís Nunes considerada ilegal por entre protestos de deputados do PC e MDP, tendo mesmo Alda Nogueira, do Comité Central do Partido Comunista, perguntado «com que bases vem o PS espalhar o alarme transformando esta Assembleia em mais uma central de boatos?». Para o Partido Comunista, em comunicado ulterior, estar-se-ia na presença de uma «grande encenação alarmística que levanta a justa prevenção de que está a ser preparada qualquer operação contra a situação democrática e contra certas formações políticas»...

Manuel Alegre interrogado pelo «Expresso», de 4 de Outubro, sobre que bases concretas se apoiara o PS para tomar a iniciativa de anunciar na Assembleia Constituinte que se preparava um golpe de Estado, o mesmo fazendo através de um comunicado do partido difundido pouco depois, aquele responderia: - Tivemos conhecimento oficial... Exp. - Oficial quer dizer da parte do Governo? M. A. - Repito «oficial». Disseram-nos que se preparava um golpe de Estado para as 4 da madrugada. Exp. - Foram chamados para lhes ser comunicado isso?M. A. - Sim, fomos chamados para nos ser comunicado. O que estava previsto era um ataque ao Regimento de Comandos da Amadora - fazendo-o, ao que parece, preceder de uma manifestação em que participariam os tractores vindos do Campo Pequeno -, um ataque à base aero-naval do Montijo, tomada das estações de rádio e dos jornais, pôr a Rádio Resnacençanovamente em funcionamento, ataque aos jornais independentes, cortar as entradas de Lisboa, ataque às esquadras de Polícia, ocupação do posto de rádio da PSP de Lisboa, uma campanha de calúnias contra o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo... Exp. - Isso seria levado a cabo por quem? M. A. - Por grupos civis armados e por elementos de certas unidades militares. Exp. - Foram ditos quais eram as unidades? M. A. - Fomos informados de que a decisão tinha sido tomada em reuniões realizadas na Rádio Renascença e no RALIS.

É evidente que este «golpe», procurando envolver eventualmente os Comandos da Amadora, tinha todo o aspecto de uma provocação. Só que não sendo suficientemente convincente, não pegou... Lá se foi assim, por água abaixo, o «Plano dos Coronéis», visando um regresso em grande ao «fascismo» e, simultaneamente, o golpe de Estado de iniciativa da extrema-esquerda, com Dinis de Almeida e o RALIS. Trafulhice, porcaria, náusea...


(...) Prólogo do «25 de Novembro» e da Guerra Civil


Entretanto, a situação ao nível do Governo do País e ao nível das Forças Armadas, atingia o ácume. Os militares chamados «progressistas» haviam perdido o mínimo respeito aos seus superiores hierárquicos, e como a disciplina militar caíra no zero, fazia-se o que se queria e ainda sobrava tempo... O País achava-se a saque: o poder judicial, o ensino, a todos os níveis, a paralisação do aparelho económico, a irresponsabilidade da administração, achavam-se mais do que degradados...

Num plenário realizado, em 13 de Outubro, na CUF do Barreiro, com a presença de representantes dos Sindicatos Agrícolas de Setúbal, Portalegre e Évora e das Ligas de Pequenos e Médios Agricultores, achavam-se presentes, também, o Capitão Duran Clemente, o comandante Ferreira da Silva, o tenente Santos Barros e os sargentos Saraiva e Tobias - os trabalhadores da CUF manifestaram numa moção o seu «mais vivo repúdio pelas declarações proferidas pelos Srs. Ministro e Secretário de Estado do Trabalho» e exigiram «a sua imediata demissão». Tendo usado da palavra o comandante Ferreira da Silva, diria a certa altura: «Veio a crise de Setembro e acabou o MFA e a burguesia apoderou-se do poder». Depois: «Vimos nos últimos dias as massas populares contra o VI Governo e o Conselho da Contra-Revolução»... Apelando para a unidade entre os trabalhadores, afirmou: «Importa mobilizar o poder popular e quando o fruto estiver maduro, com certeza que vai cair».



Os oficiais revolucionários do PREC. Duran Clemente é o segundo a contar da esquerda, com o boné debaixo do braço e óculos escuros na mão.



Por sua vez, o capitão Duran Clemente diria: «A classe revolucionária é a classe trabalhadora. Estamos agora, sim, na pré-Revolução. É isso que assusta muita gente. É por isso que vemos o VI Governo à defesa». Fez referências ao coronel Jaime Neves e ao capitão Vasco Lourenço, acentuando que «o PS se havia transformado em instrumento contra-revolucionário». Noutra passagem: «Nós estamos na ofensiva: não podemos desmobilizar - de maneira nenhuma. Temos a força do nosso lado - a força dos trabalhadores». Seguidamente: «Eu não sou a favor da guerra civil - não tenho é medo dela. Falava-se muito da guerra civil. É tão má a guerra civil, como é bom um bom bife»... Finalizando, disse: «A 5.ª Divisão não era mais do que a inteligência, a teoria revolucionária».

Pela mesma altura, tornou-se muito falado o facto de dentro de um quartel se ter disparado uma rajada de metralhadora contra um helicóptero de outra unidade e de dois militares, de unidades diferentes, terem discutido publicamente as suas divergências, convidando-se para um «duelo à pistola». Igualmente se tornou escandaloso e incompreensível o levantamento de mais de um milhar de mortíferas espingardas-metralhadoras G-3, pelo capitão Fernandes, dando-se-lhe sumiço para parte incerta, sem se punir, na altura, o prevaricador. Pior do que isso o comentário do comandante do COPCON, general graduado Otelo, de que essas perigosas armas, eventualmente em poder de elementos da esquerda, «estavam em boas mãos»...

Outro facto escabroso do pandemónio nacional e da irresponsabilidade a todos os níveis do poder político e militar, foi o ataque e incêndio ao consulado e embaixada de Espanha. Recusando-se a actuar, na circunstância, não cumprindo instruções superiores que lhes haviam sido transmitidas - quer o Chefe de Estado-Maior do Exército, quer o comandante do COPCON (Fabião e Otelo), permitiram o saque e incêndio a uma embaixada e a um consulado estrangeiros, que custou ao País, além do desprestígio e da vergonha, mais de meio milhão de contos de indemnização...


(...) Desonra do Poder Judicial


Apesar da integridade da grande maioria dos magistrados, alguns houve, infelizmente, que por cobardia, ou colaboração no estendal de misérias em que se afundava o País, facilitaram sentenças, deixando-se envolver na onda de demagogia e de licença. Ficaram como símbolos do desprestígio da independência dos tribunais, aliás tristemente célebres, os casos ocorridos no Barreiro e em Tomar. O primeiro, quando se absolve o réu confesso de um desvio de cerca de 13 mil contos dos cofres de um Banco, de que era subgerente. No final de tão «estranha» sentença, recebe mesmo um abraço emocionado do juiz... O segundo caso, ocorre em Tomar, quando a vil populaça, no dizer de Tácito, invade a sala de audiências, reclama o assassino José Diogo, julgando-o em praça pública pelo povo. Sentenciando-o como inocente, conferindo-lhe a liberdade, é passeado em ombros como um herói tendo morto à facada um agrário de mais de 70 anos de idade, doente, quase cego, indefeso - o feito é exaltado como um exemplo revolucionário... num e noutro caso, não se sabe do que mais ter vergonha!


(...) Como se matou Mestre João Núncio...


Dos muitos casos de violência, de roubo, de confisco da propriedade privada, ocorridos no Alentejo, alguns há que não podem ser facilmente esquecidos. Encontra-se nesta circunstância, o assalto à residência de mestre João Branco Núncio, já depois de lhe terem extorquido as suas bens exploradas empresas agrícolas e o seu semental de gado bravo. Dando vazão a ódios recalcados, a vinganças que se achavam adormecidas, manipulados politicamente, tomam-lhe alguns trabalhadores a casa de assalto, depradando-a pela forma mais selvática que se pode imaginar. A pretexto (aparece sempre um pretexto) da equívoca explosão de um engenho no Centro da Reforma Agrária, de Alcácer do Sal, indivíduos, na sua maioria estranhos à vila, para o efeito devidamente instrumentalizados, assaltam-lhe a residência particular, o que lhe restava, e à numerosa prole ainda a seu cargo. A pau e à navalha, destroem-lhe peças de mobiliário, o seu pequeno museu de recordações tauromáquicas, praticamente desfeito numa fúria selvagem, a que não foi poupado sequer um retrato a óleo, da autoria de Eduardo Malta, da figura em corpo inteiro do nosso maior mestre de toureio equestre de todos os tempos, o qual foi furiosamente golpeado à navalhada. A cabeça embalsamada do seu primeiro touro, como debutante, foi destruída à paulada, com ferocidade...

Praticamente sem recursos com que valer à família numerosa ainda a suas expensas - como era o caso do seu filho e jovem cavaleiro José Núncio, inválido, como se sabe, em consequência de grave queda quando montava a cavalo - mestre João fora de alongada até à Golegã, hospedando-se em casa de seu cunhado Patrício Cecílio. Das suas montadas, de alta escola e apuro, apenas uma lhe ficou. Com ela se estava treinando, na esperança moça dos seus mais de 70 anos de voltar aos redondéis e amealhar uns tostões para não morrer à míngua. No entanto, não resistiria à dolorosa situação em que se achava. Um colapso cardíaco, surpreende-o a viver essa fagueira esperança de um regresso que, por desígnio de Deus, não se viria a consumar. Ficou de mestre Núncio, um nome honrado, uma grande simpatia humana e uma saudade que o tempo jamais apagará. Morto pelo ódio e não pelo amor dos homens!



João Branco Núncio












Ver aqui



(...) «Bardamerda mais os fascistas»... 

Sequestro do Governo e da Constituinte, no caminho aberto para a conquista do poder: «25 de Novembro»...


O ponto culminante da crise estava, porém, prestes a ser atingido e para tal muito contribuiria o sequestro feito ao Governo e à Assembleia Constituinte por meio de uma multidão desvairada e irresponsável que, no dia 12 de Novembro, a pretexto de uma manifestação reivindicativa dos trabalhadores da construção civil, acudira, em tumulto, ao largo de S. Bento. Esse sequestro, que se manteve das 17 horas do dia 12 até perto do meio-dia de 13, assumiria aspectos de grave desrespeito não só ao Governo como à própria Assembleia Constituinte, pondo dessa maneira em causa, definitivamente, um facto que já não conseguia iludir ninguém: o País vivia sem lei e sem autoridade, portanto, à beira do colapso.

Os manifestantes, cujo propósito evidente não era tanto a luta reivindicativa como o de atacar o VI Governo, recusavam-se a escutar o Primeiro-Ministro, cobrindo-o de vaias e de assobios, sempre que por duas vezes, directamente, da varanda principal do Palácio pretendeu dar aos milhares de circunstantes conta do que havia sido decidido já com os representantes do sindicato de classe sobre a matéria reivindicativa apresentada. Foi na sua segunda tentativa que ao gritarem-lhe fascista, Pinheiro de Azevedo, ao microfone, replica de pronto:«Bardamerda mais os fascistas!».

Cerca das 5 e 30, o Secretariado Nacional do Partido Socialista emitiu um primeiro comunicado em que alertava os trabalhadores portugueses para a manobra que se desenrolava em S. Bento, com o sequestro do Primeiro-Ministro do VI Governo e dos deputados à Assembleia Constituinte. Nesse documento afirmava-se nomeadamente:

«Não estão em causa as reivindicações dos trabalhadores da construção civil. Está em causa, sim, a manipulação política feita por forças minoritárias em torno de uma reivindicação, com o objectivo de transformar a luta dos trabalhadores da construção civil numa manobra sediciosa contra o VI Governo Provisório».

Em novo comunicado, divulgado ao princípio da manhã, o PS acentuava: «Os deputados à Assembleia Constituinte, assim como o almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro do VI Governo Provisório, estão sequestrados no Palácio de S. Bento em Lisboa. A agitação desencadeada pelo Partido Comunista Português e outras forças minoritárias, incapazes de respeitar a vontade popular e de aceitar as regras da democracia, transformou-se, assim, em autêntica sedição. A coberto da manifestação dos trabalhadores da construção civil, cujo direito de manifestar e lutar pelas suas legítimas reivindicações não está em causa, pretende-se criar a instabilidade política e destruir as liberdades democráticas. Exige-se a dissolução do Governo e pretende-se desprestigiar, senão mesmo dissolver, o único orgão de soberania eleito pelo Povo: a Assembleia Constituinte».

O comunicado prossegue: «Se o sequestro do primeiro-ministro é um desafio frontal à autoridade do Estado, o sequestro dos deputados é uma ofensa ao Povo Português, que livremente os elegeu e de que são os representantes legítimos. Trata-se de um novo e gravíssimo passo na escalada do assalto ao poder por forças minoritárias, antidemocráticas e antipopulares. Incapazes de compreender este País, incapazes de respeitar a vontade deste povo, procuram essas forças tomar o poder nas costas do Povo e contra a sua vontade. Está em perigo a democracia. Estão em risco as liberdades reconquistadas em 25 de Abril.

É mais do que evidente que as autoridades supremas do País, a começar pelo Presidente da República, general Costa Gomes, se demitiram das suas funções e do seu dever perante o País, não encontrando forma de desbloquear a situação criada pelos manifestantes, permitindo, perante o pasmo e o escárneo do mundo, uma situação singular como a do sequestro de um Primeiro-Ministro e de uma Assembleia de Deputados.

Não é menos verdade, contudo, que a origem de todos esses e outros vergonhosos atropelos à ordem, à disciplina social e à lei, se acha sobretudo nas liberdades reconquistadas em 25 de Abril. O 25 de Abril da traição não é já um movimento de resgate e de emancipação, uma revolução de esperança e de amor, de fraternidade humana. O 25 de Abril da traição é a anti-revolução, é o ataque em fúria contra a Nação e contra a Pátria, sementeira de ódios, de vinganças e de frustrações recalcadas...

Cerco da Constituinte


Comentando o episódio, um vespertino da capital, escrevia: «Quem passasse ao meio da tarde por S. Bento; verificasse a paralisação do trânsito e a ocupação do palácio; ouvisse o discurso dos oradores e as palavras de ordem; soubesse do primeiro-ministro prisioneiro, teria a sensação de que o Poder estava de facto na rua»...

A todos os títulos edificante o que, sobre o assunto, se discutiria, na primeira sessão depois desses acontecimentos, na Assembleia Constituinte. Como registo, e medida do nível dessa Assembleia, supõe-se de interesse transcrever alguns dos passos mais significativos dessa histórica e agitada sessão, servindo-nos para o efeito da excelente reportagem publicada no matutino «O Comércio do Porto»:

«Mais do que qualquer outro orgão, a Assembleia Nacional Constituinte é, por excelência, o reflexo vivo da série inumerável de contradições políticas, económicas e sociais que se verificam a todo o momento no processo revolucionário português. Ali se vivem as maiores tensões entre as forças partidárias, ali se praticam golpes e manobras indignas dos que, constantemente, se proclamam como os lídimos representantes eleitos do povo.

Os problemas derivados da manifestação dos trabalhadores da construção civil, com o sequestro do Primeiro-Ministro e dos deputados, as atitudes face ao VI Governo Provisório, a demonstração de domingo passado em Lisboa, constituíram os temas dominantes e explosivos da sessão, uma vez que os trabalhos não passaram do período de antes da ordem do dia, ou melhor, só por mero formalismo se abriu, para depois encerrar, a ordem do dia. Nestes termos, assistimos a quase cinco longas horas de permanente e acalorada troca de «agressões», sendo os alvos sempre os já sobejamente conhecidos.

A Constituinte conheceu mesmo cenas deploráveis, tanto forçadas pela grande parte do público que (curioso) quase encheu as galerias, como da responsabilidade dos próprios deputados, incapazes de controlarem as suas reacções perante as ideias desfavoráveis que ouviam da bancada alheia. Por muito que nos custe afirmá-lo, a realidade da sessão de ontem (mais uma...) não é mais nem menos que o dia-a-dia do processo que atravessamos.


(...) Finalmente, o 25 de Novembro!


(...) Causas determinantes


a) A decisão do Conselho da Revolução, em 25 de Novembro de 1975 de substituir o general Otelo pelo brigadeiro Vasco Lourenço no Comando da Região Militar de Lisboa.

b) As declarações do então capitão Vasco Lourenço de que «se assumisse o comando da RML não permitiria o estado de indisciplina que existia em algumas unidades da RML pelo que substituiria alguns comandos dessas mesmas unidades».

c) A substituição dos comandos da RML daria origem à perda de força política da linha PCP/FUR e COPCON o que diminuiria de forma sensível os seus recursos de mobilização popular, em armas disponíveis, organização, ligações, transmissões e cadeia de comandos, consequências que não poderiam ser aceites naquela linha política, defensora da dita vanguarda revolucionária.

Ora, como se sabe, esta acção não passou de um balão que depressa se esvaziou. A organização da conjura estava baseada numa acção inicial de forças militares que seria secundada por um apoio de massas populares, quer em concentrações maciças, quer pelo apoio de grupos civis armados, uns e outros, a executar em pontos sensíveis. Sabia-se que a conjura fora planeada e preparada para ter início no dia 24 para 25, em consequência de ser esta a data marcada pelo Presidente da República para a resolução definitiva do Comando da Região Militar de Lisboa, o que implicava, a verificar-se, o afastamento do general Otelo Saraiva de Carvalho da RML e do COPCON. Daí que para essa data forças militares e outras a intervir ficassem prevenidas aguardando ordens.

Um facto algo estranho, mas decisivo relativamente aos acontecimentos, surge no próprio dia 24: ao findar da tarde, as barricadas de RIO MAIOR, dado o seu volume e o corte absoluto das comunicações rodoviárias entre o Norte e o Sul que provocaram - introduziriam na conjura um extraordinário factor de dissuasão, pela desconfiança de ter sido esta prematuramente posta a descoberto, pelo que teria sido admitido que aquelas não eram mais do que o início, corajoso, e decidido, da contenção do «golpe»: e, a verificar-se tal hipótese, este estaria condenado ao fracasso logo à partida - o que, graças a Deus, se verificou.

A palavra de ordem, gritada até à histeria, de «Otelo ou nada», bem depressa foi esquecida. Sem uma verdadeira hierarquia de Comando e Direcção, esses militares «bravos e destemidos» para quem dias antes a guerra civil era tão boa, como um bom bife, e juntamente com eles as massas populares que se mostravam dispostas a dar o sangue e a vida pela revolução «sonhada», que não a do 25 de Abril da Esperança - começaram por sumir-se, fugindo cada um para seu lado, acusando-se de raiva uns aos outros.

De facto, ao princípio da noite de 25 de Novembro, detendo a rádio e a televisão, parecia triunfante o aventureirismo revolucionário do poder popular. Os próprios comunicados da presidência da República deixam de ser lidos aos microfones da Emissora Nacional e menos ainda nos do Rádio Clube Português. Neste emissor, fazem-se claros e dramáticos apelos à insurreição, à luta armada, à mobilização popular e ao apoio à luta iniciada pelos Paraquedistas em rebelião. Parecia perdida a Revolução, a Democracia. Parecia perdido Portugal!









Ver aqui















Ao centro: Salgueiro Maia, perante viaturas da Escola Prática de Cavalaria de Santarém na autoestrada do Norte, dois dias depois do 25 de Novembro.



No entanto e quase simultaneamente, nessa hora aparentemente triunfalista do Poder Popular e da Insurreição - a heróica e corajosa acção de um Homem, comandando superiormente outros Homens seus iguais, Jaime Neves, e alguns dos seus boinas vermelhas, punha ponto final à falsa bravura de Clementes e de Paulinos, de Andradas e de Dinises, ao retomar a base aérea de Montijo praticamente sem disparar um tiro. Acabou aí, na verdade, o período febricitante de loucura, de pesadelo, de vertigem, de ódio, que aventureiros sem o mínimo de patriotismo e de escrúpulos haviam despertado de uma ponta a outra do País.

O episódio da manhã seguinte, em que tombam gloriosamente «dois bravos comandos», é o epitáfio do golpe torpe com que se havia pretendido transformar o que resta de uma Pátria secular num campo imenso de concentração, de silêncio e morte, como uma União Soviética, uma Cuba e outros quadros geográficos do socialismo de opressão e de miséria, que se pintam demagogicamente na imaginação das massas como paraísos na terra...


O COMPROMETIMENTO DO PC


Não deixou dúvidas a quem quer que fosse, a participação activa do Partido Comunista, juntamente com outras forças subversivas, no 25 de Novembro. O próprio relatório preliminar fez toda a luz possível sobre o comprometimento dos comunistas no «golpe», no qual se acharam «metidos» até ao tutano. Idêntica conclusão se recolhe das declarações produzidas na Assembleia Constituinte, no decorrer das duas sessões ali realizadas a seguir ao malogro da conjura.

(...) O secretário-geral do PS, Mário Soares, em conferência de imprensa na semana seguinte ao 25 de Novembro, retomando a tese do major Melo Antunes, na Televisão, sem deixar de insistir no envolvimento dos comunistas nos acontecimentos que empurraram o País até à fronteira da guerra civil, advogou, com veemência, a indispensabilidade do Partido Comunista para a construção do socialismo, ao mesmo tempo que verberava o anti-comunismo do PPD, que classificou de retrógrado e de direita...

Deste modo singular se encerrou, mesmo com as revelações do relatório preliminar, que davam como indiscutível a participação do Partido Comunista, da União Democrática Popular, do MDP/CDE e de formações de extrema-esquerda, com a Intersindical e alguns Sindicatos de permeio - o «dossier» 25 de Novembro, como se o País não estivesse prestes a ser lançado numa guerra civil de consequências insuspeitadas. Ou não vivêsssemos o 25 de Abril da Traição, em que os traidores se cobrem despudoramente uns aos outros, como relapsos do mesmo crime!


(...) Aprendizes de Feiticeiro - Põem o País de rastos...


Claro, o tempo é o grande mestre da vida. Pretendendo denegrir o passado político e com ele os fundamentos de uma administração de competência, que visava a Nação e não o «serviço» de Partidos - o estendal de miséria a que se reduziu em poucos meses, em pouco mais de dois anos, este País - é a resposta eloquente à santíssima trindade desta Revolução Traída: ao primarismo, à incompetência, ao improviso. Está aí, à vista de todos, sem tirar nem pôr!

Aos que admitiam que a administração deste País se fazia sem roque nem roque, anteriormente ao 25 de Abril; que aquilo que se tinha em vista era pura e simplesmente o interesse da Nação, sem a razia estéril dos partidos, como de 1910 a 1926; que a direcção do Estado se fazia de uma forma inconcussa, que não tinha que ter em conta clientelas partidárias - poderão, ao fim destes quase três anos de vida agitada, violenta, irresponsável, tirar por si próprios, no foro da sua consciência, as ilações convenientes e do mesmo modo a medida exacta dos que persistem em «desgovernar» o País!

Nada se faz do acaso. Estes homens do 25 de Abril, autoconvenceram-se que governar o País e colocá-lo em condições de marchar para metas utópicas - era o mesmo que carregar num botão: o milagre dava-se por si. Nesse aspecto se enganaram redondamente quantos apostaram no cavalo do comunismo ou no cavalo do socialismo em liberdade. Já referimos noutro ponto deste livro que o socialismo é uma «boutade» política, como outra qualquer. O do Mário Soares não chega a ser de coisa nenhuma: é uma água chilra, uma espécie de chi-chi, que se verte de um jacto, ou aos poucos, e não fica nada dele senão uma muito leve coloração...

(...) Entre nós passou a ser bonito, em seguida ao 25 de Abril, proclamar-nos democratas e, como tal, socialistas ou comunistas. Sem consulta ao Povo Português, numa Constituição discutida e aprovada num País em anarquia e na mais completa e total desordem institucional, entendeu-se que se devia caminhar para uma via socialista, sem se especificar claramente para que espécie de socialismo [seja ele qual for, que Deus nos livre!]. Este é como o camaleão: tem várias cores, que se alteram conforme as circunstâncias. É nesta indefinição que se debate ao nível da Europa e do mundo o próprio socialismo. Se até Angola é uma República socialista e Moçambique também... Se socialista é o governo da Áustria, da Dinamarca, da Finlândia, da República Federal Alemã; se socialistas são os governos da cortina-de-ferro, incluindo a própria União Soviética; se socialista é o regime que impera, por exemplo, em Brazaville e no Benim - então não se brinque mais aos socialismos e deixe-se de ludibriar as pessoas. Há regimes mais ou menos «socializantes» - mas não regimes socialistas, porque estes não passam de conversa fiada. O socialismo, tanto o da Europa Ocidental como da Europa de Leste, como o Africano, Sul-Americano ou Asiático, não passa de uma mentira e de uma arteirice para atingir o Poder.


(...) eis-nos, no limiar deste novo ano de 77, seriamente preocupados com a sorte que nos espera a todos, naufragada que se encontra a Nação, a viver (já sem preocupações de independência nacional...) da misericórdia dos empréstimos externos, em economia de desespero, a caminho da miséria e da fome... numa via para o socialismo!

O País estava prestes a atingir índices de nível europeu avançado por altura do 25 de Abril de 1974. Ninguém disso terá a mínima dúvida. Estava-se a viver uma fase aberta de expansão económica, mesmo com o encargo da guerra do Ultramar, expansão essa que nos colocaria, até 1980, ao nível dos melhores padrões do nosso continente. A execução programada, no respectivo Plano de Fomento - que estultamente se suspendeu - visava o complexo de Sines, da Siderurgia do Norte, da implantação da indústria química pesada no Barreiro, do complexo químico de Estarreja, da Petroquímica do Norte, dos grandes estaleiros da Setenave, em complemento com os da Lisnave, a construção do novo Aeroporto de Lisboa (Rio-Frio), a nova rede de auto-estradas, entre as quais a do nó Lisboa/Porto, tudo obras de fundo que nos encaminhariam para uma grandeza industrial de ordem europeia.

Do mesmo modo, não se poderá esquecer o elevado ritmo de investimento por essa altura verificado, resultando grande parte dele de poupanças internas, aforradas em clima de confiança; de que se dispunha de uma balança de pagamentos, com o exterior, positiva, a par de reservas-ouro e divisas das mais elevadas do mundo, o que permitia dispor de uma moeda invejavelmente sólida; de uma taxa de crescimento do produto nacional bruto em progressão constante; de uma situação de pleno emprego; de um poder de compra que se ampliava dia-a-dia; de uma actividade febril na indústria da construção de habitações de que tanto se estava carecido; de uma infraestrutura hoteleira que permitia alargar as perspectivas de turismo tanto interno como externo a níveis altamente compensadores para o País. O que muito sumariamente se descreve são factos: não anedotas. Anedota é a Revolução Traída; anedota trágica é a situação em que nos colocaram os «salvadores» da Pátria... E que anedotas!

Ao contrário de tudo isto, o que vimos? O País depredado, destruídas as estruturas económicas; uma contestação social permanente; um ensino paralisado nuns casos, degradado noutros; a autoridade do Estado discutida por tudo e por nada; um Governo que não governa; uma Assembleia da República longe de preencher o seu Estatuto; corrupção como nunca se vira antes; a incompetência institucionalizada; esgotadas, praticamente, as reservas em poder do Banco Central; as empresas, mesmo as que eram medianamente prósperas, em vésperas de falência técnica ou declarada; o produto bruto agrícola exceder largamente o investimento de milhões de contos sacrificados em nome de uma pseudo-reforma agrária, que acabará por levar à depredação da propriedade fundiária de grande parte do Sul do País; um Conselho da Revolução, de legitimidade mais que discutível, constituído por alguns indivíduos que pelo seu passado recente e pela sua categoria mental se acham bastante longe de merecer o respeito da Nação. Poderíamos avançar, por aqui fora, indo bastante mais longe.

(...) Na história do tempo, que contam três escassos anos? O mesmo não se poderá dizer na história de um Povo, de uma Raça, de uma Nação. Podem não ser nada e podem ser tudo. Para Portugal, para mal de nós todos, essa fracção mínima em relação à eternidade, desde o pós-25 de Abril, representa um período fugaz mas trágico, marcado pelo sofrimento, pelo drama dantesco e inenarrável da descolonização, por vexames e actos vis que são a vergonha de uma sociedade civilizada. Não são invenções: são uma constatação oficial, traduzida ao nível de inquéritos elaborados imparcial e honradamente.

Mutilada a geografia da Pátria e mutilada a alma do Povo Português, vilipendiada a sua História e vilipendiado o seu Passado - o que resta à vista de todos os portugueses é o espectáculo triste e patético de um País envilecido e doente, em saldo, a aguardar a hora do seu leilão...

Os valores espúrios que o 25 de Abril parturejou em número infindável, transformando em miríades de ídolos fugazes toda a sorte de cabotinos que, de enxurrada, tomou o País de assalto, numa voracidade insaciável, desensofrida e repugnante - são um ou outro raro caso, quantos governam hoje o País.

A leitura, à distância do tempo, da incrível «comunicação» do ex-Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves, e as palavras de apoio que mereceu ao camarada porta-voz do Partido Socialista, Sotomayor Cardia - pelas suas falsidades primárias, dispensam de sobejo qualquer crítica: basta ao comum dos portugueses olhar em seu redor e dar-se conta daquilo a que se reduziu o País que éramos ao 25 de Abril... Os factos são neste caso bem mais eloquentes do que as palavras!

Como demonstração da cretinice e imaturidade dos homens que se pretendem fazer passar por responsáveis da nossa política, no plano externo, basta atentar no confrangedor lance ocorrido recentemente em pleno Parlamento Europeu. Um Jaime Gama qualquer, que nos dizem presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia da República e vice-presidente do grupo parlamentar do Partido Socialista, jactou-se, soezmente, de que a Revolução do 25 de Abril havia conseguido «desfazer», em pouco meses, uma obra de coloninzação de cinco séculos, que tantos foram os da presença de Portugal em África e noutras partilhas do Mundo. Apresentava o facto como um acto relevante e ímpar! Só que as suas afirmações levianas teriam de causar, como causaram, uma certa preocupação no areópago a que se dirigia. O «desfazer» de cinco séculos de História e de Civilização, em poucos meses, como o fizeram os homens do «25 de Abril da Traição», acabava de dar aos experimentados europeus o exacto «calibre» moral e ético com que, levianamente, agem os cabotinos da Revolução Traída, e daí que se ponham a «jogar à defesa»... relativamente a toda e qualquer questão que diga respeito ao País (ibidem, pp. 134-160; 168-170; 176; 304-307; 320).










Moçambique

$
0
0
Escrito por Kaúlza de Arriaga




Monumento a Mouzinho de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, em Lourenço Marques (anos 1940).





«Se Nuno Álvares foi o herói da independência de Portugal metropolitano, não será exagero considerar Mouzinho de Albuquerque o maior obreiro da independência de Portugal Ultramarino».

Coronel de Cavalaria Alberto Faria de Morais


«Portugal e a corrida africana


Os portugueses (...) mantinham as suas aspirações sobre as costas da Guiné, Angola e Moçambique, ao mesmo tempo que a opinião pública de Lisboa e do Porto começou a tomar conhecimento das viagens dos exploradores Livingstone, Stanley e Cameron que se acercaram das zonas de influência de Angola e Moçambique. Como resposta imediata a esta potencial ameaça, no início de 1876 surgiu oficialmente a Sociedade de Geografia de Lisboa com o objectivo de, entre outros propósitos, promover a exploração científica e geográfica das províncias ultramarinas. Portugal tentava acertar o passo com os maiores protagonistas internacionais em termos de interesse pelos territórios africanos.

Logo em 1877, seria organizada uma primeira expedição de Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, com a finalidade de chegar à contracosta do oceano Índico, em Moçambique, partindo do litoral de Angola. Saíram de Benguela e foram até ao Bié, onde se separaram. Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens apenas entre 1884-1885 iriam cometer a façanha de completar o percurso.

Outras campanhas foram a partir de então patrocinadas. Entre 1884 e 1887, Henrique Dias de Carvalho bateu boa parte do sertão angolano, também muito cobiçado, sobretudo pelos exploradores alemães. Tal como acontecia com as congéneres estrangeiras, as missões dos portugueses dividiam-se entre os interesses meramente económicos e a curiosidade científica. Para além de se estudar as condições climatéricas das regiões que se atravessavam, a zoologia e a botânica, o curso e a navegabilidade dos rios, dever-se-ia ter em conta a possibilidade de estabelecer rotas comerciais e firmar acordos com os nativos. Tratava-se, pois, de missões políticas, comerciais, religiosas, diplomáticas e científicas.

Também em 1884, Serpa Pinto e o guarda-marinha Augusto Cardoso deixaram Mossuril em direcção ao Norte de Moçambique. Esta era uma expedição composta por 710 pessoas, entre landins, carregadores e exploradores. Pelo litoral chegaram ao Ibo, onde realizaram um importante levantamento topográfico. Inflectindo para oeste, os expedicionários atingiram as margens do lago Niassa, alcançando Quelimane, de novo na costa, depois de percorridos cerca de 2000 quilómetros.

As margens do lago Niassa seriam bastante disputadas por vários países. Os avanços britânicos na zona ocorreram na sequência das incursões de David Livingstone, patrocinadas pela Companhia Presbiteriana Escocesa dos Grandes Lagos, mais preocupada com o tráfico de escravos efectuado na região por árabes que operavam a partir de Zanzibar, vindo a dar origem ao protectorado da Niassalândia (futuro Malawi).

À expedição de 1884 seguiu-se outra, em 1888, comandada por António Maria Cardoso (conhecido como o "Cardoso das pilhérias"), acompanhado do já famoso Paiva de Andrade, o mesmo Augusto Cardoso e Vítor Cordon. Esta expedição seguiu de Marral até ao lago Niassa, que atingiu a 12 de Novembro de 1888. Pelo caminho conseguiram a proeza de avassalar 14 régulos ao rei de Portugal num território que interessava aos britânicos.

Tratava-se de um acto político meramente alegórico, mas de importância simbólica acrescida. Todas as potências europeias enviavam regularmente emissários aos chefes nativos, carregados de presentes, normalmente tecidos, fardas militares e a inevitável bandeira nacional. Os líderes africanos liquidavam os emissários ou aceitavam os presentes. Neste último caso, ficava depreendido, à luz do direito internacional da época, que os europeus reservavam para si o poder de ocupar os territórios dos régulos por esta forma submetidos. Quando as expedições ou as colunas da tropa partiam não deixavam qualquer representante da sua autoridade junto dos "avassalados". Como se percebe, os brancos não tinham maneira de confirmar a afirmação da sua soberania em tais paragens e os negros não se consideravam minimamente subordinados aos seus "conquistadores". Em muitos casos nem percebiam o conceito, mas em Angola e Moçambique a prática era corrente, embora com resultados duvidosos.

Seja como for, os portugueses foram os últimos a atingir a região dos Grandes Lagos da África Austral. Por lá já se encontravam missionários protestantes e expedicionários britânicos. Em 1868, Silva Porto, outro dos exploradores dos sertões africanos, já reconhecia que Portugal levava cerca de 20 anos de atraso em relação às potências europeias na corrida africana.

Moçambique, "a colónia de maior futuro"


Serpa Pinto



Mouzinho de Albuquerque




David Livingstone





Por esta altura todas as atenções se voltavam para Moçambique, o palco onde Mouzinho de Albuquerque irá afirmar os seus pergaminhos. Província longínqua e sem atractivos económicos suplementares para além do tráfico de escravos, o território passou a despertar o interesse das potências coloniais nos finais da década de 1860. Em 1867 foram descobertos importantes campos de diamantes na vizinha África do Sul, atraindo investimentos e emigrantes. Ainda em 1869 seria inaugurado o canal do Suez, aproximando a região da Europa, e em 1886 seria descoberto ouro do Rand. Poucos anos depois, esta região da África do Sul era já responsável por cerca de um quarto da produção mundial de ouro. Por este conjunto de razões, Moçambique tornou-se na "colónia de maior futuro" para os portugueses. Esta também seria a opinião de Mouzinho de Albuquerque.

Vozes autorizadas consideravam que a potencialidade de tais paragens seria "muito superior"à de Angola, "por ser compreendida em latitudes mais meridionais, chegando Lourenço Marques até fora dos trópicos, porque a vegetação em vez de parar (como é regra quase geral em Angola, a 100 ou 150 quilómetros da costa) vem até ser banhada pelo mar, e porque a costa daquela província, em portos óptimos e só um mais inferior, desembocam quatro caminhos para o interior de África". A geografia era apontada, neste caso, como um factor de promoção do desenvolvimento colonial. As condições naturais seriam ali superiores às verificadas em outras zonas. A baía de Pemba e o rio Rovuma, no Norte, funcionavam como autênticas portas de acesso à região de Niassa e dos Grandes Lagos, onde existiam importantes jazidas de carvão de pedra; o porto de Quelimane, localizado na foz do Zambeze, ficava, igualmente, próximo da desembocadura do rio Chire, duas das principais vias de acesso ao interior do continente; o porto da Beira também servia de entrada às regiões de Manica, Machona e dos Matabeles, de grande interesse para os britânicos e para Cecil Rhodes em particular; por fim, destacava-se a importância estratégica da baía de Lourenço Marques, onde se localizava a principal cidade da província, que funcionava como ponto terminal da rede ferroviária que assegurava a ligação ao Transval. De notar que a cidade de Lourenço Marques herdou o nome de um dos primeiros pilotos portugueses a fazer o reconhecimento da zona, em 1544, ao serviço do rei D. João III. A região passou a ser conhecida, entre outras designações, por Baía dos Chefes e mais tarde por Baía da Lagoa (Delagoa Bay para os britânicos). Em Novembro de 1887 passou à categoria de cidade.

A margem direita da baía de Lourenço Marques foi particularmente cobiçada pelos britânicos, que na década de 1860 chegaram a ocupar alguns lugares da região. O diferendo foi submetido à arbitragem internacional do presidente da República francesa, o marechal MacMahon, que em Julho de 1875 reconheceu os direitos portugueses sobre a zona em disputa, mas a região continuou a despertar apetites vários.

Enquanto os portos de Angola só serviam o sertão da província, os do Índico cortavam o hinterland sob a administração portuguesa e prolongavam-se por terras supostamente férteis e ricas. Vaticinava-se que "se fôssemos nação com algum espírito administrativo, a província de Moçambique poderia ser hoje para nós mais do que Java para os holandeses".


(...) A comoção do "Ultimato"


Ao aproximar-se o final de 1889, a imprensa de Lisboa já notava que as "principais nações da Europa" se encontravam particularmente empenhadas em alargar as suas fronteiras africanas, "onde procuram expansão para o seu comércio e consumo para os produtos industriais". O sinal de alarme para esta situação voltou a soar quando o primeiro-ministro britânico entregou uma concessão a um jovem ambicioso, Cecil Rhodes, que tinha feito fortuna em diamantes, nas minas de Kimberley na África do Sul, reservando-lhe direitos de exploração numa região cuja soberania era, alegadamente, reclamada por Portugal. Esta empresa, para além de assegurar a colonização a norte do Limpopo, passou a cobiçar os recursos mineiros do território português do recém-criado distrito administrativo de Manica, com a capital em Macequece. Cecil Rhodes, um pouco como Mouzinho de Albuquerque, achava-se um iluminado. Inspirado pelo darwinismo social e por uma nova visão do imperialismo, pensava convictamente que o destino dos britânicos era civilizar o mundo, sendo convenientemente pagos para tal. Em 1884-1885, iniciou o seu projecto, ainda com o apoio do Governo de Gladstone, anexando a Bechuanalândia (o futuro Botswana), transformada em protectorado, um território de pouco valor económico mas que iria servir de base para as futuras incursões na Zambézia. Conseguirá atingir o cargo de primeiro-ministro da colónia britânica do Cabo.

Com a chegada ao poder de lorde Salisbury a política das grandes companhias britânicas em África seria relançada. Em Maio de 1889 foi criada a British South Africa Chartered Company, conhecida como Chartered. Esta companhia serviu como veículo das ambições do fundador das terras para além do rio Limpopo. Em Abril de 1890, Cecil Rhodes reuniu algumas centenas de homens fortemente armados, que largaram da Cidade do Cabo, tomando a expedição o caminho do nordeste. Atravessaram a Matabelândia, conseguindo primeiro estabelecer um tratado com o régulo dos Matabeles, Lobengula. Seguidamente , entraram na Machonelândia (parte da futura Zâmbia) e ao fim de nove meses de viagem lançaram os fundamentos de uma nova colónia, a Rodésia (futuro Zimbabwe), cujo nome pretendia homenagear o fundador. A capital seria erguida em Fort Salisbury.

Esta não seria a primeira empresa do género criada para servir os interesses britânicos no Ultramar. Já em 1881, o Governo havia fornecido o mesmo tipo de atribuições à British North Borneo Company; em 1886, à Royal Niger Company; e em 1888 à Imperial British East Africa Company. Tratava-se de uma forma alternativa de reivindicar a soberania sobre extensas áreas, entregando a exploração dos recursos a entidades privadas, que ficavam responsáveis pela sua administração. A troco de um valor estipulado por um período de tempo pré-definido, as companhias eram encarregues de aplicar a justiça, zelar pela segurança, cobrar impostos, para além de tratar do aproveitamento económico das regiões concessionadas e criar infra-estruturas. O negócio agradava a todas as partes envolvidas. Por um lado, financeiros e empresários apoderavam-se do poder dos aparelhos estatais, por ténues que fossem, para retirar benefícios pessoais, enquanto por outro se favorecia o estabelecimento de uma autoridade europeia onde antes não existia, equação que tanto serviria os britânicos como os portugueses, ainda que depois a Chartered se viesse a transformar num dos principais obstáculos à acção de Mouzinho de Albuquerque na região.

















Túmulo de Cecil John Rhodes no Zimbabwe. Ver aqui







Seja como for, em 29 de Outubro de 1889 a companhia de Cecil Rhodes recebeu abusivamente, na óptica dos governantes portugueses, a referida concessão sobre a região da Machoa e da Matabelândia, no planalto da África Austral, justamente entre Angola e Moçambique. Dadas as imprecisas referências fronteiriças contidas na autorização de exploração, tratava-se quase de uma "licença de caça", pela qual o "caçador" poderia dispor dos recursos encontrados a seu bel-prazer. Cecil Rhodes não compreendia como é que as terras de Gaza poderiam ser reivindicadas por Portugal. Ao desaforo respondeu o Governo de Lisboa com outro excesso, criando em 7 de Novembro o distrito do Zumbo, no Médio Zambeze, muito para além de Tete, e a Intendência-geral dos Negócios Indígenas nas terras de Gaza, em Moçambique, que abrangia partes dos territórios em disputa. Na impossibilidade de o fazer no plano concreto, as autoridades procuravam afirmar a soberania nacional por decreto.

A polémica parecia instalar-se e até saltou fronteiras, chegando às páginas da imprensa internacional, pois desde o The Times de Londres ao Le Matin de Paris, passando pelo El Liberal de Madrid, vários periódicos discutiam os argumentos portugueses e britânicos quanto à ocupação dos territórios da Zambézia. A "corrida" aos recursos africanos encontrava-se, então, no auge e Portugal, dados os seus antecedentes históricos, não podia ficar afastado da "competição".

Logo a 21 de Novembro de 1889, lorde Salisbury, que considerava as pretensões portuguesas sobre a região como "arqueológicas", fez chegar ao seu homólogo português, José Luciano de Castro, um despacho de protesto contra as recentes ocupações portuguesas junto do lago Niassa, enquanto Barros Gomes fazia saber da insatisfação nacional motivada pelos avanços ingleses nas regiões próximas do rio Zambeze. Os britânicos dispunham-se a reconhecer a soberania lusitana sobre Tete e o Zumbo, mas recusaram-se a aceitar tudo o resto. Quase um mês depois, a 18 de Dezembro, uma nova nota britânica fez subir o tom da reclamação. Em causa, desta vez, estava a expedição de Serpa Pinto que, no Chire, entrara em confronto com os Macololos, supostamente sob protecção britânica. O Governo de Londres exigiu que as forças portuguesas se abstivessem de repetir a proeza no Chire e no Niassa, assim como nos domínios dos Matabeles e dos Machonas.

A réplica de Barros Gomes veio dois dias depois. O ministro reafirmou a sua intenção de que as forças lusitanas não atacassem qualquer estabelecimento britânico, mas deixou, igualmente, claro que iria manter as posições já ocupadas pelas forças portuguesas. Tinha sido atingido o ponto de não-retorno. A 26 de Dezembro, um despacho de lorde Salisbury avisava que Portugal não podia reclamar para si os territorios em causa e a 2 de Janeiro passou a exigir uma garantia formal que os portugueses não iriam mesmo intervir na zona. A 9 de Janeiro, o responsável britânico esticou a corda e intimou as forças lusitanas a retirarem-se da zona contestada, exigência que seria formalizada dois dias depois, a 11 de Janeiro, sob a forma de ultimato, ameaçando com o corte das relações diplomáticas entre os dois países, ao mesmo tempo que a Marinha britânica iniciava manobras em Gibraltar sugerindo a iminência de um ataque a Lisboa, Lourenço Marques e Cabo Verde. O Governo de José Luciano de Castro cedeu, e dois dias depois demitiu-se. Era o fim do chamado "Mapa Cor-de-Rosa" e das pretensões lusas de reunir os territórios entre Angola e Moçambique numa vasta província sob o controlo português.

O Partido Regenerador, que na altura atravessava uma crise interna, onde se digladiavam várias facções, assumiu as responsabilidades políticas do momento. O novo Executivo, liderado por António de Serpa Pimentel, apresentou-se a 15 de Janeiro com promessas de que tudo iria fazer para manter os direitos portugueses em África, numa altura em que uma onda de comoção antibritânica passou a varrer todo o país, com manifestações a ocorrerem quase todos os dias nas principais cidades do reino. Os republicanos capitalizaram politicamente o protesto e aproveitaram o caso para responsabilizar todas as forças monárquicas e o próprio rei D. Carlos, no trono há apenas dois meses, pela afronta recebida, incitando as massas à revolta, enquanto os partidos do sistema procuravam atirar as culpas para os seus adversários. Muitos observadores viram no fenómeno o início do fim do regime.

A resignação do Governo perante o Ultimato de Janeiro de 1890 teve consequências imediatas, que a médio prazo viriam a influenciar a carreira de Mouzinho de Alburquerque. O país via-se agora na contingência de negociar com os britânicos um tratado sobre a delimitação da África Oriental, numa situação de debilidade e de isolamento diplomático. Os "direitos históricos" tradicionalmente evocados como forma de legitimação da afirmação da soberania sobre os territórios em disputa ficavam agora definitivamente ultrapassados pelo princípio da "ocupação efectiva", equação na qual Portugal sairia forçosamente a perder perante um oponente mais poderoso.

O novo ministro dos Negócios Estrangeiros, o acoriano Hintze Ribeiro, ficou com a espinhosa missão de negociar com a Inglaterra, avistando-se com o embaixador inglês, sir George Glyn Petre, em Lisboa, a 28 de Janeiro de 1890, encontro onde as manifestações patrióticas da capital foram menosprezadas pelo ministro português, numa tentativa de criar um clima favorável à discussão.



Ernesto Hintze Ribeiro




O Mapa Cor-de-Rosa, que esteve na origem do Ultimato britânico de 1890.





Mapa mostrando o controlo britânico quase completo da rota do Cabo ao Cairo (1914).




Os progressistas desaprovaram o método das negociações directas. Barros Gomes, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, preferia evocar o artigo 12.º do Tratado do Congo e confiar a resolução da questão à arbitragem das potências europeias. Pretendia-se que, face à pressão internacional, a Inglaterra cedesse nas negociações que se seguiriam. Se o Governo de lorde Salisbury recusasse a intervenção dos mediadores corria o risco de virar contra si a opinião dos principais países com interesses coloniais. Era este jogo diplomático arriscado que os progressistas estavam dispostos a jogar quando foram arredados do poder. Agora, António de Serpa Pimentel e Hintze Ribeiro seguiam o caminho oposto.

Todos os sectores da sociedade registaram movimentações de cariz patriótico, "urgindo aproveitar a efervescência do espirito nacional, tão briosamente manifestada na presente conjuntura". Desta animação destacou-se uma subscrição nacional para a compra de material de guerra destinado à defesa das colónias, organizada por um grupo de várias dezenas de jornalistas, que convocou uma grande reunião para o Teatro da Trindade, em Lisboa, e que teria lugar a 22 de Janeiro».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«Quando Serpa Pinto penetrou na área dos Macololos deparou-se com a bandeira inglesa, o que indicava que estavam supostamente sob protecção da coroa britânica (eles que sempre tinham reconhecido a soberania portuguesa). E quando João de Azevedo Coutinho submeteu a região, o governo de Londres considerou tal facto como causa belli e lançou um ultimatum, a 11 de Janeiro de 1890, ao mesmo tempo que concentrou forças navais em Zanzibar, Gibraltar e S. Vicente de Cabo Verde.

As consequências do ultimatum, numa primeira fase, foram traumáticas, para depois passarem a condicionar toda a nossa política interna e externa. No início, porém, todo o país foi varrido por uma reacção patriótica e antibritânica, a qual se esgotou, todavia, num desvario sem nexo, nas lutas partidárias e nas ameaças inconsequentes. Reunido o Conselho de Estado, e com o apoio do governo, ficou decidida qual a melhor resposta a dar à Inglaterra. Entretanto, o governo caiu e foi substituído por outro, agora de cariz regenerador. Foi então negociado, à pressa, um tratado que permitisse sanar a questão com a Inglaterra, que viria a ser assinado em Londres a 20 de Agosto de 1890.

Nesse tratado, a Inglaterra ficava com toda a região do Chire até ao Zumbo, deixando para Portugal, em compensação, o planalto de Manica e um importante território em Angola; além disso, para satisfazer o desejo português de unir as duas costas, Portugal tinha autorização para construir estradas, caminhos-de-ferro, pontes e linhas telegráficas "através dos territórios ao norte do Zambeze reservados à influência britânica, numa zona de 20 milhas inglesas sobre a margem norte do Zambeze", formando-se assim uma espécie de corredor português transafricano. Em contrapartida, porém, a Grã-Bretanha ficava com os mesmos direitos numa zona de dez milhas ao sul do Zambeze, "desde Tete até à sua confluência com o Chobé". Além disso, ficou estipulada a liberdade de navegação nos rios Zambeze e Chire e assegurava-se "inteira liberdade de trânsito"às mercadorias entre a esfera de influência britânica e o porto da Beira, comprometendo-se Portugal a construir um caminho-de-ferro para o serviço desta região, obras essas que deveriam incluir um engenheiro inglês, nomeadamente na comissão encarregada dos respectivos estudos. Enfim, os territórios cuja posse ou influência eram atribuídos a Portugal por este tratado não podiam ser cedidos a outra potência sem prévio consentimento da Grã-Bretanha.

O tratado foi muito mal recebido em Portugal e atacado energicamente pelos partidos da oposição, ou seja, o progressista e o republicano. A propósito desse acordo com a Inglaterra, António Enes escreveu no seu jornal, O Dia: «O território português, na costa oriental, ficou cerceado como não se podia imaginar que ficasse nem mesmo depois do ultimatum. Parece que lorde Salisbury, desde Janeiro para cá, exigiu mais o curso de um rio, mais uma montanha, mais alguns hectares de terreno por cada dia que se protraíram as negociações. Em nome da teoria de que só a ocupação efectiva constitui domínio, os ingleses, que só têm ocupantes nalguns palmos de terra nas margens do Chire, levam-nos territórios de não menos de quatro distritos organizados regularmente, prazos da Coroa antiquíssimos, residências das nossas autoridades sertanejas, e em troca dão-nos (!) o norte da baía do Tungue até ao Rovuma, que estava já na nossa posse e que a Alemanha nos havia reconhecido e alguns palmos de terra no país dos Amatonga onde também deram ao Transval a baía de Kosi para os boers construírem um caminho-de-ferro e um porto que arruínem o de Lourenço Marques!











29.º encontro de antigos alunos e professores do Liceu António Enes (Moçambique).




Helicóptero ALOUETTE III da FAP aterrando na Corveta "António Enes" em Novembro de 1972, ao largo da Baía de Luanda (Angola).








Ganhámos, pois, algumas milhas de areais no litoral; mas da parte do interior, donde vem o comércio, onde há minas, onde demoram os mercados, onde se abrem as vias de penetração, fechou-se sobre nós uma barreira traçada calculadamente de modo que ficassem fora dela todas as chaves do sertão, todas as fontes de riqueza. E por escárnio às nossas grandiosas pretensões a atravessar de costa a costa, concederam-nos licença para construir um caminho-de-ferro até aos limites de Angola, caminho que eles bem sabem que nunca construiremos porque nem o terreno que lhe destinaram se presta a tal empresa para, a pretexto de reciprocidade, nos imporem outra linha férrea que eles farão decerto, e que virá, por território português, terminar em Tete!"

Estas razões determinaram a repulsa dos partidos da oposição em relação ao tratado. O Parlamento recusou-se a ratificá-lo e o governo de António de Serpa caiu (a 16 de Setembro). Apesar disso, a verdade é que o tratado deixava a Portugal uma região salubre e riquíssima em minerais: o planalto de Manica. Tal facto foi contrariado por Cecil Rhodes, que desde Julho de 1890 desempenhava o cargo de primeiro-ministro da Colónia do Cabo e que por um momento temeu a ratificação portuguesa, um descontentamento que fez questão de transmitir ao governo de Londres».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«(...) Carlos Ribeiro montara um serviço de escutas telefónicas na Central Automática.

Há um episódio que poucos conhecerão, mas que deu brado nas altas esferas. Sou testemunha fidedigna, porque, no afã de colaborar, exercidas as minhas obrigações diárias na Câmara, ia trabalhar para o CITA, na propaganda e contra-propaganda.

Foi o caso que o dr (?) Ramiro Valadão apareceu em Luanda, quando o prof. Adriano Moreira lá estava. Não sei o que fazia Ramiro Valadão, mas apresentava-se como pessoa importante, figura destacada do regime salazarista, lacaio sempre às ordens do dono.

Ramiro Valadão, sendo "profissional" da Informação (do Estado), recebeu um convite da União Nacional para uma série de conferências sobre técnica e politização. Carlos Ribeiro facultou-lhe o acesso às instalações de escuta e transmissão no CITA, donde Adriano Moreira, no próprio dia, telefonara para os seus pais, em Lisboa. A conversa fora gravada e Carlos Ribeiro, ao mostrar a Ramiro Valadão como funcionava o departamento, passou uma bobina ao acaso. Calhou ser a de Adriano Moreira, totalmente inofensiva, porque o diálogo apenas resumia o carinho que o ministro sentia pelos pais.

À noite, no palácio, Ramiro Valadão, coerente com o seu proverbial espírito subserviente, melífluo e submisso, com uma obsessão doentia por que o julgassem não só útil, mas também indispensável, disse a Adriano Moreira:

"Senhor ministro. Já ouvi hoje a sua voz". E revelou-lhe como a ouvira.

Adriano Moreira ficou preocupado e zangado, porque lhe acudiu à mente outro telefonema que fizera para o general Kaúlza de Arriaga, em que ambos tinham concordado na urgência de remodelar o Governo Central e modificar a sua política ultramarina, que consideravam comprometedora para o futuro nacional.

Procurei esquecer o conteúdo do telefonema (que, de facto, fora gravado) e o tempo ajudou-me. No entanto, de matéria tão importante, alguma lembrança fica. Embora não garantindo pormenores, nem a exactidão das palavras trocadas, recordo que os dois membros do Governo reconheciam vícios e erros do regime, em tudo o que respeitava ao Ultramar; que eram adeptos da descentralização, cuidando o Terreiro do Paço somente dos sectores da Defesa e da Política Externa; que, como nenhum deles era curto de vista, mesmo em 1961, no início da guerra, antecipadamente estavam certos de que o seu termo passava, necessariamente, por uma linha política, fosse ela qual fosse; e que, em consequência, não haveria outra alternativa, senão forçar uma remodelação ministerial, o que pressupunha a destituição de Salazar. Portanto, o fim da ditadura.

Admito que Adriano Moreira, ignorante dos problemas angolanos, mas inteligente e hábil na política, vivia horas de emotividade e de mágoa, perante o quadro funesto que se lhe deparara numa viagem ao Norte. O telefonema para o general Kaúlza de Arriaga julgo-o como um impulso de alarme, um desabafo e um pedido de conselho a um militar experiente e de bom-senso, político de provas dadas (e eu sou insuspeito, porque estou em divergência com ele em alguns aspectos), que, já nessa altura, discordava da feição que o Governo imprimia às coisas do Ultramar. Sei que Kaúlza pensava ser imperiosa uma transformação absoluta, no que respeitava à Administração da África portuguesa.


O Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, e o Secretário de Estado da Aeronáutica, coronel Kaúlza de Arriaga, durante uma visita a Angola.


Quanto a Adriano Moreira, desconcerta-me o seu papel como ministro do Ultramar. Salvo erro, promulgou 87 diplomas legislativos e só três foram concretizados.

Retrocedendo à gravação do telefonema Adriano Moreira - Kaúlza de Arriaga, o ministro increpou Silva Tavares que não teve verticalidade para arrostar com o desagrado do seu chefe. Hesitou, titubeou, vagamente se desculpou e terminou por negar que tivesse conhecimento das escutas. Mentiu. Como disse, não só sabia da sua existência como as autorizara.

Carlos Ribeiro que se entregara de alma e coração às tarefas da guerra e cujo trabalho estava a ser de extremo benefício para a defesa de civis e militares, ficou perplexo, revoltado e indeciso sobre a atitude a tomar ao ser admoestado pelo ministro e desfeiteado pelo governador-geral.

Dirigiu-se, por fim, à Central Automática onde se faziam as escutas e ameaçou, de pistola em punho, que mataria os dois funcionários encarregados desse serviço, se cometessem quaisquer gravações. Os dois homens, Eduardo da Costa Oliveira e Ferreira Borges, eram e sempre tinham sido dignos de toda a confiança. Jamais disseram ou escreveram sequer um monossílabo sobre as suas ocupações de então.

Acompanhara Carlos Ribeiro e vi-o acabrunhado, desesperado e desorientado. Que fazer?

Altas horas da noite, procurámos, em sua casa, o director da PIDE, dr. São José Lopes. No carro de Carlos Ribeiro, fomos para a avenida marginal e ali parámos a discutir o destino a dar à gravação. Pelas implicações que o telefonema poderia ter, no momento de crise que se atravessava, entendemos que a bobina deveria ser destruída. Não acredito nos boatos que me chegaram aos ouvidos, segundo os quais se transcreveu essa bobina, antes de a destruírem.

Armou-se quase um exército para localizar a gravação, que, naturalmente, não foi encontrada. Adriano Moreira não perdoou a Carlos Ribeiro: destituiu-o do seu cargo no CITA e transferiu-o para Moçambique onde ocupou as suas anteriores funções, nos Caminhos-de-Ferro de Lourenço Marques.

No aeroporto, ao partir, Carlos Ribeiro foi humilhado pela Polícia que o obrigou a despir-se e lhe vasculhou roupas e bagagens. Ao sair da sala onde suportara o vexame veio para mim a chorar como uma criança. O avião esperou por ele uma hora, mas foram precisos anos para Carlos Ribeiro se recuperar do traumatismo que lhe causaram.

O dr. São José Lopes, muito das relações do ministro, abandonou a PIDE e foi nomeado director do CITA, acumulando com o lugar permanente de inspector dos Serviços de Economia. O inspector Reis que o substituiu ouviu-me e as outras pessoas, sobre o paradeiro da gravação. As buscas e as investigações duraram largo tempo.

Nas minhas declarações, menti, por meu turno, afirmando que não ouvira a gravação, nem dela tivera conhecimento. Menti, na certeza de que era útil ao País mentir.

Ao contrário da mentira de Silva Tavares».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«O general Carrasco foi substituído no comando-chefe das forças armadas portuguesas pelo general Augusto dos Santos e o brigadeiro Costa Gomes assumiu o comando das forças terrestres. Estes dois generais transferiram então o centro do dispositivo militar para norte, para junto da área de operações, sendo criada a Zona de Intervenção Norte (ZIN), com o respectivo comando em Nampula. Os distritos do Niassa e de Cabo Delgado foram categorizados como Sectores, A e B, respectivamente, e passaram a ser comandados por um oficial general. A malha da quadrícula de companhias e batalhões foi apertada nos dois sectores, especialmente junto à fronteira e sobre as infiltrantes vindas da Tanzânia.

Este dispositivo era fruto de um conceito operacional que pretendia interdizer a fronteira à passagem de guerrilheiros logo junto ao rio Rovuma e barrar a progressão para sul dos que o conseguissem ultrapassar, de modo a evitar, numa primeira fase, que chegassem ao rio Lúrio e, numa segunda, que ficassem limitados pelo rio Messalo. Em 1970, Kaúlza de Arriaga, ao substituir Augusto dos Santos como comandante-chefe, "introduziu modificações nesta forma de condução da guerra ao lançar a operação 'Nó Górdio' para esmagar militarmente a Frelimo" e o seu antecessor estranhou a mudança: "Nas reuniões em que eu expunha com franqueza as minhas opiniões sobre a situação em Moçambique, nunca o general Kaúlza discordou dos meus pontos de vista. Nunca. Portanto, para mim foi uma surpresa quando percebi que ele tinha mudado tudo".







Assalto das tropas portuguesas a acampamentos da Frelimo.



Aspecto interior da Base Gungunhana, vendo-se ao fundo a "secretaria e porta de armas".



O "mudar tudo" foi passar de um conceito "de captar as populações, para a do mata e esfola", de passar a fazer a guerra à maneira dos americanos, com o search and destroy, sem os meios que eles tinham. De um conceito orientado pela ideia de "restringir a guerra ao longo das fronteiras, junto a Mueda, entretendo lá os terroristas para que não alastrassem de Cabo Delgado para Tete e para o Niassa", para um outro em que esse perigo era minimizado. De um conceito em que a vitória era procurada através de séries de pequenas acções, para um outro assente numa batalha decisiva, uma grande operação, julgada por Augusto dos Santos ainda em Abril de 1969 "que seria altamente irreal por, neste tipo de guerra e na situação previsível de Moçambique, não se vislumbrarem operações desta classe que, por vezes, existem nas guerras convencionais".

Que razões terá encontrado Kaúlza de Arriaga para alterar a manobra de Augusto dos Santos e de Costa Gomes mal acabou de substituir estes dois experientes oficiais e voltar à de Caeiro Carrasco? Para fazer tábua rasa de seis anos de boas e más experiências e desencadear uma grande operação como nunca fora realizada?

(...) Entre os militares portugueses que nos anos cinquenta tiveram acesso a cursos e cargos no estrangeiro, um grupo associou a competência técnica-militar adquirida nesses contactos à consciência da importância dos factores políticos nos assuntos da guerra. Constituirão aquela que os historiadores contemporâneos têm designado como "geração NATO", formada por majores e tenentes-coronéis que estiveram envolvidos no "Golpe Botelho Moniz" para depor Salazar e proporcionar condições para discutir o problema colonial. Quando, mais tarde, ocuparam cargos de chefia, estes oficiais privilegiaram acções orientadas para permitir ganhar tempo até encontrar soluções políticas. É a eles que, em boa parte, se deve a transposição dos conceitos de "quadrícula" e de "acção psicossocial" para a doutrina e prática da luta anti-subversiva das forças portuguesas.

Mas, algo esquecido na sombra das teses dos historiadores e dos analistas, existiu e teve importância significativa um outro grupo de militares portugueses da mesma geração dos anteriores e alguns deles com passagem pelos mesmos centros de formação, que tinha um peso significativo na jovem Força Aérea, da qual o general Kaúlza de Arriaga, foi o primeiro subsecretário e secretário de Estado e que aderiu à doutrina americana do ataque em força e da sobrevalorização do diferencial relativo do potencial de combate, que estava a ser empregue pelos americanos no Vietname. O seu conceito de emprego de forças seria testado no exercício "Himba", realizado no ano de 1959 em Angola com tropas pára-quedistas transportadas de avião desde Portugal e assentava numa manobra desencadeada por um bombardeamento aéreo maciço dos objectivos, seguida de assalto por forças aerotransportadas.

A operação "Nó Górdio" filia-se neste conceito de manobra.

(...) As concepções destes dois grupos cruzar-se-ão para constituir o corpo principal da doutrina militar portuguesa de contra-subversão e serão empregues com maior ou menor peso de cada uma delas durante a guerra. O conceito estratégico-militar da componente militar da reacção portuguesa à guerra subversiva oscilará entre a "busca e destruição do inimigo" (o exército punitivo) e a "conquista das mentes e corações dos africanos" (o exército conciliador).

A operação "Nó Górdio"é o exemplo mais marcante da primeira destas duas concepções e a principal, senão a única, razão para as forças portuguesas a terem realizado, a forma como ela foi planeada, os objectivos que pretendia atingir, os meios de que dispôs, o local e o tempo em que teve lugar, assentam nos conceitos e na personalidade do comandante que a ordenou.

A doutrina portuguesa de contra-subversão havia sido estabelecida em 1963 a partir dos ensinamentos obtidos principalmente pelos ingleses e franceses e também, embora bastante menos pelos americanos, que estiveram envolvidos em conflitos idênticos e no estudo dos mais importantes chefes revolucionários, como Mao Tsé-Tung, Giap ou Guevara.

Os conhecimentos sobre as manobras e acções adequadas, a organização das forças para o combate neste tipo de guerra foram compilados nos cinco volumes do regulamento"O Exército na Guerra Subversiva", tornando estulta a pretensão de inventar o que já estava inventado e era conhecido pelo menos desde que há mais de dois mil anos Sun Tzu escrevera"A Arte da Guerra", se designava universalmente como "guerrilha", agora enquadrada na guerra revolucionária que tomara como base as teorias marxistas-leninistas, que as autoridades de facto ou de direito consideravam subversivas e às quais se opunham tentando "destruir a estrutura subversiva e conquistar física e moralmente a população".






Como os bons livros,"O Exército na Guerra Subversiva" continha a sabedoria, mas não a arte de a utilizar.

O primeiro objectivo conseguia-se através da ocupação em quadrícula do terreno e o isolamento, a flagelação, a redução e a intervenção sobre as forças de guerrilha.

O segundo, através de acções típicas de guerra psicológica, de contra-informação e de apoio ao desenvolvimento e bem-estar das populações, e que ficou conhecida como acção psicossocial, cujo peso e amplitude na manobra geral das forças portuguesas constitui um dos aspectos mais marcantes da forma como estas actuaram durante a guerra.

(...) Os efectivos da Frelimo em Cabo Delgado eram estimados pelas autoridades militares portuguesas em 2 500 guerrilheiros e 5 000 milicianos, correspondendo a efectivos de seis a oito batalhões. Em Nashingwea, no centro de treino na Tanzânia, encontravam-se 550 efectivos prontos e 600 em instrução. É curioso assinalar que, em 1970, a DGS tinha referenciados em Cabo Delgado 1 056 guerrilheiros, 2 334 milicianos e 306 elementos femininos (40 armadas).

(...) Na área da Operação "Nó Górdio", no núcleo central do planalto dos macondes, encontravam-se três grandes bases: Moçambique, Gungunhana e Nampula.

Estas bases eram apoiadas e protegidas por um conjunto significativo de unidades fixas e móveis, constituídas por patrulhas, sentinelas e orgãos político-administrativos.

Para apoiar os feridos que não podiam ser tratados nos postos de socorros das bases, a Frelimo organizara a Base Zambézia, que funcionava como hospital. Os reabastecimentos de material e os recompletamentos de pessoal para Cabo Delgado vinham da Tanzânia e, depois de atravessarem o rio Rovuma, eram reunidos na Base Beira, a primeira grande base no interior, a partir da qual se efectuava a distribuição pelos orgãos do interior. O pessoal e o material que se destinava ao núcleo central era reunido na Base Provincial de Moçambique e o excedente ia para a Base Provincial 25, na base do planalto, na região de Nacatari».

Carlos de Matos Gomes («Moçambique 1970: Operação Nó Górdio»).


«A Operação "Nó Górdio" e as Operações que a Precederam e Seguiram


(...) Na realidade, quando assumi o Comando-Chefe das Forças Armadas de Moçambique, em fins de Março de 1970, a situação em Cabo Delgado, e apenas em Cabo Delgado, tinha acentuada gravidade. O inimigo mostrava-se em plena força, bem enraizado no terreno, considerando as suas "bases" inexpugnáveis, com grande domínio sobre as comunicações terrestres. Acabava de lançar a sua grande ofensiva - a operação "Estrada" - que tinha por objectivos o isolamento das nossas unidades, através do lançamento maciço de minas, e uma profunda progressão para Sul. Visava, seguidamente, formar ou consolidar um "exército de libertação" com base na etnia maconde, e, com ele, atingir o coração de Moçambique, separando a Província em três partes - Tete, o norte e o Sul. De início não poucas das nossas unidades foram efectivamente isoladas e a Frelimo progrediu realmente para Sul, bordejando os aldeamentos do rio Messalo.

Em consequência, desde logo tive de determinar disposições e acções urgentes e de mandar preparar um plano de fundo que neutralizasse e destruísse as intenções do inimigo e trouxesse a iniciativa para o lado português.

Assim, depressa foi executada uma grande operação de reabastecimento aéreo das unidades isoladas e foi reforçada a faixa de aldeamentos do rio Messalo. Seguidamente foi realizada uma também grande operação de levantamento de minas e foi lançada a primeira operação heli-móvel ao longo do rio Rovuma da qual resultou a destruição e ocupação das bases fronteiriças da Frelimo. Outras operações de menor vulto, mas de acentuado interesse, tiveram ainda lugar.

Mais tarde, na sequência do plano de fundo acima referido, lançou-se a maior operação que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português - a operação "Nó Górdio". A operação, na qual se utilizaram novas tácticas com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia e em tropas especiais de assalto e, por outro lado, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado e posto em fuga. As suas baixas, se bem que infligidas no menor número possível, foram muito volumosas. Não mais alguém pensou no "exército maconde" nem na sua progressão para sul. Restabeleceu-se o domínio português sobre as comunicações terrestres e as nossas forças passaram a ter inteira liberdade de acção e plena iniciativa. Na exploração do sucesso, levada a efeito sobretudo por forças aeromóveis, o inimigo restante em Cabo Delgado quase desapareceu, refugiando-se na Tanzânia. Por outro lado, a operação foi extremamente rendosa pois aqueles, diria espectaculares, resultados custaram às nossas tropas, não os cento e tal mortos e inúmeros feridos imaginados por Costa Gomes, mas sim 26 mortos e 27 feridos graves.

O conjunto de todas estas operações, iniciadas com o reabastecimento aéreo e terminadas com a exploração do sucesso da operação "Nó Górdio", venceu drasticamente a Frelimo em Cabo Delgado [a Frelimo foi, nesta ocasião, salva de destruição total pela proximidade imediata do "Santuário" da Tanzânia] - o que foi confirmado após o "25 de Abril", por elementos qualificados desta Frelimo, como consta do livro "País Sem Rumo" do General Spínola. E os seus dirigentes em Dar-es-Salaam entraram em estado de choque e desvario. Começaram, em tentativa de justificação da sua derrota, por afirmar ser eu, Kaúlza de Arriaga, o segundo melhor perito do Mundo em guerra subversiva, logo a seguir a Giap - célebre chefe militar nas guerras da Indochina e do Vietname. Depois, puseram-me a cabeça a prémio, considerando que, enquanto eu vivesse, a Frelimo não tinha qualquer "chance", facto confirmado, já depois do que se chama a independência de Moçambique, também por elementos qualificados da Frelimo, na presença de oficiais portugueses. Finalmente levaram todo o seu problema à Organização da Unidade Africana.



General Kaúlza de Arriaga













E foi nesta Organização, distante dos acontecimentos, mais calma, mas menos realista, que, em face da situação em Cabo Delgado e do início da construção da barragem de Cabora-Bassa, se decidiu uma mudança de manobra da Frelimo no sentido de transferir o esforço principal, até aí feito, com base na Tanzânia, directamente em Cabo Delgado, para, igualmente com base na Tanzânia, mas agora através da Zâmbia, o fazer, como última hipótese de sucesso, em Tete ou mais precisamente sobre aquela barragem e acessos, tentando impedir a sua construção. A manobra, dadas as grandes distâncias entre as bases tanzanianas da Frelimo, através da Zâmbia e parte de Tete, até aos objectivos, teria só por si forçosamente de esgotar a já enfraquecida Frelimo, o que realmente estava sucedendo [A Frelimo foi, agora, salva pela 2.ª vez da destruição, pelo "25 de Abril"]. Esta situação foi, também, confirmada depois do "25 de Abril", igualmente por elementos qualificados da Frelimo, como é referido no mesmo livro "País em Rumo".


A Estratégia de Costa Gomes


No respeitante à estratégia de Costa Gomes, e os seus contagiados, desejavam que eu seguisse em Moçambique, repudiei-a imediatamente. Contudo, ouvi com isenção o Estado-Maior do Comando-Chefe, e pus a questão no Conselho de Defesa, presidido pelo Governador-Geral, em Lourenço Marques, tendo todos emitido espontaneamente pareceres concordantes com o meu. Houve mesmo quem considerasse a estratégia que nos queriam impor uma estratégia de inépcia ou de traição.

Naturalmente que, conhecida a nova manobra da Frelimo, quase no momento da sua decisão e, assim, antecipadamente em relação à sua execução, graças à eficácia da DGS em informações externas, foram transferidas numerosas forças para Tete e garantida a segurança de Cabora-Bassa. Mas tudo sem que se abandonasse território algum a Norte do rio Messalo ou em qualquer outro ponto, dado nada a tal obrigar nem sequer vagamente aconselhar, e dado, pelo contrário, a criação por aquele abandono, se tivesse tido lugar, de áreas "libertadas" e nelas a natural formação, para nós com gravidade evidente, de um governo frelimista no Norte de Cabo Delgado.


O Sucesso em Moçambique


O facto é que no Rovuma, isto é, na fronteira com a Tanzânia, continuaram a nossa acção e trabalhos, agora muito mais dirigidos a convencer a inteligência das populações e a conquistar os seus corações, do que ao ataque de terroristas quase inexistentes. Foram os casos da interessante e promissora operação "Fronteira" e de tantas outras. Era a continuação do sucesso em Cabo Delgado.

E o facto é que uma Delegação da Comissão dos 24 da ONU, querendo convencer-se da existência de áreas "libertadas" em Tete, acompanhada e supostamente protegida por numerosos elementos da Frelimo, vinda da Zâmbia, tentou atravessar a fronteira e, através daquelas inexistentes áreas, penetrar no interior de Tete. Durante perto de um mês e em mais de doze pontos diferentes, tentou aqueles atravessamento e penetração, tendo sido sempre em absoluto impedida de o fazer pelas tropas portuguesas e acabando por retirar, derrotada, para Nova Iorque. Também a construção de Cabora-Bassa prosseguiu sem um segundo de atraso, em relação ao calendário de começo previsto. Era o sucesso em Tete.

A verificação de algumas infiltrações, em Cabo Delgado e, torneando Cabora-Bassa, a Sul e Sudeste desta, que afinal deram apenas lugar a actos terroristas esporádicos, não tinha nem teve importância real, dado em terrorismo esses actos serem sempre possíveis e em nada afectarem a situação geral. Acresce que o esgotamento da Frelimo, atrás referido, impossibilitava a sua continuação e, por maioria de razão, qualquer sua intensificação.

Tudo evidenciou o êxito das operações que precederam e seguiram a operação "Nó Górdio", e desta própria, e o acerto na não-aceitação de alterações estratégicas.


A Operação "Fronteira"


Contudo, cabe aqui um comentário à operação "Fronteira". Esta operação de construção, em termos racionais e modernos, de vilas de populações fiéis ao longo da fronteira com a Tanzânia, decorria por vezes e sem que isso se devesse a qualquer acção inimiga, com lentidão excessiva, circunstância que em mais de uma ocasião me ocupou. Hoje sou levado a admitir ter sido talvez, em Moçambique e em meados de 1973, o único caso em que se verificaria já, além da má vontade do Ministério do Ultramar, oriunda, quero crer, em Costa Gomes, influência sabotadora de alguns futuros capitães do "25 de Abril"».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).






«Dada a sua eficácia em Angola, seria o modelo dos Flechas suficientemente robusto para ser importado para outros teatros insurgentes na região? Em Moçambique, um teatro operacional com muitas similitudes com o de Angola, a PIDE/DGS tentou edificar os Flechas em 1972, com o apoio da África do Sul e do governador-geral de Moçambique. Em Setembro desse mesmo ano, numa carta dirigida ao ministro do Ultramar, o chefe da delegação da PIDE/DGS em Moçambique, depois de salientar diversas circunstâncias que estariam a obstruir a criação dos Flechas no país, solicitou autorização para criar cinco equipas de 30 homens cada, nos distritos de Cabo Delgado, Niassa, Tete, Vila Pery (Chimoio) e Beira. Na mesma carta, a PIDE/DGS alega que os Flechas podiam ser empregues em missões especiais contra os insurgentes, em Moçambique como noutros países vizinhos que lhes proporcionassem protecção. Todas estas tentativas enfrentaram, contudo, uma forte oposição do general Kaúlza de Arriaga, comandante-em-chefe das forças armadas portuguesas em Moçambique entre 1969 e 1974. Alegadamente, o general mostrava-se preocupado com a "africanização" do exército português e com a ameaça que ela poderia representar no futuro.

A sua relutância em aceitar os Flechas baseava-se, aparentemente, em razões ideológicas, pois já em 1960, quando era subsecretário de Estado da Aeronáutica, o general Kaúlza de Arriaga abordara o assunto de forma pragmática numa carta a António de Oliveira Salazar. Nela dizia que o conceito de defesa baseado em tropas africanas era impossível, independentemente do tipo de controlo exercido pelos brancos, pelo que seria necessário reduzir o número de negros nas tropas portuguesas. Portanto, o enorme cepticismo do general Kaúlza de Arriaga quanto a forças de africanos operando fora da esfera de controlo dos militares portugueses e os conflitos entre ele e a PIDE/DGS poderão explicar a rejeição do projecto dos Flechas em Moçambique.

Contudo, em meados de 1973 havia um centro de instrução de Flechas em Vila Pery (Chimoio, Moçambique), com 50 flechas operacionais e outros 200 em formação. O facto foi corroborado por uma mensagem classificada do cônsul-geral norte-americano em Lourenço Marques (Maputo), Hendrick Van Oss, para o secretário de Estado norte-americano em Washington D.C., mencionando que a sua congénere britânica o informara de que o Sr. Sabino, chefe da PIDE/DGS no distrito de Tete, lhe confidenciara que a PIDE/DGS fora autorizada a recrutar e treinar forças especiais similares aos Flechas em Angola. Van Oss acrescenta na mesma mensagem que o comandante-em-chefe Kaúlza de Arriaga se opusera recentemente à formação de Flechas, preferindo manter grupos especializados de indígenas sob estrito controlo militar.

(...) A estratégia aproximou os Flechas de modelos como o dos GE (Grupos Especiais), que tinham um carácter puramente militar, contrário à índole primitiva dos Flechas bosquímanos. Os sul-africanos cometeram um enorme erro quando integraram os bosquímanos nas fileiras do seu exército. Fizeram deles soldados regulares. Ao carregarem os Flechas com equipamento militar, fardamento, botas, acabaram por transformar uma infantaria superligeira numa infantaria pesada desprovida das suas qualidades inatas.

Apesar de tudo, os Flechas não tiveram o mesmo sucesso em Moçambique, pese embora houvesse esperança de que pudessem mudar o rumo da guerra. O conflito em Moçambique vivia, então, um período de grande intensidade e, nos finais de 1971, Óscar Cardoso foi transferido para Moçambique e o inspector Rosa de Oliveira, antigo capitão dos Comandos, foi nomeado responsável máximo da delegação da PIDE/DGS em Serpa Pinto em sua substituição. Em 1972, o director-geral da PIDE/DGS, major Silva Pais, chamou Óscar Cardoso à Metrópole para uma reunião com o ministro da Defesa, Silva Cunha. O ministro da Defesa ordenou que Óscar Cardoso iniciasse a edificação dos Flechas em Moçambique, para contrariar os avanços dos insurgentes da FRELIMO no território. Era um projecto que se desenrolava ao mais alto nível, pelo que as falhas teriam repercussões de maior dimensão.

Em 1973, o então primeiro-ministro Marcello Caetano mandatou o inspector-adjunto Álvaro Alves Cardoso para liderar a criação de uma unidade de Flechas em Vila Pery, Moçambique. Alves Cardoso e outros 14 instrutores pertencentes aos Comandos portugueses terão treinado vários Flechas segundo o método usado nos Comandos. Embora se aceite, em termos gerais, que os Flechas foram fundados pelo director da PIDE/DGS em Angola, São José Lopes, foi o inspector-adjunto Álvaro Alves Cardoso que fomentou o uso da boina camuflada, que também acabou por ser adoptada por outra lendária unidade sul-africana, o 32.º Batalhão. Esse símbolo encheu de orgulho os Flechas, pois a boina distinguia-os de outros grupos paramilitares com uma intervenção operativa menos destacada. Mas o momento de glória teria um final triste e dramático.

A decisão de edificar os Flechas em Moçambique foi algo precipitada, nas palavras de Óscar Cardoso, por já existirem tropas paramilitares autóctones a operar sob as ordens dos portugueses e com excelentes resultados no campo de batalha, tal como os já referidos GE e os Grupos Especiais de Paraquedistas (GEP). Os Flechas não desequilibrariam, por si só, as tendências operacionais em Moçambique, pois a tipologia e as premissas dessa frente de combate eram completamente diferentes das de Angola. As altas chefias militares em Moçambique não viam com bons olhos a criação de uma tropa paramilitar que ficasse na dependência da PIDE/DGS. O paradigma vigente em Moçambique era, então, que as tropas autóctones deviam estar na linha de comando do exército».

Fernando Cavaleiro Ângelo («Os Flechas. A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola - 1967-1974»).
















Ver aqui


«No Times, de Londres, o Padre Adrian Hastings publica um artigo denunciando, com cópia de pormenores, um massacre de nativos perpetrado por tropas portuguesas, na aldeia de Wiryamu, em Moçambique.

A revelação deste episódio, que aliás já aparecera aflorado nas declarações de alguns padres espanhóis expulsos da província, coincide com a próxima visita à capital britânica de Marcelo Caetano. E se é evidente, como exploração publicitária, a data escolhida para as revelações de Hastings, o encadear subsequente dos factos, a desconexa série de declarações negativas e afirmativas dos responsáveis de Lisboa, muito vão contribuir para o agravamento do escândalo.

Massacres de população civil existem desde que há guerras e existirão sempre como acidente ou consequência destas. O problema, numa perspectiva ética, terá de pôr-se em saber em que medida eles decorrem de um propósito intencional ou costume atávico dos que os perpetram, como modo sistemático de domínio pelo terror, ou são desvio ocasional de um processo que aceita a distinção entre militares e civis, ou melhor, combatentes e não combatentes.

Ao longo dos séculos, graças à influência da Igreja (na regulamentação ad hoc do direito feudal), do "direito das gentes" e ao bom senso dos cabos de guerra (que chegaram, além de considerandos morais, à conclusão que é melhor não criar desesperados) foi melhorando, pelo menos na Europa, a situação dos civis em teatro de operações. Estabeleceram-se no papel regras que punem os comandantes por atrocidades praticadas contra elementos da população em território ocupado, etc.

Entretanto, a guerra revolucionária (como a guerra civil) escapa a estas fórmulas de jurisdição. E ensinam os mestres (Mao Tsé-Tung à cabeça) que o terror é o segundo método de obter das populações apoio para a guerrilha (o primeiro não se sabe bem qual é, pois se fala em adesão voluntária, o que dispensa métodos). A partir daí, as noções esbatem-se; até porque, inspirada num messianismo de libertação ou religião de resultados como o marxismo, a guerrilha não se preocupa muito com subtis distinções entre civis e militares, todos reduzidos à condição de inimigos de classe ou obstáculos à marcha da História. E a "consciência universal", representada por algumas dezenas de intelectuais, jornalistas e clérigos, reserva os seus protestos exclusivamente a massacres perpetrados por "fascistas" - forças regulares de países ocidentais ou insurrectos anticomunistas. Os outros (praticados por esquerdistas, países do Leste, ou "movimentos de libertação" marxistas) não têm idoneidade para base de protesto.

Com Portugal sucedeu assim. A consciência universal, de Jean-Paul Sartre às Nações Unidas, ficou muda quando o terrorismo no Norte de Angola massacrou tudo o que era branco ou preto não colaborante com a eliminação dos brancos. Mas despertou com violência quando o Exército e os voluntários reagiram sem aplicar as convenções de Genebra e recorrendo por vezes aos preceitos de Lynch e ao bíblico "olho por olho".

Não vale a pena nem aproveita a ninguém negar que houve excessos. Entre milhares em operações há de tudo e tem de se contar uma percentagem de sádicos, de irresponsáveis, de prepotentes. Depois, muitos estavam sob a acção do que tinham visto, à medida que avançavam nas zonas atacadas pelo terrorismo: as mulheres violadas e mortas com requintes rituais, os homens castrados e torturados até ao fim; os bailundos esquartejados, as crianças... [Entretanto quanto a atrocidades muito terão a dizer alguns oficiais do MFA, cujos feitos em campanha, aliás, se resumem a tais atrocidades. Osdossiers sobre tais temas, recolhidos ad hoc, serviram a seguir ao 25 de Abril para chantagem entre os clãs militares esquerdistas em luta pelo poder].

Ao que se pode, por enquanto, reconstituir, os factos referidos por Hastings ocorreram na segunda quinzena de Dezembro, entre 16 e 19, numa zona situada 30 km a sueste de Tete, nas margens do Taua-Taua, um rio quase seco nesta época do ano. Na área vinham actuando guerrilhas da Frelimo, em número de cerca de trezentos elementos, comandados por um tal Raimundo; a sua acção intensificara-se a partir do Verão, concentrando-se principalmente sobre as populações; um chefe tradicional de nome Rego foi assassinado, mutilado e mostrado como exemplo aos povos locais. Outros régulos tinham sido também raptados ou liquidados. Um balanço da actividade terrorista no período indicava 12 mortos, 28 feridos e 14 raptados entre os civis e 6 mortos e 18 feridos militares, nas baixas causadas pelo inimigo.

A localização destes bandos frelimistas, onde se contavam, particularmente activos, grupos femininos, coincidia com a região das aldeias de Chwala, Jwau e Wiryamu, pequenos aglomerados populacionais que contavam, respectivamente, com doze, oito e vinte e duas palhotas.

Perante a crescente escalada inimiga, o Comando da Zona Operacional de Tete decidiu empreender uma operação de limpeza, utilizando meios terrestres e aéreos, tanto mais que, a partir da área das referidas aldeias, tinham sido efectuados disparos contra aviões civis e militares. A fim de, na medida do possível, poupar a população, que os terroristas tradicionalmente usavam como escudo, foram previamente lançados sobre o terreno milhares de panfletos incitando os civis a abandonarem os guerrilheiros, recolhendo à protecção dos aldeamentos [Perante a reacção suscitada, o Times enviou a Moçambique, para verificar in loco os dados da questão, um repórter seu, Michael Knipe; este chegou a Tete, sendo entretanto detido e recambiado para Lourenço Marques pela DGS, sob o pretexto de não ser possível assegurar a sua protecção. Já na capital da Província, o general Kaúlza de Arriaga, a pedido do governador Pimentel dos Santos, consentiu em avistar-se com o jornalista inglês, a quem pôs a alternativa de lhe dar uma entrevista, em que todas as perguntas seriam respondidas, partindo de seguida para Londres ou, caso preferisse, deslocar-se a Tete, onde o Exército lhe daria todas as facilidades e protecção. Knipe optou pela entrevista e regressou a Londres, via Lisboa, onde tentou avistar-se com o coronel Amílcar Alves, que comandava o sector onde tinham ocorrido os incidentes, o que não lhe foi permitido pelo ministro do Exército. Na sequência, o Times publicou um relato, limitando-se a dizer que o seu enviado encontrara provas dos massacres, deixando pois todas as dúvidas sobre o caso].






No dia 16 de Dezembro inicia-se a operação Marosca, destinada a buscar e destruir o bando de Raimundo e a aliviar a pressão sobre a cidade de Tete; as informações militares dão como base dos guerrilheiros a aldeia de Wiryamu, cujos habitantes colaborariam intimamente com a Frelimo. Integram a operação efectivos da CCS/BCaç17 e quatro grupos de combate da 6.ª Companhia de Comandos, helitransportados, sendo a acção precedida por bombardeamento aéreo. Segundo o relatório oficial, nos três dias de operações foram abatidos 20 colaboradores IN e destruídas 100 cubatas.

Passado algum tempo, como circulassem rumores entre missionários da região, sobre a morte, em condições bárbaras, de 500 pessoas, foi determinado pelo Comando-Chefe o procedimento normal em tais ocorrências - um inquérito que concluiu ter sido o número de mortos na acção de 36 e não de 20, ressalvando entretanto a responsabilidade das tropas em operações, pois "numa região com uma população totalmente subvertida e colaborante com o IN foi absolutamente normal, pois tudo indica que da população em fuga faziam parte guerrilheiros, não havendo possibilidades de, nestas condições, distinguir uns dos outros". Deste modo se chegava à conclusão de dar por encerrado o caso, classificando-o como consequência, porventura grave, mas decorrente de "actos normais de guerra".

O tema viria a ser ressuscitado pelo artigo de Hastings no Times de 10 de Junho de 1973, precedendo, oportunisticamente, a visita de Marcelo Caetano a Londres. O relato baseava-se nas declarações de missionários espanhóis, comprovadamente hostis aos portugueses, que, como depois seria verificado, eram falsas quanto ao número de vítimas e pormenores de atrocidades (mulheres esventradas, jogo da bola com cabeças de crianças, gente queimada viva nas palhotas). Além disso, Hastings revelava-se um marxista confesso e simpatizante da Frelimo.

Não foi entretanto feliz a réplica das autoridades portuguesas que, com certo desconcerto de estratégia e respostas, se envolveram numa trama confusa que reflectia a descoordenação já reinante a nível superior.

Na verdade, tropas em operações teriam efectuado represálias sobre elementos da população civil, entre os quais mulheres e crianças, na região das três aldeias. O que era um facto, condenável em si, embora deixasse muito a desejar a autoridade e oportunidade dos arautos da consciência universal - alterando a realidade com a menção de pormenores sádicos completamente falsos, enquanto, por outro lado, enalteciam os homens da Frelimo que, por sistema, usavam tais métodos para intimidar as populações recalcitrantes. Depois, havia que levar em conta que nas dezenas de milhares de operações levadas a cabo em Moçambique, se contavam pelos dedos sucessos deste tipo, pois no clima desfavorável da grande imprensa internacional logo seriam relatados e aumentados pelos nossos inimigos. E numa guerra subversiva, seria de esperar que se multiplicassem [Aliás não pode deixar de pensar-se, a propósito da atitude da imprensa progressista britânica perante o morticínio de umas dezenas de civis num conflito subversivo, que foi Winston Churchill quem pessoalmente fez questão, a poucos meses do fim da Segunda Guerra e num momento em que esta já estava ganha pelos Aliados, de que a RAF bombardeasse com bombas de fósforo as cidades alemãs de Dresden e Hamburgo, onde se produziram as maiores carnificinas da História entre populações civis - depois, é certo, de Hiroshima e Nagasaqui, também realizados para mais rápida vitória e glória da "Cruzada das democracias". Parecem pois os seus compatriotas moralmente pouco idóneos para vir pregar na matéria aos Portugueses, que além do mais defrontavam um inimigo que apenas se guiava pela filosofia dos resultados].

Passada a visita de Marcelo Caetano, animada por uma modesta manifestação, onde ao tradicional cocktail de vagabundos e esquerdistas de serviço se juntaram Mário Soares e alguns refractários ao serviço militar, num espectáculo pobrezinho que fazia o circunspecto The Economist interrogar-se - What has happened to the revolution? (Que aconteceu à revolução?), a pressão esmoreceu, como sempre acontece.

O assunto parecia encerrado. Entretanto, sob o pretexto de que certos meios de informação voltavam à carga, organizou-se uma operação cujo objectivo era, segundo os seus promotores, desmentirem de vez as bases da campanha antiportuguesa. O Eng.º Jorge Jardim, acompanhado pelo jornalista Bruce London, do Daily Telegraph, pelo repórter francês Patrick Chauvel, por um jornalista do Notícias da Beira, com uma escolta militar e alguns colaboradores, deslocou-se em meados de Agosto à zona onde se tinham praticado os alegados massacres, visitando as aldeias de Jwau, Wiryamu, e Chwala. Enquanto nas duas primeiras nada de assinalável foi encontrado, em Chwala o grupo deparou com a presença de ossadas, correspondentes a cerca de trinta corpos que, segundo depoimento de uma jovem negra sobrevivente, pertenceriam aos habitantes fuzilados pelos soldados. A descoberta deixa perplexas as autoridades civis e militares da Província, imediatamente informadas por Jardim do macabro achado, para o que se deslocou a Nampula e a Lourenço Marques, partindo na noite de 17 para Lisboa. Aí, após ter dado conhecimento prévio, por interposta pessoa, a Marcelo Caetano, da sua missão, Jardim assiste a uma reunião no Palácio Nacional de Queluz, presidida pelo chefe do Governo, em que participaram os ministros da Defesa, Ultramar, Negócios Estrangeiros e o Governador-Geral de Moçambique, que se encontrava na Metrópole.

Jorge Jardim






Ver aqui



Perante a exposição de Jardim, corroborada pela exibição das fotografias de Chauvel (adquiridas, a título de exclusivo, para o Notícias da Beira), Marcelo Caetano resolveu que se publicasse uma nota da Defesa Nacional sobre o caso - contra a opinião dos membros do governo presentes - nota que redigiu pelo seu próprio punho e que rezava assim:

"Logo que surgiram acusações ao comportamento de certos elementos das Forças Armadas em Moçambique, o governo determinou que se procedesse a rigoroso inquérito.

Os primeiros resultados desse inquérito mostravam a inexistência dos factos alegados, nos lugares e com os caracteres alegados pelos acusadores. Isso mesmo foi comprovado por numerosos jornalistas estrangeiros que livremente percorreram a região de Tete.

No prosseguimento do inquérito apurou-se que forças isoladas, em contrário das ordens recebidas, praticaram, num caso pelo menos, noutro ponto da região actos reprováveis.

Dentro da linha de orientação que sempre tem sido afirmada pelo governo português, vão ser apuradas pelas entidades competentes as responsabilidades para aplicação de justas sanções".

Esta nota governamental foi muito criticada, não só por extemporânea - o assunto tinha morrido nos meios de informação - como por se tratar, no fundo, de um episódio já conhecido e investigado pelas autoridades competentes e do qual o chefe do Governo, teria notícia anterior. Além do mais, tudo se inseria num contexto polémico de posições perfeitamente demarcadas, e uma confissão deste género servia apenas as versões - exageradas quanto a circunstâncias e números - dadas pelo inimigo, pois admissão de parte da culpa nunca poderia deixar de ser tomada, com o devido desconto, como confissão do todo, tanto mais que estava em desacordo com declarações anteriormente fornecidas por fontes oficiais.

E não faltou quem pensasse, com alguma razão, que mais que um acrisolado amor à verdade, capaz de se sobrepor na consciência do chefe do Governo aos interesses directos do Estado, poderiam jogar em toda a história considerações de política interna: com o reconhecimento dos "actos condenáveis" praticados em Moçambique, também se punha em causa, de algum modo, o comandante-chefe, Kaúlza de Arriaga, que na ocasião terminara a sua comissão, regressando a Lisboa, onde não era persona grata aos senhores do poder [Não deixa de ser estranho, visto à distância, este ressuscitar da questão, a partir de uma notícia no jornal Times of Zambia, de Lusaka, sobre as declarações de um jovem negro, mais ou menos sequestrado pelos missionários espanhóis e que, segundo os seus promotores, seria a justificação da operação "Desmentido" que se saldaria, paradoxalmente, por uma confissão. A propósito, recordo-me de, durante o meu exílio em Joanesburgo, ter ouvido da boca de pessoa amiga, antigo alto funcionário em Moçambique e colaborador próximo de Jardim, uma versão dos acontecimentos relacionados com Wiryamu, segundo o qual o próprio Marcelo Caetano, perante a evidência dos mesmos, optara pela sua denúncia na imprensa internacional, mas em moldes e termos que não fossem muito desfavoráveis à operação que podiam levar a cabo. Confesso que o maquiavelismo um pouco primário da pretensa trama não me convenceu então, apesar de a pessoa em causa me merecer a maior confiança; entretanto, o conhecimento de certos pormenores da expedição "Desmentido", os termos da reunião do Conselho de Ministros, as negociações com Loudon e Chauvel quanto aos termos de publicação (e não publicação) do material obtido deixam em aberto algumas dúvidas e hipóteses de explicação.

Tudo leva a crer que o terreno a ser visitado pelo grupo de jornalistas conduzido por Jardim fora preparado para que aí não se achassem vestígios de corpos ou semelhantes, atribuindo-se a incúria do oficial encarregado de o fazer, o macabro achado em Chwala. Com base em tal negligência, foi decidido demitir o comandante militar da ZOT e Governador de Tete, embora oficialmente se desse a entender que tal demissão vinha como consequência de, em território da sua responsabilidade, terem ocorrido os lamentáveis incidentes. Parece entretanto que os oficiais visados alegam que Jardim se desviara, na sua visita, do itinerário predeterminado que comunicara às entidades competentes.

Este conjunto de dados, por enquanto um tanto confusos e que talvez nunca venham a aclarar-se, poderia ser interpretado no sentido de uma manobra complicada para comprometer, perante a opinião pública internacional, os altos responsáveis militares de Moçambique ao tempo das operações que deram origem aos incidentes, obtendo também certos efeitos de política interna, por o odioso dos massacres vir a cair sobre personalidades que potencialmente se receavam. Não seria a primeira vez que a miopia ou má-fé dos dirigentes políticos, neste período, se sobrepunham aos interesses do País, embora, repetimo-lo, esta explicação não se possa confirmar fora dos termos que aqui deixamos lavrados e os actos condenáveis das forças em operações tenham ficado muito aquém das efabulações da imprensa da época, retomadas posteriormente ao 25 de Abril por indivíduos sem escrúpulos, movidos por meros intuitos sensacionalistas e pela preocupação de ameaçar certos meios militares com a chantagem de um mini-Nuremberga para o Exército Português em África]».

Jaime Nogueira Pinto («Portugal - Os Anos do Fim. A Revolução que Veio de Dentro»).





Ver aqui, aqui e aqui



Ver aqui


«Os aspectos do foro psicológico, quer no campo individual, quer colectivo, são os mais importantes e os mais perigosos de todos, já que têm uma grande influência nas crenças e convicções de toda a população. Os políticos têm obrigação de saber isto, pois faz parte do seu ofício, tal como os militares, sobretudo os daquele tempo, que estavam a realizar uma campanha notável de acção psicológica nos teatros de operações, onde existia uma guerra de guerrilha.

Tanto uns como outros, aparentemente, esqueceram-se de aplicar estes conceitos a si próprios e na retaguarda. Por causa disso, foi-se desenvolvendo a vários níveis e áreas da sociedade um conjunto de acções que, a pouco e pouco, foram influenciando o estado de espírito da população e mudando o modo como esta encarava o conflito em que a nação portuguesa estava envolvida. Ora, o que as pessoas "vêem" e "sentem" acaba por ser aquilo que elas percepcionam como sendo a verdade, mesmo que tal não corresponda à realidade dos factos.

As acções ou acontecimentos mais prejudiciais para a coesão nacional tiveram uma origem política, social e militar, tanto a nível interno, como na atitude hostil de muitos países e de grande parte dos media internacionais. Esta campanha, mais o alarido que se fazia na ONU e noutros fóruns internacionais contra o "colonialismo" português, apesar de não ter produzido efeitos inibidores na sustentação da economia do país nem na condução das acções de contra-guerrilha, perturbavam (e assustavam até) parte da opinião pública nacional, o que era logo utilizado como arma de arremesso pelos sectores políticos nacionais de oposição ao regime.

O caso que mais deu que falar durante toda a guerra foi o célebre episódio do "massacre de Wiriamu", toponímia que não existe em nenhum mapa. Vale a pena determo-nos um pouco neste tema, desde logo porque ainda hoje, não raro, continua a ser "desenterrado" (à míngua de outros) como símbolo das "atrocidades" cometidas pelas tropas portuguesas. O incidente ocorreu na povoação de Chawola, perto de Tete, em Dezembro de 1972, onde um grupo de combate de uma companhia de comandos, liderada por um alferes (o capitão estava ausente por doença), tinha sido destacado para uma operação, que consistia em transportar os habitantes de uma povoação que estava debaixo de um duplo controlo, nosso e do inimigo. Um dos helicópteros destacados para apoiar a operação aterrou no meio da aldeia com o alferes comandante e um auxiliar negro da PIDE. Este tentou obter informações sobre elementos do inimigo eventualmente infiltrados, e durante um dos interrogatórios, um ou mais elementos que estavam a ser inquiridos assustaram-se (possivelmente devido a alguma violência exercida) e tentaram fugir. No meio da confusão, um dos soldados terá disparado uma rajada e, a partir daí, a situação ficou fora de controlo, tendo sido abatidos largas dezenas de elementos da população. Foi um acontecimento absolutamente lamentável, mas que pode perfeitamente ocorrer em situações como as descritas (mais a mais quando aqueles militares estavam completamente esgotados por várias semanas de operações contínuas).

As autoridades tiveram conhecimento do sucedido, mas não tomaram quaisquer providências excepcionais. No entanto, a informação sobre o caso foi passada para fora da província por missionários estrangeiros, tendo chegado inclusive ao conhecimento do Núncio Apostólico em Lisboa, monsenhor Sensi, que referiu o caso ao chefe do governo, em Abril de 1973. O pior ocorreu quando, na véspera da viagem de Marcello Caetano a Inglaterra, a 16 de Julho, para estar presente nas comemorações dos 600 anos da Aliança Inglesa, o caso veio relatado no conceituado Times de Londres, onde chegou por via de um tal padre Hastings. A notícia teve vasta repercussão internacional, principalmente porque a maioria dos correspondentes era hostil à política portuguesa.

O chefe do governo mandou instaurar um novo processo, para o qual foi encarregado um brigadeiro que se deslocou a Moçambique, proveniente de Lisboa propositadamente para essa missão. Todavia, do seu relatório não constava a necessidade de levantar qualquer auto de corpo de delito. Marcello Caetano não ficou muito convencido disso, tendo dado ordens para que o governador-chefe do distrito de Tete fosse exonerado e para que o comandante-chefe [general Kaúlza de Arriaga] não fosse reconduzido no cargo, entendendo que este deveria ter actuado na altura.

No entanto, segundo aquilo que foi apurado, houve de facto várias mortes de civis, algo eticamente reprovável do ponto de vista militar, embora também seja verdade que casos como aquele podem sempre acontecer num cenário de guerra, onde as emoções facilmente se alteram (hoje costumam ser designados como "danos colaterais"). De qualquer modo, deve registar-se que se tratou de um caso isolado e que a doutrina e a acção de comando dos portugueses condenavam todo e qualquer acto de violência gratuita. As consequências do caso "Wiriamu" levaram o chefe do governo a não autorizar o ataque à grande base da Frelimo, de Nashinguea, na Tanzânia, que já estava planeado e preparado, e que poderia ter constituído um importante ganho operacional para as nossas tropas».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).








«OS PSEUDO-MASSACRES DE MOÇAMBIQUE

1.º 

Ultimamente têm-se referido de novo, na Comunicação Social, os massacres ou mais correctamente os pseudo-massacres, havidos, ou inventados, nas últimas lutas ultramarinas, particularmente em Moçambique e no período de Março/1970 - Agosto/1973.

Parece justificado que se procure informar o grande público da verdade sobre a questão.

2.º 

Em todas as guerras, mesmo naquelas travadas entre os países mais evoluídos, como é o caso da II Guerra Mundial, as populações, na sua generalidade inocentes, sofreram pesadamente as consequências, sendo imensas as vítimas mortais e com ferimentos graves ou gravíssimos que tiveram. De tal são exemplos característicos, os bombardeamentos de cidades da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, distinguindo-se, no último, os ataques atómicos a Hiroshima e Nagasaki, e o ataque com bombas incendiárias a Tóquio. Este, o mais mortífero de toda aquela guerra, produziu mais de 80 000 baixas.

Mesmo no presente, a dissuasão nuclear, que tem presidido na confrontação Oeste-Leste, ou principalmente EUA-URSS baseia-se fundamentalmente na ameaça recíproca de destruição de cidades inteiras, com a morte, ferimentos e doenças horrorosas nas suas generalizadamente inocentes populações. Os números estimados de vítimas atingem as dezenas de milhões. Isto em hipóteses favoráveis.

Também, em situações, que se não têm considerado de guerra, como foi a descolonização portuguesa, se verificaram uma enormidade de baixas entre as populações. Nesta descolonização e em Angola, Moçambique e Guiné, foram assassinadas, directamente e a frio, muitas dezenas de milhar de pessoas. E a estas há a somar, pelo menos, os morticínios de Timor.

Em Moçambique, a Frelimo praticava terrorismo, directo e a frio, sobre as populações, com a finalidade de coercivamente obter o seu apoio. Este terrorismo era muitas vezes selectivo, escolhendo para os seus alvos os chefes nativos ou homens com influência nas populações. Vários milhares de vítimas assim ocorreram.

3.º 

Apesar de tudo isto e em contraste total, na mesma Moçambique e, pelo menos, no período citado, a luta conduzida pelas Forças Armadas Portuguesas foi, em termos morais, eminentemente positiva, orientando-se pelo lema "convencer inteligências e conquistar corações". Nessa luta, procurava-se, acima de tudo, construir, e só, quando a necessidade impunha, se destruía. Chegou-se até ao ponto de, quando tinham de realizar-se bombardeamentos aéreos de organizações terroristas, se anunciarem previamente as áreas onde iriam incidir para que as populações se precavessem. Semelhantes atitudes e procedimentos por parte das Forças Armadas Portuguesas decorriam da observância de sólidos princípios humanos, éticos e ligados à honra militar, e, também, da concepção que aquelas Forças tinham de guerra contra-subversiva, na qual primava a dignificação e a promoção das populações.

Por outro lado, elementos de unidades em acção, desesperados com os métodos traiçoeiros dos terroristas e com mortes ou mutilações, no momento ou recentemente presenciadas, de camaradas seus, poderiam, no calor da excitação do combate, embora quanto se sabe raramente, ser levados a excessos, abrangendo terroristas e populações com eles misturadas. Estes casos, de resto, repete-se, em quantitativo conhecido mínimo, mesmo que não poucas vezes compreensíveis, eram, logo que denunciados, sempre averiguados pelos oficiais competentes do Serviço de Justiça Militar. E, ou se concluía terem sido incidentes infelizes mas correntes de guerra a arquivar, ou se concluía constituírem reais desmandos, sendo, nesta hipótese, os responsáveis enviados para juízo e ficando a cargo dos Tribunais o seu julgamento e punição.

Contudo, pareceu ao Comando que, mesmo aqueles pouquíssimos casos, em que os oficiais averiguantes concluíam terem-se verificado incidentes infelizes mas correntes de guerra, deveriam ser confirmados. De aqui a mensagem que o Comandante-Chefe enviou à Defesa Nacional de Lisboa, em Dezembro de 1971, que se transcreve:


                               IMEDIATO                             Z    14DEZ71


                                                      COMCHEFEÇAMBIQUE                               MUITO SECRETO


                                                      GERALDEFNAC                                                                 5200/CC


                                                                                                                                                VIA    CNM



MINHA  MENSAGEM  4628/CC  REFERIA  RUMORES  SEIS  CASOS  DE  POSSÍVEL  INDEVIDO  COMPORTAMENTO  NOSSAS TROPAS  PERANTE  POPULAÇÕES  STOP  POSTERIORMENTE  SURGIRAM  RUMORES  MAIS  DOIS  CASOS  O  QUE  PERFAZ  TOTAL  OITO  STOP  EMBORA  OITO  CASOS  EM  MAIS  DE  TRÊS  MIL  OPERAÇÕES  REALIZADAS  PRIMEIROS  DEZ  MESES  1971  CONSTITUA  PERCENTAGEM  MÍNIMA  RAZÕES  HUMANAS,  ÉTICAS  E  LIGADAS  COM  PROJECÇÃO  ESTRANGEIRO  ACONSELHAM  AVERIGUAÇÕES  COMPLETAS  E PUNIÇÃO  RESPONSÁVEIS  SE  DISSO  FOR  CASO  STOP  CONTUDO  AVERIGUAÇÕES  AQUI  REALIZADAS  CONDUZEM  SISTEMATICAMENTE  A  RUMORES  NÃO  PROVADOS  VERIFICANDO-SE  APENAS  INCIDENTES  CORRENTES  GUERRA  STOP  EM  CONSEQUÊNCIA  PONHO  CONSIDERAÇÃO  VEXA  POSSIBILIDADE  AVERIGUAÇÕES  SEREM  DE  NOVO  REALIZADAS  OFICIAL  ESTRANHO  TEATRO  OPERAÇÕES  MOÇAMBIQUE STOP  RESPEITOSOS  CUMPRIMENTOS



A Defesa Nacional não considerou necessária a confirmação proposta.



General Kaúlza de Arriaga e Dominique de Roux. Ver aqui


4.º 

O Comandante-Chefe das Forças Armadas de Moçambique, General Kaúlza de Arriaga, manteve-se em Lisboa nas primeiras três semanas de Dezembro de 1972, só regressando a Moçambique nas vésperas do Natal para o viver com as Tropas. Quando chegou a Nampula, foi procurado pelo Comandante da Zona de Operações de Tete por inerência legal também Governador do respectivo Distrito, que comunicou terem ocorrido, entre 16 e 18 de Dezembro, acontecimentos em Wiriamu, sobre os quais havia rumores de mau comportamento das tropas para com as populações, pelo que lhe parecia deverem realizar-se as averiguações adequadas. Foram, desde logo, expedidas as devidas ordens e foi o 1.º inquérito Wiriamu.

O relatório do oficial do Serviço de Justiça Militar, averiguante, descrevia o que se tinha passado, em que haviam morrido alguns terroristas, e algumas pessoas que o não seriam ou o não eram, mas que se tratava de mais um incidente infeliz e corrente da guerra, que não exigia maior procedimento. A conclusão foi homologada pelo Comando e o assunto foi mandado arquivar até melhor prova. E o caso Wiriamu foi encerrado pela 1.ª vez.

Passaram-se cerca de 7 meses, ninguém de boa-fé pensou mais em Wiriamu, quando, a 10 de Julho de 1973, vésperas da chegada do Presidente do Conselho de Ministros Português a Londres, em visita oficial, explodiu, forjadamente deturpado, ampliado e agudizado, e expressamente ressuscitado e espoletado por um Padre inglês de nome Hastings, do conhecimento do Dr. Mário Soares, e através do conceituado jornal "The Times", o caso Wiriamu, agora com foros de escândalo. Pretendia-se, com base em problemas humanitários e éticos, que o 1.º inquérito mostrara não existirem, criar um grave facto político que bem servisse a oposição ao regime do Dr. Marcello Caetano e que bem servisse os inimigos de Portugal. Em consequência, teve lugar o 2.º inquérito Wiriamu, mandado fazer pelo Comandante-Chefe, que, por outro lado, concedeu oportunamente, em Lourenço Marques, uma entrevista a um representante qualificado do "The Times", que se deslocara a Moçambique para fazer aquilo que este jornal deveria ter feito antes do seu artigo de 10 de Julho - informar-se completamente.

As conclusões do segundo inquérito Wiriamu, igualmente homologadas pelo Comando, foram semelhantes às do 1.º inquérito - incidentes infelizes mas correntes de guerra. A entrevista concedida ao "The Times" e, em grande parte por este publicada, com comentários, em Londres, conduziu também à conclusão de nada se provar das acusações feitas pelo Padre Hastings. E o caso Wiriamu foi encerrado pela 2.ª vez.

5.º 

Em Dezembro de 1972, quando o General Kaúlza de Arriaga estava em Lisboa, o Governo insistiu fortemente para que o General aceitasse continuar por mais dois anos em Moçambique, perfazendo seis. Kaúlza de Arriaga acabou por aceitar, mas mediante a verificação, sem equívocos, de determinadas condições, relativas a competências e a apoios, a conceder por Lisboa. Se tais condições não viessem a concretizar-se até Junho de 1973, o General declarou que, de acordo com o inicialmente previsto, regressaria em Julho à Metrópole.

Porém, e por carta de 31 de Maio desse ano, o Ministro da Defesa Nacional, anunciava a Kaúlza de Arriaga que, não podendo as Autoridades Centrais satisfazer as condições que ele, Kaúlza de Arriaga, pusera, "sine qua non", para prolongar o seu comando deveria considerar terminada a sua comissão em Moçambique, em 31 de Julho seguinte. O Presidente do Conselho de Ministros, dias depois, referia igualmente ao General Kaúlza de Arriaga, também em carta, aquele termo de comissão. O General regressou efectivamente a Lisboa em 1 ou 2 de Agosto desse ano de 1973.

6.º 

Durante parte deste mês de Agosto, o Eng. Jorge Jardim, por razões de fundo ainda desconhecidas, resolveu tratar de novo e pessoalmente do caso Wiriamu [Atitude estranha, tanto mais que o Eng. Jardim prestara sempre ao País, particularmente no plano ultramarino, serviços excepcionais]. Contratou um jornalista inglês e um fotógrafo francês, e propôs-se ir a Wiriamu para, segundo ele, - razão pouco consistente - mais uma vez provar a inexistência de actos menos próprios por parte das Tropas portuguesas. Mas não foi a Wiriamu, foi sim, sempre sem quaisquer entraves, a Chawola, onde encontrou alguns restos mortais, que foram fotografados.

A origem desses restos mortais não era e não é conhecida do Comando. O próprio já ex-Comandante-Chefe de Moçambique, Kaúlza de Arriaga, em férias no Algarve, consultado, de nada sabia.

Porém, Jorge Jardim veio a Lisboa e, em reunião, no dia 18 de Agosto, com o Presidente do Conselho de Ministros, o Ministro da Defesa Nacional, o Ministro do Ultramar e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, deve ter feito um relato imaginativo e terrífico, com exibição das fotografias preparadas, do que descobrira. A assistência impressionou-se e acabou por admitir que talvez em Moçambique alguma coisa de grave e inusitado se tivesse passado. A mesma assistência, misturando Chawola com Wiriamu, ressuscitou pela segunda vez este último, e o Presidente do Conselho de Ministros, numa atitude inexplicável e em acto errado e da maior injustiça, mandou destituir o Governador de Tete, o que por ilícito arrastamento produziu também a destituição da mesma entidade das suas funções de Comandante da Zona de Operações de Tete - um óptimo oficial, de excelente formação moral e que nada tinha com supostos desmandos de tropas, como todos "in loco" o sabiam, incluindo o Presidente da Cruz Vermelha regional que, em relatório para os seus superiores de Lisboa, o afirmou.



Jorge Jardim




Seguidamente, um Brigadeiro foi nomeado para se deslocar expressamente de Lisboa a Moçambique, e aqui realizar novo inquérito - o 3.º inquérito Wiriamu e, também, de Chawola. Foram-lhe dadas instruções para instaurar, "in loco", os autos de corpo de delito necessários. Mas, após tudo averiguado, o Brigadeiro concluiu, mais uma vez, não haver matéria crime que permitisse aqueles autos.

A conclusão foi homologada superiormente em Lisboa e pela 3.ª vez foi encerrado o caso Wiriamu e, também, encerrado o caso Chawola. Mas manteve-se a situação de destituição, errada e iníqua, do Governador e Comandante Militar da área de Tete. E, ulteriormente, já no exílio, profundamente traumatizado e muito doente, o Prof. Marcello Caetano teria escrito absurdas e delirantes acusações.

7.º 

Assim, em Moçambique, sempre que surgiam rumores de mau comprtamento de elementos militares perante as populações, logo as devidas averiguações ou inquéritos se realizavam e por vezes eram repetidos, e logo os correspondentes arquivamentos ou envios para juízo tinham lugar. No caso de Wiriamu instauraram-se três inquéritos e nenhum mostrou a existência de responsabilidades a julgar e condenar em Tribunal. Eis a questão dos pseudo-massacres de Moçambique».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).


«O tratamento dado aos africanos pelos insurrectos (...) contrastava fortemente com o modo como eram tratados pelos portugueses. Qualquer erro, desde a simples perda de uma arma ou de um kit até um questionar racional da autoridade, podiam dar origem a severas penas por parte da liderança da guerrilha. Assim, era muito raro que um insurrecto capturado, "apresentado" ou desertor, se juntasse novamente aos seus, mesmo tendo oportunidade para o fazer [Correspondência com Inocentes, 5 de Junho de 1995, Londres]. A alternativa era um dos campos de prisioneiros de guerra. Estas instalações eram isoladas e todas semelhantes a S. Nicolau, na costa meridional de Angola, limitada por um mar infestado de tubarões de um lado e pelo deserto do outro. Privados da oportunidade de fuga pelos obstáculos naturais, a atmosfera era descontraída. Com frequência, os antigos insurrectos arranjavam nova mulher e, com a ajuda dos portugueses, começavam vida nova [Entrevista a Marques Pinto, 30 de Março de 1995]».

John P. Cann («Contra-Insurreição em África. O Modo Português de Fazer a Guerra, 1961-1974»).


«Na tomada de posse do Governo de Transição, estranhei não ter visto o Iko Carreira que era um dos meus interlocutores favoritos no MPLA. Muito discretamente indaguei o porquê desta ausência, tendo sido informado que, logo após a cimeira do Algarve, tinha seguido para Moscovo a fim de escolher e seleccionar armamento para as FAPLA. Fiquei triste, primeiro porque se tinha acabado de assinar um acordo de paz, depois porque este acto era mais um sinal claro e evidente do futuro que esperava Angola. Passados uns dias encontrava-me no aeroporto aguardando a chegada do avião de Moçambique onde viajava o almirante Vítor Crespo, Alto-Comissário daquele Estado, para lhe apresentar cumprimentos e trocar impressões sobre a situação naquele território. Durante aquele período de espera, aproximou-se o Major Moreira Dias, comandante da Polícia Militar, informando que tinha aterrado um avião Dakota proveniente de Cabinda e que o pessoal do MPLA não deixava proceder à inspecção da carga, como estava determinado. Contactado um dos responsáveis do movimento, Hermínio Escórcio, garantiu que o avião só transportava fardamento e medicamentos. Apenas lhe disse que ordens são ordens e voltando-me para o Moreira Dias: "Mande proceder à inspecção da carga do avião". Afinal as fardas e aspirinas haviam-se transformado em armas pesadas, como canhões sem recuo, morteiros, bazucas, entre outras. O avião foi de imediato selado, tendo o armamento seguido no dia seguinte para o batalhão de Caçadores Pára-quedistas onde ficou sob a sua custódia.

O Alm. Vítor Crespo respondeu às questões postas pelos jornalistas presentes, salientando as extraodinárias perspectivas que se apresentavam para Moçambique vir a ser um dos países mais prósperos da África Austral. Teceu uma série de elogios à nova classe dirigente e à forma inteligente como se estava a proceder à transição para a nova nação moçambicana. Limitei-me a felicitá-lo e a congratular-me com a situação que infelizmente não tinha paralelo em Angola onde, apesar de todos os acordos, ainda se vivia uma instabilidade e insegurança consideráveis e muito preocupantes. Todas as vezes que o Alm. Crespo passava por Luanda, a cassete repetia-se, até que comecei a ficar bastante céptico quanto às suas afirmações, em contradição com os sinais que me chegavam de outros sectores e que manifestavam bastante desconfiança face às promessas feitas. Afinal o seu cego optimismo acabou por se transformar em dor, sofrimento e morte para o povo de Moçambique que chegou a atingir padrões de vida dos mais baixos do planeta».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Em Moçambique, a descolonização dita "exemplar" levou para as cadeias centenas de portugueses, homens, mulheres e crianças. Acusavam-nos de "crimes contra a descolonização". Três meses antes da independência, as forças portuguesas às ordens do comandante Vítor Crespo, Alto-Comissário em Moçambique, entregou um grupo de sete desses prisioneiros à FRELIMO, para serem mortos. Mantiveram-nos, contudo, durante mais de um ano e meio, em campos de "reeducação". As restantes centenas foram sendo progressivamente libertadas e, em Novembro de 1976, ainda havia cerca de vinte prisioneiros brancos».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).







Vítor Crespo



Moçambique



I. ABERTURA


1. A análise da luta em Moçambique, travada na década de 1964 a 1974, implica, por um lado, o conhecimento pleno dos factores inerentes à própria luta e, por outro, a consciência correcta do ambiente que a enquadrava.

Assim, considerei, em primeiro lugar, as causas da luta, a sua natureza, as teorias, estratégias e tácticas aplicadas e aplicáveis e o decorrer das operações.

Depois referirei as crenças, hábitos, tendências, estado de espírito e acção das populações, da Igreja, da Administração Civil e das Forças Armadas.

Finalmente, deduzirei uma conclusão.

2. Durante o período em que fiz parte do Corpo Docente do Instituto de Altos Estudos Militares, dediquei-me ao estudo do Teatro de Operações de Moçambique.

Fui, depois, oito meses Comandante das suas Forças Terrestres e durante mais de três anos, exactamente quarenta meses, seu Comandante-Chefe.

Então, mantive constante contacto, com os meios internacionais, e, naturalmente, relações cerradas com o Governo e as Autoridades Militares de Lisboa; trabalhei intimamente com os Governos de Lourenço Marques e fiz uma condução da luta permanente e directa, processando-a no gabinete, nas salas de operações e, com grande frequência, no próprio campo de acção.

Tudo isto me permite analisar o caso de Moçambique com conhecimento de causa.

Tratá-lo-ei isentamente, de harmonia com os valores morais e éticos em que me fiz homem e militar e aplicando todas as minhas, poucas ou muitas, possibilidades intelectuais. E com serenidade, mas sem prejuízo do vigor de expressão que tamanha questão merece e exige.


II. AS CAUSAS DA LUTA


A causa profunda e primeira


3. Um dos fenómenos que, após a II Grande Guerra, maior projecção tem tido nas relações entre as nações e mais tem incidido na vida dos povos e na actividade dos homens, é, indiscutivelmente, a confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

O primeiro, conduzido, de início, pela Rússia e pela China e, depois, apenas por aquela super-potência, tem assumido uma atitude ofensiva sistemática e impregnada de grande fanatismo. O Ocidente, orientado pelos Estados Unidos da América e pela Europa, embora baseado principalmente na extraordinária capacidade norte-americana, tem-se mantido em posição defensiva, de certo modo tímida e pouco motivada.

Paralelamente afirmou-se - mantendo ainda hoje validade significativa - a dissuasão clássico-nuclear. Esta vem conduzindo a que tal confrontação se processe através de uma estratégia indirecta no espaço e nos métodos e a uma política de pseudo-causas.

A estratégia indirecta no espaço concretiza-se não, ou limitadamente, na incidência sobre os próprios adversários, mas sim, sobretudo, na procura do controle de áreas importantes do Mundo que os afecte ou contribua para o seu isolamento. A estratégia indirecta nos métodos consiste na substituição da guerra clássico-nuclear pela acção psicológica e subversão, pelo terrorismo e guerrilha, pelo golpe de estado e revolução e pelas guerras limitadas.

Esta estratégia indirecta no espaço e nos métodos generalizou-se, manifestando-se em todas as áreas críticas do Mundo, não sob forma paroxística, mas constituindo um conjunto de conflitos locais e menores, coordenado e indefinido no tempo.









Na política de pseudo-causas, age-se por forma a que a confrontação referida, causa profunda e primeira dos conflitos locais e menores, seja minimizada ou mesmo camuflada perante problemas internos, como insuficiências, dificuldades e atritos, sempre existentes e artificialmente utilizados, ampliados e agudizados. E esta política tem-se mostrado eficaz na medida em que a necessidade de evitar perigosas escaladas guerreiras e o princípio da não-intervenção em assuntos internos de outros estados impõem - embora se conheça mas não se reconheça a causa autêntica - a consideração daqueles conflitos como de origem realmente interna e assim insusceptíveis de merecerem atitudes ou acções muito explícitas dos principais interessados.

4. Entre as áreas importantes do Mundo cujo controle permite afectar e contribuir para o isolamento dos grandes adversários, distinguem-se, sem dúvida, a Ásia Marítima, a América do Sul, o Médio Oriente, a África do Norte e a África Austral.

A primeira, cinturão de contenção da China, teve grande significado antes da ruptura soviético-chinesa, deu origem às duas Chinas, conferiu importância capital ao Japão, processou mudanças políticas na Indonésia e está na base das guerras da Coreia e do Vietname.

A América do Sul, grande e naturalmente rica, constituindo o flanco Sul dos Estados Unidos da América, é teatro constante mas não presentemente o principal, da confrontação em causa.

O Médio Oriente e a África do Norte, por um lado, e a África Austral, por outro, também extensos e com zonas naturais muito ricas, constituindo a cobertura sul da Europa e dominando as comunicações marítimas do Índico, no Mediterrâneo e no Atlântico Sul, vêm sendo objectivo actual e prioritário na mesma confrontação. Daqui e em grande parte, os problemas políticos da Síria, Iraque, Jordânia, Líbia e Argélia, as alterações políticas no Egipto, os conflitos no Líbano e as guerras israelo-árabes. E daqui, igualmente em grande parte, as atitudes políticas da Tanzânia e da Zâmbia, as perturbações no Congo, os acontecimentos ocorridos em tempos no Congo Belga e os que agora se verificam no Zaire, as lutas que sustentámos na Guiné, Angola e Moçambique, a posterior descolonização destes territórios e a de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, e os problemas candentes da Rodésia e da República da África do Sul.

5. Está assim definida a causa profunda e primeira da luta em Moçambique.

Esta luta mais não foi, e talvez mais não seja, do que um conflito local e menor na conquista da África Austral, objectivo presentemente prioritário na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

6. Mas, sendo assim, é legítima a pergunta: porque não apoiou o Ocidente Portugal em África e até, pelo menos em certa medida, o hostilizou?

A verdade é que, a par de tal falta de apoio e hostilização explícitas, houve, também, muita simpatia e apoio implícitos.

Contudo e no seu somatório, a atitude e actuação ocidentais foram, em verdade, negativas em relação a Portugal ou, pelo menos, não suficientemente positivas. E, deste modo, a pergunta persiste: porquê?

Em primeiro lugar, na confrontação com o neo-imperalismo comunista o Ocidente, como referi, tem-se mantido em posição defensiva, tímida e pouco motivada. Isto porque uma opinião escrupulosa, sobretudo norte-americana mas também europeia, mal informada, perturbada por propaganda intensíssima e não poucas infiltrações, quer ter a certeza de estar na razão.Também, porque o superior nível de vida ocidental tem como preço o comodismo acentuado e a tendência para a dilação das questões difíceis. E, ainda, porque as preocupações internas dos países ocidentais têm conduzido à preterição de uma política a longo e médio prazo em favor do imediato.

Depois, os mesmos países sentem o peso de um Terceiro Mundo, que reconhecem obcecado, mas cuja população imensa e em estado de sub-desenvolvimento lhes origina complexos, e cujas matérias-primas lhes são indispensáveis.

Finalmente, porque os países em causa nunca entenderam plenamente o caso português, nem acreditaram verdadeiramente nas nossas teses, nem aceitaram completamente a nossa argumentação.

Apesar de tais explicações, a verdade é que o que acabo de referir relativamente a Portugal se integra numa passividade ocidental de carácter, pelo menos, tendencialmente suicida.













Isto na medida em que o comunismo soviético obteve, com a chamada descolonização portuguesa, uma das suas mais significativas vitórias. Vitória tão grande que lhe permite encarar já a hipótese de, numa estratégia mais directa, cercar o coração da Europa, mediante uma ameaça brutal na fronteira da Alemanha Federal, mediante um crescente controlo das comunicações marítimas e áereas no Mediterrâneo e no Oceano Atlântico, conseguido nomeadamente pela aquisição, permanente ou temporária e oportuna, de posições na África do Norte e nos arquipélagos de Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores, e mediante ainda o assentamento de pés, bem firme, nas Penínsulas Itálica e Ibérica.

É provável e desejável que aqueles, que referi, como não entendendo o caso português, não acreditando nas nossas teses e não aceitando a nossa argumentação, comecem a aperceber-se de que afinal a razão estava connosco e que, a continuarem como até aqui, caminharão infalivelmente para a catástrofe.


Outras causas


7. Não pode contrariar-se, à luz dos sãos princípios vigentes na actualidade, o desejo de qualquer povo de ser auto-governado, mesmo que de tal decorra para ele menor riqueza espiritual e material, menor nível de vida e maior infelicidade.

A isto veio juntar-se o anticolonialismo, muitas vezes eminentemente justo, na medida em que um mau colonizador, isto é, um colonialista, em lugar de civilizar, explorava.

E estas circunstâncias foram transformadas em factores de tensão, altamente obsessivos, por interesses estranhos que nada tinham a ver com a autodeterminação ou com o acerto do colonizador ou as injustiças do colonialista.

Assim se formou a psicose terceiro-mundista de independência a todo o custo, sob qualquer fórmula, descuidando consequências.

Mas deve considerar-se que a autodeterminação, para ser autêntica, deveria pressupor um estádio político, económico e social dos povos que impedisse que, ao adquirirem, por via dessa própria autodeterminação, a independência, não caíssem logo sob o jugo de estrangeiros. O caso dos antigos Territórios Ultramarinos Portugueses é disso exemplo flagrante.

De qualquer maneira, a psicose referida foi também uma das causas, embora não a principal, da luta em Moçambique.

8. Algumas pessoas nascidas na então Metrópole Portuguesa ou nos então Territórios Ultramarinos Portugueses, umas na observância dos interesses do comunismo internacional, outras apenas na ânsia de derrubarem o regime de Salazar e de Caetano, fizeram tudo o que lhes foi possível para que Portugal e as suas Forças Armadas fossem derrotados em África.

Foi uma atitude de desvario, de apostasia nacional. Nela desprezaram o País e os povos portugueses, quer europeus quer africanos e asiáticos, a sua História construída no suor e no sangue, o seu presente que poderia ser de riqueza e progresso. Nela contribuíram para a desastrosa situação que Portugal e os seus antigos Territórios Ultramarinos viveram recentemente, vivem e viverão ainda por muito tempo. Nela contribuíram para a ruptura do sistema de paridade e harmonia étnicas, em que Portugal era vanguarda no Mundo, e para a ruína de territórios prósperos ou em vias de sê-lo, como Angola e Moçambique. Nela assumiram responsabilidades indeléveis na morte e mutilação de bons e jovens portugueses, brancos, negros e mestiços, que cumpriam honestamente o seu dever militar, e nas centenas de milhares de mortos e milhões de destroçados moral e materialmente, fruto da descolonização.

E hoje, prisioneiros do seu erro, incapazes de um «mea culpa» histórico, limitam-se a uma defesa cega das suas posições e à tentativa de neutralização daqueles que, com seriedade lhes mostram o caminho errado que infelizmente seguiram.

A acção de tais portugueses foi igualmente uma das causas, se bem que factualmente menor, da luta em Moçambique.

9. As teses ultramarinas portuguesas, na sua fórmula actualizada, já então vigente em Moçambique, não só respeitavam o passado português e estavam perfeitamente harmónicas com os conceitos sociais mais avançados, como são aquelas que terão de vigorar generalizadamente no grande futuro de um Mundo viável e harmonioso.





Rua dos Arcos na Ilha de Moçambique (finais da década de sessenta do século passado).







Lourenço Marques


Contudo, havia e houve, quer no plano oficial quer no sector privado, alguns desvios a tais teses. Desvios que vinham sendo progressivamente corrigidos pelas Forças Armadas e pela parte boa da Administração Civil. Desvios que acabariam por desaparecer.

Mas a política das pseudo-causas, como sempre, aproveitou-se de tais desvios, ampliou-os, agudizou-os e fez deles uma bandeira que iludiu muitos portugueses e muitos estrangeiros.

Eis, ainda, uma outra causa menor da luta em Moçambique.



III. A NATUREZA DA LUTA EM MOÇAMBIQUE


A guerra destruidora, ofensiva e defensiva


10. A Guerra é na quase totalidade dos casos, por essência, destruidora.

Nela se procura impor uma vontade, destruindo, nos domínios material e espiritual, o adversário. E, em particular, nela se destrói o que de mais sagrado existe - a vida humana.

Por tudo isto, a guerra é condenável. Outras fórmulas deveriam utilizar-se para solução dos diferendos entre os homens. E, embora muitas vezes esquecidas, elas existem efectivamente.

11. Mas há, também, que distinguir a guerra ofensiva, a agressão violenta, que toma a iniciativa da destruição e que deliberadamente sacrifica vidas humanas, da guerra defensiva, do enfrentar da agressão, que só destrói para evitar a destruição e que só admite matar para não morrer.

Em relação à primeira, não parece poderem existir dúvidas sobre a sua ilegitimidade, e sobre a atitude criminosa de quem a promove e pratica.

A guerra defensiva, em contrário, reveste-se de legitimidade inteira e constitui dever maior, para os que sofrem a agressão, o nela participarem e agirem conscientemente e em total entrega.


A luta construtiva de Moçambique


12. Na luta em Moçambique uma característica dominava, em antagonismo com o normal da guerra - a construção. Uma construção apontada ao futuro.

Na realidade, tal luta concretizava-se numa acção imensa de dignificação e promoção das populações e de valorização do território, tendo como objectivos fundamentais, procurados com coragem, tenacidade e fé, a plena paridade e harmonia étnicas, a produção crescente de riqueza e a sua justa distribuição.

Estava a conseguir-se, no plano da verdadeira civilização e no espaço de uma década, aquilo que, ao ritmo normal do progresso dos povos africanos, levaria pelo menos um século e que, após a descolonização, demorará muitíssimo mais tempo.

13. Assim se poderiam ter elevado territórios, não nos anos 60, como alguns com ligeireza ou habilidosamente afirmam, nem nos anos 70, como ficou provado, mas talvez nos anos 80 ou 90, a um nível político, económico e social que lhes permitisse uma autodeterminação livre, consciente e autêntica no seu processamento e nas suas consequências. Isto em contraste com o que efectivamente sucedeu - o ignorar-se a vontade ou simples opinião dos povos e o seu encaminhamento forçado para a submissão a potências estrangeiras.


A guerra defensiva e humana de Moçambique


14. Mas, em Moçambique, houve, também, grandes e intensas operações especificamente militares.

Elas eram, em última análise, defensivas ao enfrentarem a agressão de origem fundamentalmente externa e ao terem como finalidade impedir que o inimigo dificultasse a construção em curso. Isto é, a própria destruição tinha como objectivo defender e permitir a construção.

15. Um outro aspecto não pode deixar de ser recordado. É o da grande humanidade com que as operações especificamente militares eram conduzidas e executadas.

Isto sem prejuízo do sofrimento geral e pontual que tais operações inevitavelmente trazem e sem prejuízo de uma ou outra acção abusiva que, quando conhecida e confirmada, logo foi punida ou enviada para juízo. Neste domínio e considerando todos os casos denunciados, de resto muitos dos quais falsos, o seu volume, face ao conjunto da actividade militar, foi mínimo e conferiu às Tropas Portuguesas de Moçambique o galardão de, pelo menos, se situarem entre as que melhor comportamento tiveram, no Mundo e em todas as épocas, perante as populações.

As operações especificamente militares eram moduladas pelo lema «convencer inteligências e conquistar corações» e, com frequência, foram previamente anunciadas as áreas e as datas onde iam ter lugar acções terrestres ou aéreas, na esperança de que delas se afastassem as populações. E nunca tive conhecimento de um apresentado ou prisioneiro ter sido menos bem tratado pelas Forças Armadas.



Imagem emblemática dos Portugueses na guerra.



Militar português no apoio sanitário, no âmbito da acção psicológica (APSIC). Para conquistar a adesão das populações locais, as Forças Armadas desdobravam-se em cuidados de saúde e acções formativas.


Não sei onde se tenha ido mais longe, e como se poderia fazê-lo, em matéria de protecção a civis e de acolhimento de apresentados e prisioneiros. Parece existirem algumas diferenças entre este procedimento e, por exemplo, os bombardeamentos da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, na II Grande Guerra, ou, continuando a exemplificar, o bombardeamento de Nova Lisboa e os massacres e fuzilamentos, a quente e a frio, que se perpetraram na Guiné, em Angola, em Moçambique e em Timor, no passado recente.


A natureza da luta em Moçambique


16. Em síntese, a luta em Moçambique foi eminentemente construtiva e apontada ao futuro, teve um carácter defensivo e foi conduzida e executada pela forma mais humana.

Tal já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

E aqueles que nela participaram, particularmente quando o fizeram com dedicação e eficácia, são dignos do respeito e da gratidão da Pátria e dos seus povos e podem considerar-se orgulhosos de si mesmos.



IV. AS TEORIAS, ESTRATÉGIAS E TÁCTICAS APLICADAS E APLICÁVEIS E O DECORRER DAS OPERAÇÕES NA LUTA EM MOÇAMBIQUE


As áreas de luta


17. Em 1970, a luta em Moçambique abrangia as seguintes áreas principais:

a) A campanha de dignificação e promoção geral das populações.

b) O ensino.

c) Os estudos e trabalhos de valorização do território.

d) O aldeamento.

e) A acção contra-subversiva, especialmente nos distritos do Niassa, Cabo Delgado e Tete.

Nas três primeiras áreas trabalhava-se intensamente e, se o sucesso nelas conseguido influenciava fortemente o êxito das suas últimas, também aquele sucesso estava dependente dos resultados do aldeamento e da contra-subversão.

É sobre o aldeamento e a contra-subversão, mais da responsabilidade do Comando-Chefe, que vou referir teorias, estratégias, tácticas, operações e seus resultados.


A teoria do aldeamento


18. A promoção das populações só pode ter lugar em sociedades organizadas em cidades, vilas e aldeias e não quando predomina a vida nómada.

Em Moçambique existiam numerosas e magníficas cidades e mesmo as mais modestas foram talhadas com largueza, visando o futuro.

Porém, as vilas e aldeias moçambicanas eram limitadíssimas em quantidade e qualidade, verificando-se acentuado nomadismo.

Impunha-se, pois, um grande trabalho neste capítulo. Daqui a obra-padrão de Nangade. Daqui os aldeamentos.

Nangade era uma vila-tipo, uma vila que seria a primeira de uma série a estabelecer ao longo do rio Rovuma e que seria, também, o modelo de centenas e centenas de vilas a edificar, com o tempo, em todo o Moçambique. Nangade era uma vila planeada e em execução segundo parâmetros modernos. A sua construção começou pelas infraestruturas básicas - electricidade, águas e esgotos -, seguiram-se-lhes os arruamentos e os edifícios de interesse comum e, depois, seguir-se-lhe-iam as habitações normalizadas.

Os aldeamentos constituíam a base da promoção do povo moçambicano. Tinham de ser implantados em grande quantidade e depressa, sacrificando-se inicialmente a qualidade à quantidade. Fizeram-se mais de mil, abrangendo aproximadamente um milhão de pessoas. Faltavam ainda uns quatro mil. Sobre aldeamentos reproduzo um texto que escrevi há algum tempo:

«Realmente aqueles que nos hostilizavam elegiam para os seus ataques físicos, procurando ferir e matar populações, e para os seus ataques propagandísticos pseudo-intelectuais, negando a verdade evidente, o aldeamento ou melhor os aldeamentos.






Estes, ao contrário do que dizia aquela propaganda que os considerava campos de concentração de estilo hitleriano, e diferindo das ideias que os julgavam de necessidade essencialmente militar e de duração efémera, eram pólos e fontes definitivos de civilização.

Em verdade constituíam mesmo a fórmula única de promoção rápida das populações sub-desenvolvidas.

A promoção das populações dispersas era e é, na prática da vida, impossível. O ensino, a assistência sanitária, a assistência técnica agro-pecuária ou industrial, o comércio e, de uma forma geral, a fruição dos benefícios do progresso só podiam e podem incidir nos aglomerados populacionais.

Assim, o aldeamento a que procedíamos e os aldeamentos que construíamos eram obra imensa de promoção e fomento. Talvez a maior obra então em curso em Moçambique e na grande maioria dos territórios africanos.

Naturalmente, muitos dos aldeamentos construídos e em construção e muitos dos que se iriam construir estavam e seriam inicialmente incompletos e imperfeitos, apresentando deficiências mais ou menos pronunciadas.

Tal resultava de certa limitação em meios, mas sobretudo da velocidade de execução.

Daqui o facto do aldeamento não terminar com a construção dos aldeamentos, mas, bem pelo contrário, esta construção ser apenas a fase inicial a que se seguiam outras numa tarefa contínua de melhoramento e aperfeiçoamento.

No relativo a muitas populações e como consequência dos seus hábitos tradicionais, verificava-se, de começo, alguma estranheza ao conceito de aldeamento e alguma dificuldade na vida de comunidade. Mas, após poucos meses de tal vida, ela tornava-se o normal, o natural e ninguém mais pensava em abandoná-la.

Outras populações, porém, de raiz mais evoluída, logo desejavam e solicitavam o aldeamento.

De resto, os aldeamentos eram abertos e quem os quisesse abandonar podia fazê-lo. Este abandono teve efectivamente lugar, mas apenas esporadicamente e somente nas áreas que a subversão tornara instáveis.

Os aldeamentos tinham, também, um papel na contra-subversão.

Um papel indirecto, ao constituírem antídoto do aliciamento subversivo, na medida em que, melhorando o nível de vida das populações, aumentavam o contraste com aquele que a Frelimo lhes podia oferecer.

E um papel directo, ao dificultarem o trabalho dos agentes subversivos e ao limitarem o terrorismo selectivo ou generalizado com que a Frelimo procurava obter coercivamente o apoio das populações».

Espantosamente, porém, as Autoridades Centrais nunca se interessaram decididamente pelo aldeamento.


 A contra-subversão


19. Quando assumi o Comando-Chefe do Teatro de Operações de Moçambique, em fins de Março de 1970, a situação subversiva e contra-subversiva podia sintetizar-se como segue:

Niassa Norte - A subversão tinha sido praticamente derrotada pelos meus antecessores. A população estava na sua grande maioria aldeada, havendo apenas alguns focos subversivos nas altas montanhas e muito a norte.

Niassa Sul - Não existia praticamente subversão e a população estava em condições óptimas para o estabelecimento de um sistema de auto-defesa.

Lago Niassa - Estava inteiramente controlado pela Armada portuguesa em cooperação com as Forças Lacustres malawianas.

Cabo Delgado - O inimigo mostrava-se em plena força, bem enraizado no terreno, considerando as suas bases inexpugnáveis, com grande domínio sobre as comunicações terrestres, e acabava de lançar a sua grande ofensiva que tinha por objectivos o isolamento das nossas unidades, através de um lançamento maciço de minas, e uma profunda progressão para sul. Contudo, a Autoridade portuguesa local havia procedido à construção de uma faixa de aldeamentos a sul do rio Messalo, em verdade notável.

Tete - Verificava-se uma subversão incipiente.



Kaúlza de Arriaga


















Vista aérea da Cidade de Nampula (início dos anos 1960).



20. A estratégia inimiga tinha nessa época as seguintes finalidades principais:

- formar ou consolidar um «exército de libertação» com base na etnia maconde;

- atingir com tal «exército» o coração de Moçambique (região limitada pelo rio Zambeze, rio Luenha, fronteira com a Rodésia, estrada Vila Pery-Beira e litoral entre a Beira e a foz do rio Zambeze), separando Moçambique em três partes (Tete, o Norte e o Sul) e afectando as ligações Beira-Rodésia;

- para tanto, manter uma acção reduzida no Niassa e exercer o seu grande esforço em Cabo Delgado.

No relativo à táctica, de inspiração soviética, ela assentava mais na força do que na subtileza, admitindo grandes bases, colunas com efectivos avultados e acções maciças.

Aquela estratégia e esta táctica resultaram inicialmente, na medida em que as nossas unidades foram isoladas e o terrorismo progrediu acentuadamente para sul.

21. Deste modo, o Comando-Chefe teve de determinar disposições e acções urgentes e mandou preparar um plano de fundo que neutralizasse e destruísse as intenções e actuações do inimigo e trouxesse a iniciativa para o lado português.

Assim, foi executada uma grande operação de reabastecimento aéreo das unidades isoladas, foi reforçada a faixa de aldeamentos do rio Messalo por forma a impedir a progressão para sul e, seguidamente, foi realizada uma também grande operação de levantamento de minas.

Mais tarde, na sequência do plano de fundo acima referido, lançou-se a maior operação que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português - a operação «Nó Górdio».

A operação, na qual se utilizaram novas tácticas com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia e em tropas especiais de assalto e, por outro, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado e posto em fuga. As suas baixas, se bem que infligidas no menor número possível, foram consideráveis. Não mais alguém pensou no «exército maconde» nem na sua progressão para sul. Restabeleceu-se o domínio português sobre as comunicações terrestres e as nossas forças passaram a ter inteira liberdade de acção e plena iniciativa.

Na exploração do sucesso, levada a efeito sobretudo por forças aero-móveis, o inimigo restante em Cabo Delgado quase desapareceu, refugiando-se na Tanzânia. E esteve à vista a vitória portuguesa total na área e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

A pedido do Presidente do Conselho de Ministros e do Ministro da Defesa Nacional, fiz uma intervenção televisionada em Lisboa, expondo honestamente a situação.

Esta intervenção valeu-me posteriormente muitas críticas, pois tinha dado a entender um triunfo final breve, quando, dois anos depois, em 1973, este ainda se não verificara e, pelo contrário, parecia que a conjuntura havia piorado.

E era verdade. É que não contara, porque o não conhecia, com o erro de Cabora Bassa.

22. Cabora Bassa era e é uma realização de excepcional grandeza e importância no domínio da economia. Poderia ter transformado, no sentido do enriquecimento, todo o enormíssimo vale do médio e baixo Zambeze e poderia ter contribuído, por forma notável, para o progresso global de Moçambique.

Contudo, a construção de Cabora Bassa foi decidida e iniciada levianamente, sem que tivesse sido feita qualquer avaliação da sua projecção nos domínios político e estratégico. E, em consequência, sem que se tivessem tomado, nestes domínios, medidas adequadas. Tal facto constituiu grave erro do Governo de Lisboa.

Depressa Cabora Bassa se transformou no símbolo do sucesso. Ou Cabora Bassa era construída sem perturbações significativas, ou Cabora Bassa não era construída, ou na sua construção se verificavam perturbações sérias, e Portugal estaria derrotado.


Kaúlza de Arriaga na Barragem de Cabora Bassa






Lago de Cabora Bassa



Assim, Cabora Bassa - o estaleiro ligado à construção da barragem, a área da sua futura albufeira, os seus acessos de quase um mihar de quilómetros, pelos quais transitavam diariamente centenas de toneladas de cimentos, semanalmente centenas de quilos de explosivos e, com frequência, equipamento num total de 36.000 toneladas que não podia, de modo algum, ser danificado e muito menos destruído, a sua linha de transporte de energia eléctrica de mais de 6.000 postes, etc.  - passou a constituir questão vital e ponto de honra no relativo à sua segurança.

23. A DGS, cuja informação estratégica era magnífica, logo informou da decisão da Organização da Unidade Africana de adopção de nova estratégia para Moçambique. A derrota espectacular da Frelimo em Cabo Delgado e a necessidade de impedir ou dificultar quanto possível a construção de Cabora Bassa foram as causas dessa nova estratégia.

Ela consistia fundamentalmente em:

- continuar com a acção reduzida no Niassa;

- com os restos do «exército maconde» e com os novos terroristas da mesma etnia, que entretanto fora possível recrutar e treinar, manter o esforço possível, embora secundário, em Cabo Delgado, com a finalidade de fixar forças portuguesas;

- exercer o esforço principal em Tete, torneando Cabora Bassa, atingindo o istmo de Tete e seguidamente o coração de Moçambique com as consequências conhecidas;

- incluir neste esforço as acções possíveis contra Cabora Bassa e o ataque intenso aos seus acessos e acessório à estrada Rodésia-Malawi.

Mas não só a estratégia foi alterada, também a táctica. Esta, agora de inspiração chinesa, era extremamente subtil, com bases muito pequenas de vigência curtíssima e empregando grupos dígitos, peritos no aliciar e na realização de pequenas acções de grandes efeitos psicológicos e dotados de capacidade notável de diluição nas populações.

24. A Portugal, conhecedor da futura estratégia inimiga, duas alternativas se punham e por mim foram propostas:

- ou impedir essa estratégia, usando a poderosa arma económica que tinha sobre a Zâmbia, no sentido de não permitir o trânsito de terroristas no seu território e, assim, impossibilitar o acesso destes a Tete;

- ou favorecer ao Comando-Chefe os meios necessários para que, sem prejuízo do ritmo do sucesso em Cabo Delgado, se pudesse enfrentar a situação em Tete.

Contudo, nenhuma destas alternativas foi adoptada. A primeira, talvez porque o Governo de Lisboa não tivesse nem a posição nem a coragem para suportar as complicações que certamente surgiriam na ONU com o corte, em Angola e Moçambique, das vias de comunicação com os Oceanos Atlântico e Índico que serviam a Zâmbia e eram para ela de interesse económico vital. A segunda, certamente porque, nessa época, as Autoridades Centrais não primariam pela clarividência e capacidade de decisão.

Propus então que tropas numerosas, mais ou menos inactivas de Angola, dada a situação muito favorável ali vigente, fossem empregadas em Moçambique. E propus mesmo, para facilitar a sua manobra, que um Comandante-Chefe único fosse designado para os Teatros de Operações de Angola e Moçambique. Tudo foi recusado, tendo a minha proposta sido interpretada, segundo parece, não como uma medida bem intencionada e fecunda, mas apenas como desejo meu de ser o «dono» da guerra na África Austral.

E ficava Cabora Bassa com a sua grande imobilização de efectivos.

Resolvi então produzir mais tropas locais. E mais Companhias de Comandos e as primeiras dezenas de novos Grupos Especiais e de Grupos Especiais Paraquedistas foram mandadas constituir.

De Lisboa surgiram dificuldades, proibições, etc., mas mantive a minha decisão e, quando deixei Moçambique, aquelas Companhias de Comandos estavam em formação e aqueles GE e GEP encontravam-se quase prontos da sua instrução e treino.

Levantamento de mina anti-carro colocada pela Frelimo.


25. Enquanto mantinha toda esta polémica com as Autoridades Centrais, defini a nova estratégia portuguesa em Moçambique:

Ela baseava-se nos seguintes parâmetros:


Numa primeira fase defensiva


- reduzir ao mínimo compatível com o equilíbrio táctico os efectivos no Niassa e em Cabo Delgado;

- organizar em auto-defesa as populações do Niassa Sul;

- procurar consolidar a faixa de aldeamentos do rio Messalo;

- exercer o esforço nos acessos a Cabora Bassa, nas posições que a protegiam e noutras áreas-chave ou importantes do distrito de Tete;

- acelerar o aldeamento das áreas convenientes do mesmo distrito;

- tentar impedir as infiltrações ao longo do istmo de Tete e o acesso inimigo a áreas mais a sul e sudeste;

- Aldear as populações do istmo de Tete e do norte dos distritos de Vila Pery e da Beira.


Numa segunda fase defensiva-ofensiva


- continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

- com tropas vindas eventualmente de Angola, somente com alguns dos novos Comandos, GE e GEP ou com umas e outros, retomar a ofensiva em Cabo Delgado;

- com a maioria dos novos Comandos, GE e GEP, consolidar a segurança do complexo de Cabora Bassa e eliminar as infiltrações que tivessem tido lugar no istmo de Tete e nas áreas mais a sul e sudeste;

- manter e aumentar no possível o esforço de aldeamento.


Numa terceira fase ofensiva


- efectuar com meios navais e aero-navais a interdição da albufeira de Cabora Bassa;

- recuperar as tropas libertadas por tal interdição;

- continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

- com as anteriores tropas, com as recuperadas e com outros novos Comandos, GE e GEP, intensificar a ofensiva em Cabo Delgado e limpar o distrito de Tete e a este da linha albufeira-Cabora Bassa-furancungo.

26. No decurso das operações correspondentes à primeira fase da estratégia referida verificaram-se:

- o equilíbrio no Niassa;

- certo recrudescimento de actividade inimiga em Cabo Delgado, com algumas perturbações sem significado especial na faixa de aldeamentos do rio Messalo;

- a manutenção da invulnerabilidade da área da barragem em construção;

- a manutenção do ritmo desta construção sem o atraso de um segundo sequer;

- a manutenção da invulnerabilidade dos equipamentos transportados e da linha de transporte de energia eléctrica;

- infiltrações inimigas no istmo de Tete e em áreas mais a sul e sudeste.

E, apesar de em relação ao complexo de Cabora Bassa o sucesso português ter sido total e de as infiltrações no istmo de Tete e ao norte dos distritos de Vila Pery e da Beira serem reduzidas, a projecção psicológica destas infiltrações, quer em Moçambique quer na então Metrópole Portuguesa, foi enorme.

27. Contudo, a análise fria da situação mostrava que o inimigo sabia que, com as tropas locais que tínhamos em preparação e que podiam e deviam ser multiplicadas, com a finalização da obra de Cabora Bassa no dia desde início previsto - símbolo do sucesso -, com as decorrentes repercussões psicológicas e políticas e com as vantagens tácticas oferecidas pela albufeira, a sua derrota seria um facto.

E concluiu que a única hipótese positiva, que lhe restava, era uma decisão obtida antes da formação de mais Comandos, GE e GEP e antes do termo da construção de Cabora Bassa. Daqui, o seu esforço desesperado no ano de 1973.

Esforço que, perante as suas extensíssimas linhas de comunicação, desde Dar-es-Salaam ou Nashingwea, atravessando toda ou parte da Tanzânia, a Zâmbia, Tete e o seu istmo, até ao centro de Moçambique, e por exceder as suas possibilidades reais, a mais não poderia conduzir do que ao seu esgotamento.

E assim sucedeu. A Frelimo conseguiu as referidas infiltrações nos distritos de Vila Pery e da Beira e esgotou-se.

Por outro lado, ela não tinha qualquer outra alternativa estratégica.

Estes factos podem ser negados. Porém, nem por isso deixam de corresponder à realidade.


Formação de helicópteros em Nangololo.



V. AS POPULAÇÕES, A IGREJA, A ADMINISTRAÇÃO CIVIL E AS FORÇAS ARMADAS


As populações


28. Em guerra subversiva, as populações constituem factor predominante, senão decisivo.

Em Moçambique, elas estavam sujeitas a uma acção inimiga de propaganda intensa que começava em Nova Iorque, na ONU, e terminava em cada tribo e em cada homem. Algumas, localizadas em áreas que contactavam directamente com países adjacentes, suportavam ainda uma acção coerciva, terrorista primária e implacável.

Por outro lado, as populações absorviam também a verdade portuguesa. E muitas delas sabiam da campanha levada a efeito para sua dignificação e promoção e dos estudos e trabalhos de valorização do território, como reconheciam ou acabavam por reconhecer as vantagens do aldeamento.

Mas, talvez acima de tudo, elas mantiveram as suas crenças, hábitos e tendências.

Tudo somado, o facto é que a grande maioria das populações moçambicanas sentia-se portuguesa ou, pelo menos, na luta em curso, opunha-se à Frelimo. Neste aspecto, distinguiam-se a etnia macua, a única inteiramente e só moçambicana, constituindo mais de metade do total demográfico, e os islamizados da orla marítima, também muito numerosos.

Tal fundamentava definitivamente a legitimidade e a moralidade e justiça da contra-subversão.

29. Neste capítulo das populações, merece especial referência o caso dos Grupos Especiais e dos Grupos Especiais Paraquedistas, GE e GEP.

Inicialmente criados com a finalidade de constituírem pequenas boas unidades anti-terroristas e anti-guerrilha, depressa se transformaram em arma de elite na luta global em curso.

Cada GE, cada GEP, formado exclusivamente por voluntários, passou a constituir, na massa populacional de que era emanação e com a qual convivia e agia, centro irradiante de portuguesismo, factor capital de dignificação e promoção, instrumento importante de valorização, exemplo presente do benefício-aldeamento, que usufruía, e unidade de combate eficaz.

Formaram-se mais de uma centena de GE e GEP. Mas a afluência de voluntários era tal que poderiam ter-se constituído alguns milhares de grupos. E aqueles que, nas operações de recrutamento, eram recusados por falta de qualificação ou por excessiva quantidade, afastavam-se sem poderem esconder a sua desolação.

Os GE e GEP estavam em curso de se transformar numa instituição. Instituição que cobriria Moçambique inteiro e que, só por si, seria capaz de lutar e vencer.

Mas, estranhamente, as Autoridades Centrais sempre reagiram mal aos GE e GEP. E, ulteriormente, não se soube ou não se quis aproveitar esta magnífica juventude africana. Magnífica na sua generosidade, na sua pureza, na sua exigência e na sua autenticidade.

Não resisto, ao terminar esta referência, a transcrever a parte final da mensagem de despedida que lhes dirigi:

«GE e GEP!

Muitos têm os olhos postos em vós.

As próprias Forças Armadas a que pertenceis, as populações, o País e numerosos amigos estrangeiros. Todos estes vos olham na expectativa e com esperança e fé na vossa acção e nos vossos feitos.

E o inimigo fala em vós, de Pequim, de Moscovo, de Dar-es-Salaam, de Lusaka, através de constantes emissões radiofónicas ou doutros processos de difusão e propaganda, pela razão única de que vos considera e teme.

GE e GEP tendes já fama a sustentar e dilatar!

Sustentai-a e dilatai-a, pela tenacidade e agressividade no combate contra o inimigo e pelo esforço na ajuda às populações e na justiça e amizade com que as tratais.

Fazei-o para bem de Moçambique e de Portugal, fazei-o como lição ao Mundo».








Ver aqui e aqui


Beira: largada de GEP (Grupos Especiais Pára-quedistas), num curso de paraquedismo.





30. Também neste mesmo capítulo das populações, uma nota particular, esta bem triste, não pode deixar de ser formulada a propósito de certo sector das populações de etnia branca.

Esse sector, ao que se julga auto-denominado de «os democratas de Moçambique», vivia acima de tudo sob o sentimento da hostilidade ao regime de Salazar e de Caetano. E estava ou procedia como se estivesse, não com Portugal, mas sim ao lado da Frelimo.

É quase espantoso como tal sector, vivendo há longo tempo «in loco», conhecendo ou devendo conhecer perfeitamente Moçambique e os seus povos, se não apercebia de que a sua acção apenas contribuía para o drama imenso que foi e é a chamada descolonização.

E, presentemente, ou conseguiram, a tempo, sair de Moçambique com os seus haveres e não podem deixar de classificar-se como colonialistas que ali foram apenas para enriquecer, ou se encontram arruinados, lamentando a sua conduta.


A Igreja


31. A Igreja moçambicana, apesar das grandes dificuldades que teve de enfrentar, particularmente nos últimos anos da luta, comportou-se no seu conjunto, como era de esperar, com sabedoria, prudência e acerto.

Do meio milhar de sacerdotes que a constituía, pouco mais de meia centena, muitos dos quais estrangeiros, agiu contra Portugal, inclusivamente colaborando com a Frelimo.

32. Mau grado este diminuto número, o facto impressiona-me, pois ultrapassa o meu entendimento de católico que alguém, religioso, e sejam quais forem as razões, aceite e muito menos apoie actos terroristas.

Igualmente me impressiona que incidentes infelizes, que nunca foi possível evitar em guerra alguma, não tenham sido relatados por certos sacerdotes na sua verdadeira dimensão, mas, bem pelo contrário, surgissem falsamente aumentados, agigantados mesmo, no que tinham de mais negativo, com propósitos de escândalo oportuno a nível internacional.

E, também, não consigo encontrar explicação para o silêncio de alguns poucos elementos da Igreja, quando, na noite de 15 de Março de 1961 e nos dois ou três dias que se lhe seguiram, foram assassinadas com requintes de primitivo barbarismo, em Angola, mais de 7.000 pessoas, ou quando, recentemente e ainda hoje, se verificaram e verificam massacres, a quente e a frio, no ex-Ultramar Português, que atingiram já o quantitativo de centenas de milhares de pessoas.


A Administração Civil


33. Havia, naturalmente, em Moçambique excelentes elementos na Administração Civil.

Contudo e no seu conjunto, tal Administração estava ultrapassada nos conceitos e nos métodos. Enfermava de ideias, sistemas e modos de actuação que haviam feito o seu tempo mas já se não adaptavam, nem ao sentir e saber dos povos, nem às teses ultramarinas portuguesas já então actualizadas.

34. Não poucos foram os diferendos entre as Forças Armadas, que ali lutavam em todas as áreas de acção, e aquela Administração.

Em determinado momento, porém, a situação melhorou muito com um novo Governador-Geral, que, apercebendo-se desde o primeiro momento da situação, tudo procurou corrigir e muito corrigiu efectivamente.

E a plena harmonia de princípios e propósitos existente entre o Comandante-Chefe e o mesmo Governador-Geral permitiu que a luta fosse conduzida com unidade e que as divergências surgidas, aqui e ali, nos escalões de execução, depressa fossem sanadas.


As Forças Armadas


35. Abordo agora uma das questões mais candentes relativas à luta em África - o comportamento das Forças Armadas.

36. Começo por afirmar que uma luta com a natureza que referi, nas áreas de acção que citei, em regra só pode ser ganha pelo conjunto das forças de um País, lideradas pela política, e raramente apenas pelas suas Forças Armadas. O que estas normalmente podem e devem conseguir é impedir a derrota e conceder à política o tempo bastante, pouco ou muito, para que ela construa a vitória.

Mesmo assim, em Moçambique, as Forças Armadas quase terminaram com a luta em 1970/1971 e, de qualquer modo, concederam à política tempo mais do que bastante - e conceder-lhe-iam aquele que fosse necessário. E, ainda no começo do segundo semestre de 1973, as forças metropolitanas, na sua generalidade, mantinham-se firmes e razoavelmente capazes, e as forças locais cresciam quantitativamente e na sua eficácia.

37. No relativo ao valor das Forças Armadas, um caso especial tem de evidenciar-se.

Ele é o das Tropas de Comandos, incluindo as formadas em Moçambique.

Tais Tropas, desde sempre excelentes, foram melhorando ainda e atingiram os mais altos padrões na sua concepção e maneira de serem portuguesas, na sua capacidade física, na sua coragem e bravura, na sua táctica e técnica, em síntese, no seu patriotismo e eficácia.

E os seus efectivos iam crescendo de acordo com as possibilidades de uma preparação apurada.

Elas acabariam por ser a coluna vertebral irredutível das forças militares.

Também aqui estranhamente, as Autoridades Centrais procuraram limitar o seu emprego em Moçambique e contrariaram francamente a formação dos Comandos moçambicanos. E, mais tarde, inconsciente ou deliberadamente, nada se extraiu da sua superior condição militar.

38. Por mais absurdo e apóstata que pareça, foi a política, a que foi concedido tanto tempo para vencer, que acabou por desmoralizar, desagregar e destruir o conjunto das Forças Armadas, impedindo-as de lhe garantirem mais tempo ainda.

A grande responsável pelo desastre ultramarino português é a política e não as Forças Armadas.

Mas a política é feita por políticos e a responsabilidade da política é a responsabilidade dos políticos.

Dos políticos anteriores e posteriores ao 25 de Abril que não souberam ganhar ou evitar a derrota e dos políticos posteriores ao 25 de Abril que quiseram perder. Naturalmente, que os primeiros são passíveis de acusação de incompetência e os segundos da gravíssima acusação de traição.




Simplesmente, antes e depois do 25 de Abril, havia políticos militares, em número pouco mais que dígito, mas havia-os.

Assim, se no campo civil há políticos a responsabilizar e, eventualmente condenar, no sector castrense não estarão em causa as Forças Armadas mas há também, naquele número pouco mais do que dígito, militares a responsabilizar e eventualmente condenar.

39. Contudo, para julgamento pleno das Forças Armadas, resta esclarecer um ponto.

Este é o de saber se, à política desmoralizadora, desagregadora e destruidora, as Forças Armadas opuseram resistência que as dignificasse.

O processo de corrosão das Forças Armadas vem de longe. Denunciei-o pela primeira vez em 1958, em memorandum dirigido ao Presidente do Conselho de Ministros e em carta enviada ao Ministro da Defesa Nacional. Referi-o com frequência ao longo dos anos e, perante a sua intensificação e o desajustamento da orgânica e preparação das Forças Armadas a uma missão já concretizada, exprimi críticas com especial acuidade a partir de 1964, em lições do Instituto de Altos Estudos Militares e em conferências públicas, mas sobretudo em conversações e documentos reservados.

Semelhantes corrosão e desajustamento, em alguns casos provavelmente inconscientes mas noutros inteiramente premeditados, provinham de governos medíocres, de outros orgãos de soberania desinteressados, de cúpulas militares apáticas, de portugueses pouco motivados, egoístas ou renegados e, ainda, de estrangeiros e internacionais mal informados, errados ou representando interesses inconfessáveis.

A luta das Forças Armadas, em todo aquele tempo, foi muito a da sua sobrevivência ou vivência efectiva, em termos de ética e eficácia.

E, ultimamente, a maioria dos que, quase todos militares, se diziam defensores do prestígio das Forças Armadas, apenas contribuiu, ingénua ou criminosamente, para acelerar o seu colapso.

Perante tão prolongada e tamanha agressão, não é de aceitar qualquer acusação e, muito menos, qualquer propósito de condenação da Instituição Militar.


VI. CONCLUSÃO


40. Pode sintetizar-se tudo o que ficou dito como segue:

a) A luta conduzida por Portugal em Moçambique integrava-se na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente, embora tivesse, também, como causa a psicose terceiro-mundista de independência e, ainda, outras causas menores.

À mesma luta pretendia conferir-se um carácter essencialmente de revolta interna, o que, por outro lado, impedia intervenções externas de vulto.

b) A luta conduzida por Portugal em Moçambique era construtiva e defensiva e foi levada a efeito pela forma mais humana, o que já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

Na mesma luta, a grande maioria das populações, sentia-se portuguesa ou, pelo menos, opunha-se à Frelimo, o que fundamentava definitivamente a sua legitimidade, moralidade e justiça.

c) Em 1970/1971, a vitória total, na área então chave que era Cabo Delgado, esteve à vista e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

d) Em meados de 1973, a situação mantinha-se em equilíbrio no Niassa; verificavam-se certo recrudescimento da subversão e algumas perturbações sem significado especial em Cabo Delgado; o sucesso português relativo a Cabora Bassa era total, mantendo-se imutável o ritmo da sua construção; a Frelimo tinha conseguido infiltrações no istmo de Tete e nos distritos de Vila Pery e da Beira, reduzidas mas de grande projecção psicológica; as forças portuguesas metropolitanas, apesar do esforço de desmoralização, desagregação e destruição que sobre elas incidia, mostravam-se na sua generalidade firmes e razoavelmente capazes, os Comandos, incluindo os moçambicanos continuavam excepcionais, e as outras forças portuguesas locais cresciam em quantidade e eficácia; a Frelimo encontrava-se esgotada.

Base de guerrilheiros incendiada.







Vista aérea da cidade de Porto Amélia (anos 1960).





Na mesma época, estavam definidas as novas fases da estratégia portuguesa, a defensiva-ofensiva, baseada nos novos Comandos, GE e GEP e no aldeamento, e a ofensiva, que se seguiria, baseada em mais Comandos, GE e GEP, nos efeitos psicológicos e políticos do termo da construção de Cabora Bassa, nas vantagens tácticas que a sua albufeira ofereceria e, também, no aldeamento; a Frelimo não tinha qualquer alternativa estratégica.

É do acabado de referir que vou deduzir uma conclusão.

41. Após o grave erro de Cabora Bassa e apesar dele, qualquer das duas alternativas referidas no número 24, poderia ter terminado com a luta em Moçambique.

Em particular, se as Autoridades Centrais tivessem procedido com um mínimo de acerto, existiria uma estratégia a nível nacional e a respectiva reserva estratégica de forças. E esta reserva permitiria a adopção da segunda alternativa com a sua aplicação, durante três ou quatro meses, em Cabo Delgado, o que conduziria à consumação do triunfo final português em Moçambique. Mas não existia estratégia nacional, nem reserva nacional.

42. Este outro erro igualmente grave deu lugar à conjuntura já descrita de meados de 1973.

Nesta conjuntura, evidenciavam-se os seguintes factores favoráveis a Portugal:

- nenhuma intervenção de vulto de apoio à Frelimo, consequência do carácter interno que, embora falsamente, se pretendia imprimir à luta;

- apoio da maioria das populações à causa portuguesa;

- nova estratégia perfeitamente definida;

- manutenção do valor dos Comandos e acréscimo quantitativo e melhoria qualitativa das forças portuguesas locais;

- efeitos psicológicos e políticos que resultariam do termo da construção de Cabora Bassa e vantagens tácticas da sua albufeira;

- nenhuma alternativa estratégica para a Frelimo;

- esgotamento da Frelimo.

E verificava-se o seguinte factor favorável à Frelimo:

- pequenas infiltrações, mas de grande projecção psicológica, nos distritos de Vila Pery e da Beira.

A conclusão resultante deste quadro é evidente.

Isto é, apesar dos dois erros capitais citados e de tantos outros importantes, embora de menor projecção, o triunfo final português em Moçambique apenas fora adiado de 1970/1971 para alguns anos depois.

Entretanto, e sobretudo após o 25 de Abril um outro factor favorável ao inimigo se generalizou e intensificou, tudo acabando por dominar -  a política absurda e apóstata que, como disse, desmoralizou, desagregou e destruiu o conjunto das Forças Armadas.

Tal deu lugar à paralisação estratégica e mesmo a desonrosas atitudes de inoperância táctica perante o inimigo.

E tudo se perdeu (in África: A Vitória Traída, Intervenção, 1977, pp. 187-249).





Brasão da Província Ultramarina Portuguesa de Moçambique





Não vimos mais enfim que mar e céu

$
0
0
Escrito por Luís de Camões








Já a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam;
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que toda se escondeu
Não vimos mais enfim que mar e céu.

Os Lusíadas (Canto V, III).





Contestando a chamada «descolonização»

$
0
0
Duas entrevistas a Silvino Silvério Marques






«Dois dias depois, por ocasião das comemorações do 1 de Maio, organizaram-se várias manifestações dominadas pelos protestos contra o sistema colonial, tendo havido alguns presos que foram, porém, libertados por iniciativa do MFA local. E a 3 de Maio realizou-se outra demonstração popular, promovida pela chamada "Comissão Civil Democrática de Apoio à Junta de Salvação Nacional", que se apresentou como uma "aliança das várias esquerdas", mas que era na verdade afecta ao MPLA; de resto, durante o evento os participantes (quase todos brancos) fizeram discursos "anticapistalistas, contra a guerra e a favor da libertação dos presos políticos", reclamando ainda o "regresso de Agostinho Neto" a Angola, o início de "negociações com os movimentos armados" e o "corte de relações com a África do Sul e a Rodésia".

O aspecto mais interessante destas primeiras manifestações reside no facto de elas permitirem perceber que o MPLA assumiu a dianteira ao nível da mobilização popular. Aliás, segundo a análise do cônsul-geral norte-americano, o movimento de Neto tinha à partida vantagens relativamente a todos os outros, desde logo porque era "o único que poderia preencher o vazio entre a comunidade negra", também pelos "importantes laços com os mestiços" e ainda porque tinha algumas ligações com os brancos, como por exemplo com Manuel Vinhas.

A Organização do Movimento das Forças Armadas como estrutura paralela à hierarquia tradicional e a sua ascensão a principal centro do poder em Angola também foi acompanhada por Everett Ellis Briggs. O momento fundamental deste processo foi a visita de Costa Gomes a Luanda, entre 3 e 4 de Maio, ocasião aproveitada pelo general para forçar um conjunto de mudanças ao nível dos comandos militares locais que no seu conjunto foram favoráveis ao MFA, com quem, de resto, Costa Gomes se alinhou desde o início: foram então afastados o comandante-chefe, substituído por Franco Pinheiro, e vários altos responsáveis do exército, força aérea e marinha. Além disso, o Movimento das Forças Armadas não ficou subordinado ao governador, mas sim ao comandante-chefe, um seu aliado objectivo, tendo criado ainda um gabinete próprio (o Gabinete do MFA).

Para Briggs não havia dúvidas de que o MFA era "o verdadeiro poder por detrás da JSN", sendo que em Angola o seu controlo se fazia através de Franco Pinheiro, a quem seria "permitida rédea solta enquanto o movimento considerasse a sua actuação aceitável"; caso contrário, ele seria "removido". Para o cônsul norte-americano, estes desenvolvimentos "respondiam definitivamente à questão de quem mandava".

Referindo-se a estes acontecimentos, Pedro Pezarat Correia, um dos líderes do MFA em Angola, escreveu de forma esclarecedora: "A situação só começa a desbloquear-se com a chegada, nos primeiros dias de Maio, de uma delegação do MFA presidida pelo general Costa Gomes". E depois de descrever algumas das mudanças então verificadas, acrescentou: "(...) criou-se o Gabinete do MFA, que seria na realidade a Comissão Coordenadora do MFA em Angola, ainda que sem os poderes institucionais de que esta dispunha em Portugal, dado que aqui os seus membros tinham assento no Conselho de Estado".

Sobre a visita de Costa Gomes a Angola importa ainda acrescentar que o general afirmou durante uma conferência de imprensa que os movimentos armados locais "não eram representativos" e que o futuro do território ia "reflectir a vontade do povo, expressa de forma democrática".

Outro dos primeiros desenvolvimentos relevantes da descolonização de Angola foi a proliferação de partidos políticos, processo que se iniciou logo a 5 de Maio com a criação do Partido Cristão Democrata de Angola (PCDA) e que atingiu rapidamente números da ordem das várias dezenas.

Pezarat Correia apresentou uma interessante sistematização destes novos partidos, referindo que eles se agruparam no essencial em três grandes conjuntos. Um grupo era constituído por "partidos que vinham da oposição à ditadura colonial e se identificavam com o Movimento Democrático de Angola (MDA)", sendo que este "tinha relações com o MDP português e apoiava o MPLA"; neste integrava-se a Frente Unida de Angola (FUA), "que chegara a ter alguma expressão na área Benguela/Lobito". Outro conjunto era formado pelos "pequenos grupos tribalistas ou apoiados em personalidades", quase todos "absorvidos pelo Partido Cristão Democrata de Angola", e que privilegiavam o apoio à FNLA. O último agregado integrava todos os que "assumiram a fisionomia de organizações armadas, mais ou menos clandestinas, contra o MFA", com destaque para a Frente Revolucionária de Angola (FRA), "à qual aderiram elementos de partidos que inicialmente pretenderam formas federativas de ligação a Portugal", mas, uma vez inviabilizado esse projecto, acabaram por ver na FRA o instrumento para "uma independência liderada pela minoria branca"; neste grupo incluíram-se ainda os que em Cabinda lutavam por uma independência unilateral do enclave, com destaque para a FLEC.






António Champalimaud. Ver aqui e aqui


O consulado dos Estados Unidos em Luanda foi relatando o aparecimento dos vários partidos políticos, ainda que pouco adiantando para a compreensão da sua natureza, projecto e apoios. Contudo, num telegrama enviado a 21 de Maio e destinado a dar conta da criação de um novo partido de direita, Briggs acrescentou um comentário interessante: "[António] Champalimaud pode estar por detrás desta iniciativa". E qual era o programa deste grupo político? Segundo Briggs, ele ia muito mais longe do que os restantes na definição dos objectivos dos "elementos extremistas" entre os colonos brancos, contando-se entre as suas reivindicações "a transferência do governo para Nova Lisboa, a proibição das greves, a mudança do Banco de Angola da Metrópole para Nova Lisboa, a criação de uma indústria de extracção de diamantes e o fim da perseguição dos membros do antigo regime, caso eles aceitasssem aderir a este partido". Ainda segundo o cônsul-geral norte-americano, as actividades do industrial português não se limitavam ao campo político-partidário, estando também a apostar nos meios de comunicação social, tendo "ressuscitado o diário O Comércio de Luanda".

Em paralelo com a proliferação de partidos políticos, assistiu-se às primeiras tentativas de recrutar mercenários para operar em Angola. Pela mesma ocasião, Everett Briggs informou o seu governo que recebeu várias informações de que oficiais e sargentos do exército português estavam a "receber propostas para actuarem como mercenários" a troco "do dobro ou do triplo do seu ordenado". E uma vez mais Champalimaud estava por detrás da iniciativa, havendo indicações de que ele era "o principal apoiante deste futuro exército angolano de oficiais brancos" destinado a "proteger os seus interesses económicos quando o exército português deixasse o país».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).


«A nomeação do general Silvino Silvério Marques para o Governo-Geral surpreendeu-nos. Tanto ele, como o general Spínola nos tinham assegurado do que o governador seria outro. Silvério Marques estaria comprometido para a governação de Moçambique.

Entretanto, o dr. Almeida Santos viajou para Angola, pretendendo, com a "humildade" que o caracteriza, auscultar a população e o seu sentir, na procura de informações para a escolha de um governador unanimemente aceite. Melhor: um governador cujo nome seria indicado pelo povo. Em suma, a prática da democracia, no seu maior esplendor...

Almeida Santos, não obstante uma sensibilidade nunca desmentida, uma inteligência constantemente exibida, um espírito democrático evidenciado desde a sua permanência na Beira (invoco o testemunho insuspeito do eng. Jorge Jardim), apareceu à varanda do palácio, com o dr. Diógenes Boavida, amigo e condiscípulo, que lhe enalteceu as qualidades. Recebeu vaias e insultos. Os angolanos estavam cansados de farsas e desilusões. Não aceitavam o processo que se delineara nas suas costas e, friamente, fora posto em execução, contra os seus desejos e contra os seus legítimos direitos.

Silvino Silvério Marques, um militar honrado, oficial-general de capacidade confirmada em Angola, não chegou a completar o elenco governativo, pois ainda procurava homens aptos para os lugares (e não lugares para os homens), quando o chamaram para Lisboa. Sofreu ataques de hipócritas e aduladores, que o atraiçoaram, sem lhe afectar a estatura de português de lei.

Nesse período, ocorreram os trágicos incidentes dos muceques, provadamente da autoria de provocadores treinados no estrangeiro que se infiltraram em Angola e atearam uma fogueira sangrenta, com centenas de mortos e feridos, para lá de incalculáveis bens saqueados e destruídos. O conflito, que tomou a amplitude de uma batalha, teve origem no assassínio de um motorista de táxi. Mas, não fora a acção dos provocadores, a carnificina seria impossível.

Do mesmo modo, esses provocadores urdiram um trabalho de sapa, atirando as etnias umas contra as outras, usando dos mais variados expedientes para gerar a desconfiança, a violência, a incerteza do dia de amanhã.

Escuso-me a repetir as injúrias e as acusações aleivosas de que o general Silvino Silvério Marques foi alvo, num momento em que o próprio Governo de Lisboa o traía, ao retirar-lhe os meios de actuação contra a desordem reinante. Limito-me a realçar a sua serenidade, a ponderação, o estoicismo com que procurou sanar os constantes distúrbios, que, por tudo e por nada, estalavam um pouco por todo o território, com natural incidência nos centros urbanos.

Começara a grande luta dos partidos políticos. Só por si, as suas origens e a sua história preencheriam as páginas de um livro. De um pólo ao outro, as cores e os credos distribuíam-se e misturavam-se numa confusão indiscritível. Racistas, pacifistas, belicistas antagonizavam-se, desrespeitando os mais rudimentares preceitos éticos e humanos, numa selva de instintos alucinante. Angola ruía, paralisado o trabalho, desorganizada a economia, desvairadas as gentes, ante a ameaça de um porvir mais cruel do que o terrorismo.


Silvino Silvério Marques


Um dia, o governador-geral chamou-me ao palácio e convidou-me para um cargo que seria como que o equivalente a ministro itinerante, para contactar os líderes dos movimentos, quer em África, quer noutra parte do Mundo.

A missão agradava-me e confiava na minha experiência e nas minhas ligações para levá-la a bom termo. No entanto, chamei a atenção de Silvino Silvério Marques para o facto de estar iminente a realização de um congresso convocado pela Revolta Activa, com o objectivo de se estabelecer uma frente única do MPLA. Teríamos, portanto, de aguardar os resultados e agir em conformidade com eles. O general concordou e assim nos despedimos, com o convite em aberto.

Precedentemente fora procurado por Francisco Antas, do comité político do MPLA, para solicitar a minha interferência junto do governador-geral, a fim de que concedesse uma audiência a ele e aos seus colegas. Pretendiam autorização para o MPLA realizar uma campanha de propaganda política escrita e pela Rádio, além de comícios e sessões de esclarecimento, destinados à politização das massas populacionais de Luanda. Adverti Francisco Antas de que o general Silvério Marques certamente recusaria, atendendo a que ficara assente, pelo Governo de Lisboa, que o MPLA só poderia intervir publicamente, no campo político, quando depusesse as armas.

Antas retorquiu-me que o MPLA não depunha as armas, porque os seus membros não eram parvos. Se o governador-geral não acedesse ao pedido, desencadeariam a guerrilha urbana, o que, pessoalmente, lamentava, mas que não estava no âmbito das suas funções impedir, pois pertencia ao comité político e nada tinha a ver com a organização militar.

Apesar de tudo, fui ao palácio e transmiti o pedido a Nuno Cardoso da Silva, secretário do governador-geral. Soube que o general recebeu os elementos do comité político do MPLA e, como era de esperar, não autorizou a campanha. Creio, até, que foi bastante duro, expulsando-os do gabinete.

No dia seguinte ao convite que recebera, para "ministro" itinerante, Silvino Silvério Marques revelou-me que fora convocado, por telegrama, para se apresentar, urgentemente, em Lisboa.

O MPLA, ainda na clandestinidade, mas já com a arrogância dos maus vencedores; os movimentos democráticos e as associações económicas, liderados pelo engenheiro António Castilho, máscara de democrata e havido como opositor de Salazar, mas que singrou e prosperou à sombra dos favores do regime, persona grata do "almirante vermelho", que o levou a Alvor como conselheiro (?), conseguiram os seus intentos, afastando quem lhes amputava as desmesuradas ambições de Poder e lhes impedia as trapaças.

Pedimos ao general que desobedecesse às ordens de Lisboa e continuasse em Angola. A sua integridade de carácter, o seu brio de militar fê-lo pagar, no último quartel da vida, o tributo aos caluniadores, com os quais não pactuou.


SILVÉRIO MARQUES TRAÍDO


Silvino Silvério Marques bem merece que lhe dediquemos algumas linhas de homenagem.

O general, contrariando os detractores, cegos pelo sectarismo mais nojento, ao aceitar - por solicitação de, praticamente, a totalidade da população - o cargo de governador-geral de Angola, não albergava ideias pessoais de mando. Silvino Silvério Marques é um homem austero, militar nobilíssimo, com conhecimentos profundos sobre os povos e os problemas angolanos. Dentro de si não cabem ideologias fanatizadoras. Mas não lhe deram tempo para governar, embora no estrito cumprimento do famigerado Programa do MFA. A sua experiência governativa, a sua entrega à defesa das classes menos favorecidas, o seu amor a Angola, eram garantes dos frutuosos resultados da sua gestão. Inexplicavelmente, porém, a Junta de Salvação Nacional tirou-lhe poderes, levada por traição ao espírito desse Programa? Pela degradação dos valores morais do País? Por outra razão que me escapa?

Quando da sua chamada a Lisboa - uma ida sem regresso - o MPLA fez circular um panfleto, de que transcrevo as passagens que julgo essenciais:

"A cobardia, a mentira e o ódio são as armas dos colonialistas, fascistas e racistas. O repugnante governador-geral de Angola, ao embarcar para Portugal, onde irá prestar contas dos massacres que os seus capangas colonialistas têm feito aos angolanos, teve a ousadia de dizer a um jornalista de "A Província de Angola", que as declarações apresentadas ao senhor criminoso de guerra Spínola, respeitantes aos massacres da população dos nossos muceques, eram falsas, porquanto a situação em Luanda não é tão alarmante. Já o jornal de geração colonialista o "Diário de Luanda", publicou, na sua edição de 19 do corrente, o seguinte: 'Mentiras de Luanda, chegam a Lisboa. O assassino Silvino Silvério Marques veio governar Angola só com o objectivo de vingar a morte de seu filho, caído em combate, em Cabinda; dar mais força aos assassinos colonialistas; reorganizar a nojenta PIDE/DGS, que agora se encontra sob o comando do colonalista, racista e fascista general Franco Pinheiro'... "É necessária a transmissão de poderes entre o Governo português e o MPLA. Sem isso, o MPLA não deporá as armas!..."

Eis a linguagem da "verdade" do MPLA.

Li, algures, a opinião de uma alta personalidade estrangeira, que, após o 25 de Abril, visitou  Portugal, o país, que, como dizia Paiva Couceiro, era"Império esparso no Mundo". É o que nós somos e não apenas a estreita nesga, no extremo ocidental da Europa, que essa personalidade retratou aos orgãos de Informação:"Em Portugal só encontrei três caras - a Cara do ódio, a Cara do Medo e a Cara da Tristeza. Não vi mais ninguém..."

A Angola se podia aplicar esta definição lapidar. O ódio tudo subverteu, como se o vulcão da ignomímia tivesse explodido em lava que tudo queima e devasta. O medo vi-o reflectido nos rostos de homens, mulheres e crianças de todas as etnias. A tristeza descortinei-a, dia a dia, nas rugas que se cavavam nas trágicas máscaras de pessoas feridas na sua dignidade, humilhadas até à servidão, violadas e espoliadas, desprovidas de fé, rechaçadas, impiedosa e brutalmente, por um meio de súbito hostil.

Ver aqui


Quem, como eu, conhecia Silvino Silvério Marques, o seu fervor pela justiça, o seu destemor perante as ameaças, a sua humanidade, o seu desejo de bem-fazer, o seu orgulho de Português, o seu infinito querer ao Ultramar lusíada e a sua intenção de encaminhar Angola na senda da honra, do trabalho, e da paz, não pode, sem cólera e tristeza, deixar de repudiar os insultos ao General, mesmo vindos de quem, nas recuadas épocas de estudante, preferia bebedeiras, febras de porco e prostitutas (de que hoje tem saudades), aos sonhos de um povo, a cujos destinos viria a presidir.

Com a partida de Silvino Silvério Marques para Lisboa desapareceu a última esperança de Angola, a esperança de um futuro sem ruínas e caos, sem miséria, sem martírios, sem gentes que morriam na defesa inútil de vidas e haveres, sem ódios, sem medos, sem tristezas.

Desmenti firmemente as alegações do MPLA contra o general Silvino Silvério Marques e, neste livro, ratifico as minhas afirmações aos elementos do COL e da Segurança Nacional, como imperativo de consciência e repúdio da conspiração de que tão ilustre figura foi vítima. Como diria o dr. Marques Palmeirim, Silvino Silvério Marques tinha a África no sangue, que é bem mais importante do que a ter apenas na cor da pele.

O general acreditou no poder de um Homem-joguete de forças organizadas e, vítima da fatalidade, não errou. Enganou-se.

Primeiramente, por não ter exigido que, em si, fossem unificados os poderes. Sei que não o fez, por deontologia, por camaradagem para com outro general. Tal exigência "despromoveria" o general Franco Pinheiro, o que, aos olhos de Silvino Silvério Marques, seria aviltante.

Depois, conservou ao seu serviço, embora com carácter transitório, o dr. Franco, chefe de Gabinete que herdara do tenente-coronel Soares Carneiro, quando este oficial desempenhara as funções de encarregado do Governo. O dr. Franco atraiçoou o general Silvino Silvério Marques, guardando a sua canina fidelidade de "bufo" para Rosa Coutinho, e de há muito usava a coleira do MPLA. Foi o dr. Franco quem, deslealmente, com a perfídia dos animais venenosos, se aproveitou do seu cargo para fornecer fotocópias dos documentos trocados entre as autoridades portuguesas e o dr. Jonas Savimbi , que o MPLA utilizou como cartazes gritantes e demolidores do líder da UNITA, publicando-os nos areópagos internacionais. O dr. Franco participou no "Processo da Descolonização", virtuosa da dissimulação, sempre a cheirar o lado do vento. Jamais o esquecerei, a espiar os frequentadores do bar do hotel Trópico. Igual ao"almirante de pacotilha", um arremedo de homem, sem ideias, subserviente por índole, acomodatício por ambição, rastejante como o verme que era.

O general Silvino Silvério Marques acreditou no prestígio e na força do Spínola. Imprudentemente se deslocou a Lisboa, ao ser convocado pelo MFA. Nessa altura, apesar da evidência o contrariar, convencíamo-nos de que Spínola não era ainda marioneta de forças ocultas, manobradas por Costa Gomes e Varela Gomes, ambos hipotecados ao PCP.

Silvino Silvério Marques, militar leal de um Exército "que não desembainha a espada para oprimir, mas para reprimir. E que, uma vez desembainhada a espada, só a volta a embainhar com honra", no minuto da decisão respeitou a disciplina, quando, simbolizando o Ipiranga de Angola, teria salvo o território da opressão, do terror, da ruína, do pânico, da invasão. Açoitado pelos ventos da desfortuna, o general nunca teria sido afastado do seu posto, se não surgisse, na cena política nacional, a figura louca de Vasco Gonçalves.

Quando chegar a hora de prestar contas a Deus, dois pecados terei na consciência: o de ter impedido que "raptassem" Silvino Silvério Marques, quando, esgotados os nossos rogos para ficar, se dirigia ao aeroporto de Luanda, no início de uma viagem para o anonimato; e de não ter deixado que abatessem, como ser imundo, Rosa Coutinho (mas isso é outra história com a qual nada tem a ver Silvino Silvério Marques, um general ilustre, que o nosso pobre País atirou para o esquecimento. Naturalmente: não é de "aviário"...)».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«Para além do episódio da escolha de Silvino Silvério Marques, a visita de Almeida Santos a Angola teve ainda outros dois momentos significativos. O primeiro foi uma manifestação organizada pelo MPLA, ou pelo menos apadrinhada por este movimento, que juntou cerca de cinco mil pessoas junto do palácio do governo para exigirem a independência imediata. O outro foi a contra-manifestação da população branca, tendo-se entoado slogans de apoio ao velho regime. No relatório dos acontecimentos, o cônsul norte-americano concluiu que era "fundamental Portugal iniciar as conversações com os movimentos rebeldes", pois a situação era "potencialmente explosiva"».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).




Angola antes do 25 de Abril de 1974. Ver aqui






Carmona











Luanda. Ver aqui


























Benguela (Palácio do Comércio).











«P. - Concretamente, senhor Governador, parece haver sintomas, não completamente provados, de que haveria conhecimento de elementos estranhos e estrangeiros a Angola que teriam estado na origem do desencadear de acções violentas.

R. - Não tenho conhecimento - e tenho a impressão de que o senhor Comandante-Chefe também não tem conhecimento disso.

Mas, efectivamente, foi-me relatado por alguns elementos, há dois ou três dias, que se admitiria que elementos extremistas - maoístas - teriam realmente chegado a Luanda, estariam infiltrados na Universidade, no Instituto Pio XII e nos muceques.

Isto chegou-me por mais de uma via, não tive possibilidade de o referir ao senhor Comandante-Chefe, mas também suponho que a ele terá chegado, mas não tenho possibilidade de saber se se trata de um facto ou de um boato.

De resto, compreenderão que, hoje, as possibilidades de informação concreta sobre aspectos desta natureza não são fáceis.

(...) P. - Senhor Governador: é verdade que depois dos acontecimentos da noite de 11, houve uma delegação da população africana que quis falar comigo, para explicar o que se passou, e que a não quis receber?

R. - É mentira. É uma mentira grosseiramente espalhada. Eu digo o que se passou:

Na noite de 11 para 12, estive reunido, em minha casa, com todos os Generais que estão na Província. Estivemos a acompanhar os acontecimentos e o senhor general Comandante-Chefe a accionar as medidas que, nessa tarde, tinham já sido preparadas em face da presunção de acontecimentos que não se sabia se se iriam passar ou não, nem onde. Nessa noite, resolvemos que no dia seguinte, nos reuniríamos aqui nesta mesa, os generais e mais alguns elementos, para estudarmos uma série de medidas a tomar, que depois foram tomadas.

Sexta-feira é também o dia do Conselho de Governo, que começa às 9 horas e por isso marquei o meio-dia para a outra reunião.

Quando vim para o Conselho de Governo, reparei que havia uma série de indivíduos africanos, muitos já, nas imediações do palácio. Disse ao meu secretário que, dos grupos de africanos que ali estivessem, mandasse subir, por cada grupo, uma delegação de 5 a 6 membros para eu falar com eles, porque para isso interromperia o Conselho de Governo. De resto, tencionava ir ao hospital, ver os feridos.

Interrompi o Conselho de Governo, talvez cerca das 10 horas, sendo entretanto alertado de que não deveria ir ao hospital. No corredor, alguém me veio dizer que elementos africanos queriam trazer os cadáveres, em desfile, para a frente do Governo-Geral. Já se tinha feito um desfile destes, um desfile macabro, de mau gosto e de grande falta de respeito por todos, em 1961 ou 62. Disse: desfiles desses por aqui não quero, pois considero-os falta de respeito para com os mortos. Só isto.

Fui para o meu gabinete e ouvi umas 4 ou 5 delegações de representantes de grupos africanos, com os quais troquei impressões, úteis para eles e certamente úteis para mim.

A certa altura, vieram-me dizer que a Polícia estava, por qualquer razão e por qualquer ordem que não sei quem deu, a dispersar a população que aqui estava em frente. Chamei o oficial que estava a comandar a Polícia e disse-lhe para deixar a população permanecer no local. Suponho que quando desceu, parte da população já lá não estava.

Estes são os factos. De resto, quem me conhece em Angola, não tem qualquer dúvida de que eu não procederia doutro modo. E quem me conhece em Angola, sabe que a população toda, africana ou europeia, tem chegado a mim sem qualquer dificuldade: ou pela porta principal da residência, que está sempre aberta, ou através da Secretaria do Governo.








Vala comum dos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas assassinados às ordens de Luís Cabral (1980).





Luís Cabral



P. - No seu discurso, quando da posse dos governadores dos territórios africanos, o general Spínola afirmou que todos os movimentos políticos tinham liberdade de se preparar para as eleições ou para o referendo, e de fazer a sua campanha na Imprensa, a sua campanha eleitoral, de se manifestar abertamente. Vi que na Guiné-Bissau, a confraternização entre o Exército português e os homens do Paigc, entre os comandantes portugueses e os comissários políticos nacionalistas, é real, é efectiva, é maravilhosa. Isto não acontece em Angola, e tenho a impressão de que os activistas do Mpla estão impedidos de se manifestar e de falar livremente nas ruas com os jornalistas estrangeiros. Pode-me dizer porque essa abertura não está aplicada da mesma forma na Guiné-Bissau e em Angola?

R. - A razão é muito simples. Não sei o que se passa na Guiné portuguesa, mas suponho que, na Guiné, os homens que confraternizam em Bissau não matam soldados no mato. Achava o senhor que realmente se justificava que andássemos aqui aos abraços e que lá no mato os nossos soldados africanos e europeus andassem a ser mortos e a matar os elementos do Mpla?

Nós distinguimos os movimentos e as associações cívicas que estão aqui no interior e que não estão com armas na mão (e essas têm liberdade para escrever e para falar) dos movimentos que têm armas na mão. É esta a diferença.

É evidente que se esses movimentos deixarem de ter armas na mão e se vierem lutar com ideias, se desistirem de impor as ideias pelas armas, podem vir para aqui dialogar como os outros.

(...) P. - (Em resumo, perguntou-se porque é que não se pode fazer a propaganda dos movimentos emancipalistas, o que não acontece em Portugal europeu e - também - se verifica com os distintivos e bandeiras transportados em manifestações).

R. - Relativamente a esses "movimentos emancipalistas" - um eufemismo que designa os que estão em combate - o Comando-Chefe - que integra o Movimento das FA - toma algumas precauções. Não parece justo que os soldados combatam - e estão a combater, a morrer - contra determinados movimentos, que também estão a combater e a morrer - e que simultaneamente, se dê guarida à propaganda escrita ou falada, através da nossa informação. Não há país do mundo onde isso se tenha feito. Haver quem nos combata com armas e nós a oferecermos os jornais e a rádio para fazerem a sua propaganda, é impossível. Quanto a dísticos e bandeiras, é evidente que eles têm aparecido em circunstâncias especiais com certa tolerância. Mas eu não o aconselho a si, por exemplo, a andar por aí a passear com a bandeira do Mpla.

(...) P. - Diz-se que a PSP não tem actuado como deve ser, em relação à população. Notou-se que o Comando-Chefe retirou essa PSP do contacto directo com os muceques, ficando mais na disciplina do trânsito... Estará a PSP a trabalhar como deve ser ou haverá algum problema?

R. - É evidente que o contacto duma força com a população, sobretudo em momentos de crise, pode levar essa força a produzir uma má imagem. Infelizmente, a imagem da PSP perante a população, foi-se deteriorando. Umas vezes com justiça, outras sem ela. Permita-me que lhe diga que é função de todos fazer o possível para prestigiar a polícia, para educar a polícia, no sentido de que a polícia é bastante aquilo que a sociedade for...

Desmoralizar uma polícia é um crime. É necessário compreender as dificuldades com que ela se debate. Precisávamos duma polícia que fosse bem paga, de elementos de escol. Infelizmente isso não é possível, e a certa altura, a população sente que a Polícia não é aquilo que ela desejava que fosse. Pede ao Sr. Comandante-Chefe a substituição dela pela PM ou pela própria tropa. Também admito que a imagem que a população tem das FA à medida que os contactos se forem estreitando, se deteriore um pouco... É fruto da situação que vivemos.

P. - Gostaria de comentar... as cautelas a ter com o saneamento a nível de serviços e do Governo local...

R. - O saneamento dos Governos Ultramarinos consta do programa do Movimento. E abrange apenas os Governadores Gerais. Não inclui os governadores de Distrito, enquanto na Metrópole inclui os governadores civis.

O resto do saneamento, no Programa, é definido de forma geral. Tenho verificado que na Metrópole e dentro dos serviços públicos, tem procurado fazer-se de harmonia com legislação existente... e não de qualquer modo.






P. - A minha pergunta refere-se a medidas que estejam a ser tomadas  (sei agora que é proibida a circulação automóvel a partir das 20h30... não sei se há outras) para bem de toda a população. Toda a população espera que sejam tomadas medidas no sentido de impedir que corra mais sangue. Haverá outras importantes medidas a serem tomadas, está projectada alguma coisa de concreto?

R. - Está concretamente. Estão tomadas disposições militares. Estas podem, infelizmente, não ser suficientes para impedir que corra sangue. É muito difícil garantir isso, principalmente em determinadas zonas e a partir de determinadas horas.

P. - (Paris Match) - A diferença entre pessoas mais ricas e menos ricas, as diferenças entre possibilidades económicas das diferentes etnias, as diferenças e divisões entre os próprios elementos dos partidos emancipalistas, não poderão fazer correr o risco duma guerra civil, risco esse que poderia ser diminuído se antes de qualquer solução política se fizessem reformas fundamentais no sentido do social, de salários, por exemplo, que dessem um poder real ao povo angolano e não um poder económico às companhias estrangeiras?

R. - Se o senhor conhecer algum país que tenha feito essas reformas, de tal modo que resolva, relativamente aos seus habitantes de camadas sociais diferentes, que ainda existem em todos os países, esses mesmos problemas, diga-me qual a receita para a aplicarmos...

P. - Há rumores de um fechar de olhos ante a actividade de organizações de extremistas brancos. Gostaria que V. Ex.ª me dissesse se há realmente algum indício da existência dessas organizações e, em caso afirmativo, que se poderá ou que se estará a fazer para desmantelar imediatamente essas organizações?

R. - Não quero dizer que não me cheguem notícias de que realmente haverá organizações dessas... não quero dizer que não pense que não haverá... Mas efectivamente, concretamente, nada foi detectado. Porque se soubéssemos algo de concreto, não tenha dúvida de que seriam tratadas como devem ser. Não tenha dúvidas...

P. - Posso então concluir que este Governo-Geral não tem qualquer indício da existência real de organizações de extremistas brancos.

R. - Não.

P. - Em face da pouca audiência que os orgãos de comunicação social têm de chamar ao diálogo todas as pessoas, para se tentar resolver, pelo diálogo e pelo contacto, estes problemas graves que vivemos, não será possível planear e efectuar uma acção directa, de chamada da população total, por promoção de reuniões de esclarecimento, em que estivessem presentes elementos qualificados de todas as etnias e através das quais se procurasse realmente transformar a situação de hostilidade, numa situação de diálogo e de encontro dos caminhos que todos desejamos?


R. - É uma ideia interessante, que talvez possa ser trabalhada».

Conferência de imprensa dada em Luanda pelo General Silvino Silvério Marques, a 16 de Julho de 1974, segundo a reportagem de «a província de Angola» do dia seguinte.


«Pouco mais de oito meses haviam decorrido desde o golpe militar que abalara a Nação e uma forte convicção ganhara corpo no meu sentir e receios que se avolumavam, à medida que tomava consciência de que os objectivos, então apregoados por todo o lado, não passavam de simples quimeras que Portugal, mas principalmente Angola, iriam pagar com a maior das traições.

Desde o 25 de Abril, que com avanços e recuos, os efectivos detentores do Poder em Portugal tinham sido elementos de formação ou pendor marxista que conseguiram neutralizar os adversários. Em Angola esse poder exerceu-se fundamentalmente em dois sentidos:

- Desvinculação da Cláusula do Manifesto do MFA apresentado ao País pela Junta de Salvação Nacional, relativa à realização de eleições livres sob a responsabilidade de Portugal, abertas a todas as associações políticas angolanas existentes, sem excepção, e reconhecimento do MPLA, FNLA e UNITA como únicos representantes do povo angolano, a quem Portugal entregaria a soberania de Angola.

- Simultaneamente e através duma política paralela de factos consumados, ir contribuindo para o fortalecimento do MPLA, por forma a que este movimento tivesse supremacia militar sobre a FNLA e a UNITA, quando se verificasse a transição de soberania.






Agora, no Alvor, ia-se de forma solenemente hipócrita, tentar que o mundo acreditasse na "isenção" dos responsáveis portugueses quanto à transferência do poder em Angola. Ia-se assinar um papel de grandes princípios e compromissos, mas em Luanda os próceres portugueses continuariam a persistente política de consolidação de força do MPLA, que esteve na origem da guerra que dura há vinte e cinco anos.

Nessa noite, os dados estavam lançados e já ninguém conseguiria evitar que o grande equívoco se consumasse. Mesmo sem as prometidas eleições, o Alvor, se nele tivessem prevalecido as rectas intenções, poderia ter reconduzido Angola para o seu despertar; os dados viciados que foram usados transformaram-no no início dum penoso crepúsculo duma nação que não chegou a nascer».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Em boa verdade Costa Gomes, enganou, vigarizou e traíu o Povo!

Como político-militar, bem poderemos parafrasear Cavalcanti: "É indivíduo que pensa uma coisa, diz outra e faz o contrário". Foi assim, que levou os ingénuos moçambicanos e angolanos... nas suas andanças, prédicas e actos... Até este general - só não enganou Salazar - não resistiu ao apetite pantagruélico do comunismo internacional».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«(...) foi-me dito pelo gen. Costa Gomes que não era verdade que tivesse recebido o "crachat" de ouro da Dgs. Essa notícia teria sido uma invenção de jornalistas. Disse ao gen. Costa Gomes que, na primeira oportunidade, rectificaria a referência que fizera ao "crachat" de ouro. Aconteceu entretanto que de duas pessoas totalmente independentes, ambas visitas do general, vim a saber, casualmente, em presença de terceiras pessoas, que o "crachat" de ouro existia e se encontrava mesmo exposto numa "vitrine" de sua casa. Confirmei, de resto, por outra via, a entrega, feita em Luanda. Nestas circuntâncias não há lugar à rectificação prometida».

Silvino Silvério Marques («CORRIGINDO ERROS», artigo que o semanário «Tempo» intitulou «Documento Histórico sobre Descolonização», publicado em 15 de Abril de 1976).


«Subtraindo os episódios ocorridos aquando da chegada do general Costa Gomes a Angola, quando se extremaram as posições entre a PIDE/DGS e os militares, o general nunca teve dúvidas do real valor da PIDE/DGS e da sua contribuição para as operações militares em Angola. Na verdade, o seu apoio à polícia política valeu-lhe a oferta de um crachá de ouro da PIDE/DGS e de uma arma semiautomática AK-47 Kalashnikov que fora apreendida pelos Flechas. O general ficou radiante com as ofertas, conforme testemunhou Óscar Cardoso».

Fernando Cavaleiro Ângelo («Os Flechas. A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola»).



«Cavalos de Tróia em Luanda


Assinados os acordos de cessar-fogo, os Movimentos armados tinham permissão para se fixar na capital. A delegação da FNLA, constituída por oito elementos e cerca de 80 convidados foi a primeira a aterrar em Luanda, em 30 de Outubro. Sem escolta policial, simpatizantes e filiados desfilaram do aeroporto até ao Hotel onde a comitiva ficou provisoriamente alojada. A instalação em qualquer parte do território era uma prerrogativa comum aos protocolos assinados com todos os Movimentos, mas uma outra autorização foi revelada pelo próprio almirante Rosa Coutinho. "E autorizei mais: cada um, para se sentir em segurança, se fizesse acompanhar por uma delegação, uma força militar que não poderia exceder 600 homens, que já era bastante". Cada Movimento poderia ter 600 militares armados em Luanda para não ficarem "indefesos perante a população" [ou não seria antes a população que ficaria, assim, inerme e indefesa?]. A ideia tinha sido sua "depois de os Movimentos considerarem que não podiam ter condições de segurança em Luanda". Tinha sido uma decisão "consensual" na Junta? A pergunta impunha-se por parecer difícil que os comandos de Luanda (que tinham de lidar diariamente com tiroteios nos subúrbios) concordassem com a entrada de mais 1.800 homens armados nesses bairros já tão problemáticos. "Da minha parte", foi, respondeu. Para Pezarat Correia, a decisão não pode ser contestada. Tinha sido "acordado que, para irem para Luanda, [deveriam] prover a sua própria segurança. [...] Eles eram Movimentos armados, não eram partidos políticos!"



(...) Purga em Luanda















Rosa Coutinho e Vasco Gonçalves



Depois de o ELNA ocupar uma casa no Morro da Luz (próxima do quartel do Estado-Maior das FAPLA) e de o Postoyna ter aportado, no dia 29 de Abril ocorreu mais "um intenso tiroteio na região suburbana" de Luanda, de que resultaram 24 mortos e 108 feridos, tanto civis como militares. Os bombardeamentos começaram nessa madrugada e foram-se agravando nos dias seguintes "com mortos, feridos e indisciplina das populações". No Conselho Coordenador, Silva Cardoso perguntou se a "quarta força" tinha estado envolvida. Na reunião com os Estados-Maiores angolanos apenas o MPLA falara nessa presença, informou o comodoro. A CCPA [Conselho Coordenador do Programa (do MFA) para Angola] não detectara a participação de tais indivíduos. Para Silva Barata, como em Março ocorrera militarmente "um equilíbrio entre o MPLA e a FNLA", era uma forma de "transferir a culpa" para outros e não entrarem "em confrontação armada directa". Seria muito difícil evitá-la: os soldados da FNLA estavam "obstinados contra o MPLA" que acusavam "de lhes ter destruído uma delegação": "Não lhes vão perdoar", disse Ferreira de Macedo. Os tiroteios e as desocupações forçadas de residências que estavam a ocorrer poderiam "arrastar" os brancos para o conflito, levando-os a reagir, alertou o primeiro-tenente Sabino Guerreiro. Para Simões, a FNLA estava a "recorrer ao argumento da cor" para arranjar problemas. Não tinha sido "a FNLA que tomou a iniciativa de falar em raças, mas sim o MPLA", contrapôs Valente. O ódio aos brancos estava há meses a ser instigado, referiu Silva Barata: ainda antes de Alvor fora o MPLA a apelar "ao racismo" para "ganhar a simpatia da população negra"; agora era a FNLA a ameaçar que "os brancos não escapariam". "O problema da cor" tinha sido mencionado pela primeira vez na CND [Comissão Nacional de Defesa] oito dias antes, precisou Leonel Cardoso. E o ministro da Agricultura da FNLA, Mateus Neto, "chamou a atenção várias vezes no Conselho de Ministros que na próxima onda de violência os brancos seriam atingidos no asfalto", completou o Alto-Comissário. Estavam "criadas as condições para o aparecimento 'às claras' da quarta força", insistiu Barata, e não seria constituída apenas por brancos, pois já existia "população negra a revoltar-se contra os actos cometidos pela FNLA e pelo MPLA". O primeiro-tenente Soares Rodrigues concordava: não se deveria identificar a quarta força apenas com a etnia branca, pois muitos africanos a integravam.

Os Movimentos queriam "a todo o custo denunciar a quarta força" para começarem a "prender indivíduos brancos", referiu Ferreira de Macedo. Alguns já tinham sido capturados. Segundo as FAP tinham sido efectuadas "prisões de europeus e africanos com aplicação de maus-tratos e roubos dos seus haveres por parte do MPLA aos prisioneiros conduzidos à Praça de Touros", que estavam a ser "sujeitos a péssimo tratamento e a torturas". O relatório da semana anterior pormenorizava as condições no cárcere:"Sequestro de brancos para a Praça de Touros em Luanda por parte do MPLA, onde são severamente espancados e submetidos aos maiores vexames durante horas seguidas. Nos interrogatórios, entre outros actos indignos, obrigam os presos a repetir durante horas: 'O povo é o MPLA e o MPLA é o povo'". E não se poderia contar com a tropa. A desmotivação das unidades era tal que em breve não se poderia contar com elas. Não se sentiam motivados a participar no apaziguamento dos conflitos, e por esse caminho chegar-se-ia a um ponto em que a chamada dessas forças já não valeria de nada, referiu Barata. Se não se pudesse contar com a tropa, "as consequências seriam funestas" e as FAP sairiam de Angola "com a cara suja", disse. O próprio Conselho da Revolução disse à CCPA (na reunião que tiveram) ser "preferível correrem-se riscos do que sairmos vexados". Macedo duvidava que o uso da força prestigiasse Portugal, até por o emprego da força em caso de incumprimentos pelos angolanos não estar previsto no Acordo de Alvor. Os Movimentos tinham começado "a apalpar terreno" desde a posse do governo, disse Rodrigues. Como perceberam que podiam agir à vontade sem sofrerem represálias, aumentaram a intensidade dos confrontos e já o faziam despudoradamente enquanto a parte portuguesa só estava "preocupada em chegar a 11 de Novembro sem dar tiros".

As unidades estavam cansadas de ser deslocadas "de um lado para o outro sem proveito nenhum", afirmou Vilalobos. Julgava, aliás, que a população branca ainda não tinha ido embora por "falta de meios", pois estava "igualmente farta de ver atitudes de fraqueza das Nossas Tropas em relação às atitudes inconvenientes dos Movimentos". A maioria estaria "apenas à espera do fim do ano lectivo para sair", mas depois do que acontecera deveria começar por partir de imediato. De qualquer modo, independentemente do que se fizesse, Portugal iria sempre julgar a tropa em Angola: "por fazer ou por não fazer". "Se ainda estivéssemos ao mesmo nível ou a um nível superior, estaríamos à vontade para aplicar a força, mas neste momento a nossa força está por baixo", disse Sabino Guerreiro. Só a parte portuguesa cumpria um acordo que não tinha "existência real no terreno", concluiu. Para Barata talvez fosse aconselhável pôr as tropas "a defender o alcatrão" (zona residencial da população branca). Porque se os brancos não fossem protegidos poderia "assistir-se à nossa corrida daqui por eles".

Os receios deste major não eram infundados. Depois dos seus domicílios serem invadidos por indivíduos armados à procura de armas,  de serem despejados à força das suas casas, de serem ameaçados, agredidos ou mortos, no dia seguinte (1 de Maio) centenas de brancos protestaram junto do Palácio, exigindo meios para deixar Angola. A multidão insultou a tropa por não os proteger:"Derrubaram o gradeamento e os portões mas foram travados na porta pela PM. [...] Queriam ir embora de Angola e gritavam: 'Estamos a ser mortos. Estão a violar as nossas mulheres'". Pela primeira vez desde a posse do governo a população colona mostrou a sua indignação. Os comandantes que surgiram à janela foram apedrejados (uma pedra rasou a cabeça de um deles) e alguns vidros da fachada partidos. Os brancos tinham percebido estar por sua conta e risco. A violência entrava-lhes em casa e não havia a quem recorrer. O protesto não era exagerado: nas noites anteriores o tiroteio impressionara quem tinha feito várias comissões de guerra, como o coronel Passos Ramos: "Balas tracejantes riscavam o céu. Uma coisa medonha. Estive na guerra muitas vezes debaixo de fogo e nunca vi tanto tiro na minha vida como naquela noite".

Entre 29 de Abril e 2 de Maio os luandenses viveram debaixo de fogo cerrado de "grande intensidade". Aos bombardeamentos contínuos "com emprego de armas ligeiras, metralhadoras pesadas, lança-granadas-foguete e morteiros" seguiram-se as acções de fogo posto e pilhagem. Apesar de proibidas as comemorações do Dia do Trabalhador, milhares de populares saíram à rua "enquadrados por civis armados e elementos dos Movimentos, com maior relevância por parte das FAPLA". Ocorreram assaltos e saques em "habitações dos bairros suburbanos"; coacções ao abandono de certas residências nesses bairros; "agressões, violações de mulheres e a prisão indiscriminada de cidadãos". No cimo dos edifícios e em viaturas junto às sedes partidárias avistavam-se atiradores furtivos, brancos e negros. Calculava-se que em menos de uma semana teriam sido mortas 300 pessoas e feridas 600: a quase totalidade, civis. Tinha sido "a mais violenta onda de distúrbios" em Luanda desde Julho de 1974:"Como sempre, a maior vítima dos recentes incidentes em Luanda foi a população africana dos muceques, embora seja também elevado o número de europeus desalojados e espoliados. Ondas de refugiados afluíram à cidade do asfalto as mais das vezes trazendo apenas a roupa que vestiam". Uma "enorme cadeia de solidariedade" canalizou para a capital "grandes quantidades de roupas e géneros alimentícios" para algumas escolas transformadas "em verdadeiros centros de refugiados"».

Alexandra Marques («Segredos da Descolonização de Angola»).









«A União Soviética (...) não esperou para ver no que ia dar o Acordo do Alvor. Alguns dias apenas após o encontro do Algarve, e na sequência da política iniciada três meses antes, Moscovo forneceu ao MPLA "armamento suficiente para equipar cinco a sete mil tropas", bem como "milhares de AK 47" destinadas a "armar os grupos de poder popular dos musseques de Luanda".

(...) No início de Maio de 1975, o consulado dos Estados Unidos em Angola enviou para Washington três telegramas confidenciais muito interessantes.

O primeiro dava conta das informações secretas recebidas pelo posto da CIA na África do Sul. Na noite de 30 de Abril, "um grupo de nove pessoas foi preso pela polícia no aeroporto de Luanda"; todos tinham "passaportes portugueses novos", mas só conseguiam "falar um pouco de português"; foram detidos por ordem do ministro do Interior, Ngola Kabangu, da FNLA, e "examinados por um antigo colaborador da DGS"; eram "dois russos, dois jugoslavos, dois búlgaros, um brasileiro e outros dois de nacionalidade não identificada"; tudo indicava que "tinham sido enviados pelo Partido Comunista Português para ajudar o MPLA".

O segundo, enviado no dia 6, anunciava a "expulsão de oito estrangeiros de Angola", descritos como "pretensos jornalistas e professores que entraram ilegalmente no território angolano usando nomes falsos e um salvo-conduto emitido pelo MPLA", tendo sido "enviados pelo PCP, com passaportes falsos, para ajudar a organizar e perpetrar um golpe do MPLA em Maio"; de resto, há meses que havia informações sobre a "introdução em Angola de agitadores profissionais com o propósito expresso de criar confusão urbana e caos"; os nomes dos indivíduos expulsos eram: "José Milton Temer, brasileiro; Leonid Repin, soviético; Jiri Janousek, checoslovaco; Aurel Zaintesou, romeno; Jean Nguie, congolês; Voight Werner, alemão".

Finalmente, o terceiro telegrama informava que uma fonte da facção Pinto de Andrade do MPLA forneceu ao consulado os nomes de um conjunto de indivíduos "portugueses, brancos, membros do PCP, enviados ao grupo de Neto", nomeadamente: "José Eduardo Barbosa; Mário Nelson; Pratts; Madaleno; Rudolfo Silas de Eça Queiroz"».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).


«(...) fui informado de que, na sequência da viagem do Iko Carreira a Moscovo, cargueiros soviéticos tinham chegado ao porto de Ponta Negra no Congo-Brazzaville onde descarregavam grandes quantidades de material de guerra destinado ao MPLA.

Este material tinha começado a entrar em Angola muito especialmente por via marítima e desembarcado nas praias desertas da imensa costa angolana, tanto a norte como a sul de Luanda. Impedir estes desembarques, de que os outros movimentos tinham conhecimento e conduziam a um clima de maior tensão, era uma missão praticamente impossível por exigir um esforço de patrulhamento com meios aéreos e navais que ultrapassavam em larga escala as nossas disponibilidades. Assim o material de guerra ia entrando, dotando os novos efectivos do MPLA com um potencial de combate que eles nunca tinham tido durante toda a guerra. Isto conduziu a uma superioridade em relação aos outros movimentos que provocaram reacções mais ou menos violentas, matando à nascença toda e qualquer tentativa de cooperação. Mas não é só o armamento que chega de Leste, pois segundo o Cônsul norte-americano, que me pedira o máximo de sigilo, também alguns conselheiros, especialmente da RDA (Alemanha do Leste) tinham entrado em Angola para fazer "turismo" e que, a curto/médio prazo, estariam previstas outras ajudas significativas quer em material quer em pessoal. Naturalmente procurei saber se eles próprios, norte-americanos, estavam a reagir a este assalto. É curioso e oportuno recordar que, uns anos mais tarde, nas funções de comandante-chefe nos Açores em 1983, me encontrei com um general norte-americano e ao falar-se de África e inevitavelmente de Angola, confidenciou-me que nos princípios de 1975 pilotara um C-130 várias vezes para Kinshasa integrado numa espécie de ponte aérea. Aterravam durante a noite e paravam ao fundo da pista, apagando as luzes. Entretando aproximavam-se viaturas pesadas de carga para as quais era transferido o material que transportavam enquanto um autotanque procedia ao reabastecimento do avião. Terminada a operação, voltavam a alinhar na pista e descolavam. Frisou que tinha sido uma autêntica ponte aérea para Kinshasa com muitas toneladas de armamento. Não revelou qual o ponto de partida, admitindo que tivesse sido na Libéria. Na sua opinião este material só poderia ter um destino: FNLA através de Mobutu.

Não havia dúvidas, as movimentações diplomáticas com a mudança de Cônsul em Luanda e de Embaixador em Lisboa e este apoio logístico só poderia ter um significado: tentar evitar que a URSS estendesse a sua influência a Angola. E os dois "jogadores", através dos seus tentáculos, estavam novamente em plena actividade para conseguirem o controlo daquela importantíssima parcela do território africano.

(...) No entanto e aproveitando a maré do 11 de Março na metrópole, reacende-se a guerra dos comunicados com acusações mútuas entre os movimentos, acompanhada por um outro fenómeno, até à altura bastante esporádico, que passou a ocorrer com maior frequência: os atiradores furtivos. Tiros disparados, não se sabia por quem, nem contra quem, que se faziam ouvir um pouco por toda a cidade alta mas, não por coincindência, com maior intensidade na Av. do Brasil onde a FNLA tinha a sua delegação. Por mais tentativas que se fizessem para localizar e capturar esses atiradores espontâneos, todas resultaram infrutíferas.


(...) Ao fim de muita conversa e insistência pessoais, tinha conseguido que os principais responsáveis dos movimentos de libertação em Luanda se reunissem e discutissem os problemas que estavam a afectar o processo de descolonização. Parecia-me importante que os três, sem a presença portuguesa, discutissem abertamente as questões que os dividiam e encontrassem os consensos possíveis para obviar às atitudes inconvenientes que todos os dias chegavam ao meu conhecimento e contra as quais eles não tomavam medidas. Nestas conversas tive sempre a preocupação de pôr o povo de Angola acima dos interesses pessoais ou partidários; se pretendiam defender os angolanos deviam unir-se e esquecer ou ultrapassar tudo o que pudesse contribuir para a anarquia e a desordem que reinava no território. Tinha conseguido Mombaça onde, infelizmente, nada ficou clarificado porque poucos estariam interessados nesse esclarecimento. Estas reuniões a sós, eram uma espécie de mini-mombaças que talvez dessem o seu fruto se houvesse um total cometimento sem qualquer espécie de subordinação a interesses estranhos ao povo de Angola. Uns dias antes tinha sido informado de "terem aparecido em Cabinda algumas carrinhas Volkswagen de matrícula alemã, transportando cidadãos alemães, os quais entraram pela fronteira de Miconje com guias passadas pelo MPLA sem que possuíssem qualquer visto válido para Angola".

Esta notícia recortava a que me tinha sido dada pelo Cônsul norte-americano de que conselheiros da RDA estariam a entrar em Luanda para apoiar o MPLA. Cada dia me convencia mais de que as boas intenções demonstradas pelos principais responsáveis dos ML, não passavam mesmo de intenções. Praticamente em todos os relatórios de informação que periodicamente me chegavam às mãos e de cuja imparcialidade não tinha quaisquer dúvidas, tudo apontava para que o problema da conquista do poder se resumia a uma questão de força das armas. Como seriam possíveis a paz e a concórdia entre todos se, em todos os relatórios de informação, o panorama traçado era altamente preocupante. Como por exemplo, no relatório de 05MAR75 a 12MAR75, podia ler-se:


e. - ATITUDES INCONVENIENTES COM REFLEXOS NAS POPULAÇÕES E NOSSAS TROPAS


- Continuou a registar-se a ocorrência de variadas atitudes inconvenientes com origem em elementos dos movimentos de libertação e da população em geral, os quais, apreciados globalmente, não se revestiram todavia de grande expressão.


-  No que concerne à prática de acções inconvenientes por parte de elementos afectos ao MPLA, FNLA e UNITA, verificou-se que os mesmos se distribuíram por tipos já do anterior referenciados, sendo de salientar:


- Roubo de 78 armas da OPVDCA [ Organização Provincial para a Defesa Civil de Angola] em Mazemba e ocupação do aeroporto de Cela à chegada de um membro do Governo da FNLA, por elementos do MPLA.


- Ocupação das instalações dos flechas no Luso, por elementos da UNITA e roubo de 249 GMO, 50 GMD, 30 GFumos, 78 dilagramas e 300 camuflados.


- Ocupação do campo de S. Nicolau por forças da FNLA que levou à intervenção das FAPLA tendo resultado um confronto armado e causado três vítimas.


- Hostilizações de natureza vária entre os movimentos, em especial entre o MPLA e a FNLA.


De assinalar o decréscimo, em número e gravidade, de acções inconvenientes por parte de elementos afectos ao MPLA.


- Relativamente a ocorrências da responsabilidade da população em geral, manteve-se o nível geral moderado indicado no período anterior, predominando as acções de assalto a instalações e roubos a civis. Desta actividade destaca-se:


- Assalto à Administração do Concelho de Ganda donde foram roubadas 29PMetr, 119 Esp e 6000 munições pertencentes à OPVDCA.

- Fuga de 100 reclusos da cadeia de Benguela, dos quais 30 se encontram ainda em liberdade.


- Assassínio de dois africanos (Cabinda e Henrique Carvalho).






Chegada a Angola do Alto-Comissário, Silva Cardoso.






Silva Cardoso, Alto-Comissário e Presidente do Governo de Transição de Angola, no discurso da tomada de posse, a 31 de Janeiro de 1975. Lopo do Nascimento (à sua direita, de roupa clara), Johnny Eduardo e José Ndele (à sua esquerda).






Ver aqui



(...) Na sequência dos atiradores furtivos e da guerra dos comunicados a FNLA tomou uma posição de força e, pelas armas, procurou controlar a situação dentro de Luanda. Verificaram-se muitas dezenas de vítimas com acusações de parte a parte. A UNITA desenvolve toda uma actividade pacificadora sem resultados, a Comissão Nacional de Defesa reúne e toma as medidas que considera necessárias para pôr fim ao conflito mas que nenhuma das partes cumpre. Cheguei a estar convencido que os próprios responsáveis principais dos movimentos em causa não tinham qualquer autoridade sobre as forças "militares" que supostamente comandavam. Entretanto o Governo, interrompendo a sua actividade principal e por indicação da Comissão Nacional de Defesa, debruçou-se sobre o problema e em 25 de Março tomou algumas medidas das quais se destacam:

- Execução de patrulhas mistas pela FAP/FALA durante o dia e à noite só pelas FAP.

- Regresso a quartéis das forças do ELNA e FAPLA.


- Recolher obrigatório das 2100 às 0600 que se iria manter nos dias 26, 27 e 28MAR75.


- Apelo à calma, fazendo ver que reaccionários e agitadores estavam empenhados na confrontação ELNA/FAPLA, tomando nela parte activa como provocadores.


- Pedidos de imediata entrega pelos civis de armas de guerra em sua posse.


Com estas medidas procurou evitar-se a culpabilização de um dos movimentos, remetendo-a para elementos marginais, de modo a não desencadear mais violência, assim como a entrega de armas se ficou pelos civis, não mencionando o poder popular como era pretendido pelos responsáveis da FNLA.

Acompanhava de perto a actividade do COPLAD [Comando Operacional de Luanda], agora substancialmente reforçado. O próprio Almendra que dispunha de um oficial de ligação de cada movimento, metia-se com eles no seu velho "carocha" e, pelo labirinto dos musseques, deslocava-se aos improvisados quartéis dispersos naquele enorme emaranhado de barracos, onde pensava que estavam a ser conduzidas as acções de combate. Curiosamente os delegados e responsáveis dos movimentos mostravam uma grande relutância, mesmo medo em segui-lo. Mas o Almendra nunca foi homem de meias-tintas e forçava-os a acompanhá-lo (algumas vezes teve que ir só, por o oficial de ligação do movimento em causa não ter aparecido no COPLAD). Punha aquela gente na ordem, não sentindo qualquer dificuldade em se impor. Mas o pior era que o Almendra não podia estar em todo o lado e mal ele voltava as costas tudo recomeçava de novo.

A 26 de Março o recolher obrigatório é respeitado. A população, de todas as etnias e cores, está positivamente em pânico porque nos confrontos não só é usada a arma individual, a pistola ou espingarda, mas também morteiros, bazucas e até canhões sem recuo. Durante o dia sucedem-se as manifestações em frente do palácio. As NT esqueceram o "momento revolucionário" que se vivia e empenharam-se briosamente na sua difícil missão de, com grandes riscos, tentarem controlar uma situação de guerrilha urbana, altamente complexa e, ainda por cima, sem inimigo directo».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«É igualmente um facto que nos meses de Maio e Junho de 1975 a guerra civil angolana não só se agudizou como se estendeu ao resto do território, sobretudo numa primeira fase ao Norte e Leste, tendo a iniciativa cabido ao MPLA que decidiu criar um "cordão sanitário"à volta da capital e derrotar a FNLA em todos os locais em que tinha uma superioridade militar, com especial ênfase no eixo Luanda/Henrique de Carvalho; o movimento de Holden Roberto respondeu no Norte, nos distritos do Zaire e do Uíge.

No início de Maio ocorreram combates fortes e ininterruptos em Luanda, havendo relatos sobre o uso de morteiros e bazucas e a existência de cerca de 500 mortos, na maioria civis. Pouco depois, os confrontos estenderam-se ao Caxito, Salazar, Teixeira de Souza, Luso e Nova Lisboa, ou seja, ao "cordão sanitário" da capital e ao longo da linha de caminho-de-ferro, e ainda a S. Salvador, Tomboco, Lufico e Ambrizete, isto é, ao Norte, entre Luanda e a fronteira com o Zaire. Nos finais de Maio, o conflito entre o MPLA e a FNLA atinge Carmona, Negage e intensifica-se em Cabinda. E no início de Junho, os choques militares entre os movimentos de Agostinho Neto e Holden Roberto chegam à área de Cacuaco-Quifandongo, numa tentativa do MPLA de evitar que a FNLA pudesse reforçar Luanda a partir da Barra do Dande, tendo o ELNA sido obrigado a retirar desta região e assim perdido o único acesso terrestre à capital.

Este período da guerra civil angolana, descrito por Silva Cardoso como "a primeira fase da estratégica para vencer a 'batalha de Luanda'", só terminou em meados de Junho, com a realização da Cimeira de Nakuru, ainda que os resultados desta tivessem vida curta. E durante todo este tempo os EUA limitaram-se a tomar medidas defensivas e a estudar a situação.

Depois da primeira ronda de combates, Killoran escreveu que o governo de transição não tinha capacidade para garantir um mínimo de segurança, tendo sugerido à administração Ford a saída dos norte-americanos residentes em Angola. O Departamento de Estado respondeu "ordenando a evacuação dos dependentes do governo dos Estados Unidos" e "recomendando" igual procedimento aos restantes cidadãos americanos.







(...) Tendo por base uma extensa investigação levada a cabo nos arquivos cubanos, Piero Gleijeses concluiu que Havana começou a intervir em Angola na segunda metade de Julho de 1975, correspondendo ao apelo feito por Agostinho Neto a Carlos Cadelo durante a cerimónia de independência de Moçambique no sentido de Cuba apoiar de forma significativa o MPLA. Fidel Castro decidiu então ajudar Neto, ainda que de forma inicialmente limitada, enviando-lhe dinheiro destinado às operações de transporte de armas para o território angolano. Assim, a 25 de Julho, Cadelo e Augustín Quintana deixaram Havana em direcção a Luanda com 100 mil dólares.

Importa referir a este respeito que a versão de Gleijeses sobre a data da entrada em Angola dos primeiros militares de Cuba não é consensual. Por exemplo, Gerald Bender sustenta que "ainda em Junho chegaram ao território angolano 250 conselheiros cubanos". Já Henry Kissinger defende que a intervenção cubana "começou em Maio" e "acelerou-se em Junho", frisando que tal aconteceu "antes do aparecimento dos sul-africanos".

(...) Em Setembro, Fidel Castro decidiu avançar, iniciando uma nova fase da Missão Militar Cubana em Angola através do envio de cerca de 500 conselheiros militares para o território. Entre os dias 16 e 20, os navios Vietnam Heróico, La Plata e Coral Island partiram de Havana em direcção a Luanda com os primeiros 300 elementos e com armamento. Simultaneamente, seguiram para Brazzaville dois aviões com o restante contingente.

De acordo com Piero Gleijeses, a única preocupação de Fidel Castro residia na "resposta dos portugueses à chegada dos navios cubanos", tendo deixado claro que era "preciso evitar a todo o custo um conflito armado com Portugal", pois qualquer que fosse o resultado, ia "dar a impressão de que estavam a invadir [Angola]". Contudo, Fidel tinha negociado ainda em Agosto com alguns destacados dirigentes político-militares de Lisboa e obtido a sua aquiesciência à entrada das tropas de Havana no território angolano.

A este respeito, importa destacar um facto muito interessante revelado por Piero Gleijeses. De acordo com o autor, dado que os estrangeiros precisavam de vistos concedidos por Portugal para entrar em Angola, o governo cubano solicitou a oficiais portugueses que garantissem que não ia haver obstáculos. O principal contacto para o efeito foi Rosa Coutinho, abordado de forma directa sobre o assunto durante a sua visita a Cuba em meados de Agosto. Ainda segundo Gleijeses, Coutinho e Fidel Castro "falaram demoradamente" e, depois disso, "os membros da MMCA não encontraram quaisquer dificuldades".

A conivência de alguns dirigentes de Lisboa no processo de entrada dos cubanos no território angolano foi confirmada por Vadim Zagladin, do Departamento Internacional do PCUS, que não teve dúvidas em afirmar que "as tropas cubanas seguiram com a anuência das autoridades portuguesas".

(...) Os primeiros relatórios dos serviços secretos norte-americanos com informações sobre a presença de cubanos em Angola datam de finais de Agosto de 1975. Num memorando elaborado no dia 20 desse mês, a CIA deu conta da existência de conselheiros militares de Cuba no território angolano e concluiu que era provável que tal estivesse a acontecer "a pedido dos soviéticos". Já o BIR escreveu dois dias depois num documento confidencial que "os soviéticos e outros países seus aliados, sobretudo Cuba, forneceram conselheiros [ao MPLA] para ajudarem no planeamento militar e na logística" e, embora a maioria destes elementos estivesse sedeada no Congo-Brazzaville, havia "crescentes evidências" de que alguns deles "estavam presentes nas unidades do MPLA no interior de Angola".

A 10 de Outubro foi a vez do consulado dos EUA em Luanda informar o Departamento de Estado da presença de militares cubanos no território através de um telegrama que foi imediatamente reenviado por Kissinger para as embaixadas em Kinshasa, Lusaka, Pretória e Lisboa. Nele, Killoran referiu que Silva Cardoso lhe tinha dito que no dia 8 tinham desembarcado em Porto Amboim tropas e armas provenientes de Havana. Ainda de acordo com o cônsul-geral, quando questionado sobre o número de militares de Cuba que estavam em Angola, o alto-comissário português disse que as suas informações apontavam para "sete mil", mas ele "duvidava que fossem tantos".

Fidel, Raul Castro e Otelo Saraiva de Carvalho em Cuba (Julho de 1975).







Um dia depois, no seu National Intelligence Daily, a CIA informou que "uma força considerável de 'voluntários' cubanos chegou recentemente a Angola a bordo de dois barcos", nomeadamente "um cargueiro presumivelmente usado para transportar armas e equipamento" e "um navio de transporte de passageiros com capacidade para 249 pessoas". O documento da agência acrescentou ainda que essa força era "composta por conselheiros militares", sendo que estes "estavam a operar conjuntamente com o MPLA no interior do território fazia já algum tempo".

Noutro documento, datado de 25 de Outubro, a CIA estimou que havia em Angola "poucas centenas de tropas cubanas". Porém, cerca de duas semanas depois, a agência relatou que a presença de Cuba no território "estava a crescer", estando os seus elementos a concentrar-se nas seguintes tarefas: "preparar as defesas antiaéreas de Luanda; gerir a antiga base militar portuguesa; aconselhar as unidades militares do MPLA; fornecer assistência médica às forças do Movimento Popular; operar uma rede radiofónica táctica".

A 20 de Novembro, o Departamento de Estado enviou para várias embaixadas norte-americanas um longo telegrama com o histórico da presença cubana em Angola, tendo destacado logo no início que a actividade de Havana no território angolano demonstrava "em grande escala a sua capacidade para exportar a revolução e a facilidade com que usam isso para cooperar com a URSS onde tal serve os interesses nacionais soviéticos.

Em seguida, o documento chamava a atenção para o facto de o envolvimento cubano na antiga colónia portuguesa ter começado há pelo menos dez anos atrás, nomeadamente através da concessão de "assistência moral e material ao Movimento Popular de Libertação de Angola". Segundo as informações do Departamento de Estado, durante a última década "várias centenas de quadros do MPLA receberam doutrinação e treino militar em Cuba e nas bases do Congo-Brazzaville"; mais recentemente, "várias dúzias de conselheiros cubanos" estiveram "nas bases de treino do MPLA em Massangano, em Angola, juntamente com conselheiros militares soviéticos".

O telegrama prosseguia alertando para o facto de o apoio de Havana ao movimento de Agostinho Neto ter aumentado significativamente desde Setembro de 1975, tanto em termos de homens como de material", ambos "transportados por ar e mar para o território angolano, quer directamente para Porto Amboim, no Sul de Luanda, quer indirectamente para Ponta Negra, no Congo".

Já no início de Outubro, "dois ou três barcos cubanos estavam em águas congolesas e angolanas", concretamente o Coral Island, que podia "transportar 500 soldados", o Vietnam Heróico, com "capacidade para 700 soldados", e o La Plata, que podia "transportar pequenos contingentes militares". Praticamente ao mesmo tempo, tropas e material de guerra provenientes de Havana estavam "a ser desembarcados por navios cubanos em Ponta Negra, no Congo", incluindo os últimos "tanques, veículos blindados, camiões e vários caixotes com armas e munições".

O documento terminava com uma lista exaustiva das actividades levadas a cabo por Cuba ao longo do resto do mês de Outubro: no dia 17, "dois aviões não identificados pousaram em Ponta Negra para transportar tropas cubanas para Angola; entre 17 e 18, "aviões soviéticos provenientes de Cuba aterraram em Brazzaville" transportando "entre 800 e 1000 soldados e dois médicos"; a 23, "300 pilotos cubanos e 60 angolanos que tinham sido treinados em Havana chegaram à base aérea de Maya Maya", no Congo; no final de Outubro, "um avião militar congolês com capacidade para 50 passageiros fez três voos para a Guiné-Bissau para ir buscar soldados cubanos e transportá-los para Ponta Negra, de onde foram levados, por barco, para Luanda"; pela mesma ocasião, "três aviões soviéticos carregados de armamento e mais tropas de Cuba aterraram na base aérea de Maya Maya"; durante a última semana de Outubro, chegaram ao porto de Ponta Negra "grandes quantidades de armamento", incluindo "tanques, carros blindados e metralhadoras", ao mesmo tempo que "estavam a ser montados em Maya Maya 12 Mig-21 soviéticos recém-chegados".

A "Operação Carlota" coincidiu no tempo com a "Operação Savannah", nome de código da intervenção militar da África do Sul em Angola.

Embora as primeiras tropas sul-africanas tenham entrado no território angolano em Agosto de 1975 e a invasão por tropas regulares só tenha acontecido em Outubro desse ano, a história do envolvimento de Pretória na antiga colónia portuguesa começou antes.

Desde praticamente o golpe de Estado militar de 25 de Abril de 1974 que a África do Sul acompanhou com preocupação o colapso [ou melhor, a entrega] do império colonial português. Primeiro em Moçambique, país com uma fronteira comum e com elevado grau de interdependência económica; depois em Angola, sobretudo pelos riscos de um desenvolvimento desfavorável no território ao nível da situação na Namíbia, temendo-se que esta pudesse transformar-se num bastião da SWAPO».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).







«Com a saída da FNLA e da UNITA de Luanda, Angola separava-se em três áreas claramente definidas: o primeiro daqueles movimentos ocupou o Norte; o segundo, Nova Lisboa, o Sul, excepto o Luso - onde o MPLA se conservou - e o Leste. O MPLA mal se atrevia a aventurar-se para longe dos limites da capital.

No Ambriz, Gilberto Santos e Castro dividia o comando das forças da FNLA com um general zairense. Com o coronel estavam o major Cardoso e outros camaradas de várias patentes.

Ainda sem a colaboração dos oficiais portugueses, a FNLA lançara, como disse anteriormente, a sua primeira grande ofensiva até ao Caxito, onde foi detida, porque o MPLA destruíra as pontes sobre o Dande e o material para as reconstruir vinha do longínquo Zaire. A FNLA cominava todo o Norte e as regiões que desciam até aos Dembos, embora sem ocupar o Piri e o Úcua.

O MPLA aproveitou a paragem da FNLA para um contra-ataque que obrigou o inimigo a refugiar-se no Ambriz, com pesadas baixas.

Já com Santos e Castro, a FNLA retomou a iniciativa, avançou até ao Morro da Cal, enquanto o MPLA se entrincheirava nas pedreiras do Cacuaco, e bombardeou Quifangongo, causando estragos na Estação de Tratamento de Água. Luanda ficou, por dias, sem luz e sem água.

Teria a FNLA chegado à capital angolana, não fora a aliança das Forças Armadas portuguesas com o MPLA. Chaimites e homens rechaçaram as tropas da FNLA, reconquistaram o Caxito e regressaram a Luanda, desfilando, triunfantes, pelas ruas da cidade.

Foi a vez dos cubanos fazerem a sua aparição pelo mar ou transportados em aviões russos. Sem grandes alardes. Não se viam na cidade, mas cerca de seiscentos soldados instalaram-se na Cerâmica Imperial, de Coelho da Silva. Outros dispersaram-se pela zona do Cacuaco. Outros, ainda, rondando os três mil, guarneceram Cabinda. Reputo em quatro mil, o total dos efectivos cubanos. Em 13 de Agosto, numa conferência de Imprensa, Lúcio Lara tinha anunciado o encerramento da luta armada em Luanda, revelando que "um país amigo" estaria ao lado do MPLA, a fim de contribuir para a sua total implantação e a sua hegemonia em Angola. Não indicou, porém, qual era o "país amigo". Só o soubemos em Outubro, quando os soldados de Fidel Castro enfileiraram com as FAPLA.

Garantia-se, à boca pequena, que Luanda constituía muralha impenetrável, pois as defesas tinham recebido o reforço de mísseis, descarregados de navios russos. Sem que as tais minas explodissem. Um episódio que ainda há-de ser contado...

O dia da independência aproximava-se. Restringiu-se o movimento no porto da capital. Os cubanos chamaram a si o policiamento.

Em 9 de Novembro, a FNLA desencadeou violentíssimo ataque. Travou-se um ciclópico duelo de artilharia. Os combates prolongaram-se desde a madrugada até às cinco da tarde. As granadas choveram em redor da fábrica de pólvora de Luanda, sem a atingir. Faltaram, pela segunda vez, a água e a luz. Os géneros alimentícios desapareceram das prateleiras das lojas. Não havia pão. Um quilo de batatas, das poucas que restavam, custava duzentos escudos. A fome e a anarquia empolgaram os habitantes.

Às cinco da tarde, fez-se silêncio. Um silêncio mais aterrador que o estrondear das granadas, do que a fuzilaria das armas ligeiras. O MPLA derrotara os atacantes, comandados pelo general zairense, porque Santos e Castro se afastara ou fora afastado. Nunca se soube qual das hipóteses é a verdadeira e os porquês das modificações operadas nos comandos da FNLA.

Os cubanos actuaram com crueldade, não poupando sequer, os soldados das FAPLA, seus companheiros de luta. Obrigavam-nos a ir para a frente, sem comer ou beber, alvejando-lhes as pernas a tiro.






Tropas da FNLA (1975).









Ver aqui



Noites antes, uma avioneta de Holden Roberto sobrevoara Luanda, disseminando manifestos dirigidos à população angolana e aos portugueses, em que afiançava que não destruiria a cidade, nem maltrataria os habitantes. Pedia que todos se mantivessem calmos durante o ataque; que ninguém se expusesse, que não servisse de anteparo ao MPLA. O seu objectivo - acrescentava - era exterminar o "poder popular", a OMA (Organização das Mulheres Angolanas), as FAPLA e os comunistas.

Perdeu a batalha e, com ela, a sua derradeira oportunidade.

No dia 11 de Novembro, Angola festejou a independência [salvo seja!]».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«Cabo Verde era um arquipélago deserto quando, há mais de meio milénio, foi achado. Assim S. Tomé. Assim Madeira e Açores. Com gente de África e da Europa foram sendo povoadas aquelas ilhas desertas. Como S. Tomé. Os povoadores da Madeira e dos Açores, longe de África, foram exclusivamente europeus; isto está explicando comportamentos incoerentes de responsáveis importantes, na realidade portugueses (?) racistas.

Ilhas áridas, embora de excelente clima, pobres, sujeitas, quanto a pluviosidade, a serem ou não atingidas pelas oscilações da frente intertropical, e, consequentemente, a secas, muitas vezes de consequências catastróficas, mesmo assim a sua população miscigenada, crioula, foi crescendo andando talvez hoje pelo meio milhão de habitantes, metade ou mais tendo necessidade de viver fora do Arquipélago. Que ilhas desertas e áridas pudessem ter dado origem a um grupo humano tão numeroso, tão característico, e, em geral, tão culto e apto, constitui verdadeiro milagre de acção portuguesa.

Com uma estrutura político-administrativa semelhante à do território europeu, Cabo Verde, antes do 25 de Abril de 74, detinha nas mãos de muitos filhos seus - cabos-chefes, regedores, administradores de concelho, presidentes de câmara - a Administração, os Tribunais, o próprio Governo, este através da Assembleia Legislativa, do Conselho de Governo, e, por vezes, até do Governador. Se alguma gente nova, politizada, em geral em Lisboa, ambicionava, ultimamente, lugares e responsabilidades em soluções políticas de maior autonomia ou mesmo de independência, gente qualificada mais madura, não deixava de almejar soluções do tipo adjacência, sobretudo desde que fosse possível conjugá-las com a manutenção das possibilidades oferecidas pelo quadro comum do funcionamento ultramarino. Na verdade, zona natural de emigração por carência de condições económicas para absorver toda a sua população, era na sua Grande Pátria Portuguesa que o cabo-verdiano se realizava, ascendendo, no sector público e no sector privado, aos mais altos postos, tanto no Ultramar como no rectângulo europeu. Sendo o grupo crioulo de Cabo Verde, em resultado da natureza difícil do seu meio original, constituído por gente frugal, habituada aos sacrifícios e a vencer as dificuldades, e geralmente bem preparada, tornara-se verdadeira ponta de lança na administração, na técnica e no simples povoamento da nossa Grande Pátria. A sua Pátria alargada, da qual eram cidadãos completos (sofrendo, embora, por vezes, os choques de um multirracialismo ainda não perfeitamente consolidado) oferecia, estruturava e materializava as mais promissoras possibilidades, a mais decidida segurança de vida. Mesmo quando, nas épocas dramáticas de crise, nem sempre o Estado os tinha podido ou sabido ajudar convenientemente era à sua gente, ao seu Governo, que os cabo-verdianos se podiam com legitimidade queixar.

As condições sócio-económicas intrínsecas do Arquipélago mantêm-se sem alteração. Só com ajuda externa Cabo Verde se poderá ir mantendo. Ajuda externa que inicialmente virá, certamente não desinteressada. Mas que, de qualquer maneira, não será dos seus, terá de ser solicitada a estranhos. Talvez mesmo apoios poderosos, que o seu Estado não estava em condições de lhe proporcionar, venham a ser obtidos e concretizem alguns projectos conhecidos e outros novos, capazes de algo modificarem a vida do Arquipélago. Mas essa ajuda terá preço. De qualquer maneira, os cabo-verdianos perderam, para já, e durante o tempo de uma reconversão sócio-económica talvez impossível, as possibilidades e a segurança que lhe proporcionava o conjunto geográfico e humano em que se integravam. E para sempre, naturalmente, a sua independência.

Portugal era, em qualquer circunstância, a Pátria apesar de tudo extremosa, útil, amada, a origem histórica, o umbigo da gente crioula do Arquipélago.

E que significa Cabo Verde para Portugal? Antes do mais, uma terra achada deserta pelos navegadores dos Descobrimentos, povoada e desenvolvida, durante mais de 500 anos, por acção portuguesa. Era terra e gente portuguesas, tanto como o Rectângulo, os Açores, a Madeira... e o resto de Portugal. Era, geográfica e historicamente, corpo do nosso corpo, sangue do nosso sangue, sangue que se derramou, generosa e galhardamente, em Angola e em Moçambique, de 1961 a 1974 [A primeira Cruz de Guerra merecida após a I Grande Guerra é ostentada por um oficial miliciano de Cabo Verde, Leonildo Monteiro, hoje engenheiro electrotécnico, que, por isso escolhi para meu ajudante no meu 1.º Governo Geral de Angola]. Corpo que constituía (e constitui) só pela sua situação na zona inter-tropical do Atlântico, uma posição de valor estratégico importante. Abandonado pelos "revolucionários" do 25 de Abril, por esse facto o que ficou empobreceu do ponto de vista geo-estratégico.




Ver aqui e aqui



Embora económica e financeiramente o Arquipélago constituísse um encargo para as parcelas mais ricas do país (como outras regiões da Europa ou do Ultramar) mormente em épocas de seca, a actividade e o valor real e potencial da gente crioula e da sua cultura, derramados praticamente por todas as parcelas do mundo português, compensava generosamente tal encargo. Quando, a respeito de Cabo Verde, se fala de colonialismo e se fabricam considerações sócio-económicas, com base na "luta de classes", na "exploração do homem pelo homem", nos "monopólios" e noutros "slogans" marxistas, como se fez poucos anos atrás, o mínimo que pessoas conhecedoras e verdadeiramente amantes do Arquipélago podem sentir é a náusea pela ignorância, pelo atrevimento... pela mesquinhez do ridículo.

Como foi possível o que ali aconteceu? Associando Cabo Verde à Guiné nas negociações com o Paigc e estabelecendo um clima de terror no Arquipélago, com grande orientação e apoio de grupos marxistas da Armada. Para a população do Arquipélago o sucedido é alcunhado de «o Terremoto". E dizem ali que Judas não só vendeu Cristo como também o Arquipélago...

Como se apresenta o futuro?

Dezenas de rapazes e raparigas cabo-verdianos estudam na Rússia. Armamento russo foi desembarcado em quantidade em S. Vicente. Técnicos (maus - diz-se) cubanos exercem funções no Arquipélago. Entendimentos sobre pesca com soviéticos parece estarem a revelar-se, tal como aconteceu na Guiné, essencialmente favoráveis aos soviéticos. E talvez, como na Guiné, Cabo Verde encontre nos seus irmãos portugueses os seus melhores amigos...

Assente, com o tempo, o muito pó da "revolução", desvanecida certa onda racista que a acompanhou (se a não originou), renovados tipos de associação cultural, económica e política no mundo que foi português, talvez venham a impor-se como necessárias ao bem-estar das populações. Se, em Cabo Verde, a influência soviética, ou outra que a acompanhe ou a substitua, puder ser ultrapassada, apesar de compromissos que procurem enredar o Arquipélago e da marxização que se há-de tentar, novas aproximações são de esperar entre Cabo Verde e o Rectângulo. São mais de 500 anos de convívio comum íntimo, o que é diferente de três ou quatro anos de revolução desintegradora e destruidora. Julgamos saber que uma cidadania comum bilateral chegou a estar na intenção de certos responsáveis do Arquipélago, em negociações que decorreram já depois do 25 de Abril [A cidadania comum teria sido repelida pelos responsáveis do Rectângulo... Racismo dos ditos "descolonizadores"?].

Portugal representava para Cabo Verde, antes do 25 de Abril, a possibilidade de realização pessoal dos seus filhos como cidadãos completos em todas as parcelas do seu país. Cabo Verde era para Portugal um marco concreto da sua História, uma obra física e cultural da sua gente, um valor geo-estratégico. Mais que os cabo-verdianos a desejar e a obter a "independência" foram os "revolucionários" marxistas do Rectângulo que, por ideologia e por racismo, entenderam ver-se livres do Arquipélago e do encargo que em termos materialistas representava, colocando simultaneamente o seu valor geo-estratégico na esfera de influência soviética [Alguns diários de Lisboa, em meados de Novembro de 1977, inseriram reportagens sobre Cabo Verde, feitas em prol de um "Programa de Emergência para 1977-78 a subsidiar pela solidariedade internacional". As meias verdades condicionadas, a manifesta ignorância e o ódio vesgo ao passado, revelados nessas reportagens, constituem um tristíssimo exemplo de certo jornalismo desinformador destes nossos tempos]».

Silvino Silvério Marques (Artigo publicado no semanário «A Rua», sob o título «O que Cabo Verde representava para Portugal», em 17 de Junho de 1977).


«Noite de "Facas longas"


O 23 de Março de 1978 é outra data inesquecível deste período negro. Foi o último dia em que arrastaram das celas presos destinados ao fuzilamento, o que sucedia desde o 27 de Maio do ano anterior. A maioria esmagadora era de presos políticos. O vizinho de cela de João Faria contou que, nesse dia, este sofreu um brutal interrogatório. "Eram 5 e 25 da madrugada. Faria regressa à sua cela. Transfigurado pela violência, o seu corpo curva-se sobre si próprio e os passos são curtos como quem reaprende a andar. A minha cela está aberta, mas eu não consigo convocar a coragem necessária para o visitar. Apenas o posso avistar, por entre o escuro da cela, imóvel e espojado no chão. Só de manhã consegui obter informações concretas, junto do Faria, acerca dos vandalismos nocturnos". Tinha acontecido um "teatro de terror" assistido pelo vice-ministro da Defesa, comandante João Luís Neto (Xietu), o director geral de Segurança, comandante Rodrigues João Lopes (Ludy) (ambos do CC do MPLA), e outros agentes e militares. Os presos eram 16, na sua maioria jovens universitários. Sofreram maus tratos e insultos com pistolas, matracas, correias de ventoinha, canos de plástico. "Todos chegaram ao fim completamente ensanguentados com traumatismos e escoriações, na cabeça, na cara, nos ouvidos, no tronco, nos membros. Um dos jovens já não conseguiu permanecer sequer cinco minutos de pé". Eram militantes da OCA [Organização Comunista de Angola] e do NJS [Núcleo José Stalin]: António Carlos Salvador Júnior, Fernando Paiva, João Faria, Dulce Fonseca, Manuel Ennes Ferreira, Armando Lima Teixeira, Domingos João Baptista Tchipongue, Rui Barros, Nelson Pestana, Eduardo Dudu, António Costa Silva, Simão Cacete, Manuel Campos Duarte e Luís Fernandes do Nascimento.






O penúltimo elemento do Comité Central da OCA em liberdade, Fernando Paiva (Sanga), foi descoberto neste 23 de Março de 1978, após muitos meses de clandestinidade e de ter saído incólume da caça ao homem no pós-27. Apesar do risco, preferiu ficar em Angola e rejeitou uma oportunidade de fugir do país. "Eu ia na rua, a meio de me transferir de uma casa para outra. Havia recolher obrigatório. Nós éramos muito ingénuos, não tínhamos experiência de clandestinidade [...], andávamos sem documentos para não sermos identificados [...] e fui preso por acaso. Na Casa da Reclusão, fiquei quieto na confusão. Eles não sabiam quem eu era. Mas tive o azar de um tipo me reconhecer e dizer em voz alta, 'olha o Sanga!' Fui preso 'na noite das facas longas' [Referência à noite de 30 de Junho de 1934, em que Adolf Hitler mandou executar dissidentes do seu partido]. É a última leva de presos, a última noite que os levaram para os matar. Nesse dia tenho um 'comité' de recepção: o Lúcio Lara, membro do BP do MPLA, o comandante Xietu, e o Ludy Kissassunda, director da DISA. O Xietu diz-me: 'Ó Sanga, tu envolveste-te nisso?' Eles tinham alguma esperança em mim, porque era militar. [...] Levaram-me logo para o isolamento".

Se Fernando Paiva fosse preso mais cedo, o seu destino teria sido fatal. Descreve: "Um dos meus carrascos, o José Vale, chegou a dizer-me: 'Tu tiveste sorte, se a gente te tivesse apanhado no 27 de Maio tinha-te limpo o sebo'. Mostrou-me a minha ficha que tinha um 'PM' em cima, que queria dizer Pena de Morte. Eu já estava condenado, ia ser fuzilado, também. A minha sorte é que eu só sou preso depois do 27. Se fosse antes, já cá não estava. [...] Fui torturado de todas as maneiras e feitios. As formas mais sofisticadas e mais brutais eram o 'n'guelelo', a 'xinqualha', e o 'faz falar' era um barrote de madeira com que eles davam nas articulações [...]. Apanhavam-nos distraídos, vinham com o barrote e zás!, uma marretada nos joelhos. Dá cabo das rótulas e por aí fora. Terrível. [...] Não fiquei com sequelas visíveis. Ser comando ajudou-me. Alguns ficaram malucos. [...] Apagaram cigarros na minha boca e nariz [...], não se faz ideia do que aquilo dói. A pior tortura foi a 'xinqualha'. O 'n'guelelo' também é terrível, porque às tantas pensamos que a cabeça está a estoirar. Na 'xinqualha', que os brasileiros chamam 'pau-de-arara', atam os pés e as pernas pelos dedos dos pés, com os braços para trás - ainda hoje tenho sinais de cordas no corpo. Puxam as cordas e ficamos a balançar. Eu perdi parte da sensibilidade nas mãos por causa disso".

Francisco Antas deu-nos um curto testemunho. "Não há nada que me constranja em falar da minha prisão, antes pelo contrário. Sou de opinião que nada deve ser ocultado, mas recordado no sentido de despertar uma visão realista e crítica dos processos repressivos no pós-independência. Fui preso quando tinha acabado de completar 19 anos, na última vaga de prisões dos supostos integrantes da OCA, na madrugada de 22 de Março de 1978, véspera da famigerada 'noite das facas longas'. Nessa noite, com os algozes da DISA, sob orientação sádica do Zé Vale, passei por uma prolongada sessão de tortura, psicológica e física, com agressões, imobilização com cordas de sisal que gretavam braços e pernas, e pelo famigerado 'n'guelelo'. Permaneci nos cárceres de São Paulo, na cela 7 da 'automotora' e nas celas colectivas E e F, as casernas, até 22 de Janeiro de 1979".

Luiz Araújo foi detido nesse Março de 1978. "Eram 23 ou 24 horas quando batem à porta da minha casa uns dez homens da DISA, armados. Era o José Vale, o António Carlos, o Miranda e outros militares. Apanharam-me papéis, dois ou três apontamentos recentes que ainda não tinham ido para lugar seguro. Não apanharam a maior parte dos documentos políticos. Não soube como chegaram a mim", recorda Luiz Araújo. Ele nunca foi membro da OCA, apenas "funcionava na mesma frequência [...], convivia com alguns". Na prisão de São Paulo, Luiz Araújo conheceu a tortura. "Fui espancado logo à chegada e nos primeiros meses, enquanto decorria o interrogatório para obterem declarações. Bateram-me muito com o 'faz falar' nas costas, pernas, sola dos pés, na cabeça. Batiam com os punhos. Também fiquei uns tempos isolado [...]. O Júlio Rasgado, ex-OCA, um dos presos que virou polícia, e o José Vale, interrogavam-me regularmente. [...] Tive muito medo. Como já não acreditava na luta política pacífica, estava a pensar em criar alguma resistência clandestina, de tipo militar, guerrilha urbana. Isso não tinha nada a ver com a OCA, estava em desenvolvimento paralelo na minha cabeça. Realizei actos preparatórios, tinha algum armamento escondido. Tive sempre medo, à espera que me interrogassem sobre isso, porque, se não passei para essa acção, observei-a a camaradas, a quem não falei de forma taxativa, mas o suficiente para uma eventual adesão. Inclusive, entreguei 'material' para guardar. Quem fosse ou tivesse sido militar, era normal ter armas. Eu tinha armas e munições. Vivi atormentado à espera que me chamassem para esse interrogatório, porque podiam ter apanhado uma pontinha da informação. Não apanharam, esse segredo ficou bem guardado. Se fosse descoberto pela DISA, seria acusado de alta traição por ter sido militar [...] Depois, desistiram da investigação, e não voltaram a interrogar-me, até ser solto". Acentua Luiz Araújo: "Não fui um herói, se comparado com outros".

Entre os episódios na reclusão, vários entrevistados mostraram-se impressionados com o do Sebas, Sebastião de Aragão Neto, pela sua resistência face à agressividade dos guardas prisionais. Domingos Lira, que esteve preso com ele, conta: "O Sebastião foi das pessoas que ficou durante mais tempo na cela do castigo máximo, pequenina, com uma única pessoa, exígua, estavam lá os que eram extremamente perigosos, indivíduos que resistiram a tudo e a todos, ou desafiaram a polícia na sala de tortura. Ele ficou quase todo o tempo, um ano, dois, no isolamento". Rui Ramos, quando se lembra dele, associa-o a um artigo que escreveu, cujo conteúdo criticava "os camaradas que vêm das matas e se aburguesam em Luanda". Foi única a brutalidade que Sebastião de Aragão conheceu. Num dos dias de "pancadaria", ele apareceu com "a boca num estado deplorável", "os dentes abanavam praticamente todos, uns estavam partidos, outros tortos e desalinhados". Meses depois, "continuava a não poder comer e passava as noites a falar". Alvo de torturas frequentes, Sebas ficou muito doente, com "distúrbios psíquicos cada vez mais evidentes". Chegou a deslocar-se "com as mãos e os pés no chão". Foi libertado a 5 de Junho de 1980, após cerca de 30 meses de cadeia».

Leonor Figueiredo («O Fim da Extrema-Esquerda em Angola. Como o MPLA Dizimou os Comités Amílcar Cabral e a OCA - 1974-1980»).







«Iko Carreira, afirma que o círculo dos amigos de Nito estava muito ligado ao Partido Comunista Português. E não acredita na inocência dos comunistas. Acho que o PCP esteve por detrás. Aliás, segundo ele, não seria só o PCP, pois, como vimos, também a União Soviética, através de dois secretários do adido militar, estava ligada ao golpe.

O Jornal de Angola acusa os frustrados de fracassadas revoluções a quem demos abrigo, proclamando-se partidários de partidos que os negam como militantes. Agora, os acusados passaram a ser, também, militares de Abril, exilados em Angola depois do 25 de Novembro.

No dia 1 de Junho de 1977, num discurso proferido na recepção a uma delegação moçambicana, Agostinho Neto declara que radicais angolanos e extremistas portugueses mantinham e mantêm ligações muito intensas.

A Informação do Bureau Político do MPLA afirma, por seu lado, que à semelhança de outros países africanos também Angola conheceu uma dolorosa experiência com as chamadas esquerdas do antigo país colonizador [...].

Os portugueses eram referidos a cada passo.

Num discurso proferido num comício no dia 12 de Junho de 1977, Agostinho Neto faz questão de declarar:

Anunciaremos os nomes dos portugueses que estão presos neste momento, porque também estavam a colaborar com o golpe de Estado [...] Pertenceram a partidos de esquerda em Portugal. Acusa também os militares de Abril: [...] Fugiram de Portugal e vieram pedir-nos asilo político, dizendo que eram progressistas. Nós concedemos o asilo político [...] A sua resposta foi entrar em conspirações contra o MPLA».

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus («Purga em Angola»).


«Segundo Timóteo Macedo, o seu camarada Sebastião ficou maluco com as torturas dos cubanos, "que não fazem lembrar os tempos da PIDE". Também Justino Pinto de Andrade confessou: "A violência a que eu assisti na cadeia pós-independência em nada se compara com aquilo a que assisti no período colonial. E isso para mim é muito chocante.

(...) O pai de Dulce Fonseca, desesperado, a 13 de Dezembro de 1978, implorava ao PR português, Ramalho Eanes, que intercedesse pela filha, então com 26 anos, presa "por ter pertencido à OCA", depois de ter sido dos quadros do MPLA e trabalhado na Organização da Mulher Angolana. Lembrou a saúde frágil, "tuberculose [...] em estado avançado de evolução". Ele pretendia que a filha fosse para Portugal "com a máxima urgência, de modo a poder tratar-se e salvar-se da morte que sobre ela impende na flor da idade. Este pai já chamara a atenção, quando a imprensa publicou a proposta que fez à Embaixada da República Popular de Angola, em Lisboa, oferecendo-se em troca da libertação de Dulce. Estava disposto a "seguir sob prisão para Angola, sob a tutela da mesma escolta que trouxesse a minha querida filha para Portugal".

(...) As cadeias angolanas abarrotavam, nesta altura, de jovens negros, mestiços e brancos, angolanos e portugueses, representantes de uma geração bem preparada, mas que, para o MPLA, não passava de "esquerdistas traidores"».

Leonor Figueiredo («O Fim da Extrema-Esquerda em Angola. Como o MPLA Dizimou os Comités Amílcar Cabral e a OCA - 1974-1980»).



CONTESTANDO A CHAMADA «DESCOLONIZAÇÃO»


Entrevista concedida a João Fernandes e publicada no semanário «O País» em 21 de Maio de 1976.


Durante os seis anos que governou Angola, Silvério Marques orientou (e não poucas vezes teve que impor) uma política de integração racial e de promoção social das populações. O entrevistado de hoje bem se lembra das reclamações de alguns que hoje se encontram ainda em Angola e de muitos que agitam o seu progressismo por Portugal contra a maneira como Silvério Marques «protegia escandalosamente os pretos». Os mais aguerridos espalharam até, quando terminou o seu mandato, que caíra em desgraça «porque apertara a mão a um branco»...

Tudo o indicava, portanto, como o homem certo para governar Angola depois do 25 de Abril. Isso mesmo teve que ouvir (embora algumas vezes tentasse tapar os ouvidos) Almeida Santos que foi a Angola fazer uma mini-consulta sobre o nome mais desejável para governador-geral. Sabe-se que não durou mais de 35 dias a sua estada em Angola. E sabe-se também a razão fundamental deste facto: Silvino Silvério Marques não permitiria nunca que sob o seu comando se descolonizasse da maneira «exemplar» que outros desejavam.

Por tudo isto e não só, justifica-se largamente a entrevista que publicamos hoje e que aqui e ali é, um dedo acusatório contra alguns seus antigos companheiros de armas. Mas que o não quiseram acompanhar em verticalidade e patriotismo.

P. - Logo após o 25 de Abril de 1974 o nome do general era indicado como o do futuro governador-geral de Moçambique. As semanas passaram-se e veio a nomeação num ambiente carregado de tensão. Angola vivera 50 dias sem Governador-Geral e a manipulação de tropas estranhas à colónia era evidente. Poucas semanas depois V. Ex.ª era chamado a Lisboa começando depois uma nova e muito acelerada fase da descolonização. Terá chegado a altura de relatar o que foi esse período?

R. - Dois ou três dias após o 25 de Abril eu, que nada tivera com o Movimento, e que tinha ideias a respeito do Ultramar não coincidentes com as do gen. Spínola, fui chamado à Cova da Moura. Na presença dos elementos da Junta de Salvação Nacional (ausentes os generais Jaime Silvério Marques e Diogo Neto), o gen. Spínola convidou-me para seguir para Moçambique, como Governador-Geral e Comandante-Chefe.

Era tempo de grandes e rápidas decisões. Aceitei e escolhi como colaboradores directos o gen. Franco Pinheiro e o cor. Silva Sebastião, este, então, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

Não parti imediatamente como se previa por, conforme me foi dito pelo gen. Costa Gomes, se haver verificado que a nomeação dos Governadores do Ultramar era, segundo o Programa do Mfa, da atribuição do Governo. Teria portanto que aguardar a constituição deste. Tal prescrição do Programa e a demora que impôs na nomeação dos Governadores, foi responsável por perigosa degradação da situação do Ultramar, após o 25 de Abril.

Enquanto aguardei a nomeação, fui estudando os problemas mais instantes de Moçambique. Falei com o Governador-Geral cessante, eng.º Pimentel dos Santos, e tive um ou dois contactos com a o alm. Rosa Coutinho que era o elemento da Junta que superintendia nos assuntos do Ultramar. Recordo-me de me ter dito que embora a sua opinião não tivesse qualquer influência na decisão da Junta, já tomada, entendia que deveria ser assegurada a aceitação das populações aos Governadores indigitados... De facto, havendo entretanto o gen. Costa Gomes visitado Moçambique, trouxe a informação de que eu não era a pessoa desejada para governar aquela província. Quando mais tarde, o alm. Rosa Coutinho aceitou suceder-me em Angola, creio que já não pensava na necessidade do acordo prévio das populações...

Uma das pessoas que logo soube da minha aceitação para Governador-Geral de Moçambique foi o eng.º Jorge Jardim. Embora não tivéssemos grande intimidade, conhecíamo-nos de Lisboa, Angola e Moçambique e tínhamos alguns bons amigos comuns. Pediu-me um encontro que teve lugar, como refere no seu importante livro «Moçambique Terra Queimada», agora editado, em casa de pessoa amiga.












Tomei, então, com surpresa, conhecimento dos seus contactos com o Presidente Kaunda e, através deste, com a Frelimo, e foi-me traduzida a versão inglesa do «Programa de Lusaka». Considerei importantíssimas as conversações tidas pela eng.º Jorge Jardim as quais dando a conhecer o pensamento dos seus altos interlocutores e, até certo ponto, vinculando-os, não comprometiam os responsáveis portugueses que, após o 25 de Abril, até eram outros. Pensei que os pontos estabelecidos no «Programa» seriam um mínimo de que se poderia partir para formular um acordo.

Relatei ao gen. Spínola toda a conversa, entreguei-lhe um exemplar do «Programa de Lusaka» que entretanto me havia sido enviado e referi a importância de conhecer e estudar o documento, pois de outra forma futuros negociadores (e eu admitia-os isentos) partiriam do zero e correriam o risco de nem aqueles pontos obterem.

Mais tarde, conversámos ambos, o eng.º Jorge Jardim e eu, com o gen. Spínola acerca do «Programa de Lusaka» e do eventual papel a desempenhar pelo eng.º Jorge Jardim.

O regresso do gen. Costa Gomes de Moçambique e a convicção que trazia de não ser eu a pessoa indicada para governar a província, fez-me perder o contacto com o assunto que, infelizmente, foi conduzido por forma inábil e levou a resultados desastrosos.

Após a viagem, de certo modo agitada, do Ministro da Coordenação Interterritorial a Angola, fui por este convidado para Governador-Geral daquela Província. Estava muito ligado a Angola por razões afectivas. Julguei que lhe podia ser útil e ao País. O Programa do Movimento das Forças Armadas tinha sido muito esclarecido pelas declarações do gen. Spínola, do gen. Costa Gomes e do Dr. Almeida Santos quanto à política que se ia seguir no respeitante ao Ultramar. Era intenção referendar o destino de cada província, devendo entretanto obter-se Constituição que legalmente o permitisse. Após a demissão que a Revolução dos Capitães implicava, preparar o referendo afigurava-se-me missão patriótica que deveria ser aceite. Seria mesmo um último serviço a prestar à província que tanto amava e ao país. Aceitei.

E logo, pensei, e disse-o ao gen. Spínola, que convidaria os mais importantes responsáveis dos partidos socialista e comunista a percorrer Angola para que conhecessem no real aquela terra e a obra nela feita, e corrigissem, se fosse caso disso, ideias que somente a ignorância do concreto poderia justificar.

Escolhi os elementos do meu elenco governativo, sem dificuldade de maior, com o Ministro de Coordenação Interterritorial. Apenas relativamente a um dos Secretários Adjuntos tive certa oposição no nome que propus. Combinámos que em Angola eu sondaria o meio e, em conformidade manteria, ou não, o meu ponto de vista. Assim vim a fazer com prevalecimento da minha opinião. Propositadamente, dentro do espírito do Programa do Movimento que apontava para Governos de civis, que não de militares, só recorri a um militar, já introduzido nas lides do novo Governo em Lisboa. Perante certa manipulação do Movimento Democrático de Angola (guarda avançada do Mpla) que, com o Movimento Democrático de Moçambique, constituiu exemplo tristíssimo de acção anti-nacional naqueles tempos tão delicados, o Ministro da Coordenação Interterritorial sugeriu-me, a certa altura, que substituísse duas pessoas já convidadas. Tratava-se de elementos que conheciam bem Angola e os problemas do Ultramar, muito competentes e sérios, como reconhecera o ministro quando da sua escolha. Entendi não transigir. E as nomeações mantiveram-se.

Logo após a minha chegada a Luanda, reuni com todos os Governadores de Distrito. Nenhum, praticamente, me era estranho. Trocámos impressões sobre a situação e disse-lhes que, de harmonia com as conversas havidas com o Ministro da Coordenação Interterritorial, se realizariam, dentro de pouco tempo, eleições para as Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais. Até lá, só por razões que o justificassem caso por caso haveria mudanças nas autarquias. Os governadores dos Distritos manter-se-iam, em princípio, até que as novas Câmaras estivessem constituídas. Desejava evitar a todo o custo o desmantelamento da administração que, nessa altura, já estava em pleno no Portugal europeu.




Convoquei, também imediatamente, o Conselho de Defesa. Contra as minhas indicações, ali fui encontrar, além dos seus membros, uma dezena de rapazes do Mfa. Não os mandei retirar por considerar isso inamistoso para os generais que os haviam trazido. Mas durante a sessão tive ocasião de repelir algumas pretensões que formularam e constituíam inovações relativamente às estruturas governativas de Angola, não previstas no Programa do Movimento das Forças Armadas. Após essa primeira reunião do Conselho de Defesa, outra teve lugar, creio que duas semanas depois, e decorreu com normalidade. E, praticamente não tive outras relações com o Mfa, mas apenas com alguns oficiais das FA para tratar casos específicos da administração.

Passou cerca de um mês durante o qual se instalou o Governo e se começou a trabalhar com interesse, no meio de certa agitação laboral e estudantil, importada de Lisboa, a partir do 25 de Abril.

Surgiram então os incidentes do Cazenga: morte de um taxista e retaliação que as Forças Armadas (e o seu Movimento) alertadas, não conseguiram evitar, a qual vitimou 7 africanos e 1 europeu. Estes incidentes foram logo rotulados pela esquerda portuguesa de «massacre». Seguiu-se a instalação da guerrilha nos muceques entre os movimentos e contra os europeus. Foi nessa altura, e somente agora o soube, que o Mfa, responsável com as Forças Armadas pela ordem pública e pela acção militar, nos muceques, como no mato, apresentou exigências ao Comandante-Chefe que este enviou para Lisboa acompanhadas de carta sua. Entendeu-se de nada se me dar conhecimento. Falando-se na existência de tensão entre o Mfa e o Governador-Geral (tensão que eu de todo desconhecia) insinuava-se uma explicação para os graves incidentes dos muceques, facto novo e perturbador para o Mfa e para as Forças Armadas. E aproveitava-se para exigir a substituição do Governador-Geral, de todos os Governadores de Distrito, a prévia aprovação do Gabinete do Mfa de Angola para novo Governo, a preencher por elementos locais e, ou, militares e ainda, a instalação de um Conselho de Estado, composto, em maioria, por mfa's de Angola. Em Lisboa, o cor. Vasco Gonçalves ascendia a Primeiro Ministro. Os jovens militares sequiosos de poder civil, em oposição ao espírito do Programa, haviam-se instalado no Governo. Os rapazes de Angola, procuravam seguir aquelas pisadas e ao mesmo tempo justificar a instalação da guerrilha nos muceques (a qual porém só cresceria e não mais seria desalojada até à intervenção cubana), insucesso que surgia ao fim de 13 anos de guerra e apenas quatro meses depois da revolução da paz...

Havia ocorrido a primeira intentona de Angola. Sabia-se que comigo o desmantelamento e a comunização da província se não faria e a consulta à população seria um facto.

E veio a Junta Governativa com o almirante Rosa Coutinho. Com o recrudescimento da guerrilha nos muceques e já sem a justificação das tensões Mfa/Governador-Geral, o desmantelamento da administração e da economia processou-se a ritmo acelerado, conduzindo o «processo» à mais desastrosa e vergonhosa retirada de África do nosso tempo.

Não é preciso ser imaginativo, depois da tão tristíssima experiência de «golpadas» a que fomos sujeitos desde 25 de Abril, para entendermos que, em Angola, tal sistema estava progredindo e culminaria com a invasão da província por cubanos, acompanhados de técnicos soviéticos, com utilização de Santa Maria como aeroporto de escala. Já no tempo do almirante Rosa Coutinho outra «golpada» no género da que me envolveu teve lugar em Cabinda. Tropas portuguesas (?), comandadas por gente que anda por aí, bandeou-se com o Mpla, ainda inimigo, prendeu o Governador do Distrito, oficial general, e alguns dos militares seus colaboradores, e entregou Cabinda ao controlo do Mpla. O Governador saiu de Angola e tudo, e todos, ficaram impunes. Entretanto dizem-me que, em Cabinda, os cubanos que reforçaram ou substituíram os mpla's morrem diariamente a um ritmo assustador.

P. - Durante os anos em que foi Governador-Geral de Angola e no curto período em que ali esteve depois de 1974 conheceu certamente algumas figuras influentes na República Popular de Angola. Isso permitir-lhe-á fazer senão profecias pelo menos uma análise das actuais relações entre a RPA e Portugal...

R. - A menos que Portugal se comunize, hipótese que não pode ser posta de parte, face à infiltração pelo PC nos variados sectores das estruturas do país, à extrema militância dos seus membros (verdadeiros adeptos de nova religião), aos vultosos recursos materiais que evidencia dispor numa sociedade subornável como nunca, aos conselheiros experimentados que obviamente o apoiam, à importância de Portugal como testa de ponte para a comunização da Península, e através desta, para o controlo marítimo da Europa, e ao exemplo de todos os países de Leste, a menos que isso aconteça (e um dia poderemos acordar com um 25 de Abril em que a leitura do Programa vire definitivamente comunista), creio que as relações com o antigo Ultramar português se manterão, durante muito tempo, com altos e baixos, no nível actual. É que, quanto nos pode ser dado concluir pela meditação dos factos e pela leitura do que vai sendo publicado, tudo esteve preparado para a marxização de todo o antigo conjunto português. Com resultado diferente, o 25 de Novembro teria sido o remate final de uma acção global que se evidencia programada.






Embora conhecendo algumas importantes figuras da actual administração de Angola, isso pouco adianta na visão que tenho acerca das relações dos dois países. Duvido mesmo, seriamente, quanto à independência real que essas figuras hoje possuam para encaminhar as relações dos dois Estados de forma diferente da que se subordine à batuta do imperialismo soviético.

É claro, porém, que tal como a comunização do nosso país constitui uma ameaça com que temos que contar, também a evolução não comunista do antigo Ultramar é possível e até natural. Na verdade, Angola, Moçambique, Cabo Verde e a própria Guiné, sem falar de Timor, estão muito longe, segundo as informações que me chegam, de estabilização. As soluções que sofreram foram demasiado impostas, nalguns casos criminosamente impostas, para terem generalizada aceitação. A dissonância entre governados e governantes é grande e tem-se agravado. Angola é talvez o caso limite: as suas cidades estão ocupadas por forças estrangeiras, estranhas à região e ao povo. Se os angolanos, na sua quase unanimidade, até ao 24 de Abril, se sabiam, e orgulhosamente se sentiam, portugueses, nem um se sente cubano ou russo. Trata-se de ocupação. E isso não agrada ao povo nem à parte sã das suas elites. Em Moçambique a situação não se afigura mais estável. Cabo Verde, o caso mais notável da aproximação indirecta soviética (levada a efeito através dos cabo-verdianos da Guiné que ali eram malquistos) atravessará horas amargas se sobreviver uma seca, pois cada vez o mundo está menos receptivo à fome dos outros. A não ser que o imperialismo soviético que, por agora, se limita, discretamente, a receber, instruir e doutrinar jovens cabo-verdianos que hão-de, no futuro, ultimar, por dentro, a comunização do Arquipélago, entenda poder ostensivamente intervir e montar a mais importante base aero-naval em relação ao Atlântico Sul. Mas então, o Arquipélago continuará Arquipélago, mas deixará de ser Cabo Verde! Na Guiné, segundo me dizem, além das surtidas sofridas pelo Paigc, na terra dos Fulas, só mandam os fulas.

Estamos portanto longe de situações de paz. E independentemente da personalidade dos responsáveis, enquanto as divergências ideológicas dos Governos do antigo Ultramar português com o Governo de Portugal forem as que em Portugal se verificam entre os partidos ditos democráticos e os que por estes não são considerados como tal, creio que as relações se manterão no nível actual, com oscilações ocasionais para melhor e para pior. Quanto mais tempo decorrer nesta situação de impasse, menores serão as probabilidades de evitar que todo o vazio deixado pelo criminoso atirar ao mar dos portugueses (de todas as etnias) seja colmatado pelo mundo ávido de preencher os lugares que aqueles ocupavam. À medida que o tempo passa, mais o antigo Ultramar se vai ausentando de Portugal obtendo algures, em todo o mundo, o que cada vez Portugal mais dificuldade tem de lhes proporcionar: apoio material e de quadros. Que devaneio a ideia da «ponte» que o país seria, de que nos falavam, ao mesmo tempo que o país se arruinava, e que os melhores quadros eram estupidamente enxotados... Que ingenuidade louca supor um neocolonialismo ideológico reflectido de Lisboa por concessão do Leste!...

P. - O sr. general conseguiu sempre criar inimizades que poderia evitar. O seu livro propondo uma maior integração do país que então era Portugal desagradou fortemente a Marcello Caetano. As suas ideias sobre como descolonizar não jogaram também muito com as de quem tinha ideias «exemplares» a respeito. Quer comentar?

R. - Em conformidade com o que considero a mais pura, original e criativa (essa sim humanista, internacionalista se o quiserem) interpretação portuguesa, para mim, e para outros que foram grandes administradores do Ultramar (Norton de Matos, incluído) o outro nome de «descolonização» é integração, repito integração, igualdade completa de todas as etnias, em deveres e em direitos, acesso livre, política que, em 24 de Abril, decorria praticamente com espontaneidade, e cujo ritmo eu pensava que poderia ser acelerado por estruturas adequadas.

Nada tenho que alterar ao conceito que perfilhei (sobretudo em face do desastre resultante das soluções adoptadas) e que concretizei, com devoção e autenticidade, em todos os actos da minha vida militar e civil. Os que emergiram, após a revolução, feridos de objecções de consciência (que quase sempre eram um eufemismo de cobardia), escrevendo ou cantando negaram a Pátria, os seus Heróis, os seus Feitos, e que foram envergonhados pelo Presidente Senghor, quando em Lisboa (mais Português que eles), e até (quem diria!) pelo próprio dr. Agostinho Neto, no Alvor (1), não podem compreender esta concepção. Como a não compreenderão os sergianos, que, perdidos os contactos com o Ultramar, numa visão que se manteve eurocentrista e racista, não entenderam que Fixação envolvia já todo o espaço português, que Transporte era agora todo interior. Que Retorno seria Refúgio! Que Portugal ultrapassara Sérgio!

Embora a minha concepção fosse diferente da do gen. Spínola, as estruturas da sua federação eram muito semelhantes às da minha integração. A grande diferença estrutural consistia em que, para mim, os orgãos de soberania para todo o país seriam também orgãos de soberania para a parcela (ou parcelas) onde se localizassem. E não considerava obrigatória uma centralização no Portugal europeu. Para o gen. Spínola, no Portugal europeu os orgãos de soberania duplicavam-se: para todo o conjunto e para ele próprio (2). Do ponto de vista conceptual, à «Guiné para os guinéus» do gen. Spínola, correspondia a minha ideia de toda a parcela de Portugal para todos os portugueses, todos iguais em todo o espaço português.





Quantas vezes pensei que as ideias do gen. Spínola correspondiam a Portugal visto da Guiné. E que ele precisava de ter sentido todo o nosso país, com alma de governante, também de Angola, ou de Moçambique, ou de Cabo Verde, ou do Oriente. O livro que teria escrito, nessas circunstâncias, seria outro e, talvez também, outra a história contemporânea da nossa Pátria.

A página 243 do «Portugal e o Futuro», o gen. Spínola escreveu: «Ao terminar o nosso depoimento desejamos esclarecer que não nos julgamos detentores exclusivos da verdade. Outras soluções existirão, porventura mais válidas, e por isso entendemos que o problema em causa, pela sua transcendência e projecção nacional, deve ser amplamente debatido em ordem a esclarecer convenientemente a Nação sobre o esquema que deve presidir aos seus destinos». E estas palavras, segundo me disse ao oferecer-me o seu livro, só foram dirigidas à tese que eu perfilhava. Significa isto que não concitei só inimizades com a minha «Estratégia Estrutural Portuguesa».

Um dia o Dr. Marcello Caetano observou que eu com a minha concepção ultramarina não pretendia desservir a Nação, mas, como ele, servi-la. E, com humildade, interrogou: Qual de nós terá razão?

Isto não obstou a que tendo, no seu tempo, reunido em «Estratégia Estrutural Portuguesa» cerca de 340 páginas de texto já difundido durante o governo do Dr. Salazar e apenas umas 20 de texto original, entendesse mandar instaurar-me um inquérito militar. Não cheguei a ser ouvido. O inquiridor, creio, limitou-se a ler o livro. Nada resultou contra mim. De resto somente vim a saber do incidente, muitos meses depois, quando me encontrava em Moçambique. Disseram-me que o inquiridor, gen. Carrasco, na sua conclusão, lamentara não ter sido o autor do livro, pois nisso teria tido muito orgulho...

Se publicasse as manifestações de concordância com a minha tese, recebidas na altura em que publiquei «Estratégia Estrutural Portuguesa», deixaria embaraçadas algumas personalidades destes tempos confusos...

De qualquer forma, era evidente que na última passagem por Angola os meus conceitos estruturais estavam ultrapassados pelo desencadear da revolução. E assim o declarei em Luanda, embora sem abjurações, e salientando que o meu pensamento e a minha acção de anos atrás estavam implícitos no ideário do Movimento, o que segundo nessa altura era legítimo entender, lido o Programa e conhecidas as interpretações publicamente expressas, quanto ao Ultramar, pelos mais altos responsáveis.

Uma coisa estava então ao nosso alcance fazer: o referendo. Outros o fizeram em África. Para isso era necessário que os políticos efectivamente o quisessem fazer, isto é não estivessem comprometidos para o não fazer. E que os responsáveis militares e o Mfa, se opusessem a que as tropas se convertessem em bandos, como tão generalizadamente aconteceu. E os militares sabem como isso se faz: é a sua profissão.

Como, para muitos, «descolonização» era sinónimo de comunização, e revolução significava desmantelamento e destruição, o referendo não convinha: exigia que se evitasse o desmantelamento, a destruição, e não conduziria à comunização.

O resultado da «descolonização exemplar» está à vista. Que ninguém tenha a desfaçatez de perguntar só agora como se deveria ter feito. Se o não sabiam por que se meteram nisso? Por que o não perguntaram antes? Ninguém será julgado pelas intenções (que mesmo essas se não conhecem), mas pelos efeitos bem patentes e que esses sim dificilmente poderiam ser mais calamitosos!

P. - Estes últimos quinhentos anos deram a Portugal a ideia de ser um país diferente. Agora se regressámos ao espáço do século XV (talvez com a diferença de sermos agora 9 milhões e não o milhão de então) algumas coisas terão que ser revistas. Entre elas, certamente, as Forças Armadas. Para além da sua (esperemos) episódica importância na vida política, qual lhe parece que seja o papel reservado às Forças Armadas Portuguesas?

R. - Pessoa amiga dizia-me há pouco tempo que «hoje há portugueses, mas já não há Portugal...». Trata-se de um sentimento comum a muitos de nós.


O abandono do Ultramar que, por ironia, acompanhou as concepções de um marinheiro, António Sérgio, e foi materialmente concretizado em Angola, Moçambique e Cabo Verde (províncias que com as Ilhas eram os pilares de uma estratégia oceânica e grande justificação da importância da nossa Armada e da ternura que por ela tínhamos) também por marinheiros, corresponde à destruição do projecto de uma nação. Terão de passar gerações para que os homens nascidos no que foi Portugal se adaptem à nova configuração espiritual e física de uma sua nova Pátria. E terão de surgir pensadores e estadistas capazes de encontrar novo projecto que congregue o novo Povo no novo País, distinta das outras nações. Isso não acontecerá, se acontecer, sem graves crises que já se esboçam: as secessões latentes nas Ilhas, no próprio Continente e, claro, uma vez mais, o iberismo. Teriam os capitães do Movimento, os políticos que os instrumentalizaram e os generais que os acolheram previsto o desastre a que fomos conduzidos? Conseguem manter-se de consciência tranquila? Com tão grande infortúnio causado a todo um povo, de todas as etnias, responsáveis de contexto moral rígido certamente correriam o risco de ultrapassar o limite do desespero. Os responsáveis civis ainda se procurarão consolar com a falsa justificação que sem cessar proclamam em vários idiomas: «os militares tinham perdido a guerra». E podem mesmo tentar construir doutrinas sobre a derrota, que tocaria apenas os militares, que não sobre a traição que toca a muitos. Mas os militares, esses não têm a mesma possibilidade. Sabem que a derrota nasceu após o 25 de Abril.

Que caminhos se podem imaginar para a nova Nação a fazer?

Revificar a ideia da Comunidade da Nação Peregrina. É uma via possível, especialmente se no antigo Ultramar as influências marxistas não forem tão intensas e tão duradoiras que abafem a notável obra ali deixada em todos os domínios por Portugal. Obra material, de aculturação, de entrosamento humano. Tal caminho conta, evidentemente, com o Brasil, agora cada vez mais o varão forte de uma família que se dividiu e arruinou por muito tempo.

Regressarmos simplesmente à condição continental de europeus, as Ilhas compreendidas, e jogarmos francamente na unidade europeia (ainda tão mal definida), levando aos seus limites a ideia de Fixação «estrita», tão grata aos sergianos eurocentristas, é outra hipótese. A vizinhança de um só país, mais poderoso, numa unidade geo-estratégica definida, a Península, tornam esta alternativa bastante perigosa para a independência nacional. Sem objectivos políticos de certa importância fora da Europa, o centripetismo peninsular constitui uma ameaça permanente à independência de Portugal.

É evidente que as duas opções não são totalmente contraditórias e que uma harmonização entre ambas será a terceira via que, natural e espontaneamente, vai começar e ser explorada por governos fracos e complexados pelos desastres de que são responsáveis. Nesta terceira via se inserem as fantasias de recurso que já têm surgido com a revolução: a «Ponte», o Terceiro Mundo, o Mediterrâneo.

Do desastre nacional de que fomos vítimas saiu profundamente destruída a Instituição Militar, embora a euforia da importância revolucionária assumida por alguns modestos quadros somente nos mais puros vá consentindo a consciência disso.

Com chefes eleitos essencialmente segundo critérios políticos. Com unidades desfeitas pela indisciplina consentida que foi arvorada em nova disciplina revolucionária. Com as escolas militares mais representativas e de tradições mais dignas vexadas sem qualquer reacção sadia. Uma, a Academia Militar, por um seu aluno e professor de vários anos que apenas quando brandia o poder teve coragem para a denegrir. Outra, o Instituto de Altos Estudos Militares, há dias, pela Informação (sob a batuta de quem?) que estigmatizou a mais elevada e dignificada instituição de ensino das Forças Armadas com o cariz político que não teve. Como se os generais Spínola, Kaúlza de Arriaga, Costa Gomes, Cunha, Bettencourt Rodrigues, para referir apenas alguns dos últimos comandantes-Chefes de África devessem a sua promoção ao jogo político e Vasco Gonçalves e os graduados Vasco Lourenço, Charais e Pezarat o devessem à preparação militar!...

Como sair da situação em que se caiu, interna e externamente, é evidente problema complexo.

Internamente há quem aposte na total liquidação das Forças Armadas e sua substituição por um vago poder popular Armado. Há militares, e oficiais, que entram no jogo, Há talvez quem, a distância, pense na neutralidade como remate do regresso à pequenez a que fomos reduzidos.






Externamente, começa-se por ter perfeita noção do valor que o Continente e as Ilhas representam para a segurança da Europa e do perigo mortal para o Ocidente do seu controlo pelo Leste. E sabe-se também do valor actual da nossa Instituição Militar.

É neste contexto global - país arruinado, povo empobrecido, Instituição Militar destruída, e grande importância estratégica das Ilhas e Continente - que teremos de repensar o problema das nossas Forças Armadas.

A adaptação à nova e reduzida dimensão do país e às suas actuais modestas possibilidades económicas, impõe o melhor rendimento e o mínimo custo. Forças Armadas voluntárias, de pequeno efectivo, profissionalizadas, coordenadas estreitamente, em comandos, serviços e equipamento, com Forças Militarizadas, parece constituir um modelo a estudar. Aproveitar o apoio possível da Aliança Atlântica e, ou, dos países amigos (incluindo o Brasil) para o estudo e execução da conversão necessária, torna-se indispensavel.

As escolas de formação de quadros intermédios e de oficiais ou começam a funcionar bem, ou são infiltradas e a comunização do país (ou a sua ocupação pelo Ocidente) não terá remédio.

Tudo teria sido diferente se o referendo se tivesse feito no Ultramar e se a Instituição Militar não tivesse sido destruída. Então, no apoio à formação de quadros ter-se-ia um suporte importante para as relações com os novos países (que seriam efectivamente de «expressão portuguesa» como o gen. Costa Gomes gosta de dizer) eventualmente nascidos do referendo. Como o teríamos na Universidade portuguesa se a revolução não tivesse arrasado o que dela restava. Como o teríamos ainda no apoio técnico, se a técnica do país não tivesse sido dispersa pelos cantos do mundo, e até na Diplomacia, se se pudesse manter de qualidade.

O papel das Forças Armadas? Tornarem-se profissionalmente capazes. Regressarem ao estudo e ao treino. Cuidarem profundamente da sua preparação moral que claudicou, meditando a História do nosso povo, passada e recente. Deixarem a política aos políticos, a administração aos administradores, a economia aos economistas e a soberania ao povo. Voltarem ao respeito pela verdadeira hierarquia da competência. E terminarem com rapaziadas que tanto mal nos causaram, incluindo o ódio que destruiu a coesão de uma Pátria unida.

P. - Talvez por antigos hábitos, os mares voltam a ser muito discutidos em Portugal. Há quem queira integrar Portugal no Mediterrâneo e há os que defendem que o Atlântico é que nos banha. Quer o sr. general «mergulhar» nesta polémica marítima?

R. - A rota oceânica que fomos capazes de abrir a golpes de génio, coragem e sofrimento, marcou uma viragem no desenvolvimento económico e social do mundo e no mútuo conhecimento da humanidade na incessante caminhada para o seu progresso. Ligámos o Atlântico Norte ao Atlântico Sul e este ao Índico e ao Pacífico. Desvalorizámos mesmo o Mediterrâneo e arruinámos cidades ribeirinhas, quando ele constituía um elo nas comunicações entre o Oriente e a Europa.

Historicamente somos um país atlântico. Essa é mesmo a nossa marca carismática. As Ilhas, agora reduzidas aos Arquipélagos do Norte, foram o nosso sinal de presença e também de soberania. Abandonar tudo isto por um mar que não nos banha, embora evidentemente nos influencie, é opção aventureirista.

Temos relações culturais e económicas com países tradicionalmente amigos, cujas línguas nos são familiares. Que alarguemos o círculo das amizades sinceras e politicamente desinteressadas, correcto. Mas trocar velhas ligações por outras novas, desconhecidas, sacrificando na teia ideológica de alguns a alma do próprio povo, talhada e consolidada em séculos de aventura, é puro disparate.

Tem-se abusado, até agora irresponsavelmente, dir-se-ia que por pura leviandade, desta nação antiga que era digna e respeitada, liquidando-a materialmente e transformando-a em pobre pedinte. Converteram-na em cobaia privada onde grupos diletantes, naturais e estrangeiros (que aqui encontraram a guarida que ninguém lhes dava) vieram fazer as suas absurdas e perigosas experiências à custa da paciência do povo.

É tempo de acabar. E de responsabilizar. Estamos fartos. E precisamos de reencontrar a alma perdida da nossa Pátria!

















CONTESTANDO DE NOVO A CHAMADA «DESCOLONIZAÇÃO»


Entrevista concedida a J. N. Pereira da Costa e publicada no semanário «O País», de 11 de Novembro de 1977.


P. - Os responsáveis pela descolonização, ou apontados como tal, sublinham que o processo descolonizador foi o melhor que poderia ser efectuado nas circunstâncias do momento. Não será essa a opinião do general, creio. Mas o tempo passa... Considera ser ainda oportuno assacar-lhes culpas, se é que porventura as têm. Ou impõe-se, pelo contrário, um silêncio apaziguador?

R. - Que hão-de sublinhar os principais responsáveis do processo designado por «descolonização», já depois de se terem considerado originais e exemplares, isto é, exímios, patente o desastre provocado, se não que fizeram o melhor que puderam nas circunstâncias existentes? Esperar-se-ia que passassem a confessar-se inábeis, incompetentes? Poderia confessar-se assim gente determinada, em muitos casos envolvida com o inimigo que enfrentámos, depois de provocar e tomar as mais importantes decisões da nossa História, ditatorialmente, sem a mais elementar consulta às populações interessadas, apesar de saber que iria comprometer de forma irremediável as gerações presentes e futuras? Ou, pelo contrário, as ideologias, os eventuais interesses e ajustes, as reputações, que impulsionaram tal gente, e as desgraças provocadas, continuam obrigando um colectivo de cúmplices à defesa impossível de uma realidade concreta que a tantos atinge, está sob os olhos de todos, e nenhuma artificiosa dialéctica é capaz de esconder? Que hão-de sublinhar os principais responsáveis? E que há-de, em contrapartida, pensar o povo que sofreu, e sofre, o processo? Como pode deixar de assacar as culpas que existem e em relação às quais se insinuam mesmo origens ignominiosas?

Por mim considero indispensável o julgamento dos responsáveis por acções concretas, que felizmente não são muitos. E penso que eles próprios, esses responsáveis, devem estar interessados em nos esclarecer de uma vez, demonstrando inocência perante o crime de que os acusam. O libelo e a via a seguir encontram-se exaustiva e primorosamente expostos por Luís Aguiar, no seu importantíssimo «Livro Negro da Descolonização». Tratar-se-á de crime público: entre milhões de queixosos, alguém certamente levará a Tribunal os principais responsáveis da chamada «descolonização»... Creio até que a grande clarificação da vida política portuguesa exige esse julgamento. Somente depois de separada a grande seara de trigo da pequena praga de joio (a existir) que a infestou, os portugueses regressarão à tranquilidade de alma, base da reconciliação, e linha de partida para as grandes definições e os intensos esforços na procura de novos, ou renovados, projectos nacionais...

P. - Afirmam que a guerra era insustentável e explicam o abandono das ex-Províncias ultramarinas pela imposição da conjuntura internacional (o regime criado em 25 de Abril de 1974 não seria de outra forma aceite pelas nações democráticas) e, por outro lado, pela circunstância de os soldados se negarem a combater após a Revolução. Quanto à última alegação, parece que assim aconteceu, pelo menos nalguns casos e tanto em Angola como em Moçambique, para não falar já da Guiné, onde a guerra já estaria «oficialmente» perdida. Acha curiais tais explicações?

R. - Somente indivíduos completamente fora dos problemas do Ultramar e da guerra e, ou, comprometidos com o inimigo que combatíamos, podem afirmar que a guerra era insustentável em 1974. Acreditar em tal, depois da documentação publicada sobre o assunto, sabendo-se que a vitória em Angola era um facto, é já prova de má-fé ou de ignorância. Falar em imposição da conjuntura internacional, após 50 anos de política, certamente com condicionamentos, mas relativamente independente e respeitada, como poucas vezes na nossa História, é errado. E sumamente ridículo, quando nunca tão demagogicamente se falou em independência, e nunca as «imposições da conjuntura internacional» foram maiores. Ridicularia de gente que, exaltando a liberdade e a independência, generalizou o uso dos guarda-costas e passou a governar de mão estendida... Poder-se-á invocar imposições da conjuntura internacional, reconhecendo-se que os abandonos e as entregas do Ultramar português alteraram posições estratégicas de dois mundos, debilitando, em desfavor do mundo a que pertencemos, o equilíbrio da paz? Soluções que não fossem do abandono e da entrega verificados não serviriam melhor (e não teriam por isso, outra aceitação) no mundo em que nos integramos? Vulneráveis a imposições passámos a ser hoje, uma vez reduzidos às dimensões actuais e conduzidos, por uma administração caótica, a situação de extrema penúria.

A recusa dos soldados em combater não foi uma atitude espontânea. Foi o resultado de circunstâncias provocadas e de técnicas utilizadas para o efeito. Soldados que até 25 de Abril cumpriam as suas missões com dignidade e, em muitos casos, com extrema devoção e bravura, não passavam depois a comportamento oposto, se para isso não tivesse sido montado e posto em funcionamento o necessário dispositivo. Dispositivo da responsabilidade, por acção ou inacção, dos mandatários de então do nosso país. Sabe-se que o colapso militar da Guiné foi totalmente conduzido pelos mais altos escalões do Governo da Província. Também em Angola partiu dos mais altos responsáveis o impulso para a desmobilização militar. As insubordinações de Moçambique e de Timor foram desencadeadas por grupos de indivíduos para ali, para esse efeito, destacados, indivíduos tornados, com a revolução, importantes e execrandos. Tudo foi programado e executado para conduzir, por um lado, ao colapso e, por outro, à estigmatização da Instituição Militar, que era necessário não só destruir, como deixar denegrida e... culpada. De resto, esta acção sobre a Instituição Militar foi um dos aspectos de uma manobra mais vasta que inclui a forma (em muitos casos indigna) como se desenvolveram as conversações com o inimigo... Tudo incluído no que o dr. Mário Soares referiu como «a dinâmica criada», que Luís Aguiar tão bem explica, como «A estratégia do dr. Mário Soares», a páginas 156 e 157 da sua notável obra já citada.























P. - Outro ponto da defesa, dos autores, digamos, da descolonização: Portugal praticava ultrapassado colonialismo em África, execrado por todas as potências democráticas...

R. - Considero errado falar-se de colonialismo português em 1974. A ordem jurídica em vigor não privilegiava qualquer camada da população portuguesa por parcela do território, por raça, ou por etnia. E na ordem económica quando se estabeleciam privilégios nas relações entre parcelas não o era num só sentido, como agora, errada e intencionalmente, se quer fazer crer. Tratava-se, cada vez mais, de um país único, com as relações entre parcelas que são comuns a várias regiões de diferentes países. As diferenças sociais existentes também eram as comuns às sociedades do nosso tempo. As relações raciais e sociais, que nalgumas parcelas eram mesmo exemplares, apuravam-se em todas as províncias, e sobretudo nada tinham a invejar ao que se passava no resto do mundo, e muito especialmente nas antigas Colónias de independência recente. Mas o que indigna é que, por revolucionários do 25 de Abril, seja levantado o problema do «colonialismo» nas nossas antigas províncias, agora que, por sua acção, praticamente todas elas foram mergulhadas em colonialismo feroz!...

P. - Segundo afirmações que vieram a público, os Governos provisórios de Angola e Moçambique - melhor: os chefiados por V. Ex.ª em Angola e pelo dr. Soares de Melo na costa do Índico - foram repudiados pelos brancos dos dois territórios, além de, evidentemente, pelos movimentos emancipalistas. Recordo-me, no entanto, que o general foi escolhido para Angola por proposta do dr. Almeida Santos, então ministro da Coordenação Interterritorial, depois de ele ter consultado as forças vivas de Angola. Houve um erro, então? E donde partiu? O general foi nomeado para o cargo - e a Imprensa da época testemunha o facto - com plenas honras, como «the right man in the right place»...

R. - Quando fui convidado para governar Angola foi-me referido pelo Ministro da Coordenação Interterritorial, dr. Almeida Santos que, em Luanda, havia interrogado muita gente sobre a pessoa que desejavam como Governador-Geral. O meu nome foi-lhe sendo sugerido, entre outros. Inicialmente, repudiou-o, pois só me conhecia como autor de «Estratégia Estrutural Portuguesa», cuja tese lhe não agradava. Mas o meu nome foi sendo insistido... E a certa altura deu-se conta que estava ali para ouvir sugestões e não para as repelir, por preconceito... E de lá o trouxe, entre outros. Quando, em Conselho de Ministros, me propôs para governar Angola, «alguém» lhe perguntou se «os movimentos» também me aceitavam. O ministro teria respondido a esse «alguém»: «O movimento em que está a pensar também o quer». E assim fui para Angola com a indicação do mesmo ministro de que me esperaria uma manifestação de protesto no aeroporto, de que se ia preparar legislação para rapidamente de fazerem eleições para as autarquias (primeira medida de grande alcance político), de que a minha missão consistia essencialmente em preparar o referendo, a fazer depois de aprovada a nova Constituição.

Em Angola, nos escassos 35 dias do meu Governo, senti-me sempre respeitado pela população por todos os locais onde andei. Nunca usei escolta, não tive guarda-costas. Em Luanda, andei por todo o lado: esplanadas, cinemas, igrejas e cemitérios. Quase no fim do mandato do general Costa Gomes foi-me com surpresa minha, revelado, em conversa para a qual me convocou, que o Mfa de Angola, através do Comandante-Chefe, havia feito diligências para a minha substituição. Eu tinha efectivamente recusado, logo poucos dias após a minha chegada, a proposta da constituição de uma espécie de Conselho de Estado constituído por mfa's. As diligências do Mfa, transmitidas por Lisboa, sem me ser dado conhecimento, pelo Comandante-Chefe, o incidente da morte do motorista (quem o teria provocado?), a retaliação que se lhe seguiu, que originou oito mortos, e que as forças militares e policiais, dependentes do Comandante-Chefe, prevenidas, não puderam evitar (porquê?), constituem a cadeia que provocou a minha chamada a Lisboa. Não dei por hostilidade especial de europeus ou africanos. A autoria da recepção hostil circunscrita a três ou quatro cartazes que me mandavam embora e a dois ou três dos meus colaboradores pertenceu ao «Movimento Democrático de Angola», ponta de lança do Mpla, tal como o de Moçambique o era da Frelimo. Não teve qualquer expressão esse ostentar de cartazes por uma dúzia de jovens africanos, pagos para o efeito. Recordo-me que na véspera do meu regresso, em conversa com o eng. Castilho, presidente da Associação Industrial, me foi dito que as Actividades Económicas me consideravam ultrapassado na política do referendo, pois sabiam que o Governo do País pensava em negociar com o Mpla. Liguei esta informação com uma outra conversa tida, pouco tempo depois de chegar, com o eng.º Falcão. Foi-me então dito por aquele engenheiro que um importante ministro de Lisboa tinha ligações com o dr. Agostinho Neto, através do dr. Teixeira da Silva (que não conheci) e que foi o presidente do Tribunal que condenou à morte alguns mercenários. Mostrou-me mesmo um telegrama confirmando aquela ligação. Depois de regressar e de quanto veio a acontecer, não pude deixar de pensar nisto tudo: no «alguém», e no «movimento» em que o «alguém» pensava, nos cartazes, nos mfa's e nas Actividades Económicas...

Em 35 dias não tive ocasião para provocar uma mudança de atitude da população. Se ela efectivamente me repudiou, é profundamente estranho que um ministro inteligente, ao consultá-la, não o tivesse pressentido. Foi inábil? Não posso admitir que me tenha convidado para me sujeitar ao repúdio...

Penso, e tenho outras razões para o supor, que a rapidez da minha passagem por Angola foi muito o resultado de uma manobra. De qualquer forma, não fui desrespeitado, desfeiteado... como aconteceu mais tarde, pelos vistos sem repúdio...



O neto e o avô




P. - Outra justificação auscultada nos círculos que defendem o processo de descolonização. Melhor, largamente difundida pelos interessados na tese: não havia outra solução para Portugal, se não o abandono. Os Movimentos emancipalistas foram os responsáveis em Angola, dizem, pela deterioração da situação e nos outros territórios tinham o apoio das respectivas populações. Considera a atitude então assumida pelo Governo de Lisboa - a modos que inspirada no conhecido gesto de Pôncio Pilatos... - sensata, a que mais ou unicamente se opunha ao momento? Ou está de acordo com a opinião, que é a de não poucos, que a classificam de errada, e mesmo vergonhosa, até pelo abandono de populações que confiavam em Portugal?

Por outro lado: neste momento será possível fazer, se não um balanço, pelo menos uma análise do processo de descolonização, para uns quantos exemplar e para outros lamentável, para utilizar um termo eufemístico? Os laços de Portugal com as ex-Colónias foram, com a descolonização que tivemos, mais preservados, ou atitude diferente - por exemplo: imposição da observância dos acordos de Alvor, no caso de Angola - teria conduzido a melhores resultados?

R. - Que os movimentos, em nenhuma das províncias tenham tido o apoio generalizado das respectivas populações parece evidente dever concluir-se da sua recusa ao referendo, e das dificuldades com que os mesmos continuam a debater-se, apesar de todas as colaborações recebidas, ajudas que, em Angola, se cifram, além de outras, por milhares de soldados cubanos. Deve mesmo ser tido como humor negro, em face da situação de Angola e de Timor, e também de Moçambique, falar ainda em apoio das populações aos movimentos...

Quanto à deterioração da situação em Angola, ela era previsível, dadas as rivalidades que se afrontavam há muito. Daí que o «lavar de mãos» dos responsáveis em Angola (como em Timor), com o seu cortejo de centenas de milhar de mortos, não somente tenha sido errado, como sobretudo indigno e criminoso: uma página negra da nossa História.

Com a saída das províncias dos chamados «retornados» e a entrega, ou abandono, do Ultramar aos movimentos da órbita soviética, ou, no caso de Timor, a país estrangeiro, os laços de Portugal com as suas antigas parcelas ultramarinas correm o risco de irremediável rotura. Será necessário muita prudência e sabedoria, e sobretudo muito patriotismo, para evitar o irremediável. Em particular, dada a instabilidade que se verifica principalmente em Angola, Moçambique e Timor, os compromissos com o poder legalizado não podem esquecer os outros poderes de facto que se estão exercendo, e nalguns casos desenvolvendo. A Flec, a Unita, e a Fnla, em Angola e os Resistentes de Moçambique e de Timor são realidades que não podem ser esquecidas e muito menos afrontadas... Ninguém pode prever o que serão as antigas províncias num futuro que pode não estar longe.

Os ultramarinos regressados das várias províncias com o êxito que certamente vai ter o seu labor em todos os sectores da vida do país, pelas suas qualidades de trabalho, pela sua experiência, pela grandeza das suas ideias e projectos (plasmados sempre em escala mais grandiosa), pelo fundo de paixão que, naturalmente, os enforma e motiva, pelo vácuo encontrado, resultado do exílio dos melhores e da perda generalizada das virtudes dos que ficaram, hão-de constituir o alicerce das futuras relações com o antigo Ultramar. Nem o Ultramar será por eles esquecido em várias gerações, nem eles será esquecidos pelo Ultramar. Serão talvez os ultramarinos, dentro de poucos anos, a base da vida económica, técnica, administrativa e política do nosso país: essa a compensação do atroz sofrimento que lhe foi imposto.

Quanto à chamada «descolonização» que se fez, deve-se dizer que nada revela ter-se importado, na execução, com a preservação dos laços de Portugal com o antigo Ultramar. Pelo contrário, assumiu-se verdadeiramente a atitude errada e estúpida, de derrotados sem condições... Só agora vão aparecendo, já sob a pressão dos rumores que se levantam, umas muito ténues, e por vezes desastradas, manifestações de certa e atrasada preocupação. Os acordos do Alvor, uma vez que feitos, deveriam ter sido cumpridos. Dos gravíssimos atropelos que sofreu não fomos capazes de ser árbitros. Imiscuímo-nos, mesmo neles, colaborámos até, por vezes, com grave parcialidade.

P. - Em «África. A Vitória Traída», obra de V. Ex.ª e de outros três generais, pretende-se provar que a guerra em África não estava perdida. O livro foi discutido e criticado mais emocionalmente do que factualmente, ao que parece. E continua a sublinhar-se o elevado custo da guerra, as perdas de vidas, as de portugueses e guerrilheiros. Por outro lado, parece que a descolonização exemplar ou não, provocou mais vítimas fora ainda, evidentemente, as suas consequências futuras com o prolongamento da guerrilha, em Angola, e dificuldades que, segundo alguns, se registam no caminho da normalização noutros territórios antes portugueses. A sua opinião sobre o problema? Ou será que, na realidade, é muito cedo para escrever a História?...




R. - Em «África. A Vitória Traída» repõe-se com números, que ninguém contestou, e factos relatados pelos chefes militares mais qualificados para o efeito, verdades que andavam monstruosamente deformadas. Não é mais possível empolar-se, sem demonstrar ignorância ou má-fé, os custos financeiros e humanos da guerra, ou a fuga dos mancebos pela impopularidade daquela. E se se comparar os custos financeiros e humanos da guerra com os mesmos custos da «paz» trazida pelo 25 de Abril, sem a restritiva óptica racista que explica muito do que se passou, e ficou consolidada na incrível lei da nacionalidade, fica-se horrorizado com o preço daquela «paz». Ouçam-se as vítimas que por aí andam, juntem-se as vítimas que deambulam por Angola, Timor, Moçambique, Guiné... Some-se a tudo o comportamento indecoroso para com os soldados e as populações vitimadas por sempre se terem considerado portugueses. E não haverá arte, subtileza, ou habilidade, capaz de camuflar o horror provocado. E a haver inteligência que tente justificação, a não a admitirmos conduzida por razões menos transparentes, temos de lhe atribuir insensibilidade e, ou, irresponsabilidade.

Que a guerra não estava perdida em 25 de Abril, já hoje ninguém, medianamente informado, duvida. Como praticamente todos sabem, em Angola, a vitória estava à vista. Quando ao resto, é como se prova em «África. A Vitória Traída». Os que andaram pelo Ultramar e os que por lá combateram sabem que eram assim... E daí o sentimento generalizado de vergonha, arrependimento e frustração de muita da gente boa que hoje sabe ter sido objecto de manipulação com o 25 de Abril...

P. - Um fenómeno curioso e sobre o qual gostaria de escutar a sua opinião. Depois da indisciplina reinante nas Forças Armadas Portuguesas, durante o período conturbado que terminou com o «25 de Novembro», o respeito pela hierarquia e pela disciplina regressaram progressivamente aos quartéis e creio que se reimplantaram entre a maior parte da oficialidade. Porque foi suspenso após o «25 de Abril»? Culpa dos soldados, até aí e hoje de novo obedientes, dos soldados que não quiseram combater, diz-se, assim que deflagrou a Revolução de Abril?

R. - A destruição da Instituição Militar fez parte da estratégia utilizada para, com o 25 de Abril, se perder o Ultramar, que acabou por cair na órbita soviética. Consumado o abandono de Angola e tentada, sem êxito, a conquista do poder pela força, a acção sobre a Instituição Militar deixou de se poder exercer com a mesma intensidade, e perdeu mesmo parte do seu interesse. As circunstâncias referidas, abandono de Angola e 25 de Novembro, com certa limpeza militar decorrente deste, levaram a uma melhoria indubitável da disciplina exterior das nossas Forças Armadas. Mas a destruição da estrutura da Instituição encontra-se, por muito tempo, consumada. Com raras excepções, o melhor dos excelentes quadros que possuíamos, nas hierarquias mais elevadas, foram objecto de uma odiosa purga, entre nós sem precedentes. Antes que novos quadros estejam preparados (o que não acontecerá com graduações e promoções por distinção... política de quadros jovens, que globalmente, e com poucas excepções, se revelaram maus), oxalá não seja necessário recorrer a novo Conde de Lippe para restaurar o que programadamente foi destruído...

P. - Um caso insuficientemente esclarecido. O general, foi, parece, um dos homens do «25 de Abril». Esteve desde logo indigitado para altas funções, cabendo-lhe, embora por curto período, as delicadas funções de governador de Angola. Hoje, porém, a maior parte dos que se arrogam do espírito do «25 de Abril» situam-no na extrema-Direita e apontam-no, mesmo, como reaccionário. Um mistério... Quer interpretá-lo?

R. - Não fui um homem do 25 de Abril. Nada, absolutamente nada, tive com o Movimento dos Capitães, o 25 de Abril, ou o Movimento das Forças Armadas. Nada tive com as conspirações de políticos civis e fardados que estão na base da manipulação sofrida por militares capazes e ingénuos. Não conhecia praticamente nenhum desses políticos militares e civis. Todas as minhas preocupações de então (e da grande parte dos meus camaradas) se centravam no Ultramar. Quando, na tentativa da intervenção do general Kaúlza de Arriaga no Movimento dos Capitães, fui por este consultado, toda a minha preocupação foi o Ultramar, e daí condicionar a adesão para uma tomada de uma atitude à unidade entre Spínola e Kaúlza, unidade não obtida, o que constituiu, em minha opinião, o grande erro, o grande desastre, da política militar dessa altura.

No dia 16 de Março, no Estado-Maior do Exército, fui, em dado momento, encarregado pelo Chefe de Estado-Maior do Exército de explicar e justificar aos oficiais mais graduados presentes nas Repartições o que se estava passando. Reuni-me com eles, que me ouviram em silêncio. Com espanto, vim a verificar, após o 25 de Abril, que quase todos eram mfa's, e alguns importantes...

Estava, no 25 de Abril, tão longe do Movimento que, na tarde desse dia, teve de ser cancelada uma pequena despedida que meu irmão tinha preparado em sua casa, pela minha nomeação iminente para um cargo militar em Moçambique (quando do regresso do general Costa Gomes de Moçambique, após os graves acontecimentos da Beira, fui chamado à Cova da Moura e convidado pelo dr. Silva Cunha para Comandante-Chefe daquela província; com a substituição de Costa Gomes por Luz Cunha a solução evoluíra). O cancelamento da pequena festa devia-se ao facto do anfitrião, meu irmão, haver sido preso nessa manhã, por revolucionários, quando se dirigia para o seu serviço (foram-no buscar à noite ao Batalhão de Caçadores 5, onde se encontrava com outros oficiais presos, para o convidarem, com total surpresa dele e da família, para membro da Junta), e por um dos convivas ser o proprio general Spínola... Por mim, quando, na manhã de 25 soube, por pessoa da família, o que estava acontecendo, telefonei para o general Paiva Brandão, chefe do Estado-Maior do Exército. Por cruzamento de linhas, apareceu-me do outro lado o general Luz Cunha, que me recomendou aguardasse ordens em casa. Insisti e consegui falar com o meu chefe hierárquico, o general Paiva Brandão. Disse-me que me mantivesse em casa pois seria preso se tentasse alcançar o Estado-Maior do Exército. Disse-lhe que tentaria. Mas tendo-me entretanto meu irmão telefonado, já preso em Caçadores 5, entendi manter-me em casa.






O convite para governar Angola surgiu, como já referi, depois da visita ali feita pelo dr. Almeida Santos, e como resultado dela. Antes, porém, dois ou três dias depois do 25 de Abril, havia sido chamado à Junta, na Cova da Moura. E na presença de Costa Gomes, de Galvão de Melo, de Pinheiro de Azevedo e de Rosa Coutinho fui convidado pelo general Spínola para Governador e Comandante-Chefe de Moçambique. Aceitei e foi-me pedido que sugerisse a organização do Comando e do Governo. Referi os nomes do general Franco Pinheiro como Vice-Comandante-Chefe e do coronel Silva Sebastião (então presidente da Câmara Municipal de Lisboa e distinto Governador ultramarino) como Vice-Governador-Geral. Eu pensava instalar-me inicialmente na Beira, deixar o coronel Silva Sebastião em Lourenço Marques e manter o general Franco Pinheiro em Nampula. As propostas foram aceites. E foi-me pedido, também, que sugerisse nomes para Governador e Comandante-Chefe de Angola. Referi ali, e ninguém levantou qualquer objecção, os nomes de Kaúlza de Arriaga e de Bettencourt Rodrigues. Mais tarde, já com estes dois generais «saneados», foi-me pedida uma lista de nomes para Governadores-Gerais de Angola, havendo então eu já cedido o general Franco Pinheiro como Comandante-Chefe daquela província. Estabeleci tal lista, encabeçando-a com os nomes de Deslandes e Adriano Moreira. Também me foram solicitados nomes para o ministro que veio a designar-se por da Coordenação Interterritorial. Sugeri empenhadamente, em lugar cimeiro, o nome de um africano que muito considero: o dr. Aguinaldo Veiga. Tudo, embora não concretizado, foi aceite com interesse. Se isto refiro, é para dar a ideia da disposição, naqueles primeiros dias, da Junta, ou melhor do seu presidente, o general Spínola.

O coronel Silva Sebastião foi deslocado para Moçambique em missão de reconhecimento e estabelecimento de contactos. Eu próprio estive para acompanhar o general Costa Gomes na sua visita a Angola e Moçambique, mas a indicação para o fazer foi cancelada, na própria noite em que a recebi, véspera da partida... Quando o general Costa Gomes regressou de Moçambique, trouxe a informação de que os moçambicanos me não aceitavam como Governador-Geral. Cabe referir que um ou dois dias depois de ser aceite o convite de ir para Moçambique, o que se deveria concretizar com brevidade, conversando com o general Costa Gomes, foi-me dito que afinal, lendo o Programa do Movimento, se havia chegado à conclusão que a nomeação dos Governadores competia ao novo Governo, ainda a constituir... Havia, pois, que aguardar... «O programa era a Bíblia». E o general Costa Gomes foi buscar a «Bíblia» a uma gaveta da secretária para que eu visse... o que, a esse respeito, rezava. Dias mais tarde, falando com Rosa Coutinho, o homem da Junta que tratava dos assuntos do Ultramar, sobre problemas da província (eu havia já trocado impressões de grande interesse com o eng.º Pimentel dos Santos, Governador-Geral cessante), disse-me, a despropósito, que, embora a Junta já o tivesse decidido, e a sua opinião já não tivesse interesse, entendia que os novos Governadores deviam ser sugeridos pelas populações do Ultramar... Não sei se o almirante Rosa Coutinho pensava da mesma maneira quando aceitou ir para Angola, mas não me consta que alguém tenha ido ali buscar o nome do meu substituto... De qualquer forma, com mais ou menos manipulação, e talvez com as primeiras deslealdades ao general Spínola, não fui para Moçambique e os Governos-Gerais de Moçambique e Angola acabaram por ser preenchidos cerca de um mês e meio depois do 25 de Abril... Foi uma delonga importante para que muitas naturais indefinições consentissem, apesar da boa vontade e competência dos Encarregados de Governo, o «necessário» degradar da situação naquelas províncias. Se o «Programa do Movimento» quisesse, com discrição, «programar» com tal objectivo, dificilmente o faria melhor.

Por que me chamou o general Spínola?

Suponho que por duas razões convergentes. Por um lado, pelo que então pensava acerca do Ultramar, pela sua fé (ingénua?) num Ultramar português, em paz, após um sério referendo. Por outro, por supor que eu, cujas opiniões (nem sempre coincidentes com as suas, mas igualmente patrióticas) conhecia perfeitamente, estava indicado para, consumado o 25 de Abril, procurar realizar o referendo e concretizar, com seriedade, a solução portuguesa. Estas duas razões explicam o convite que me fez, as sugestões que me pediu e a forma como as acolheu, e até a facilidade, de certo modo, para mim, surpreendente, como deixou que o Mfa me retirasse de Angola. É que, embora eu o não soubesse, vencido pela «dinâmica» do dr. Mário Soares, o general Spínola havia já então desistido do referendo para oferecer independências... Para tal operação não podia contar comigo. E também se não dispôs a contar comigo para a evitar, cumprindo o «Programa», que havia sido a «Bíblia» do general Costa Gomes... E em Angola, com os excelentes quadros que se possuía, bem o podia tentar. Por mim, consultado o dr. Redinha sobre implicações étnicas, tinha começado a pensar em transferir o Governo-Geral para Nova Lisboa...

E, afinal, eu, por que aceitei?

Simplesmente, por supor ser útil à Pátria que jurei servir e defender.



Notas:

(1) Como envergonhados foram, recentemente, muitos «portugueses» (?) no que disseram, escreveram e projectaram nos écrans da TV, com total falta de dignidade e de respeito pelos valores da sua (?) Pátria, em face de algumas das palavras do Presidente da Guiné, Luís Cabral.

(2) Em 2 de Maio de 1973, perante um esquema de reestruturação político-administrativa que me fora apresentado pelo gen. Spínola, escrevi-lhe uma carta do qual extraio os seguintes passos:

«[...] Creio que nos afastamos num conceito fundamental: para mim a era da África tribal, da África feudal, tem de ser ultrapassada. O feudalismo africano, que ainda se mantêm, é culpado de muitos aspectos negativos da cultura do Continente. A generalização da educação irá revelando elites que inicialmente se contentarão em se juntar ao lado dos tradicionais, mas que cada vez mais se irão impondo apenas pelo seu mérito.

[...] A grande diferença entre as estruturas que o meu general preconiza e aquelas que eu advogo consiste em o meu general duplicar orgãos de soberania para o conjunto federal e para a parcela onde as mesmas se instalem (a parcela europeia durante, pelo menos, muito tempo). Eu sobreponho, nessa parcela, os orgãos de soberania para o conjunto e para ela. Com esta modalidade, consigo uma simplificação muito grande na passagem do sistema actual ao que proponho. Fico com a possibilidade de evolução em qualquer sentido: mesmo o federal (em cuja estabilidade não acredito). Poupo elites. Evito perigosos atritos entre orgãos duplicados centrados na mesma parcela. E unifico as estruturas, sem afectar a descentralização, sem uniformizar, mas aculturando».




Regresso a Deus

$
0
0
Escrito por António Correia de Oliveira







Jesus caminha. Onde é que vai? Surpresa,
A terra escuta; o sol espreita. Adoram
Aves e lírios, toda a Natureza.

- Oh! bem-aventurança dos que choram,
E dos pobres de espírito e ambição;
Dos que têm fome de justiça, e moram

Entre guerras tirânicas, e são
Pacíficas ovelhas e tesoiro
De amor, misericórdia e mansidão;

Dos perseguidos pelo ódio e o oiro,
Porque são limpos de pecado. Ao dia
Do eterno Reino ou negro Sorvedoiro,

Para os tristes será toda a alegria;
Será toda a abundância aos esfaimados;
Consolo, glória, paz, sabedoria,

Não ao Senhor do mundo, aos maus Soldados,
Mas sim aos que a si próprios se venceram...
Fortes e humildes, - bem-aventurados!

Verbo Ser e Verbo Amar








A perda do Ultramar português e os relativos «mitos» e falácias propalados pela versão oficial dominante

$
0
0
Escrito por João José Brandão Ferreira







Conferência de Berlim (15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885).







«A acta final da [Conferência de Berlim] foi assinada a 26 de Fevereiro de 1885. Nela ficava definido o princípio da livre navegação e comércio nas bacias do rio Níger e Congo, passando-se, simultaneamente, a exigir a posse efectiva dos territórios e já não apenas a evocação vaga de um direito de precedência, como forma de prover à ocupação territorial apenas no litoral, mas não no interior, como raramente é referido. A Conferência de Berlim não procedeu à partilha do continente, como também é corrente afirmar-se, mas à margem dos encontros oficiais teve lugar uma intensa actividade diplomática que conduziu ao reconhecimento internacional do Estado Livre do Congo, entregue à tutela do rei dos belgas, Leopoldo II. Portugal ficou com a posse da margem esquerda do rio Zaire, assim como com os territórios de Cabinda e Molembo no Norte de Angola.

Em Portugal, estes resultados foram recebidos com natural desencanto, mas tiveram o condão de reavivar a atenção das elites dos governantes e da opinião pública para o estado de abandono a que estavam votadas as colónias. No quadro da corrida à posse efectiva dos territórios e já conhecedores do interesse manifestado pelas potências, tornava-se urgente para os líderes políticos portugueses proceder à ocupação dos vastos espaços situados no interior de Angola e Moçambique. Para além disso, tomava-se consciência de que tinha terminado de vez a era da hegemonia singular no campo colonial, até então assegurada pela Grã-Bretanha, passando-se para um mundo multipolar com a entrada em palco de novas potências ultramarinas como a Alemanha. Esta inversão da cena internacional iria obrigar Portugal a redesenhar os seus acordos diplomáticos com outros países cortando a tradicional dependência exclusiva em relação a Londres, que, aliás, tinha abandonado a representação lusitana à sua sorte durante a Conferência de Berlim.

A redefinição da política externa tendo em vista as disputas que se adivinhavam no campo colonial não comportava neste momento nenhum teor anti-britânico. O objectivo do Ministério português era procurar uma posição de força em futuras negociações com Londres. A subida ao poder, em Fevereiro de 1886, de um novo Governo, em Lisboa, entregue novamente ao Partido Progressista viria a tornar mais clara esta reorientação diplomática.

O novo ministro dos Negócios Estrangeiros era um antigo membro do Partido Reformista, uma força liberal radical cujo carácter nacionalista tinha ficado bem patente durante a crise ibérica de 1870. Henrique Barros Gomes, cujas simpatias germanófilas não eram segredo para ninguém, tentou introduzir um novo ponto de equilíbrio mais favorável às pretensões nacionais no contexto da aliança luso-britânica. O ministro não defendia o simples rompimento de aproximação histórica entre os dois países, mas achava que Portugal deveria apresentar as suas posições com mais firmeza, não afastando a hipótese de estabelecer acordos com a França ou até com a Alemanha, grandes rivais dos britânicos. Esta política predispunha-se a cumprir um duplo objectivo. Procurava-se garantir o apoio de Berlim para o projecto da construção de um Império na África Central, de Angola a Moçambique, concorrente dos interesses britânicos, representado pelo chamado "Mapa Cor-de-Rosa". Esta reprodução cartográfica tinha sido, refira-se, originalmente mandada realizar, em 1885, pelo ministro da Marinha e do Ultramar de então, Barbosa do Bocage, na sequência dos ajustes empreendidos pelo Governo regenerador com a França para a delimitação das possessões portuguesas e francesas na África Ocidental. Para além disso, pretendia-se lançar um conjunto de expedições militares e científicas no terreno, para negociar com a Inglaterra de acordo com os princípios da nova ordem colonial estabelecidos na Conferência de Berlim».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«Que ideia faremos da função militar? Ela é, simplesmente, a actuação da força organizada para a defesa do agregado social e a para a realização da justiça.

É tal o modo de ser do homem que exige do Estado a organização de uma força para conservar-se, para manter a paz social, a ordem, o equilíbrio das liberdades, sempre pronto a romper-se, quando falte a coacção externa. Nas relações de povo para povo, essa força tende a garantir a primeira e mais sagrada das liberdades, que é a independência.

(...) No aspecto individual, para que [a função militar] seja o que deve ser, exigem-se, nos que a buscam ou são chamados a exercê-la, algumas qualidades específicas, que chamaremos as virtudes militares: valor, lealdade, patriotismo. É tão essencial à função militar o exercício, em alto grau, destas virtudes, que as vemos constituírem o seu traço característico, definirem o seu espírito próprio: é necessário que existam, para que ela exista, e se desaparecem, deixa ela de existir. Compreende-se acaso um militar cobarde? Um camarada desleal? Um combatente traidor à Pátria? Não; porque, logo que surgem a cobardia, a deslealdade e a traição, já não há força, já não há soldados, já não há exército, mas só multidão armada, e, por isso mesmo, mais perigosa que qualquer outra.

O valor parece mais que uma virtude militar: é o próprio atributo da força.



Oliveira Salazar



Por definição, a força é valente, destemida, arrojada, dominadora, senhora de si, cônscia das suas possibilidades e da sua acção; não é desordenada, não é exaltada, não é violenta. Tem tempo para se impor - é paciente; não duvida de si - é calma; tem a segurança do triunfo - é generosa.

A força marcha em forma e em cadência - é a sua necessidade estrutural de ordem no espaço e no tempo; a força marcha erecta - é a revelação externa da confiança; a força tem o passo rígido e firme - domina, é senhora da terra em que avança. A força não se nega a si própria - "morre mas não se rende"; a força não descansa nem mesmo para morrer - "morre, mas devagar".

A força que é força e não violência é de si mesma leal, quer dizer, verdadeira, clara e sincera. Notai que a força marcha ao som dos clarins - anuncia a sua presença; a força faz rebrilhar ao sol as suas armas - expõe à vista os seus meios de ataque; a força comanda em voz alta - sabem-se em volta as suas intenções.

Na sua estrutura íntima a força não é um simples aglomerado de homens, é um organismo em que é indispensável união, colaboração, solidariedade; a lealdade, na força, é necessária para a certeza de que cada orgão cumprirá em cada momento o seu dever. Por isso não pode haver nela intriga, desunião, desconfiança mútua; ciosa como é, a força tem de expulsar de si, como corpos mortos, os elementos que lhe não pertencem de alma, e cujo coração não pulsa ao ritmo do seu.

A lealdade é a verdade do sentimento: é impossível ser desleal sem mentir à consciência, sem ludibriar a confiança alheia. Por essa razão a força não comporta conciliábulos nem combinações secretas: ela bate-se de frente, é desleal atacá-la pelas costas.

Todos somos obrigados a ser verdadeiros, e justos, e patriotas; e, no entanto, a preocupação da verdade é traço característico do sábio; a preocupação da justiça domina o juiz, como o patriotismo deve absorver e dominar a alma do soldado.

Para cada um de nós o patriotismo não pode desprender-se da família, do torrão natal, dos interesses e dos haveres, das recordações de infância, das saudades dos lugares ou das pessoas, dos vivos e dos mortos, das alegrias e tristezas - as pequenas ou grandes coisas que são nossas e constituem para cada qual, dentro da Pátria, o seu pequeno mundo. E tudo isto que nos prende diminui um pouco, na vida cotidiana, essa unidade augusta, esse todo indivisível que é a Pátria.

Para o soldado, porém, não há aldeia, a região, a província, a colónia - há o território nacional; não há a família, os parentes, os amigos, os vizinhos - há a população que vive e trabalha nesse território: só há, numa palavra, a Pátria, em toda a sua extensão material, no conjunto dos sentimentos e tradições, em toda a beleza da sua formação histórica e do seu ideal futuro. Ele deve-lhe tudo - a saúde, a comodidade, o descanso, o dia e a noite, a paz, a família, mesmo a vida. E parece que é por esse consumo de vidas que a Pátria se mantém, e aumenta a sua beleza e engrandece o seu poder. Diante do inimigo externo, que representa ameaça para a existência ou para a integridade da Pátria, esta é, para o soldado, material e tangível como um relicário de ouro em que se confiassem à sua guarda a independência, a liberdade, os bens e a vida dos cidadãos.

Fora do são nacionalismo, fora da noção e amor da Pátria não há, pois, vida nem força militar: há exércitos de parada ou hordas organizadas para a pilhagem.

Dentro duma função necessária, organizada com eficiência e tão proporcionado o custo à utilidade que ninguém a poderá acusar de parasitismo, o ideal militar consiste na realização plena, na posse em grau heróico das virtudes militares.

Espero que não tenhais medo das palavras e não receeis apelidar-vos homens de ideal - trabalhando por um ideal, vivendo para um ideal. Alguns que rastejam atrás dos pequenos interesses e das mesquinhas ambições, e se supõem positivos e práticos, conhecedores do mundo e dos seus segredos, mal podem compreender as almas que caminham, serenas, por estradas reais da vida, como ignoram que para segui-las é preciso elevar fachos de luz acima da cabeça ou deixar-se guiar pelas estrelas do céu. Na limitação natural das faculdades humanas a perfeição não existe, mas o aperfeiçoamento progressivo é lei da vida moral. Há que copiar pacientemente um modelo, não perder de vista os pontos de referência, realizar um pensamento de vida. A função do ideal-modelo, aspiração ou guia - é vincar a orientação superior das faculdades humanas, não deixando que se extraviem com as mil contingências da vida, com as mil contradições das doutrinas, com as mil adversidades do tempo».

Oliveira Salazar (No Quartel General do Governo Militar de Lisboa, em 30 de Dezembro de 1930, por ocasião da imposição das insígnias da grã-cruz de Cristo ao então governador militar, Brigadeiro Daniel Sousa, in «Discursos 1928-1934»).


Batalha de Coolela, travada em 7 de Novembro de 1895, durante a qual Mouzinho de Albuquerque esteve pela primeira vez debaixo de fogo.


«A vitória de Coolela e a ocupação de Manjacaze


Seja como for, nem todos se queixavam de falta de acção. A 26 de Outubro de 1895, cerca de 3000 auxiliares dos portugueses passaram a Ponte Chinavane sobre o Incomati, "lançando-se depois, como um verdadeiro vendaval, em razias até às proximidades do Limpopo". A 4 de Novembro de 1895, embora sem ter resolvido a maioria dos seus problemas, a coluna do norte pôs-se a caminho. Agora havia que evitar surpresas, como a ocorrida em Marracuene, quando o inimigo pela calada da noite se abeirara do quadrado português. Caldas Xavier, engenhosamente, adaptou a alguns carrinhos uma espécie de faróis que iluminavam até cerca de 60 metros de distância. Mouzinho de Albuquerque e os seus homens, agora reduzidos em número, ficavam com a tarefa de proceder à exploração do terreno. O avanço até à lagoa de Coolela, onde as tropas montaram acampamento, foi lento e difícil. Os animais iam ficando pelo caminho como que marcando de uma forma sinistra o terreno percorrido. Nunca as tropas portuguesas tinham estado tão próximas do kraal de Gungunhana, que distava agora apenas uma meia dúzia de quilómetros.

A noite de 4 para 5 de Novembro foi calma. O clarão dos holofotes denunciava a presença das forças europeias. Quando amanheceu a coluna colocou-se novamente a caminho, com os pelotões de Mouzinho de Albuquerque na dianteira. A dado momento os negros alvoroçaram-se. Os "impis" de Gungunhana esperavam a passagem da coluna estendendo-se numa linha de atiradores. Os portugueses, com uma calma rotineira, montaram imediatamente o seu quadrado. Os Vátuas logo revelaram a intenção de cercar os brancos. Trocaram-se tiros. Instalou-se a confusão. O capitão Sousa Machado foi ferido, mas não desmontou. Apenas mais tarde procurou tratamento, não desistindo de incentivar os seus homens. Eduardo Galhardo também permaneceu sempre a cavalo, de charuto na boca, impávido e sereno.

Pelas 4 horas da madrugada de 7 de Novembro de 1895, enquanto os brancos tomavam café, as tropas sofreram novo ataque na campina de Coolela por parte das forças afectas a Gungunhana, que contabilizariam uns 10 000 vátuas armados. Outras versões mais inflacionadas relataram um ataque levado a cabo por 16 000 a 20 000 vátuas. Muitos usavam espingardas Martini, mas de uma geração anterior às Kropatschek utilizadas pelos brancos. A força de Eduardo Galhardo contava menos de 600 homens. Os guerreiros vátuas desta vez não recuavam e partiam ao encontro da artilharia portuguesa com bravura. O quadrado português aguentou-se bem. Ao fim de 40 minutos tudo estava terminado. Quando soube da refrega António Enes comentou que "fora um rápido duelo do moderno armamento europeu com a força bruta do número, em que vencera facilmente o armamento porque o manejavam as tropas com imperturbável sangue-frio". Os portugueses sofreram 41 baixas, mas quase por milagre apenas contaram cinco mortos, apesar de três oficiais terem ficado feridos. Os brancos contabilizaram 305 baixas inimigas junto ao quadrado, sendo impossível apurar o número dos que tombaram a uma distância maior.

Tratava-se de mais um sinal de que as forças europeias iriam tomar conta da situação. Da refrega de Coolela, Eduardo Galhardo saiu como vencedor, dali seguindo com caminho aberto até Manjacaze. Mouzinho de Albuquerque também estivera em Coolela à frente da Cavalaria, mas apenas se limitara a assistir ao triunfo do coronel Eduardo Galhardo sem tomar um papel activo nas operações.

Mouzinho de Albuquerque assumiu um papel secundário em Coolela, onde fez o seu baptismo de fogo, mas até acabou por ser bafejado pela fortuna. Por pouco não foi atingido pelas balas dos africanos, mas perdeu o seu cavalo em pleno campo de batalha. Contou-se então a história da sua estranha premonição. Na véspera da refrega, quando um grupo de oficiais conversava sobre a possibilidade da ocorrência de um confronto com os nativos, Mouzinho de Albuquerque terá dito aos camaradas que "se a coluna se bater amanhã é necessário que algum oficial fique ferido", ao que alguém lhe perguntou por quê. Com o feitio altivo que o caracterizava, Mouzinho de Albuquerque, confiante, respondeu: "Para que se acredite que o combate foi sério". Outro replicou: "E se for o senhor?" O militar respondeu pronto: "Não desejo tanto, basta-me ter o cavalo morto debaixo de mim". Foi exactamente o que se passou menos de 24 horas depois.

O mito de Mouzinho de Albuquerque começava a tomar forma, mas a afirmação cheirava a bravata de quem não conhecia a realidade do mato. Com efeito, Mouzinho de Albuquerque nunca estivera debaixo de fogo. Pela primeira vez percebia que a guerra era algo bem concreto, admitindo que presenciara um "combate de povoação, pouco mais ou menos como os livros dizem que deve ser. Foi a primeira vez que fiz semelhante coisa e a vi fazer fora da serra do Monsanto".

Ao fim da tarde de 7 de Novembro realizaram-se as exéquias dos que tombaram em acção, num bosque próximo, debaixo das árvores, ficando o improvisado cemitério delimitado por um perímetro de arame farpado por causa das hienas. O coronel Eduardo Galhardo dirigiu as cerimónias fúnebres. Em dada altura ajoelhou-se e pediu uma oração pelos camaradas de armas desaparecidos em nome do rei de Portugal. Os homens seguiram-no no gesto. Todos se prostraram de cabeça descoberta e chapéu na mão. Seguiram-se três descargas do estilo e as cornetas tocaram em sinal de luto. O ambiente era extremamente emotivo.


Coronel Eduardo Galhardo



Ocupação de Manjacaze, última operação militar antes de Chaimite.




Mouzinho de Albuquerque no final da vida. Em Novembro de 1901, a escassas semanas da sua morte, foi promovido a tenente-coronel de Cavalaria.




Conjunto de espadas e o bastão de guerra de Mouzinho de Albuquerque.





Praça Mouzinho de Albuquerque (cerca de 1970).


Mouzinho de Albuquerque sentiu-se tocado pela cena. Nunca carta que dirigiu a um familiar, escreveu que perante tais circunstâncias "chega-se a ter inveja dos mortos". A atracção pelo fatalismo era já evidente. Agora era tempo de retemperar forças, tratar dos feridos mais graves e reabastecer os homens. Eduardo Galhardo pediu à Cavalaria para se deslocar a Chicomo, que ficava à distância de cerca de 60 quilómetros, com o objectivo de recolher víveres para soldados e animais, devendo servir-se do maior número de carregadores possível. Mouzinho de Albuquerque foi encarregado de tal tarefa, que não se adivinhava fácil. Tinha dois dias para a cumprir, devendo regressar a 10 de Novembro. Os acessos eram inexistentes e o caminho estava tomado pelos Vátuas. Ainda assim, retornou sem sobressaltos com 154 carregadores e mantimentos para três dias.

No dia seguinte, a 11 de Novembro, apenas quatro dias após a vitória de Coolela e com o ânimo retemperado, efectuou-se a marcha em direcção a Manjacaze. Os Vátuas, entre eles o próprio Gungunhana, já tinham abandonado a povoação. Supostamente, teria procurado santuário na África do Sul. Pelo caminho, os europeus sentiriam a presença de alguns nativos que pretendiam defender o kraal do seu líder. Seriam dispersados a tiro. As tropas depararam-se, então, com uma íngreme encosta que era necessário ultrapassar. Ao fim de uma hora de difícil escalada, a coluna chegou ao seu destino. O próprio Mouzinho de Albuquerque descreveu o que presenciou. Manjacaze era uma enorme povoação com cerca de 600 a 700 palhotas. No meio do recinto, destacava-se a palhota do régulo. O coronel Eduardo Galhardo deu instruções imediatas para se deitar fogo a esta cabana. As restantes seriam queimadas logo de seguida. O kraal encontrava-se abandonado. Mouzinho de Albuquerque lamentou-se de não ter mais 40 a 50 cavalos. Com as montadas convenientes teria apanhado o régulo que se pusera em fuga. O chefe vátua, sabedor da aproximação da tropa europeia, tratou de abandonar o local, retirada essa que animou ainda mais o espírito das tropas portuguesas.

A 14 de Novembro, todos regressaram a Chicomo. Agora era o tempo de fazer um balanço sobre os últimos sucessos militares. Aires de Ornelas, em carta para Lisboa, esclarecia que "o Xai-Xai já se avassalou, assim como todos os régulos chopes. O Bilene quer submeter-se e se o Punda o fizer fica realizado o que eu dizia: o país entre o Save, Chengane e o Limpopo está português". Com efeito, ainda antes de ser conhecido o desfecho da Batalha de Coolela, já alguns importantes chefes locais, como o de Xai-Xai, se tinham passado para o lado dos europeus. A sua fidelidade era importante não só porque se tratava de uma das mais importantes figuras das povoações ribeirinhas do Sul do rio Limpopo, como por ter abertamente hostilizado as gentes do Gungunhana para que os portugueses pudessem contar com a sua vassalagem. Outros, menos proeminentes, fizeram o mesmo. Dominava, ainda assim, um clima de terror entre estas aldeias, receosas dos castigos que poderiam vir a sofrer caso o "leão de Gaza" saísse vitorioso.

Todavia, os ecos da vitória branca de Coolela e do incêndio de Manjacaze surtiram o seu efeito, levando a que ainda mais chefes tribais passassem a prestar vassalagem aos brancos. Aires de Ornelas chegou a considerar que após a vitória de Coolela, o poderio militar dos nativos sofrera um duro golpe, ainda que faltasse proceder à captura de Gungunhana, que continuava em fuga. Pelo seu lado, Eduardo Galhardo e António Enes partilharam o entendimento de que, a partir de então, o temível vátua deixara de constituir uma ameaça.

Entretanto, aproximava-se a época das chuvas e, perante a perspectiva de agravamento das condições climatéricas, o bom senso aconselhava a suspensão temporária das operações militares. Para além do mais, os homens encontravam-se exaustos. Os desejos de Mouzinho de Albuquerque em relação a Gungunhana teriam de aguardar melhor oportunidade.

Quando as últimas notícias chegaram a Lourenço Marques, António Enes deu ordens para cessar as missões quando, eventualmente, se estava em condições de derrotar já o Império Vátua. O comissário, aparentemente, não procurava subjugar definitivamente o inimigo, mas apenas conter o seu ímpeto. Mouzinho de Albuquerque tinha uma opinião diferente. Para o capitão, o restabelecimento do domínio português apenas poderia ser conseguido à custa da derrota de Gungunhana, que estava ainda fugido. Pouco satisfeito com os últimos desenvolvimentos, terá comentado: "bem lamentado foi por todos que o diminuto efectivo da cavalaria e a vil cobardia dos auxiliares não permitissem efectuar uma perseguição que pudesse trazer-nos às mãos o régulo de Gaza».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«As Forças Armadas são o poder executivo da consciência nacional, o braço da Pátria, a Nação em Atalaia, a vigilância dos berços, o resguardo dos túmulos, a segurança do presente e do porvir. Nobreza não há maior que a da sua missão».

Batista Pereira (in «Directrizes de Rui Barbosa», 1938).




António Enes



Vista de Lourenço Marques em 1895. Nesta data o mais importante aglomerado urbano do Sul de Moçambique, elevado a cidade em 1887, contava apenas cerca de 3000 habitantes, dos quais aproximadamente 2000 seriam portugueses da Metrópole e da Índia.



Um aspecto do desenvolvimento urbano de Lourenço Marques no final do século XIX.




Alferes João Duarte Moreira, tenente Ayres de Ornelas e alferes Raul Costa, em Inhambane, em 1895, preciosos colaboradores de Mouzinho de Albuquerque durante as suas campanhas africanas.



Uma missa campal em celebração junto de um monumento erguido no local onde soldados portugueses combateram na Batalha de Magul (anos 1950). Ver aqui


«Uma das grandes inovações introduzidas pelo governo de António Enes, durante o seu segundo mandato, passou pela criação da chamada circunscrição indígena, novidade que seria colocada em prática no distrito de Lourenço Marques. Estas ditas circunscrições eram unidades administrativas que pretendiam substituir o poder dos chefes locais. As autoridades ao serviço dos europeus passariam a exercer as funções de administradores e de juízes, ou seja, teriam de zelar pelo inventário e distribuição de mão-de-obra, como também julgariam e puniriam todos os que abusassem dos critérios estabelecidos. Os nativos seriam divididos pelas tais circunscrições, encontrando-se estas subdivididas em regedorias.

Era necessário tratar a realidade daquelas paragens de acordo com as especificidades próprias da região, pois para o comissário "Moçambique precisa de um código administrativo, todo novo e feito de propósito para a província, e até com regras especiais para cada um dos seus distritos. Deixemo-nos de uniformidade e de simetrias! O vício fundamental da nossa legislação ultramarina é ser, em parte, a do Reino, em parte uma imitação, ou uma cópia (...) quando, pelo contrário, devia variar não só do Reino para o Ultramar, senão também de província para província do Ultramar, considerando também as variações naturais de toda a espécie que se dão dentro da mesma província". Já para os colonos, tal como na Metrópole, o território encontrava-se repartido por conselhos, e estes por freguesias. Na prática, a inovação introduzida pelo comissário visava dotar o governo colonial de uma maior autonomia, de modo a agilizar a gestão, o seu maior "cavalo-de-batalha" enquanto por lá andou.

António Enes também veio a revelar-se um comissário lúcido em termos militares. Apesar de ser um civil, foi a ele que a tropa ficou a dever o esquema global das campanhas de 1895. Em primeiro lugar, decidiu-se a resolver a questão da segurança nas "terras da Coroa". Foi igualmente graças à sua acção que os oficiais puderam contar com meios logísticos locais. Também defendeu desde a primeira hora o avanço no terreno baseado em colunas móveis e foi o comissário régio quem procedeu à reorganização militar da província. Sob a sua direcção política, nasceu a tal geração de jovens soldados que ganhou destaque nas campanhas de Moçambique. No seu tempo, a tropa adquiriu experiência de combate e obteve com custos mínimos os resultados que até então ninguém havia conseguido. No seu conjunto, as vitórias de Marracuene, Magul, Coolela e Manjacaze terão custado 14 baixas brancas, número insignificante quando comparado com os 5592 mortos deixados pela França em Madagáscar, na mesma altura. Foi este sucesso e traquejo operacional que esteve na base da criação de uma percepção muito característica dos chamados "africanistas". Para eles, o Império viria a revelar-se a própria razão de ser da nação. Sem Império, esta não se cumpria, ideologia [ou realidade] que os regimes políticos até 1974 não mais iriam abandonar.

Assim, os louros da campanha de 1895 ficaram a dever-se mais à acção estratégica, organizativa e política de António Enes do que ao voluntarismo de Mouzinho de Albuquerque, tardiamente chegado a Moçambique, ou à vitória obtida em Chaimite já no final do ano. A captura do Gungunhana (...) seria apenas um episódio, ainda que significativo, do esforço militar português na colónia do Índico. No seu conjunto, as operações desenvolvidas ao longo de 1895 representaram a primeira campanha "moderna" levada a cabo pelas Forças Armadas nacionais, vindo a servir de modelo para as que se seguiram.

Todavia, para a história, os feitos deste ano seriam associados ao militar, não ao paisano. Percebe-se a razão da preferência. António Enes, para além de não pertencer ao meio castrense, tinha um perfil discreto, um passado de homem de Letras cordato, apesar de se ter envolvido uma década antes em polémicas políticas contra a Coroa no jornal O Progresso. Já o capitão Joaquim Mouzinho de Albuquerque tinha uma aura diferente, mais própria dos heróis que conseguiam triunfar apesar de rodeados de dificuldades. A prisão do "leão de Gaza", o seu feito maior, levado a cabo por um punhado de brancos, que enfrentaram destemidamente milhares de africanos no seu reduto, tornou-se uma façanha difícil de igualar.

De resto, para além da sua figura cimeira, a campanha de 1895 iria ser o berço de uma geração de protagonistas como Eduardo Galhardo, Paiva Couceiro, Eduardo Costa, Freire de Andrade, Sanches de Miranda e Aires de Ornelas, a que se juntariam em breve Gomes da Costa e João de Azevedo Coutinho. Este grupo de "africanistas", os "centuriões" como lhes chamou René Pélissier, não contando Caldas Xavier, que morreu em Lourenço Marques logo nos inícios de 1896, iria tornar-se a curto prazo numa espécie de Ínclita Geração do final do século XIX. O heroísmo demonstrado por Mouzinho de Albuquerque à entrada de Chaimite só passou a encontrar comparação na Batalha de Aljubarrota.

A «geração» de Mouzinho de Albuquerque. Os companheiros de África. Sentados da esquerda para a direita: Dr. Baltasar Cabral, Mouzinho de Albuquerque e Aires de Ornelas. De pé, da esquerda para a direita: Andrade Velez, Gomes da Costa, Eduardo Costa, João de Azevedo Coutinho, João Galvão e Baptista Coelho.



Gungunhana na prisão em Lourenço Marques, acompanhado pelas mulheres capturadas pelas forças portuguesas.





O Kraal de Gungunhana em Manguanhana, estudado por Francisco Toscano.




Henrique Mitchell de Paiva Cabral Couceiro




(...) Este grupo de militares teve o condão de, pelas suas proezas nunca alcançadas nos anos recentes, despertar o país para a realidade colonial e de promover a afirmação de Portugal perante o exterior numa altura em que o prestígio nacional em África já tinha conhecido melhores dias. Os inimigos não eram as azagaias dos Vátuas, mas sim os apetites que a debilidade da presença portuguesa despertou nas potências europeias, nomeadamente na Grã-Bretanha e na rival Alemanha».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«Estudar com dúvida e realizar com fé».



«Portugal existe! É Portugal definido na Constituição e por cuja integridade nos batemos, a Nação toda, euro-afro-asiática, uma vez mais. Portugal que é de todos nós, asiáticos, africanos, europeus e seus miscigenados e que existe para todos nós, esses portugueses. Guiné, Angola, Moçambique, Metrópole... são de todos os portugueses e têm de existir para todos os portugueses, embora os que em cada parcela nascem ou se radicam tenham natural, espontaneamente, mais facilidades e mais possibilidades de se realizar localmente.

Mas é de todos, e todos os lugares têm de ser acessíveis a todos. De resto, na consolidação da nossa Nação, é evidentemente importante que os lugares de maior responsabilidade sejam cada vez mais preenchidos pelos melhores de todos os portugueses sem discriminações, como a Constituição prescreve. E os melhores, de entre cerca de vinte e cinco milhões de portugueses, hão-de ser de todo o Portugal! Por isso se considera errado (e de certo modo redundante) falar em termos de Angola para angolanos, de Cabo Verde para cabo-verdianos ou de Metrópole para metropolitanos... Portugal existe no seu povo, no seu território, na sua história, povo que somos todos, território que são todas as suas parcelas, história que é história de todas as populações, sempre a estudar melhor, a contar por forma mais entrelaçada, com mais compreensão, em termos mais humanos, globalmente mais autêntica.

Mas Portugalé também projecto. Todas as nações, se vivas, têm de o ser também. Nada que tenha vida é estático: vida é dinâmica, física e conceptual. As nações são alvos de projectos de outras nações e quase sempre se convertem em suas vítimas, se deixam de ser também projectos. Portugal começa a ser projecto na mente de D. Afonso Henriques. Continua a sê-lo quando se alarga até ao Algarve e o Infante D. Henrique impulsiona os Descobrimentos, é-o ainda ao longo da gesta de reis, navegadores, missionários, comerciantes e povo que, frente ao Oceano, arranca com o Oriente, o Brasil e a África, quando Salazar se bate por Goa, e agora que defendemos Guiné, Angola, Moçambique...

Não obstante, também conceitos ambíguos se infiltraram, por vezes, no pensamento das elites nacionais e deram lugar a acções contraditórias, à inclusão da Nação nos projectos de outras nações e aos estragos correspondentes.

Uma nação viva é, pois, sempre, também um projecto que implica a visualização do futuro, a sucessiva materialização dos objectivos nacionais: isso constitui vínculo que solidariza a cadeia das gerações e as compromete e responsabiliza. Vínculo, objectivo, futuro que ou estão presentes na mente, no coração, na personalidade dos responsáveis ou não haverá possibilidade de política, de governo, de destino próprio. É assim que às nações é corrente associar os guardiões de tais objectivos: Brasil/Itamaraty; Estados Unidos/Pentágono, Departamento de Estado; Rússia e China/Orgãos superiores do partido. Alguns tempos atrás: Inglaterra/Almirantado e Alemanha/Alto Estado Maior.

Entre nós, foi a instituição monárquica, muito tempo, por sua natureza e circunstâncias, guardiã dos objectivos nacionais. Após o advento da República, confiamos tal custódia, essencialmente, à pessoa do Presidente do Conselho, responsável pela estratégia nacional, solução que pode revelar-se demasiado frágil. Soubemos, até há pouco, de certa forma, compensarmo-nos, ostentando, na Constituição, em termos a ajustar, mas claros, simples e determinantes, o projecto da Nação que tem conduzido as grandes decisões dos responsáveis e que, felizmente, parece inscrever-se já no instinto da generalidade dos portugueses, como prova a adesão a tais decisões.

Portugal não é porém um vago e idealista projecto de Portugal. Seria poesia perigosa, arriscado idealismo, considerá-lo apenas em termos de atitude, de maneira de ser, de modo de estar, independente de corpo, só espírito. Portugal existe e é mais que aquilo que existe: a integridade, a unidade, agora uma vez mais ameaçada e pela qual nos batemos; a autenticidade na perfeita materialização de uma concepção original, humaníssima, que nos acrescenta, nos fortalece, nos projecta, nos agiganta a todos.





Vista geral de Lourenço Marques no primeiro decénio de 1900.



O paiol de Lourenço Marques, cerca de 1900. Foi demolido cerca de 1919 e o terreno foi aplanado como parte do grande Aterro da Maxaquene.



O cais de passageiros de Lourenço Marques, cerca de 1900.



Banda musical de uma missão religiosa na Beira, no início do século XX.













Meados do decénio de 1920. O Liceu 5 de Outubro ficava situado entre a Polana e o Alto da Maxaquene na Avenida 24 de Julho. Após a inauguração dos Liceus Salazar e Dona Ana da Costa de Portugal, nas suas traseiras, neste espaço passou a funcionar a Escola Comercial Azevedo e Silva.. Foi demolido no início do decénio de 1970.


A fachada a Nascente dos Avenida Buildings, na Avenida Aguiar, mais tarde Avenida Dom Luiz I (anos 1920).



O Jardim Vasco da Gama, meados do decénio de 1920. Foi considerado, após a "independência", o melhor jardim botânico em África.






Um leão no Jardim Vasco da Gama, meados do decénio de 1920. Todos os animais foram transferidos para o novo Jardim Zoológico em 1935.



O Jardim Zoológico de Lourenço Marques em construção (1933).










Anúncio de perfume n'O Ilustrado de Lourenço Marques (15 de Julho de 1933).



1933. Em primeiro plano, a Av. Pinheiro Chagas já parcialmente constituída em duas faixas.



À esquerda, o Aterro da Maxaquene, ainda "pelado".



À direita, junto ao Aterro da Maxaquene, os campos de futebol do Desportivo, ainda no local onde mais tarde foi feita a sede e a piscina, e a seguir o campo de futebol do Sporting.



À direita, o Aterro da Maxaquene e as instalações do Desportivo e do Sporting.







A construção da ponte Dona Ana sobre o rio Zambeze (1933).










1933


A Câmara Municipal de Lourenço Marques, pouco depois da sua inauguração, a 1 de Dezembro de 1947.



Acessos à Praia da Polana em Lourenço Marques (anos 1950).



Desfile de Carnaval na Baixa de Lourenço Marques (anos 1950).




Amália Rodrigues na inauguração da Tertúlia Festa Brava em Lourenço Marques (anos 1950).




Praça 7 de Março (início dos anos 1960).
















A casa avião, do arquitecto Pancho Guedes, em Lourenço Marques (anos 1960).



Eusébio (anos 1960).



A esquina da Avenida da República com a Rua Pêro da Covilhã, na Baixa de Lourenço Marques, cerca de 1970. 



Lourenço Marques (1960).


E será oportuno observar-se não parecer correcto que, na busca de melhores caminhos, alguns de nós nos apoiemos, sistematicamente, nas opiniões do fim do século XIX e princípio do século XX, pleno período colonialista, como se a história da doutrina da administração ultramarina se tivesse iniciado e cristalizado então. Arrimarmo-nos a tais opiniões para justificar, e preambular até, algumas decisões mais importantes, e mais discutidas, pode enganar-nos a todos. A notável geração que, em sua passagem fugaz mas incisiva, fulgurante, pela província, tanto ajudou a moldar a Moçambique, geração à qual se deve pensamento e acção nobilíssimos, e páginas as mais aliciantes da nossa literatura oficial ultramarina, pelo período conturbado em que viveu e pela distância a que actuou, cometeu, naturalmente, erros em várias das suas convicções e previsões, nos muitos sectores em que manifestou umas e arriscou outras. O Mundo, a África e o nosso País evoluíram de outra maneira... Se essa geração pudesse verificar que o código de trabalho rural se afasta cento e oitenta graus das suas concepções; que todos somos cidadãos iguais perante a Lei; que as Forças Armadas estão unificadas e que essa unificação terá sido condição essencial de não fracassar a luta contra a subversão; que a industrialização de Moçambique está em curso, mesmo a do algodão; que sem terem decorrido séculos, nem se haver modificado o clima de África, o alcoolismo não constitui bem o flagelo que imaginava; que os cajueiros - "árvore de vício e de ruína" - não só não foram arrancados, como constituem valor importante na economia da província; que os portugueses africanos e asiáticos não são como os descreve e julga; se essa notável geração, com seu íntegro carácter, pudesse aperceber-se dos erros em que naturalmente caiu, ela exultaria de satisfação, face aos resultados, corrigiria os seus pontos de vista, aderindo a novas perspectivas, e lamentaria reincidências, essas não justificadas, de outros... Não será, de resto, de estranhar que, tanto se gostando também de Angola, sejam apenas os homens que impulsionaram Moçambique, em período tão crítico, que se exaltam e se seguem?... Por que motivo esquecer as opiniões dos homens, menos antigos, que duraram mais, cujas concepções puderam ser mais correctas, de que tanto também nos orgulhamos (recordo a homenagem do Senhor Presidente do Conselho na sua última visita a Nova Lisboa) e que impulsionaram Angola? Não estaremos a revelar, a par da merecida veneração, estudo discriminado, carência imaginativa e sobretudo perigoso retrocesso?

Portugueses? O conjunto das populações de Portugal de todas as etnias, credos e religiões. Língua portuguesa: além do português, a língua da unidade, da unificação, mais rica, mais generalizada, os dialectos falados pelos portugueses, que tanto vão enriquecendo o português ["Da conquista da Ásia tomamos 'chatinar', por mercadejar, 'beniaga' por mercadoria, 'lascarim', por homem de guerra, 'sumbaia' por mesura e cortesia, e outros vocábulos que já são tão naturais na boca dos homens, que naquelas partes andaram, como o seu próprio português". De João de Barros, "em louvor da nossa linguagem", pórtico do "Pequeno Dicionário de Moçambique", de António Cabral (L. Marques, 1972)]. São os próprios movimentos terroristas Mpla, Paigc e Frelimo, que ensinam o português como língua de unidade. E enquanto alguns de nós passamos a exaltar a diversidade (sem reparar talvez que isso, nos limites, conduz lógica e inexoravelmente, à separação social, económica, étnica, política...), aqueles movimentos usam para o ensino, alguns livros comuns. Além de métodos, sistemas, doutrina e política...

Cultura portuguesa, as culturas dos portugueses, em natural e rápido processo de interpenetração, de aculturação, todas dando e recebendo, e tendo como núcleo, certamente, o que nessas culturas tiver mais valor, for mais resistente. Um quadro de Neves e Sousa, de Malangatana, de Preto Pacheco, uma poesia de Jorge Barbosa, de Bessa Victor, de Cochat Osório, um romance de Aquilino, um conto de Aurélio Gonçalves, uma morna, uma coladeira, um improviso dos chopes de Zavala, um batuque macua, um cantar goês, uma saudação bailunda, uma máscara quioca, uma cabeça maconde, um barro de Barcelos, um filigrama de Gondomar, de Bafatá, uma prata de Mocímboa, um mandrião de badia, um chapelinho de borla, um lenço de mulher cabinda... tudo são manifestações de cultura portuguesa. Mas já não é manifestação de cultura portuguesa, sendo, em muitos casos, antes agressão de mau gosto estrangeiro, destruir nomes vernáculos de terras para honrar pessoas ou outras terras...

Filosofia, ou pensamento autónomo, essencialmente o resultado desta concepção de País, Povo, Cultura e Língua, esta atitude, face ao mundo, de o construir a partir do heterogéneo, do disperso, do variado, numa parcela do mesmo mundo: Portugal. Unidade de variedade, unificação do variado, por estruturada harmonia em domínios mais amplos, implicando, fraterna e globalmente, movimento, caminhada, ascensão.

Filosofia que não é de confundir com a da unidade na diversidade de Rougemont. Este, suíço salvo erro, propõe a regionalização (verdadeira "cantonização") da Europa, com o objectivo de a destruir nas pátrias, para a poder reconstruir na federação das regiões.

Tal conceito aplicado à nossa Nação, dispersa e heterogénea, seria novo, moderno, mas perigosíssimo, fazendo correr o risco de se não ultrapassar a fase de destruição... É uma experiência a ser feita pelos outros e a ser observada (e usufruída) por nós...

De resto na sua entusiástica e interessante "Carta Aberta aos Europeus", que também é endereçada a portuguesas e portugueses, Denis Rougemont não refere uma só vez no texto, tanto quanto a nossa atenção permitiu descortinar, Portugal. Cita, uma vez, Lusitânia em transcrição de Paul Valéry ("Lusitânia é também um belo nome"). Não nos será difícil conjecturar em que "cantão" mentalmente nos inclui, e a partir de que efeméride entende dever ser corrigida a nossa História...».

Silvino Silvério Marques (Resposta, elaborada em Moçambique, em Maio de 1972, ao ínquérito conduzido por António Marques Bessa, Vítor Figueira Martins e Ana Maria Castelo Branco: «PENSAR PORTUGAL»).






Silvino Silvério Marques



Ao fundo, o Forte de São João Baptista de Ajudá na costa ocidental de África (Daomé, 1932), nos seus dois hectares de soberania portuguesa.


«Em todas as partes do mundo por onde andei, ao ver uma ponte perguntei quem a tinha feito, respondiam os portugueses; ao ver uma estrada fazia a mesma pergunta e respondiam: portugueses. Ao ver uma igreja ou uma fortaleza, sempre a mesma resposta, portugueses, portugueses, portugueses. Desejava pois que da acção francesa em Marrocos daqui a séculos seja possível dizer o mesmo».

Marechal Lyautey citado por Hélio Felgas («Estudos Ultramarinos», 25.º Caderno, p. 21, Academia Militar, Lisboa, 1967).


«Até à queda ocorrida no Forte de S. António, no Estoril, a 7 de Setembro de 1968, um incidente que incapacitou fisicamente António de Oliveira Salazar, fundador e ideólogo indiscutível do Estado Novo, as bases políticas que justificavam a presença de Portugal nos territórios situados para além do continente europeu eram sólidas e coerentes:

- eram eminentemente patrióticas;

- mantinham e reafirmavam a tradição histórica de séculos;

- apelavam a um alto ideal de humanidade, coesão política e integração social;

- estavam alicerçadas na moral e no direito;

- apelavam aos sentimentos profundos de autodefesa do povo português que lhes são próprios desde sempre;

- reflectiam, no essencial, no campo político e diplomático, a maneira portuguesa de estar no mundo, já com vários séculos de existência.

Enquanto estes ideais políticos fossem sentidos pela maioria da população e fossem vistos como corolário do imaginário da pátria portuguesa - que desde o século XV estava ligado à extraordinária expansão e diáspora dos portugueses - não haveria riscos de ruptura na nação lusa. Estes pressupostos estavam profundamente enraizados em todas as camadas da população e nas elites sociais. E nunca foi posta em causa, nem pelo povo, nem pela burguesia, nem pela nobreza, fossem eles cristãos-novos ou velhos, religiosos ou ateus, maçons ou jesuítas, liberais ou absolutistas, monárquicos ou republicanos. O consenso era geral e universal.

Apenas abriu brechas depois da fundação do PCP, em 1921, quando as resoluções das internacionais comunistas assim o determinaram. Até 1969, data da crise académica, esta atitude antinacional - como foram quase todas as defendidas por aquele partido - praticamente não se fez sentir, dada a sua reduzida implantação e ao combate que lhe foi movido pelas forças governamentais.

A partir de meados dos anos 60 do século XX, foi a vez da oposição dita democrática, herdeira das forças oriundas da I República, deixar de defender o projecto de Portugal do Minho a Timor, como sempre tinham feito. Recorde-se até que um dos ataques desferidos contra a monarquia tinha sido a adequada defesa e promoção dos nossos territórios fora da Europa.

Finalmente, grande parte da intelectualidade deixou-se seduzir pelo pensamento marxista, maoísta, trotskista e outros do género que abundavam então, sobretudo depois do desconchavo do Maio de 68 em França, desequilibrando-lhes o pensamento e a realidade das coisas, no que foram acolitados, noutro âmbito, pela tecnocracia económico-financeira, cujo eldorado era representado pela CEE. Tal ideário redutor, internacionalista e materialista acabou por se consubstanciar na fundação da SEDES (Sociedade de Estudos e Desenvolvimento Económico e Social), em 1970, já no consulado de Marcello Caetano. Foi este último, precisamente, o principal responsável pelas fissuras que puseram em causa a coesão do edifício político. Sobretudo por ter dado a entender que a situação que se vivia poderia ser transitória. Ora, ninguém pode pedir a um cidadão que morra definitivamente por uma solução transitória».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«O comportamento das populações de Cabinda, principalmente das elites e das personalidades mais influentes, sempre se revelou contrário à sua integração em Angola ou à simples dependência do governo de Luanda, invocando o tratado de Simulambuco que colocou o seu território e a população sob protectorado do rei de Portugal. [Pelo tratado de Simulambuco, assinado em 01 de Fevereiro de 1885, Cabinda passou a constituir um protectorado do rei de Portugal. A integração deste território em Angola parece resultar de um erro histórico por corrigir]. Por isso, sempre manifestou, de um modo geral, uma atitude de não colaboração com os movimentos angolanos de libertação, obstando a que as suas incursões tivessem êxito».

Tenente-General Manuel Vizela Cardoso (in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).










Cabinda



«"Pelos elementos já colhidos, os incidentes de Luanda foram provocados por grupos organizados, grupos extremistas pertencentes, essencialmente, ao Mpla e ao Fnla", revelou ontem o governador-geral de Angola, general Silvino Silvério Marques, numa entrevista de três horas concedida ao "Diário de Notícias" e durante a qual afastou as opiniões correntes segundo as quais a onda de violências, que durante uma semana causou cinquenta mortos e mais de duas centenas de feridos, teria sido provocada por dissidências raciais. Num comentário a recentes declarações públicas sobre o papel dos generais antes do Movimento do 25 de Abril, o Governador-Geral de Angola sublinhou haver"um grupo de generais que entenderam que só poderiam tomar uma posição firme e importante relativamente à situação que se passava no nosso País se obtivessem a convicção de que, com a posição que estavam resolvidos a tomar, não iam destruir a Instituição Militar, a sua Pátria, nem apunhalar pelas costas os camaradas que combatiam no Ultramar, nem desonrar a memória dos que ali tinham morrido".

Cinco malas de viagem, por abrir, estão juntas no átrio da residência do Governador-Geral. Quarenta e oito horas depois da inesperada vinda a Lisboa de Silvério Marques cinco malas ainda por abrir eram sintoma. Mas sintoma ambíguo: iminência de partida ou indefinição de permanência? E foi essa a primeira pergunta, momentos depois da saída do coronel Rebocho Vaz, antigo governador-geral de Angola, que nos precedera na sala onde decorreria a entrevista.

O general sorri, com o mesmo sorriso fatigado que lhe veríamos mais tarde quando o rádio portátil, aberto sobre a mesa de centro, transmitiu a notícia de que o matutino "a província de Angola" admitira, na sua edição de ontem, e citando fontes seguras, que "o general Silvino Silvério Marques não regressará ao posto de Governador-Geral do Estado". A mesma notícia, da agência noticiosa Lusitânia, acrescentava que o dr. Pinheiro da Silva era presentemente o Encarregado do Governo.


"Quanto à minha destituição, estão mais informados do que eu próprio", comentou o Governador-Geral, que sublinhou laconicamente:"Não sei nada a esse respeito". E corrigiu, depois: "O Encarregado do Governo não é o dr. Pinheiro da Silva, mas sim o dr. António Augusto de Almeida, a quem transmiti poderes antes de embarcar".

Cinco perguntas foram deixadas em suspenso por um jornalista da rádio, que ontem mesmo entrevistou o Governador-Geral de Angola. Ouvidas as respostas do general, meditadas as opiniões, o jornalista sintetizou as suas conclusões, perguntando:

1. É ou não verdade que são brancos os presos ligados ao princípio dos incidentes?

2. É ou não verdade que são presos negros apenas depois dos incidentes?


3. O Governador-Geral afirma não ter elementos concretos para saber apreciar os acontecimentos. Para ele, afinal os acontecimentos de Luanda dão-se porque há extremistas da ambos os lados. Não há grupos organizados, não há interesses espezinhados - não há, em suma, tensão racial.


É ou não é verdade que existe uma realidade colonial em Angola? É ou não é verdade que os brancos são a classe no poder e os negros a classe dominada?

4. O Governador-Geral de Angola acusa elementos da extrema-esquerda ligados ao Mpla e ao Fnla de estarem por detrás destes incidentes. São suposições tiradas de emissões de rádio ou possui provas concludentes do facto? Se sim, porque não foi feito já o processo?


5. O Governador-Geral de Angola, general Silvino Silvério Marques, não repudia o seu mandato de Governador-Geral de Cabo Verde e de Angola no tempo do anterior regime e afirma ser considerado geralmente como o defensor, o amigo, o pai dos africanos. Serão da mesma opinião os africanos de Cabo Verde e de Angola? 


Estas interrogações, deixadas "no ar", no final de uma emissão, ontem duas vezes radiodifundida, radicaram-se como dúvidas dos próprios ouvintes que as escutaram. Pertinentes, à luz das notícias chegadas a Lisboa nos últimos sete dias, elas ficariam, no entanto, sem resposta por parte do visado. E foi na curiosidade imediata de escutar o que Silvino Silvério Marques teria a dizer aos milhares de pessoas que ouviram o interrogatório pendente, que a nossa reportagem se alterou, hora e meia depois de iniciada. O General acedeu. Eis as suas respostas, precedidas dos indispensáveis comentários para a compreensão das perguntas, que pressupõem a extensa entrevista que fora concedida.












"Se efectivamente se considera o princípio dos acontecimentos a morte do motorista de táxi, e se apenas se tem em vista os presos, efectivamente os únicos que se prenderam foram europeus ligados ao incidente depois ocorrido no muceque. Que daqui se tirem grandes ilações, parece-me perfeitamente primário. Antes da morte do motorista, há todo um contexto de agitação, de enervamento, na cidade de Luanda, iniciado com as manifestações que decorreram na altura em que lá foi o senhor ministro e mantido com a liberalização da Rádio e da Imprensa e à qual se não estava habituado. É evidente que esse contexto desencadeou forças, ansiedades, aflições e preocupações, que não podemos deixar de ligar à cadeia dos acontecimentos".

Esta a resposta à primeira pergunta radiodifundida.


Nela, o Governador-Geral Silvino Silvério Marques sintetizou o que antes havíamos anotado: a sucessão dos incidentes no cinturão urbano de Luanda deveu-se - disse - a um conjunto de factores e não a uma atitude propagandeada, embora esta tivesse surgido depois, na sequência de um ambiente psicologicamente favorável.


"O incidente original que provocou estas perguntas (após a morte do motorista europeu) foi originado essencialmente por europeus. Talvez exclusivamente por europeus - o que eu neste momento não posso afirmar com segurança absoluta, porque é muito natural que num incidente como este, os presos - ou a maior parte deles - sejam europeus. Mas que daí se tirem grandes ilações, também me parece profundamente primário.

Esta resposta à segunda pergunta, concretiza a posição do general Silvério Marques, segundo a qual é errado forçar uma interpretação de divergência racial para explicar a última semana em Luanda.

Diria depois o general Silvério Marques, respondendo à terceira interrogação do nosso camarada da Rádio:


"Vamos por partes. Eu tenho elementos concretos e apreciei os acontecimentos. Dá-me a impressão que o entrevistador, ao fazer estas perguntas de fim de entrevista - que não sei se entre nós são comuns - achou que eu não teria elementos concretos para apreciar a situação. Mas é evidente que os possuo. Não serão documentos, na medida em que antes do final de um inquérito o que existe são informações colhidas por conversações com os inquiridores; relatos fornecidos por entidades directamente envolvidas nos problemas e na sua resolução; - são perguntas e respostas que fazemos a pessoas que consideramos importantes no processo. É tudo isso que pode fornecer dados concretos, embora os definitivos só apareçam, naturalmente, no fim do processo.

De resto, em casos de alteração da ordem pública, em casos de guerra, os elementos são fornecidos pelas pessoas e pelos documentos que se conseguem. Talvez aproveitasse a muita gente que tudo fosse sendo exposto no decorrer do inquérito - mas é mais eficiente e até mais leal fazer revelações definidas quando puderem aparecer em termos de conclusões. Portanto: existem elementos concretos, que recortam as opiniões de muita gente envolvida.

Quanto à existência ou não de grupos extremistas - sublinhou depois o Governador-Geral - a ideia que tenho é de que há efectivamente grupos organizados nos muceques, grupos extremistas pertencentes ao Mpla e ao Fnla. Esses grupos desencadearam o processo dos muceques. Do que eu não tenho conhecimento, embora admita que existam, é da existência de grupos de europeus ligados também a esses acontecimentos. Tanto quanto chegou ao meu conhecimento e tanto quanto sei, ao conhecimento do sr. general Comandante-Chefe, não foram detectados".

Respondendo à quarta pergunta, disse o general Silvino Silvério Marques:

"É muito complicado definir o que é uma realidade colonial. Se, por exemplo, os homens de Trás-os-Montes ou do Alentejo tivessem uma tez bastante escura, pois era possível haver quem dissesse, existir aqui uma realidade colonial. Se o que se pretende dizer, é que há umas determinadas pessoas que, mercê da história, mercê das circunstâncias, em Angola, como em muitas outras partes do mundo, detêm ainda as alavancas da economia - até certo ponto, e cada vez menos, as alavancas do poder constituído - e que ali essas alavancas são detidas por pessoas de origem europeia, com mais facilidades na sua educação e na sua ascensão, pois digo que sim. É patente a toda a gente. Mas que cada vez isso será menos assim (porque cada vez existe menos uma estrutura de auto-sustentação do sistema), também o afirmo".

Pausadamente, interrompendo-se aqui e além por um telefonema (dois de Luanda) ou por alguém que chegava, o general Silvério Marques parecia, no entanto, não perder o fio condutor do seu pensamento."



Funeral das cinco vítimas de 11 de Julho de 1974, no Cazenga.



Levantamento de 15 de Julho de 1974 contra a falta de segurança nos muceques de Luanda.










"As próprias dificuldades que o mundo português atravessa - disse também - farão com que cada vez seja menos representada por tons de pele a diferença entre as camadas humanas e os poderes detidos. E, de resto, cada vez os poderes se nivelarão mais".

Respondendo à mesma pergunta, que considerou repetição da que antecedeu, o general disse:

"O processo de inquérito em casos destes é muito complicado, como é evidente. Mas está em curso. E as suas conclusões serão publicadas. No entanto - e como já afirmámos -, haverá alguma demora. Das investigações está encarregada a Polícia Judiciária, dada a extinção de outras polícias a quem anteriormente incumbiam estas tarefas. Sobre ela pesa, de momento, grande sobrecarga de trabalhos".

Mais tarde, o Governador-Geral referiu-se às emissões de Rádio citadas pelo jornalista na sua pergunta. Tratava-se, com efeito, de um elemento importante que Silvério Marques nos havia igualmente mencionado, quando o interrogámos sobre a discrepância entre a sua afirmação de que elementos dos movimentos de libertação teriam instigado as desordens nos subúrbios e as declarações públicas de dirigentes desses movimentos, apelando para a calma e para a ordem. O general dissera-nos, então, não ter conhecimento desses apelos. Ao contrário, soubera de emissões de Rádio Brazzaville instigando à violência.

"Não estão por detrás das minhas convicções apenas emissões de rádio. Há outras provas: gente presa e todo um conjunto de fontes que nos deram a ideia exacta da forma como o processo se iria auto-sustentar: ao nível do Mpla vão passar-se em breve circunstâncias políticas de grande gravidade para a história do movimento e do seu futuro. Sabe-se que se procura a realização de um Congresso; que o Mpla está, no exterior, dividido em várias facções; que uma dessas facções procura, de qualquer forma, ganhar prestígio; que a Fnla acompanha, sempre em paralelo, o Mpla e procura que este se não distancie muito. De tudo isto, é de inferir que se criou uma situação muito propícia a tentar instalar a guerrilha urbana, de resto muito difícil - como acentuei - de radicar".

Agora, resolvem jogar tudo por tudo. E para quê?

O general Silvério Marques responde:


"O que se pretendia era, através de um certo número de incidentes nos muceques, destruir os comerciantes ali radicados; criar ali grandes carências; levar a população dos muceques, depois de destruídas as suas lojas, a ter necessidade de assaltar outras lojas - e criar assim, já fora dos subúrbios, uma acção auto-sustentada".

Depois de explicar o alcance das medidas tomadas - suprimento intensivo das populações e simultâneo corte das possibilidades de municiamento dos grupos responsáveis através de apertada fiscalização - o Governador-Geral precisou:

"Estou convencido de que não existem nos muceques hoje em dia, depósitos de armamento e que os planos referidos foram, como disse, um tanto precipitados, baseados sobretudo na confiança de que um grande movimento de massas manteria aceso o processo desencadeado".

Noutro passo da entrevista, e depois de frisar que ainda não foi apurada a autoria do assassínio do motorista de táxi, o Governador-Geral sublinhou que não houve no dia 11 - o primeiro da série de incidentes -, atrasos por parte do Governo-Geral na participação pormenorizada do que acontecera e do que podia acontecer a quem, presentemente, detém todos os efectivos policiais, militares e paramilitares capazes de garantirem a ordem pública.

A nível de Governo-Geral - afirmou o general Silvino Silvério Marques -, medidas como a da suspensão do Campeonato do Mundo de Hóquei ("havia informações de que a presença de equipas seria aproveitada para uma tentativa de alastramento das desordens"), não se fizeram esperar. E as restantes surgiram com a rapidez possível - disse. Nas suas declarações, acentuou depois, que "os incidentes deverão ligar-se ainda a mais dois tipos de incidentes programados: os que seriam provocados com a estada do conjunto espanhol "Aqua Viva" e os que estariam esboçados quando da visita do Presidente Spínola a Angola".





"Tudo isto em conjunto - sublinhou - proporcionou uma altura favorável à tal tentativa, a que chamei desesperada, de conseguir grandes efeitos a partir da massa humana dos muceques. Massa humana - disse também - que se não respeitou como até aí se tinha respeitado. Que correu sérios riscos e em relação à qual afinal, não aconteceram coisas gravíssimas, que podiam ter sucedido. Podia-se ter desencadeado retaliações sobre os muceques (terríveis retaliações que não houve), na medida em que os comerciantes daqueles bairros desapareceram todos. Nada disso, no entanto, aconteceu porque foi possível acudir à população. Apesar de todas as dificuldades, a segurança atingiu o nível necessário. Conseguiu-se valer aos próprios comerciantes, alojando-os e inclusivamente assegurando-lhes indemnizações".

Finalmente, em resposta à última interrogação colocada no referido programa de rádio, o general Silvino Silvério Marques disse:

"Será fácil à Informação saber o que pensam os cabo-verdianos do meu tempo e os angolanos do meu tempo, do meu governo. Perguntar aos cabo-verdianos de agora e aos angolanos de agora aquilo que foi o meu governo há dez anos atrás, é capaz de não propiciar uma opinião fiel. Os governos têm de ser vividos, compreendidos e julgados no seu tempo. Eu desafio a pessoa que fez a pergunta a interrogar os cabo-verdianos adultos desse tempo, os angolanos adultos desse tempo".

Três horas estavam decorridas. Silvino Silvério Marques escuta a última pergunta e responde:

"Quero significar, para não haver quaisquer dúvidas, que sou muito amigo e admiro muito o actual Comandante-Chefe de Angola. E considero importante a sua actuação em toda esta conjuntura.

Simplesmente, com a Revolução de Abril, com o Movimento das Forças Armadas e com determinadas disposições tomadas em Angola pelo sr. general Costa Gomes, tudo o que era informação - ou praticamente tudo - e tudo o que era segurança, passou à dependência do general Comandante-Chefe das Forças Armadas e do Movimento. Daí que aspectos ligados à informação e ligados à segurança, em que se pede que o Governador diga, concretize e responda, resulte de relatos, contactos e conversas e, sobretudo, do que chega à Polícia Judiciária, pois só essa depende de mim".

Depois de salientar a sua preocupação de"não intrometer as funções civis que desempenha com as funções militares dos generais seus camaradas", o Governador acentuou: "Relativamente aos generais, de resto, algumas restrições foram feitas, nos últimos tempos, por jovens oficiais generais".

E a terminar:

"Há um grupo de generais que entenderam que só poderiam tomar uma posição firme e importante relativamente à situação que se passava no nosso país, se obtivessem a convicção de que, com a posição que estavam resolvidos a tomar, não iam destruir a Instituição Militar, nem a sua Pátria, nem apunhalar pelas costas os camaradas que combatiam no Ultramar, nem desonrar a memória dos que ali tinham morrido"».

«EXPLICAÇÕES A INCRÉDULOS» (Entrevista a Silvino Silvério Marques concedida a Carlos Pinto Coelho e baseada nas perguntas lançadas para o ar, quando a gravação ia ser iniciada, por um locutor do «Rádio Club Português» como surpreendente remate de outra entrevista do autor que havia sido gravada dias antes por aquela estação. Publicada no «Diário de Notícias», de 23 de Julho de 1974).


«Na origem deste contexto da desolada vida angolana surgira em Luanda, em Julho de 1974, a "branca flor", o almirante de pacotilha Rosa Coutinho, com o seu braço armado, um triunvirato tenebroso constituído pelos majores Pezarat Correia e Emídio da Silva e pelo capitão Batalha, amparados por satélites do MFA, muito "esquerdistas". Pairando sobre esta camarilha, o comandante Correia Jesuíno, mentor da Comunicação Social. Na Junta Governativa, além de Rosa Coutinho, o general Silva Cardoso e o comodoro Leonel Cardoso.

Sou testemunha das felonias praticadas por eles. Da sua campanha de raivas desvairadas, inspirada em ideologias estranhas ao povo português e até à idiossincracia dos autóctones angolanos.



Pezarat Correia










Não os travaram escrúpulos para chegarem aos objectivos previamente marcados na estratégia leninista e em que os próceres revolucionários portugueses são meros comparsas, títeres puxados por cordelinhos visíveis, maorinetas que se agitam e estouvadamente dançam ao som e ao ritmo das "balalaikas", músicas aberrantes, que não podem ter eco no peito dos portugueses.

Assim se esboçou o bailado macabro de Rosa Coutinho, que vagueou pela castigada terra de Angola, Judas sem honra, sem integridade, sem patriotismo. Não vendeu os portugueses ao diabo por trinta dinheiros, mas, vilmente, trespassou-os em leilão de escravos, a quem pagou mais no mercado do Leste.

Rosa Coutinho empurrou-nos, inexoravelmente, para o abismo. Patrulhas do MPLA substituíram, por ordem do "almirante vermelho", os agentes da PSP. Raramente as autoridades portuguesas intervinham, mantendo-se à parte, no gozo mórbido de escandalosos desmandos. Quantos mais morressem, menos regressariam a Portugal. Isso não obstou a que se expulsassem os primeiros oito portugueses, entre os quais o capitão Mendonça. As vítimas pagaram como se tivessem sido algozes.

A nomeação do almirante Rosa Coutinho para presidente da Junta Governativa desfez as nossas últimas dúvidas, que de esperança já não falávamos. Demasiadamente conhecíamos a sua cor política, o ódio e o desejo de vingança que alimentava contra a FNLA que o aprisionara no Zaire, que o mantivera no cárcere, que o sujeitara a sevícias e indignidades que ele talvez só não perdoava, porque tinham sido praticadas em público. Que um elemento da PIDE tivesse arriscado a vida para o libertar não contava para ele. Ia para Luanda sem intuitos de equilíbrio ou de justiça. Ia, não para governar, mas para obedecer às ordens dos seus mentores políticos e para se vingar. De antemão o sabíamos.

O capitão Seara procurou-me para me comunicar que ele e o seu grupo iriam ao aeroporto abater Rosa Coutinho, mal ele desembarcasse do avião. Tentei dissuadi-lo num primeiro encontro. Insistiu. Veio de novo, acompanhado por três "gorilas". Medidos prós e contras, convenci-o de que a consumação do atentado acarretaria terríveis represálias para a etnia branca e prejudicaria, irremediavelmente a FRA.

Rosa Coutinho (a "branca flor") teve os seus percalços, possivelmente assustou-se com determinados tipos de alteração da ordem pública, decerto provocados, muitos deles, por infiltrações de elementos da LUAR e de agentes do PCP. Daí, impor o recolher obrigatório às 21 horas.

Na primeira noite, a população foi para a rua em massa. Intermináveis filas de automóveis buzinaram até o raiar do sol. As bandeiras da UNITA flutuaram em ruas e largos, agitadas com frenesi.

Um pandemónio, de absoluto desrespeito por Alva Coutinho. Desfeiteando-o abertamente, a multidão percorreu a noite, gritando e aclamando Portugal e a UNITA, vexou, agravou e insultou o presidente da Junta Governativa. "Democraticamente". Rosa Coutinho quedou-se, mudo, no palácio.

Fosse como fosse, a vida degradava-se, com a multiplicação de conflitos. Chegou-se à ofensa suprema de arriar a bandeira nacional no muceque do Golfe, de a espezinhar e rasgar, substituindo-a pela do MPLA, perante a passividade de forças portuguesas.

Isso foi razão de um episódio que retrata, fielmente, Rosa Coutinho.

Sentindo o insulto no coração, a etnia branca dirigiu-se ao palácio para manifestar a sua indignação. À frente, a senhora Emília Ferreira, vendedeira de peixe no mercado de Quinaxixe, Maria da Fonte angolana, que, ao volante de um camião se embrenhava na mata, a fim de transportar alimentos para a UNITA, de que era aderente.















Ver aqui e aqui



Maria Ferreira, com um grupo de companheiros, entrou no palácio e desafiou Rosa Coutinho. Das palavras se passou aos actos e houve quem deitasse as mãos ao pescoço do marinheiro fantoche, que, apavorado, saltou por cima da secretária, para fugir pela janela do gabinete.

Rosa Coutinho, que sempre se mantivera imperturbável, cumprindo ordens "vermelhas", que não atendia queixas, nem reclamações, porque, para ele, tudo se resumia a boatos, desta vez convenceu-se, finalmente, de que nem tudo eram boatos. Estou a imaginá-lo, orelhudo e ridículo, a pular para a mesa, na cobardia da fuga.

Descobriu, no incidente, uma das raras verdades que viria a proferir mais tarde, em Lisboa: Angola não era para timoratos.

(...) Rosa Coutinho viajou para Lisboa, onde produziu muitas afirmações interessantes, mas só duas verdadeiras: a de que 85 por cento da população de Angola ainda não optara por qualquer ideário político, cabendo aos brancos escolherem, de acordo com as suas convicções, um dos três movimentos de libertação [salvo seja!]; e que Angola não era para timoratos.

Simplesmente, o "almirante vermelho" olvidou que os brancos tinham de ser timoratos porque não podiam enfrentar, desarmados (e fora ele quem lhes roubara as armas), os militares, os movimentos de libertação e os marginais que infestavam a cidade.

Quem habita a civilização, uma cidade ordenada e em paz, não concebe o que foi a vida em Luanda nesses tempos. Saqueava-se, roubava-se e matava-se, dia e noite, no centro ou nos subúrbios.

Rosa Coutinho voltou a Luanda, quando se realizou a famosa conferência entre uma delegação portuguesa e outra da FNLA, a bordo do iate Mobutu, no rio Zaire. Perdi, como numerosíssimos documentos do meu arquivo pessoal, a minuta do encontro. Em todo o caso, sei que se esclareciam e definiam posições, comprometendo-se a FNLA a respeitar antigos combatentes e que aceitaria o prazo de um ano para a transferência de poderes. O acordo consta de um comunicado da FRA, que bastante contrariou os que o queriam manter em segredo.

Em 7 de Setembro de 1974, deu-se a revolta dos adversários da FRELIMO, como repúdio pela entrega de Moçambique, acordada em Lusaka, à minoria liderada por Samora Machel, e desagravo pelo enxovalho da bandeira nacional, arrastada pelas ruas de Lourenço Marques. Negros desvairados cometeram as maiores vilezas. Contra eles, os portugueses saíram de suas casas, entre os quais Gomes dos Santos, símbolo da razão dos homens espoliados; e o dr. Vitor Hugo Velez Grilo, meu amigo de sempre e irmão por ideal. A capital moçambicana estremeceu, no espasmo final de uma cidade civilizada.

(...) À lupa de um pragmatismo desapaixonado, o Acordo do Alvor fez recuar os angolanos em décadas de civilização. Vaal Neto, instruído e consciente, desabafou, eufórico, na vitória de um grande comissário, mal chegou a Luanda, vindo do Algarve:"Porreiro! Com a independência, irmãos, já não precisamos de trabalhar!" A Pátria dos angolanos eram os portugueses que lha davam. Os mentores do "25 de Abril" quiseram ignorá-lo. Negaram muitas das realidades positivas da acção dos portugueses em África.

Arredaram as causas para se aferrarem à superficialidade dos efeitos. Construíram sobre areia, viciaram o baralho, desfalcando-o do realismo e abusando da sincera honestidade dos parceiros.

Durante séculos, os portugueses ousaram lutar pelo seu destino. Em Alvor não enfrentaram os próprios sentimentos. Gatos a retirar sardinhas das brasas, taparam os ouvidos ao passado e assinaram a rendição do Ultramar. E os que lá estavam? E os que estavam cá?

Foi desprezada a História e a Razão. Em Alvor, calcaram honra e dignidade. Entretanto, séculos fora, oferecera-se uma Pátria aos que a não tinham. Uma língua aos que se desentendiam nos dialectos. A paz, aos que se combatiam. A valorização da economia, sem desarticular ancestralidades.

O Velho do Restelo apodou de loucura a era dos Descobrimentos. Alvor confirmou que foi ele o único português com os dons de um mágico profeta. Mas apetece dizer, como Dante, na Divina Comédia:"Por mim, por aqui, se vai parar à cidade das lágrimas e da dor".

O Governo de transição tomou posse em 31 de Janeiro de 1975.

De início se viu, pela heterogeneidade dos seus membros, pela sua vaidade, pelo seu orgulho "de destruição", que não dobrariam o Cabo das Tormentas.














Chegada de Agostinho Neto a Luanda (4 de Fevereiro de 1975).








Agostinho Neto e alguns dirigentes do MPLA






















Ministros e secretários, na arrogância de altos cargos para que não estavam preparados; no desconhecimento da actualidade angolana, motivado por anos e anos de exílio; na petulância do mando irreflectido, não aceitaram os préstimos da etnia branca, que, lealmente, queria colaborar na obra de um país novo. Astros guindados à pressa para o firmamento politico, cada qual "puxava" para o grupo étnico a que pertencia. Nenhuma bússola os pôde guiar para o caminho da unidade.

Tanto se desentendiam, que os comunicados oficiais eram lidos em português e repetidos em sete línguas que eles chamavam nacionais, mas que eram, apenas, dialectos. Uma como que unidade-desunião, que porfiaram por emendar pelos mais ineficazes meios.

Leis, ninguém as cumpria. Era a inversão dos valores, a anarquia em todos os sentidos.

Em princípios de Outubro, o MPLA, embora tivesse expulsado de Luanda os outros dois movimentos, escassas ilusões alimentava, porque a sua administração se confinava a parte dos distritos de Luanda, do Quanza Norte, do Quanza Sul e a bolsas de Malanje e de Henrique de Carvalho.

Em 11 de Novembro festejou-se a independência.

Na noite de 10 para 11, com mortos e feridos em funestos tiroteios, terminava euforicamente a presença portuguesa em Angola.

No céu escurecido, viam-se o rebentar das granadas de morteiros e as balas tracejantes em fogo de artifício que nos enlutava.

Dias antes, tinham sido retiradas as estátuas existentes em Luanda, excepto a de homenagem aos Combatentes da Grande Guerra, talvez pelo seu peso e volume, talvez porque pensem em a aproveitar, mudando-lhe as legendas. Fosse pelo que fosse, a"Maria da Fonte", como chamavam à estátua, lá ficou. As restantes foram despedaçadas entre arruaças e gritos da malta de selvagens, que nos fazia chegar lágrimas aos olhos. Tive a desfortuna de assistir à depredação dos monumentos a Luís de Camões e a Salvador Correia.

No dia 10, à tarde, o alto-comissário, Leonel Cardoso, mandou arriar a bandeira nacional, meteu-a debaixo do braço e embarcou numa fragata. Do navio, dirigiu a sua mensagem de despedida, fria e protocolarmente. Aparentemente, não o comoveu sentir que enterrava - maestro de uma peça fúnebre, que os vindouros condenarão - cinco séculos de História.

Agostinho Neto foi empossado, a 12, no cargo de Presidente da República Popular de Angola, numa cerimónia realizada no palácio.

Notou-se, de imediato, uma inesperada modificação dos negros. Mostravam-se menos arrogantes e ostentosos. Parecia ser possível restabelecer a convivência com eles, que se tinham quebrado barreiras de retraimento e desconfiança, acentuadas nos últimos meses.

Sol de pouca dura, todavia. A hipersensibilidade da população veio ao de cima, devido à escassez de alimentação. Protestavam e gritavam críticas ao Governo, já então angolano."Que nos valeu mudar de bandeira e sermos independentes, se agora temos fome?" - ouvi num supermercado de prateleiras vazias.

E a fome é má conselheira. Os géneros em pequena quantidade e a preços fabulosos, produziram novos focos de desordem e de indisciplina social.

A "adjudicação" de Angola ao MPLA era, para nós, ponto assente pelo Governo de Lisboa, que, clara, sistemática e perseverantemente, apostara em retalhar o Ultramar português em Estados comunistas.

Descolonização, a partir do "original processo", é vocábulo de vergonha. Debruço-me sobre uma profecia, que alguém fez, em 1946:"Tempos houve em que os portugueses se dividiam acerca da forma de melhor servir a Pátria; talvez se aproximem tempos em que a grande divisão, o inultrapassável abismo, há-de ser entre os que servem a Pátria e os que a negam". Exemplar de genocídios - nisso o foi. Mais de trezentos mil mortos em Angola, segundo números divulgados pelos movimentos de libertação. Mais de trezentos mil mortos, em assassínios ou pela fuga desordenada ao martírio.




























Largo Diogo Cão (Luanda, anos 1960).






Benguela (anos 1950).





















Casino da Senhora do Monte (Sá da Bandeira, anos 1960).



Capela de Nossa Senhora do Monte (Huila, Sá da Bandeira, anos 1960).















Malanje (anos 1960).


Vila Salazar (anos 1960).



Pungo Andongo (anos 1960).










Fuga de Angola




















Catorze anos de guerra em 3 frentes coloniais não custaram tantas vidas [nem de perto nem de longe].


Pairando acima dos culpados, a figura em corpo inteiro dessa caricatura paradoxal de militar e político, balanceando-se, como boneco sempre-em-pé, entre o sim e o não, untuoso e ambíguo, aplaudindo prepotências e sancionando desmandos contra quem esteve a seu lado e o serviu: Costa Gomes, que foi comandante-chefe das Forças Armadas em Angola. Um general que mudou de pelo como a osga, requintado no mimetismo do camaleão. Leiam-se o "Extracto de Entrevistas que Definem a Doutrina Sócio-Político-Militar do Comandante-Chefe em Angola - general Francisco da Costa Gomes", edição da CCFAA, Luanda, 1972. E tirem-se conclusões, comparando o seu comportamento depois do 25 de Abril.

Deixei para o fim Mário Soares, ilusionista do socialismo, o "bolacha", como o alcunhavam os alunos do Colégio Moderno. (...) Mário Soares terá de ser julgado, por muito que me doa. Jactando-se de ter acabado com os ricos em Portugal (melhor fora que tivesse acabado com os pobres), Soares sujeitou o seu partido a cão de caça do PC, sujeitando-se a ser capa das sujas lucubrações de Cunhal. E ei-lo, misto de menino de coro e de menino-demónio, a precipitar a tragédia. A descolonização não pode ser descrita em algumas pinceladas, muito embora de cores sombrias. Há que lhe dissecar as causas, enumerar os malefícios, retratar os autores, carregar-lhe os contornos sem tibiezas, sem ódio sufocante, nem piedade hipócrita dos falsos cristãos. Para crime tão monstruoso é indispensável reflectir, averiguar onde começa a desonra dos responsáveis, onde acabou a desvergonha dos vendilhões.

A descolonização bem merece que se lhe dedique um livro branco, em que seja exposto e narrado em pormenor o calvário de quantos deixaram, em África, a  vida, os bens, o coração. Um livro branco sobre os vivos e os mortos, em que os vivos são os mortos e os mortos são os vivos. Um livro branco que estabeleça os parâmetros dos territórios onde pousou a traição.

Sorriam-se de troça ou a pele se lhes arrepiava de horror, quando os opositores do antigo regime repetiam a frase de Salazar: "Estamos orgulhosamente sós".

Passado o histerismo de uma liberdade que o não é, abertas as janelas do País para o Mundo, bradando, em gritos de "vencedores", que descolonizámos, ficámos "vergonhosamente sós".

"A Europa está connosco - vangloria-se Mário Soares: Qual Europa? Quais os estímulos moral e material que recebemos dela?

Desfaçatez? Desequilíbrio mental? Megalomania? Ginástica política?

A quem serve a demagogia?

Mário Soares, pregoeiro de um País em leilão, não se deteve no preço. Muito? Pouco? Nada? Como se desfolhasse malmequeres... Se a Europa está connosco!...

As lágrimas não podem ser gargalhadas. O silêncio, na barra do tribunal popular, é pactuar com os criminosos.

Eu, refugiado, não me calarei».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«No caso de Angola, aquando da nossa data de referência [24 de Abril de 1974], podemos afirmar que, pelo menos aparentemente, a guerra, naquela Província, estava ganha! Isto, se considerarmos que um conflito daquele tipo pode ser definitivamente ganho, o que não creio, pois as ideias permanecem.






(...) E assim, se é certo que a origem do problema continuava - a ideia e o desejo de alguns sectores da população pela independência de Angola - também é verdade que, sob o aspecto militar, o problema estava, naquele tempo, praticamente solucionado a nosso favor. Aliás, em declarações públicas de muitos dirigentes do MPLA, UNITA e FNLA, há o reconhecimento de que, na nossa data de referência, aquelas organizações estavam praticamente aniquiladas no plano militar.

Também a boa situação económica então vivida pela Província, com um desenvolvimento muito acentuado, dava plena satisfação às populações que, acima de tudo, o que queriam era viver bem e em paz. Este facto ajudava também muito a manter um forte e seguro controle militar, consolidando a segurança de todo o território».

Coronel José Moura Calheiros (in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).


«Meus caros

Estou a enviar-vos um documento que considero importante. O Ultramar, o conflito 1961/74, o 25 de Abril e o 25 de Novembro, a descolonização, a construção da Democracia em Portugal com todas as suas dificuldades marcaram completamente muitas das nossas vidas, como militares e combatentes, diplomatas, políticos e governantes, professores e investigadores, cidadãos interessados e até nas famílias, havendo sempre mais elementos que ajudam a uma melhor compreensão dos anos 60 e 70.


Este é um deles: ultimamente têm aparecido algumas teorias ideológicas que afirmam que a Guerra do (então) Ultramar estava ganha ou controlada.


Decorreu em 12/13ABR no Instituto de Estudos Superiores e Militares (IESM) mais um Seminário sobre o assunto: em 1996 e 1999 no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM) e em 1997 no Instituto de Defesa Nacional (IDN) também já haviam sido feitos Colóquios e Seminários sobre o assunto.


As conclusões oficiais deste último Seminário querem impor a tal versão da vitória ou do controlo.


Este texto, da autoria dos Coronéis Matos Gomes e Aniceto Afonso (que muito têm investigado e escrito sobre o conflito) vem contrariar tal tese com dados concretos e factuais, muitos desconhecidos da maior parte; não é um texto ideológico, é um texto de informação séria e muita rica.


Explica a situação concreta na Guiné, Angola e Moçambique, bem como as questões político-militares e sociais que se viviam nas 3 Províncias Ultramarinas, bem como em Portugal.


A descolonização é outra história.


Que cada um tire as suas conclusões.


Melhores cumprimentos,


Garcia Leandro



"A descolonização é outra história"

Outra história? Que outra história? Será assim tão difícil de ver que uma coisa decorre da outra?

Vejamos se entendo: O país lutava em três frentes de guerrilha, em três T.O. diferentes, separadas de milhares de km. Segundo os autores do documento a situação militar estava incontrolada e parece que o General Garcia Leandro também concorda; por causa disso o Movimento das Forças Armadas (não confundir com Forças Armadas) faz o golpe de Estado em 25 de Abril de 1974 - e eu a julgar que tinha sido por causa das ultrapassagens nas promoções pelos milicianos; a seguir a Junta de Salvação Nacional escorada no MFA, vê-se confrontada com uma atabalhoada sucessão de eventos que levam a um cessar-fogo e a uma transferência de poderes para a guerrilha em que nada se acautelou - parecia a derrocada da frente oriental na I Guerra Mundial depois dos alemães terem introduzido o Lenine, na Rússia, e os sovietes terem provocado a revolução de Outubro; a seguir produz-se, num curtíssimo espaço de tempo, a transferência de soberania para os movimentos de guerrilha (leia-se marxistas), sem quaisquer outras considerações, manobra que, em tempos, tiveram o despautério de classificar de "Descolonização Exemplar", com tudo o que isso acarretou, e agora o General Garcia Leandro vem dizer que isto é "outra história"?

Assembleia Legislativa, 1976. Garcia Leandro (à esquerda) foi enviado pelo MFA para Macau a seguir ao 25 de Abril; pouco depois substituiria Nobre de Carvalho no Palácio da Praia Grande.


Porquê? É à pala de quê?

Os intervenientes foram outros? Os responsáveis foram outros? Os figurões civis que, de repente, apareceram em cena foram chamados por quem? Quem é que lhes deu carta de alforria? Quem autorizou as forças partidárias a surgirem como cogumelos e anarquicamente?

Quem deixou o caos apoderar-se da rua?

Outra história? Perdão, a história é a mesma e os factos sucederam-se e encaixaram-se uns nos outros como numa luva.

Outra história era antes de se ter transformado uma situação vitoriosa numa sucessão criminosa de eventos.

Quando se dá um passo grave, como é o de fazer um golpe de estado, tem que se pensar no dia seguinte. Senão é uma irresponsabilidade.

Infelizmente as coisas passaram-se basicamente do seguinte modo:

Cerca de duas centenas de capitães e poucos majores, na sua maioria ingénuos e mal preparados, em termos de ciências sociais e sobre aquilo que se passava no mundo (quantos saberiam fazer uma redacção, de uma folha A4, a explicar o que era a Democracia? 20%, 30%? A avaliar pelo que se passou num dos últimos aniversários do 25 de Abril, ainda há alguns que não sabem...), resolveram avançar (e não parece ter sido por julgarem que a guerra estava perdida - ou já sabiam o que agora vem plasmado no documento?) para derrubar não só o governo de então, mas o próprio regime, que vigorava.

Após uma tentativa falhada (o 16 de Março) deixaram-se infiltrar pelo PCP e outros de fama duvidosa e lá se coordenaram melhor para a noite de 24 de Abril. Como o governo tinha desistido de resistir, as acções desencadeadas tornaram-se um quase passeio.

Vitoriosos, juntaram-se à pressa sete generais (os que não eram, graduaram-se nessa noite) - não ficava bem na fotografia ter capitães à frente do país - liderados por aquele que tinha deixado de acreditar na sua missão na Guiné ou em quem a ambição falou mais alto.

Sentindo-se cheio de si, embotou-se-lhe a inteligência e nada saiu certo.

Afinal Lisboa não era Bissau...

À sua ilharga colocaram um sabidão mas de carácter mais "dúctil", que poucos dias antes tinha dado entrada no HMP, à Estrela, não fosse o diabo tecê-las. Acabaram, zangados, sem se falarem, e inimigos. Pudera...

Promovê-los a Marechal não resolveu o problema, nem apaga o passado.

Gomes da Costa também acabou Marechal, mas no exílio açoriano...

No próprio dia do golpe perderam o controlo da situação por uma razão simples: não instauraram o estado de sítio. A seguir suicidaram-se, começando a prenderem-se e a sanearem-se uns aos outros, sem quaisquer regras. Isto rebentou com a cadeia hierárquica, logo com a disciplina e a coesão.

O Poder caiu na rua de onde foi dirigido pelo PCP (única força organizada que sabia o que andava a fazer), e demais forças de "esquerda" e toda a sorte de arruaceiros.

Entrou-se numa espiral de loucura e desagregação com os resultados já mencionados a nível militar e nas parcelas espalhadas pelo mundo.















Observadores estrangeiros mais atentos classificaram o país de"manicómio em autogestão". Não estiveram longe da verdade.

Quando o país conseguiu sair do manicómio, em 26 de Novembro de 1975, estava completamente dilacerado e aturdido. Ainda hoje não se encontrou.

A Instituição Militar, aos poucos, foi descobrindo que, por uma razão ou por outra, tinha ficado de mal com todos e consigo própria. Ainda hoje está a sofrer as consequências disso e não recuperou disso.

Não é fácil fazer-se pior em qualquer parte do mundo.

Por isso a história não é outra, é simplesmente um contínuo.

Por isso a descolonização não é "outra história", é apenas a consequência de um processo que quem o espoletou não soube, quis ou conseguiu controlar.

Considerar a "guerra" injusta - que não era; fazer crer que a actuação do governo e das FAs era ilegal e ilegítima - que não era; ou dar a luta como perdida no campo militar é, de facto, a única justificação que pode tentar desculpabilizar intenções, minimizar erros, ou serenar consciências.

É triste e é pena».


João José Brandão Ferreira («A Guerra no Ultramar 1961-1974», in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).



«A ocupação, pelas Forças Armadas, do edifício do antigo Ministério do Ultramar para instalação do Estado Maior General que, durante 13 anos, havia conduzido a guerra do modesto edifício da Cova da Moura, exactamente na altura em que as responsabilidades militares se reduziam com a entrega e o abandono da maior parte do país, e quando a avalanche dos refugiados chegava a Lisboa, e a consequente dispersão e destruição dos seus importantíssimos arquivos, constitui um dos grandes crimes do "processo revolucionário". Entre a delapidação de valores que pertencem a todos nós, tem-se conhecimento de que uma rica colecção de selos ultramarinos portugueses, desde sempre religiosamente conservada no Ministério do Ultramar, foi objecto de várias apropriações. Num dos actuais Ministérios encontravam-se, há meses, várias caixas com selos daquela proveniência que se destinavam a ser oferecidos a altas entidades revolucionárias...».


Silvino Silvério Marques («Portugal. E Agora?»).


«O movimento consumado no dia 25 de Abril de 1974, acarretou uma considerável viragem na história de Portugal, e os ventos da história saídos de tal movimento passaram a soprar de quadrante inverso.


Facto histórico particularmente afectado por esses novos ventos foi a guerra travada por Portugal, contra os movimentos que contra nós pegaram em armas, nos nossos territórios de África.


A muitos dos fazedores do 25 de Abril (recordamos que poucos foram os que de imediato perceberam o que aconteceria ao Ultramar e automaticamente se afastaram da aventura), marcados pelos interesses corporativos e pelo desejo de ver a guerra terminada, importou de imediato iniciar uma narrativa histórica que, por um qualquer processo esquizofrénico, alcandorou a heróis os que nos atacavam e infamou os militares portugueses que, com brio e orgulho, cumpriram o dever de defender Portugal nas paragens de África.


Uma historiografia vesga que insiste em glorificar desertores, ao invés de louvar os muitos portugueses (alguns vindos do estrangeiro onde estudavam) que se voluntariavam para o cumprimento daquele dever.


Enfim, uma historiografia arregimentada, na verdadeira expressão da palavra, que busca explicar como "face a uma guerra perdida" ou "impossível de ganhar", se tornava imprescindível o movimento que, por outras razões (o que parece hoje já claro) puseram em marcha.


Os camaradas e "historiadores" do actual regime comuno-socialista: Joaquim Furtado, Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso.





Praticada por verdadeiros historiadores do regime, marcados por inultrapassáveis condicionantes pessoais, a história que se vem fazendo da guerra travada em África entre 1961 e 1974 é tudo menos isenta, desapaixonada, e, sobretudo, desinteressada. Porque feita pelo regime, e para o regime, tenderá a alcandorar-se ao estatuto de versão oficial, senão única».

Humberto Nuno de Oliveira (in Introdução a «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).



«O isolamento do Presidente do Conselho no Quartel do Carmo no dia 25, contra o que estava planeado em caso de emergência, o diálogo travado no Carmo ("Isto poder-se-ia ter evitado", disse o gen. Spínola. "Não é altura para recriminações", respondeu o Presidente do Conselho), a ausência de ligações, naquele dia, com o Presidente da República e com os ministros mais responsáveis, são factos que confirmam aquilo que se ouviu de duas importantes fontes distintas: a revolução havia sido posta, pelos gen. Spínola e Costa Gomes, à disposição do Presidente do Conselho que não aceitou encabeçá-la, nem se sabe tenha tomado disposições para a dominar. Isso justificaria a inacção do executivo e os comportamentos estranhos, verificados naquele dia. O 25 de Abril teria sido o pretexto para uma abdicação. O fácil sucesso teria resultado mais dessa circunstância do que da acção militar. E aproveitou, evidentemente, do prestígio e popularidade do gen. Spínola».

Silvino Silvério Marques («Portugal. E Agora?»).


«Vejamos a questão do "revisionismo histórico" que os autores [Matos Gomes e Aniceto Afonso] apelidaram de "persistente" e "ideológico" e dão como tendo tido início com a publicação do livro "África, Vitória Traída", escrito por quatro generais, em 1977, que tiveram altas funções de comando em África. Naturalmente que este seminário é tido como a última expressão deste revisionismo (será que o Núcleo Impulsionador das Conferências da Cooperativa Militar também foi conivente?), não sendo dado mais nenhum exemplo ocorrido pelo meio.

Convém referir os nomes dos quatro generais pois não são "uns quaisquer": os generais Bettencourt Rodrigues, Silvino Silvério Marques, Kaúlza de Arriaga e Luz Cunha. Não consta que, sobre eles, exista a mais leve sombra que possa manchar a sua competência, a sua integridade, o seu carácter ou o seu patriotismo.

Não deixa de ser curioso como é feita a alusão, eivada de menosprezo por quatro oficiais com brilhantes folhas de serviço e provas dadas no comando de tropas e, até em altas funções político-militares. Será que podem ser considerados menos avisados ou conhecedores do que a generalidade dos capitães que conspiraram para o 25 de Abril (onde se incluem Matos Gomes e Aniceto Afonso), da realidade dos teatros de operações, que estes últimos pela sua juventude e experiência, apenas podia ser parcelar ou de "ouvir dizer"? Ou será que assumem hoje, passados 40 anos, que sabiam tanto na altura como sabem hoje?

Lembra-se, ainda, que as decisões dos protagonistas devem ser avaliadas com o conhecimento que têm na altura e não por outras circunstâncias.


A acusação de que o "revisionismo histórico"é "ideológico" não deixa de ser caricato. Então as forças políticas que tomaram conta da rua (e do Poder) durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC) - onde os ditos cujos autores "militaram" - é que impuseram uma verdadeira ditadura ideológica relativamente ao que se teria passado no Ultramar (e não só); fizeram uma autêntica lavagem ao cérebro da população e dos ex-combatentes; prolongaram essas mentiras e estribilhos no discurso oficial, na maioria dos "media" e dos livros da escola - o que ocorreu por manifesta cobardia moral da maioria da população, dos quadros e chefias das Forças Armadas, para já não falar do "politicamente correcto" da partidocracia existente - e agora vêm apelidar de ideológica qualquer outra análise que contrarie as suas [ou antes desmonte ou descredibilize as suas], quando se quer recuperar algum equilíbrio [ou melhor, repor a verdade histórica] nas interpretações dos factos históricos e nas intenções (por vezes mais importantes do que aqueles) dos principais actores?


Começaram por relegar um milhão de combatentes para a prateleira da ignomínia e do esquecimento; diabolizaram a História dos seus antepassados, sobretudo a mais recente; afirmaram-se as maiores barbaridades - tudo sem direito ao contraditório - e agora (há meia dúzia de anos) que começaram a perder o monopólio dos microfones e o palco das entrevistas e do mercado editorial, vêm lançar mão desse labéu? Tenham vergonha!».


João José Brandão Ferreira («A Guerra no Ultramar 1961-1974», in «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).







«Os anos passaram. Muitos outros hão-de ainda passar e a História, como se diz, fará o seu juízo. Durante aqueles anos, aguardei que os mentores da descolonização de Angola, libertos do fervor revolucionário e amadurecidos pela sensatez dos anos, viessem dizer a verdade nua e crua ao País, e assumissem as responsabilidades que lhes cabem na tragédia permanente em que Angola passou a viver. Isso não aconteceu e assim ficámos a conhecer melhor a estrutura mental desses personagens. Pelo contrário, manipulando despudoradamente a opinião pública, conseguiram cativá-la para as suas teses e atravessaram incólumes este quarto de século.

Naquilo que me diz respeito, afirmo que a descolonização, tal como se cumpriu, será considerada como o episódio mais catastrófico, mais desprezível e mais estúpido de toda a História de Portugal; naquilo que me diz respeito, e que é Angola, sei que é meu dever contribuir para a formulação do juízo da História.


Este livro é o meu contributo».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Muitos dos nossos políticos de hoje foram, antes do 25 de Abril, apoios importantes do inimigo de então, contra o qual se batia e por vezes morria, a juventude portuguesa de todas as etnias. Tomaram parte nas suas conspirações, na sua propaganda, nos seus desfiles, ajudaram-nos na diplomacia e na política. Entre eles houve os que fugiram ao cumprimento das suas obrigações militares, com a Pátria em guerra. Outros, embora tivessem combatido no Ultramar, não o compreenderam, nem ao seu país, que já então para eles se reduzia ao rectângulo europeu: na medida em que assim era, o seu serviço tornara-se mercenário.


Baseado em sentimentos elevados ou em interesses desprezíveis (a História o determinará), este comportamento foi um facto. Como que a justificá-lo, como que evidenciando necessidade de libertação de um complexo insuportável, após o 25 de Abril, logo gente dessa intoxicou o nosso povo, lançando labéus de "colonialismo", "imperialismo", "exploração", "racismo", etc., etc., labéus que desde há muito o inimigo, em plena guerra, não encontrava clima para tão impúdica e profusamente gritar.


A chamada "descolonização", com seus trágicos erros e crimes, é a aplicação daquele desamor, daquela hostilidade para com o Ultramar».


Silvino Silvério Marques (Depoimento publicado no semanário "Rossio" em 29 de Setembro de 1976).



«(...) a situação agravou-se e o incêndio avançou até ao interior. A população branca estava positivamente em pânico e só queria fugir fosse para onde fosse. Organizaram-se colunas de viaturas com rumo ao Sul. Não tinham tempo a perder. Os pretos afectos à FNLA tinham invadido a cidade do asfalto e estavam concentrados por todo o lado, muito especialmente, em frente do palácio e junto ao Comando Naval. Uma mãe com o cadáver do filho nos braços pretendeu entregá-lo ao Alto-Comissário, tendo sido impedida pelos pára-quedistas. Por detrás duma das janelas ainda presenciei uma dessas cenas completamente derrotado e vencido pela comoção. Não era fácil olhar aquele mar de gente em desespero e nada poder fazer. Contactei o Leonel e disse-lhe, para com os navios de guerra disponíveis, começar a transportar aquela gente, vítima da traição que sobre o povo angolano caíra, para Sazaire onde dominava a FNLA. Assim se fez. Mas não era o suficiente porque o "incêndio" era, naquela altura, perfeitamente incontrolável e novos "focos" surgiam por toda a parte».


General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).



«Silva Cardoso confirmou nas suas memórias ter recebido instruções de Costa Gomes para travar o avanço da FNLA para Luanda, afirmando que isso significava "que teria de reforçar o MPLA, ou, pelo menos, cooperar com as FAPLA", acrescentando ainda de modo significativo:"Pareceu-me naquela altura ter decifrado o mistério da 'neutralidade activa': mantinhamo-nos neutrais mas passávamos a 'activos' quando o MPLA precisasse de ajuda!" O alto-comissário escreveu ainda que não cumpriu essa ordem do Presidente da República».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).


«O medo da derrocada, melhor, das consequências da derrocada, pôs em fuga as populações.


Desde logo, os menos afoitos, os menos corajosos, os mais interesseiros, os mais calculistas que, em apressado e egoísta balanço, avaliaram as vantagens e desvantagens de esperar pelos acontecimentos, escaparam-se do território. À formiga, disfarçadamente, contentes por salvar os bens.










Embarque para Luanda



Filas na TAP (Luanda).



Embarque no porto de Luanda


















Familiares de refugiados no quartel em Salazar, em Dalatando (1975).









A seguir, à medida que a instabilidade crescia, que a esperança se dissipava, maior foi o caudal dos que partiram. Luanda tinha, perante os olhos pávidos, a trágica repetição de Março de 1961: refugiados que vinham, frangalhos de seres humanos, despojados de tudo, até do vestuário. Esfomeados e feridos, na carne e no espírito. "Saneados" dos locais onde trabalhavam, onde muitos tinham nascido.

O êxodo principiou em Junho. Mas a grande avalanche verificar-se-ia em Agosto, Setembro e Outubro. O Governo de transição, com pouca eficácia, aliás, adoptou providências para facilitar a saída a quantos o desejassem, agrupados, nomeadamente, em Luanda, no Lobito e em Moçâmedes.


Numa insegurança sem fronteiras, a morte espreitava casas e artérias das povoações. Um minuto, um segundo de sobrevivência, desgraçadamente era dádiva de Deus. Até os mais animosos, os que teimavam em ficar, desistiam.


Horas e horas - infindáveis - as pessoas aguardavam a misericórdia de um lugar num avião ou num barco. Companhias nacionais e estrangeiras lhes valeram. Mas não a todas.


Dos que partiram, bastantes davam o salto para o desconhecido: nunca tinham pisado outras terras que não fossem angolanas. Alguns convenciam-se de que seriam acolhidos com humanidade em Portugal, como sucedia em férias endinheiradas. À chegada, aos que assim julgavam, a desilusão somou-se ao desgosto e à amargura de uma nova espécie de traição. Agora, não traziam dinheiro, nem prendas para familiares e amigos. Agora vinham rotos, sujos, estonteados de pavor, a febre nos olhos, as faces cavadas, ressequida a alma. Receberam-nos como indesejáveis contrapesos.

Se houve pessoas que, embora saindo precipitadamente, salvaram pequena parte dos bens, a esmagadora maioria deixou propriedades, depósitos bancários, viaturas, instrumentos de trabalho. Ainda menor foi o número dos que se furtaram a dias e dias de aflitiva espera no aeroporto, dormindo no chão, sem higiene, sem comer, numa horrorosa promiscuidade. Milhares de pessoas pejaram os acessos à salvação, rebanhos imundos e ansiosos, espreitando, insones, cada avião que chegava ou deslocava.

As comissões de trabalhadores do porto de Luanda, os sindicatos, o poder popular, sob qualquer pretexto opunham-se à saída de caixotes e viaturas. Roubaram automóveis, arrombaram malas, escolhendo, a seu bel-prazer, o que mais cobiçavam. Felizes os que embarcaram na base aérea, onde a correcção dos militares foi notável. Os restantes, porém, assistiram, impotentes, ao saque sistemático das suas bagagens, ante a passividade das Forças Armadas Portuguesas.

Luanda encheu-se do ruído dos caixotes, martelados dia e noite. Camionetas aguardaram, três e quatro dias, em filas de quilómetros, a oportunidade de descarregarem, no cais, toda a espécie de coisas, às vezes, nem sequer embrulhadas. Subiram, a níveis inauditos, os preços da madeira e dos fretes.

Em Outubro, o MPLA proibiu a saída de camiões e de carrinhas ou jipes de caixa fechada. Aflitos e acossados, os proprietários serram metais, desfizeram bancos, desmantelaram armações, no intuito de salvarem o que pudessem.

Na loucura que se apoderou de todos, a imaginação fervilhava. Os aviões e os navios não escoavam a torrente dos fugitivos. Organizou-se, por isso, uma caravana, de África para Portugal. Muita gente se entusiasmou. Tanta, que depressa tiveram de ser canceladas as inscrições. Cerca de dois mil veículos pesados e seiscentos ligeiros transportariam cerca de cinco mil pessoas. Tudo fora preparado: comunicações-rádio, assistência médica, cozinhas, alimentos, serviço de desempenagem. Estudaram um percurso que atravessava a Zâmbia, contornando a região de Brazzaville, prosseguida pelo Gabão e entrava em países mais hospitaleiros. Recorreram ao alto-comissário, à Cruz Vermelha, ao Governo de Lisboa, ao qual mandaram emissários. Foi animador o acolhimento e a compreensão que lhes dispensaram. No entanto, quebraram-se os elos da cadeia, porque o MPLA não os deixou passar pelas zonas sob o seu controlo.


"Tropas" do MPLA chegam para tomar a área da Baía de Luanda no dia 10 de Novembro de 1975.



O MPLA aquando da "independência" de Angola (11 de Novembro de 1975).




Material de guerra russo e cubano desembarcado no porto de Luanda, de Setembro a Novembro de 1975. 













Com a independência, o MPLA tornou-se ainda mais intransigente. Mais cruel. Mais desonesto... Impediu a saída de viaturas e haveres que considerava não pertencerem aos seus legítimos donos, mas a Angola. Máquinas de costura, tornos portáteis, pneus, ferramentas, um ferro eléctrico, passaram a ser do Estado angolano (ou de qualquer dos seus maiorais, como é o meu caso: o recheio da minha habitação conforta, hoje, um dos líderes do MPLA).

Durante este período, principalmente depois da chegada dos cubanos e das confrontações dos movimentos de libertação, quase toda a gente foi dominada pela psicose do medo, a par da obsessão da fuga, desordenada e sem atender às condições em que era empreendida. Das águas de Luanda, do Lobito, de Benguela e, principalmente, de Moçâmedes e Porto Alexandre, traineiras superlotadas levantaram ferro para a África do Sul, na maior parte para Walvis Bay. Houve naufrágios, nos quais muitos pereceram. Outros, arrojadamente, aventuraram-se a cruzar o Oceano, para Portugal e para o Brasil.

De Silva Porto, de Nova Lisboa, do Luso, grupos mais ou menos numerosos embrenharam-se na mata e calcorrearam a distância que os separava da África do Sul, onde os alojaram em campos de concentração e os trataram com humanidade. Para o norte foram os que queriam atingir Kinshasa. A etnia negra preferiu, em regra, acolher-se à Zâmbia e ao Zaire, pedindo às autoridades transporte para Lisboa, porque não queriam perder a cidadania portuguesa. Caminhadas dramáticas, sem alimentos e sob a intempérie. Em média, morreram oito crianças por dia.

É difícil calcular o tal dos fugitivos, até porque há que contar com o número indeterminado dos desaparecidos. Contudo, no Zaire, estiveram mais de vinte mil negros; na África do Sul, cinquenta mil pessoas, entre brancos, negros e mulatos, incluindo os que vieram de Moçambique; na Zâmbia, vinte mil.

Falei [já] nos mortos causados pela descolonização: trezentas mil pessoas. Acrescento agora que, ou foram pura e simplesmente assassinadas, nos centros populacionais; ou tombaram, durante a fuga, às balas dos movimentos "libertadores" e das tropas estrangeiras (leia-se cubanas e russas); ou por doença e inanição; ou porque a má-sorte os colocou no meio dos combates que o MPLA, a FNLA e a UNITA travavam.

Um exemplo, ao acaso, do genocídio angolano. Em Moçâmedes, quando homens, mulheres e crianças procuravam ir para bordo de rebocadores, de traineiras, de pequenos barcos a remos ou à vela, foram atacados por forças da UNITA, que se deram ao luxo de incendiar tudo o que estava no cais, viaturas e caixotes. Se alguns se salvaram, devem-no à intervenção dos guerrilheiros da FNLA.

(...) Um milhão e quatrocentos mil refugiados é o cômputo que faço do êxodo dos angolanos. Em Portugal, um milhão e duzentos mil. Os restantes distribuídos pela África do Sul, pela Rodésia, pela Zâmbia, pelo Zaire, pela Austrália, pelo Brasil, por vários países mais.

Em Angola, quedaram-se no máximo, vinte mil pessoas da etnia branca: aderiram ao MPLA, por oportunismo ou convicção. Quase todas, no entanto, por oportunismo. Há cidades despovoadas de brancos. Outras têm dois ou três. De qualquer maneira, a etnia branca em Angola dispersa-se, principalmente, por Luanda, Benguela e Lobito.

Vista aérea da baía do Lobito (1974).



Confrontos MPLA-FNLA no Luso



Guerrilheiros da UNITA



Malanje (1975).



Malanje: cidade-fantasma em plena guerra civil (1975).


Esses, os que ficaram, aceitaram um quotidiano de subserviência e enxovalhos. As raparigas (por informações dignas de confiança) sujeitaram-se às maiores indignidades, para captarem a simpatia dos aderentes do MPLA.

No que me toca, fui, repetidamente, ameaçado de morte. Resisti, enquanto pude, às angustiadas súplicas de minha mulher. Acabei por ceder, receando que ela enlouquecesse».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).



«(...) na mais recente descolonização dos povos africanos, explicará ela [a implicação entre o comunitarismo dos bens e o comunitarismo das mulheres] que, com a reivindicação dos bens dos colonizadores, os negros tenham reivindicado também a posse das mulheres dos brancos?».


Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).






A PERDA DO ULTRAMAR PORTUGUÊS E OS RELATIVOS «MITOS» E FALÁCIAS PROPALADOS PELA VERSÃO OFICIAL DOMINANTE


A Guerra era insustentável e impedia o desenvolvimento do País


«A identidade de interesses é o mais seguro dos vínculos entre Estados ou indivíduos».

Tucídides


Apesar de então se viver relativamente bem em quase todo o país - sem embargo da existência de algumas manchas de pobreza - e de não se ter verificado nenhuma recessão económica ou social, começou a espalhar-se o boato, sobretudo na metrópole, de que os recursos gastos nas operações militares estariam a invibilizar o desenvolvimento da nação nas suas diversas vertentes. Sendo assim a pergunta que se colocava aos espíritos mais timoratos e pusilânimes era esta: será que Portugal é capaz de aguentar um desafio tão colossal? Os «velhos do Restelo» da época, claro está, diziam que não. E, como sempre, estavam errados.

Portugal é uma nação consolidada desde finais do século XIV. É, além disso, a nação da Europa que mais cedo definiu as suas fronteiras, conseguindo mantê-las estáveis até à actualidade (Tratado de Alcanizes, de 1297). O povo português, apesar da mistura de sangues que lhe corre nas veias, possui uma notável homogeneidade cultural e um apego fora do comum à individualidade. As sequelas deixadas pela questão religiosa, imposta pela Inquisição, estavam há muito ultrapassadas. Mesmo as feridas da Guerra Civil entre Liberais e Miguelistas, ainda não completamente saradas, deixaram de ter peso político depois da proclamação da República. A manutenção do Ultramar constituía um objectivo nacional permanente dos últimos 550 anos, que nenhuma vicissitude, nenhum governo, nem nenhum regime tinha posto em causa. E, ao longo de todo este tempo, nunca os portugueses regatearam esforços ou pouparam vidas para defender tal objectivo.

Enquanto a maioria da nação fosse capaz de compreender e de aceitar tal desafio, a nossa capacidade de resistência iria até ao limite mais extremo. Chegados a este ponto, perguntamos: será que essa força para resistir chegou alguma vez a estar perto do seu limite? Efectivamente não esteve. É certo que morriam jovens, que outros eram feridos e ficavam mutilados para o resto da vida, um facto lamentável, sem dúvida. Todavia, a verdade é que, por ano, morria mais gente nas estradas de Portugal continental do que nas três frentes de luta em África. E essas mortes não eram, afinal, para defender uma causa suprema, considerada justa pela maioria da população, o preço que a nação teria de pagar se quisesse continuar a sê-lo?

Sempre houve, aliás, um preço: a Espanha invadiu-nos dezoito vezes e a França três. Já lutámos contra Sarracenos, Ingleses, Alemães, Holandeses, Turcos e toda a sorte de forças indígenas, um pouco por todo o mundo. As Invasões Francesas mataram cerca de 10 por cento da população. Só na Batalha da La Lys sofremos, em 24 horas, 14 mil baixas e muitos outros exemplos poderiam ser apontados. As campanhas do Ultramar, ocorridas entre 1961-1974, causaram-nos, por seu lado, perdas humanas, numa média de 1,9 homens/dia e cerca do triplo de feridos. Era uma guerra de fraca intensidade, de desgaste lento, de nervos e de paciência. Era uma guerra à nossa dimensão.
















A guerra consumia-nos recursos? Sem dúvida, mas também é certo que nunca pôs em causa o progresso económico na parte europeia de Portugal (além de não ter havido regressão, a economia metropolitana chegou a 1974 com um crescimento de 7 por cento ao ano), e fez disparar inclusivamente o desenvolvimento dos restantes territórios, aliás como nunca tínhamos assistido em nenhuma outra altura da nossa História. A moeda era forte, o país não tinha praticamente dívidas, os cofres estavam repletos de ouro e divisas e podíamos recorrer a todo o crédito que desejássemos. Mais a mais, os recursos disponíveis para explorar eram vastíssimos (1).

Olhando agora para a questão de outro ângulo, não se entende como é que alguns portugueses poderiam recusar sacrifícios quando a nação estava a ser atacada em algumas das suas parcelas. Como é que os cidadãos podem, numa situação em que alguns territórios e respectivas populações se encontravam em perigo, recusar-se a fazer sacrifícios? E como podem preterir a segurança, a defesa, o direito e a justiça de uma causa em nome do seu bem-estar económico e social?

O argumento de que os portugueses estavam cansados da guerra - durava há 13 anos, o que segundo alguns «era demasiado tempo» - é relativo. A verdade é que os portugueses estavam habituados a todo o tipo de conflitos, muito variáveis na sua duração, como aliás a história militar de Portugal amplamente o demonstra. Em termos militares, o país possuía homens, material, equipamento, liderança, doutrina, organização, logística e informações suficientes, assim como dominava as técnicas e as tácticas necessárias (embora com falhas e limitações) para enfrentar as ameaças que até então (1974) tinham sido lançadas contra os nossos interesses fundamentais. Todas as tentativas do inimigo para contrariar a nossa acção ou desequilibrar o nosso dispositivo e determinação a seu favor tinham fracassado. A adesão das populações à causa nacional portuguesa era um facto insofismável que qualquer observador independente facilmente podia constatar. As imagens que registaram as visitas que o Presidente da República, o Presidente do Conselho de Ministros e os mais diversos ministros efectuaram aos diferentes territórios ultramarinos - mesmo descontando a «mobilização» promovida pelas autoridades - constituem, a esse respeito, uma prova indesmentível. Se o ódio aos portugueses e à política do governo central estivesse tão difundido pela população, seria pouco plausível que aquelas personalidades tivessem podido sido alvo de tão entusiásticas manifestações de apoio e tivessem podido deslocar-se a todos os pontos das províncias sem nunca se ter verificado o mais pequeno incidente e com níveis de segurança impensável nos dias de hoje em qualquer cidade europeia.

Em síntese, a guerra era sustentável em termos políticos, militares, diplomáticos, económicos, financeiros e sociais. A única coisa necessária era preservar a vontade de lutar na defesa daquela «maneira única de estar no mundo» que individualizava positivamente os portugueses no concerto das nações civilizadas. Ficavam assim cumpridas as três provas da estratégia: a adequabilidade, a exequibilidade e a aceitabilidade. Por outras palavras, o objectivo traçado - manter a integridade de todo o território nacional - estava em total harmonia com os objectivos políticos e com a tradição histórica dos portugueses. E esse objectivo era independente do contexto internacional.

O objectivo era exequível, pois as diferentes estratégias, operacional, estrutural e genética, entretanto desenvolvidas, conseguiram gerar a organização, a doutrina, a estrutura e os recursos humanos, materiais e financeiros necessários para enfrentar as sucessivas ameaças que Portugal teve de suportar.

E nem o inimigo, consubstanciado nos movimentos de «libertação» de Angola, Guiné e Moçambique, bem como nos países que os apoiavam e que estavam espalhados um pouco por todo o mundo, tinha até então encontrado os instrumentos adequados para exercer uma pressão a nível político, diplomático, económico e militar, capazes de nos obrigar a ceder. De resto, havia apenas que conseguir que o ideal proclamado se mantivesse vivo no coração e na mente do povo português e das suas elites, demonstrando claramente que se tratava de um ideal pelo qual valia a pena combater e morrer.


Portugal, estava «orgulhosamente só» no mundo, e, como tal, isolado na comunidade internacional. E posicionava-se contra os «Ventos da História»


«A falta de personalidade das elites portuguesas constitui um perigo nacional permanente».

Artur Ribeiro Lopes


Ao longo destas páginas provámos sobejamente que a ideia acima transcrita não era correcta e que, além disso, precisava de ser enquadrada. Portugal sempre teve, desde a sua formação, a sua quota-parte de inimigos. Dois deles são clássicos: Castela, mais tarde Espanha, por nunca ter aceite que o nosso país se tivesse individualizado na Península Ibérica, o que sempre foi considerado pelos espanhóis como uma aberração geográfica e política; e os mouros, que mais tarde passaram a integrar a maior parte dos povos islâmicos - como os turcos - por se encontrarem em guerra com a cristandade (2).











Oração de D. Nuno Álvares Pereira antes da Batalha de Aljubarrota.















Os outros, depois de Filipe II ter unido as duas coroas, herdámo-los por serem inimigos de Espanha: os ingleses, os franceses e os holandeses, embora todos eles já estivessem habituados a desferir-nos ataques corsários no Atlântico, isto sem que os seus respectivos governos o reconhecessem oficialmente.

Posteriormente, e dada a espantosa epopeia dos Portugueses pelos quatro cantos do mundo, passámos a ter de defrontar muitas e diferentes forças gentílicas, sobretudo em acções de afirmação de soberania, cujos ataques eram inspirados, na maioria dos casos, pelas potências atrás referidas.

Finalmente, já no século XX, passámos a contar com um novo inimigo - a URSS - após o triunfo da revolução comunista de 1917. Além da União Soviética, por arrastamento natural, todos os países que no mundo professavam a doutrina marxista-leninista converteram-se igualmente em nossos inimigos. A explicação é muito simples: Portugal, desde o início, repudiou liminarmente o sistema de governo e a filosofia de vida que se baseavam nessa ideologia. Com o tempo, o nosso país transformou-se-mesmo num dos grandes bastiões contra as ideias comunistas. Além disso, e sobretudo, a URSS nunca esqueceu ou perdoou a tomada de posição do governo português durante a Guerra Civil de Espanha, que contribuiu decisivamente para o sucesso das forças nacionalistas e, concomitantemente, para a derrota dos republicanos, maioritariamente comunistas e anarquistas.

Sem dúvida, os ataques movidos, após a Segunda Guerra Mundial, contra a presença de Portugal em África, no Oriente e na Oceânia, bem como a respectiva defesa, devem ser vistos à luz da evolução histórica dos acontecimentos, nomeadamente quando os nossos interesses e os das outras potências entraram em choque. Mas foi sempre assim e esse é o preço que temos que pagar para existirmos individualizados no concerto das nações. Não vai mudar... Deste modo, a expressão «orgulhosamente sós», desvirtuada ad nauseum após o 25 de Abril, não deve ser encarada com um sentido pejorativo, mais a mais se tivermos em conta, como antes ficou demonstrado, que a razão jurídica e histórica estava do nosso lado.

Claro que não era agradável ter uma parte considerável da opinião pública internacional, onde se incluíam alguns países ditos nossos «amigos», contra os ideais portugueses. Isso não quer dizer, no entanto, que tivessem a razão do lado deles, apenas que estavam, isso sim, a defender os seus próprios interesses. Não faz qualquer sentido pensar que um Estado ou uma nação alienem coisas que para si são vitais para ganharem a simpatia alheia.

Ainda assim, a diplomacia portuguesa conseguiu assegurar apoios suficientes para a causa portuguesa e impedir que vingassem as acções que pretendiam prejudicar seriamente o nosso país. Na realidade, o tempo corria a nosso favor. É importante relembrar que o nosso país fora fundador da NATO, em 1949, que aderimos ao GATT (3) e ao Banco Mundial em 1962, e ainda ao Fundo Monetário Internacional. Em 1955 entrámos para a ONU, a pedido dos EUA e da Grã-Bretanha, de onde nunca nos tentaram expulsar (aliás, a ONU e a OUA eram e são dois fóruns completamente desacreditados e ineficazes). Finalmente, a partir de 1973, foi estabelecido um acordo favorável com a CEE.

À margem desse contexto institucional, a verdade é que conseguimos manter abertas as linhas de comunicação marítima e aérea, pelo que não sentimos qualquer problema em garantir o normal funcionamento das nossas relações comerciais. As sanções políticas e económicas nunca foram por diante, e conservámos uma série de apoios firmes em países do mundo ocidental, com destaque para a Espanha, a França, a Alemanha e algumas nações com importância no mundo, como o Brasil, a Tailândia, a Etiópia, as Filipinas, etc. Nenhum dos países que faziam fronteira com os Teatros de Operações tinha capacidade militar para nos tolher os movimentos e alguns, como o Malawi e o Senegal, adoptaram comportamentos moderados. E os dois países mais ricos de África, a Rodésia e a República da África do Sul, estavam do nosso lado, formando um bloco coeso no Sul do continente.

Embora a política da Inglaterra e dos EUA estivesse sujeita a algumas oscilações, dependendo dos partidos que estavam no poder, nunca as pontes políticas e comerciais foram quebradas. Tendo Portugal demonstrado a firme determinação de permanecer em África, ao mesmo tempo que dava provas de que tinha capacidade e meios para o fazer, alguns sectores daqueles dois países começaram a ver com bons olhos a postura dos portugueses, até porque as nossas posições geoestratégicas não lhes eram totalmente prejudiciais. É natural que muitos não gostassem da nossa política (desde há séculos que tem sido assim) e que outros não concordassem com ela. Porém, havia também alguns - e eram os mais significativos do ponto de vista de Portugal - que diziam compreender tanto as nossas razões históricas, como a lógica jurídica que sustentavam a nossa causa. Uma coisa é certa, todos nos respeitavam e quando Portugal falava a sua voz era escutada (ao contrário do que acontece hoje). Percebe-se: os nossos argumentos morais eram poderosos, as nossas posições económicas e estratégicas eram singulares, ao passo que os nossos inimigos agiam de má-fé, disfarçando o peso da sua consciência com a máscara da filantropia. Como alguém disse, «em diplomacia o que parece não é» (4).







Franco Nogueira



E, caros leitores, independente é isso mesmo: é tomar atitudes e decisões soberanas sem ter de prestar contas a ninguém ou estar por outros constrangido! Se nos virmos perante a circunstância de termos de defender a nossa opinião contra as maiorias, então que seja. Afinal, as maiorias nem sempre têm razão! Mais a mais quando essas maiorias tinham todo o interesse em atacar o património dos portugueses.


A Guerra durava há muito tempo


«Eu já estou [...], o imediato que assuma o comando [...], não se rendam [...]».

Comandante Cunha Aragão, após ser ferido gravemente no meio do combate que o navio Afonso de Albuquerque travou com a marinha indiana, a 18 de Dezembro de 1961.


Mais uma vez, o fulcro da questão reside na vontade e na determinação das gentes, algo que se nutre da crença na justiça e da bondade das causas em nome das quais se luta. É certo que a guerra durava há muito tempo. No entanto, D. Afonso Henriques, por exemplo, esperou 36 anos para ver a independência do Condado ser reconhecida pela Santa Sé (5). Mais tarde, estivemos em guerra contra Castela durante 26 anos (1385-1411), contra a Espanha durante 28 anos (1640-1668) e contra a Holanda durante cerca de 80 anos! (finais do século XVI e quase todo o século XVII). Guerras que decorreram em quatro continentes e em outros tantos mares. Já para não falar das invasões francesas, que nos obrigaram a manter uma guerra de 14 anos, onde perderam a vida entre 200 mil e 300 mil compatriotas nossos. Os exemplos nunca mais acabam: a Guerra da Sucessão de Espanha (1705-1715) e a Guerra dos Sete Anos (1761-1768); os conflitos no Norte de África e nos mares contra os mouros, que se estenderam ao longo de dois séculos (XV e XVI); as sequelas da Conferência de Berlim e da Primeira Guerra Mundial, que suportámos durante décadas; até que chegámos ao século XX e tivemos de realizar numerosas campanhas de pacificação em África e em Timor.

Aliás, nos últimos cinco séculos e meio, raros foram os anos em que não nos vimos envolvidos numa qualquer campanha ultramarina. Mesmo assim, «tudo suportávamos de boa mente», como dizia Mouzinho de Albuquerque na sua carta ao príncipe D. Luís Filipe, «porque servíamos el-rei e a Pátria e para outra coisa não anda no mundo quem tem a honra de vestir uma farda». A listagem está longe de ser exaustiva, mas chega para mostrar que a História de Portugal se confunde quase com a história das nossas Forças Armadas. Os portugueses, não sendo um povo agressivo e nunca tendo feito a guerra pela guerra, formam indubitavelmente uma nação de guerreiros, que se viram perante a fatalidade, durante toda a sua história, de ter de pegar em armas para se imporem e defenderem. E se numa das mãos erguiam a espada, na outra levavam a pena ou a charrua, sem esquecer a cruz, que transportávamos ao pescoço, pois esse é o símbolo da crença religiosa em que fomos criados e que procurámos - segundo os ensinamentos dos apóstolos - espalhar pelo mundo já conhecido e por aquele que ainda faltava conhecer.

Duvidar da nobreza destes princípios só é explicável pela falta de fé e solidariedade para com a nação (e pelo desconhecimento, para não lhe chamar ignorância, da nossa História). Argumentar que a guerra durava há demasiado tempo é sempre relativo. De facto, em questões como esta, como é que se pode medir o tempo? Na verdade, trata-se de uma desculpa que esconde uma má consciência. E não faz qualquer sentido que esse argumento possa ser usado por oficiais do quadro permanente, pois em teoria eles podem ter de combater desde que se formam até que se reformam. Mas para bem combater é preciso estar de «boa mente», como dizia Mouzinho de Albuquerque.

E alguns deixaram de estar.


Portugal ia perder a guerra militarmente


«Tais oficiais e soldados são o orgulho dos chefes que têm a honra de os dirigir, exaltam o seu país e o seu rei, e bem merecem da Pátria».

Coronel Galhardo (sobre o comportamento das tropas portuguesas no combate de Coolela, Moçambique, 1895).


O mito que esta ideia representa é facilmente desmontável por qualquer análise, mesmo que superficial, dos acontecimentos. O inimigo não tinha qualquer hipótese de nos derrotar militarmente: nem com o armamento de que dispunha, nem com o número de homens que integravam as suas fileiras, já para não referir a sua deficiente instrução e número de quadros nem pelas tácticas que utilizava, nem pelas condições de vida em que combatia. Depois, o apoio com que contava entre as populações era muito reduzido e além disso esteve sempre minado por divisões internas, promessas não cumpridas e falta de perspectiva. Por outro lado, os países limítrofes que apoiavam a guerrilha não possuíam quaisquer meios de coacção eficazes contra Portugal e não se atreviam a atacar-nos militarmente. Se o fizessem, corriam o sério risco de sofrer represálias.

As Forças Armadas portuguesas não tinham, porém, capacidade para erradicar completamente a guerrilha, que por natureza pode funcionar com pequenos grupos de pessoas e com poucos meios. Além disso, não tínhamos hipótese de impedir o fluxo logístico na retaguarda do inimigo; o máximo que poderíamos conseguir era causar danos irreparáveis à guerrilha caso atacássemos sistematicamente os seus santuários, mas isso poderia acarretar uma escalada na guerra e causar sérios problemas políticos e diplomáticos. Mesmo assim, a verdade é que a superioridade militar portuguesa em relação ao inimigo era mais que óbvia e a campanha psicossocial realizada junto das populações estava a deixar a guerrilha com cada vez menos apoios.






As baixas que sofríamos eram suportáveis e metade das mesmas não estavam directamente ligadas com o combate, resultavam antes de doenças, acidentes com armas de fogo e, sobretudo, desastres de viação. Registe-se que as maiores catástrofes de toda a guerra se ficaram a dever a acidentes ocorridos durante a travessia de rios: na Guiné, 47 mortos na travessia do rio Corubal, a 6 de Fevereiro de 1969; em Moçambique, 101 mortos na travessia do rio Zambeze (Chupanga), no dia 21 de Junho de 1969.

Sendo assim, desde que não se verificasse uma mudança qualitativa e catastrófica para nós nas capacidades do inimigo, ou uma redução acentuada nas nossas - como por exemplo, perdermos a superioridade aérea, ou interditarem-nos as linhas de comunicação marítima e aérea, ou ainda alguns países tomarem a decisão de entrar directamente na contenda - Portugal não corria o mais pequeno risco de vir a ser derrotado militarmente. Excepto por vontade própria. Sabe-se hoje, sem qualquer sombra de dúvida, que a situação militar em Angola estava praticamente resolvida quando em 1974 ocorreu o 25 de Abril, não sendo motivo de maiores cuidados.

Em Moçambique, embora a questão militar ainda não estivesse sanada, a verdade é que também não existia qualquer perigo iminente ou qualquer ameaça séria que não pudesse ser repelida. De facto, com o alastramento da sua acção ao distrito de Tete (para contrariar a sua desarticulação no Planalto dos Macondes e no Niassa, bem como as suas acções infrutíferas contra Cabora Bassa), a guerrilha obrigou as Forças Armadas portuguesas a alargar o seu dispositivo, isto depois do enorme esforço que representou o envio de mais meios para defender o referido empreendimento hidroeléctrico. Para piorar a situação, as 12 companhias de reforço pedidas pelo comandante-chefe de Moçambique, para serem transferidas de Angola, não foram enviadas. A falta de pessoal foi sendo minimizada com a formação de Grupos Especiais e Grupos Especiais de Pára-quedistas de recrutamento local.

A guerrilha estava a ser combatida com sucesso e se havia algo que era necessário contrariar decididamente era as consequências a nível psicológico dos ataques terroristas, como ficou bem visível na já referida manifestação de brancos (e só brancos) realizada na Beira, de insatisfação contra aquilo que consideravam uma má actuação do Exército, e que foi exponenciado pela actuação de alguns prelados (bispos da Beira e Nampula) e pela exploração internacional do caso de Wiriamu.

No entanto, é importante sublinhar que a extensão da área afectada pela subversão não causou problemas apenas às nossas tropas, mas também ao inimigo que não tinha efectivos nem capacidade logística para manter pressão em tantas áreas (6). Acresce que as nossas dificuldades em termos de pessoal estavam a ser colmatadas com recurso cada vez maior ao recrutamento local, além de que as tropas que estavam a actuar em Moçambique poderiam ser reforçadas com unidades vindas de Angola. Aí, como noutros territórios, os portugueses nunca perderam a iniciativa estratégica, operacional e táctica. O mesmo se podia dizer relativamente à Guiné, onde o PAIGC endureceu a sua luta após o assassinato do seu líder, Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973. Vale a pena reflectir um pouco sobre a morte deste homem, que passa por ser o mais carismático entre todos os dirigentes da guerrilha que combateram a presença portuguesa em África (7).

No dia 20 de Janeiro de 1973, ocorreu em Bokê uma conferência com a presença de Samora Machel. No entanto, Amílcar Cabral e Aristides Pereira não estiveram presentes, tendo acorrido antes a uma recepção na embaixada da Suécia em Conakri. Quando regressaram ao quartel-general (e residência dos dirigentes do PAIGC), tinham à sua espera três guerrilheiros (Inocêncio Kani, Mamadú Touré e Aristides Barbosa) com a incumbência de os prender. Primeiro apanharam Aristides Pereira e meteram-no num barco no porto de Conakri. Depois, esperaram por Amílcar Cabral, que chegou acompanhado da mulher, Ana Maria, e de um jornalista russo. Quando se deu conta do que se estava ao passar, Amílcar resistiu e foi abatido a tiro de pistola por Inocéncio Kani. A mulher foi logo avisar as autoridades da Guiné, bem como os restantes dirigentes do PAIGC, que mandaram fuzilar de imediato os três guerrilheiros.

Posteriormente, circularam alguns boatos segundo os quais teria sido a PIDE a preparar toda a operação. O que não é verdade, mas se fosse, era lícito, porque Amílcar Cabral era um combatente inimigo. Além de que a sua morte só veio prejudicar os interesses nacionais. Com efeito, a morte de Amílcar Cabral, um moderado com forte cultura lusíada, beneficiou objectivamente a linha dura e marxista do PAIGC, que era apoiada, de resto, pelo sanguinário Sekou Touré. Consta que o PAIGC já teria recebido os mísseis SAM 7 (a DGS deu conta da sua existência, em 1972) e que Cabral se opôs à sua utilização, já que isso representaria uma escalada na guerra e porque, na sua opinião, os portugueses tinham mais capacidade para enfrentar uma situação dessas que o próprio PAIGC (a verdade é que o primeiro míssil só foi utilizado a 20 de Março de 1973, exactamente dois meses após a sua morte).





Amílcar Cabral





A morte do dirigente do PAIGC foi uma das razões invocadas para se aumentar o esforço militar (e ao mesmo tempo tentar moralizar as suas «tropas») contra as forças portuguesas. Um esforço que se concentrou em ataques continuados a dois aquartelamentos, um a sul (Guilege) e outro a norte (Guidage), com o objectivo final de os tomar. Estas ofensivas seriam protegidas pelos mísseis SAM 7, que neutralizariam a ameaça aérea portuguesa, capaz de bater o inimigo no terreno e assim inviabilizar a manobra. Não se pode dizer que o esquema não tenha sido bem montado.

Já vimos anteriormente como a ameaça dos mísseis foi neutralizada pelas tácticas aéreas postas em prática e, depois, pelo esgotamento do stock de mísseis em estado operacional. Guilege sofreu ataques duríssimos, o que levou o major-comandante a abandonar o aquartelamento sem autorização superior. Fê-lo contudo em boa ordem, levando toda a população consigo (para Gadamael), não sem antes destruir tudo o que poderia servir ao inimigo. Tratou-se de um acto de indisciplina pontual, apesar das circunstâncias atenuantes, mas que teve um impacto no moral do resto das tropas e poderia ter tido consequências gravíssimas. O major ficou preso em Bissau e o quartel não voltou a ser ocupado.

Guidage foi também duramente atacada, mas neste caso foi possível reforçá-la com uma companhia de pára-quedistas. Para aliviar a pressão e castigar o inimigo, a 19 de Maio de 1973 (8) as forças portuguesas atacaram e destruíram a sua grande base de Cumumbori, no Senegal. Na sequência da ofensiva militar, o PAIGC declarou unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, em Madina do Boé (uma zona despovoada do leste, que o exército tinha abandonado por não ter interesse militar), no dia 24 de Setembro de 1973. Tal representava um estado fantasma, sem Guiné e sem Bissau. De qualquer forma, o que se pretendia era provocar um impacto na opinião pública e obter apoios a nível internacional, o que aliás foi conseguido, já que umas seis dezenas de países reconheceram, na ONU, o novo «Estado». Todavia, no campo das realidades práticas, isso não afectava em nada a posição de Portugal.

A ofensiva foi sustida e repelida, mas a verdade é que deixou marcas em alguns oficiais. De facto, a luta na Guiné não era fácil, como já vimos antes, desde logo porque qualquer ponto do seu território não distava mais de 100 km de qualquer uma das fronteiras, que eram assaz permeáveis e impossíveis de isolar.

A contra-ofensiva portuguesa pôs-se então em marcha. Após a visita, em Junho de 1973, do general Costa Gomes, o Comandante do Estado-Maior General das Forças Armadas, que nessa altura defendeu categoricamente a viabilidade da defesa, desde que não se perdesse a superioridade aérea - é importante lembrar que o general Costa Gomes, em termos militares, mostrou sempre grande competência - foi escolhido para governador e comandante-chefe da Guiné um dos melhores, senão mesmo o melhor general ao serviço das Forças Armadas portuguesas. Entretanto, tinham já sido concluídos os planos para remodelar todo o dispositivo militar, de modo a reduzir a área útil a defender, minorar a capacidade de flagelação do inimigo do outro lado da fronteira, concentrar meios, bem como reforçar e tornar ainda mais operacionais as unidades de reserva do comando-chefe. A aquisição de novo material e armamento para as nossas tropas estava também em marcha. Uma vez mais, a vitória dependia apenas da nossa vontade.

Em síntese, e sobre o conflito armado e sobre as acções de manutenção de soberania levadas a cabo pelas Forças Armadas em Angola, Guiné e Moçambique, é fundamental dizer ainda o seguinte:

- As Forças Armadas portuguesas conduziram uma guerra limpa com elevado sentido de missão, humanismo e ética;

- Em 14 anos de guerrilha, só se conhece um caso em que devido ao descontrolo de um comandante (de um nível inferior no escalão de comando) morreram vários civis. Referimo-nos ao chamado «massacre de Wiriamu», um acontecimento eticamente reprovável e condenável segundo o Direito da Guerra. Foi, sublinhe-se, um caso único na história militar ultramarina;

- Os militares portugueses desenvolveram uma acção psicossocial e de desenvolvimento económico notável sobre as populações, que eram, aliás, o objectivo fundamental da guerra de guerrilha;




Militar português no apoio sanitário, no âmbito da acção psicológica (APSIC).


- As Forças Armadas portuguesas registaram nas suas fileiras um número ínfimo de casos de deserção, mesmo considerando os militares do recrutamento local, o que também não existe paralelo em qualquer campanha contemporânea;

- As forças inimigas nunca conseguiram tomar qualquer aquartelamento do dispositivo português;

- As Forças Armadas portuguesas mantiveram sempre a liberdade de acção, deslocando-se a qualquer ponto do território nacional, embora com medidas de segurança varíáveis:

- No início da subversão, após a fuga de parte das populações, estas foram progressivamente regressando, durante os anos que duraram as operações, aos seus respectivos lares;

- As acções subversivas nunca conseguiram desarticular as actividades económicas e sociais, que aliás foram sempre crescendo à medida que o tempo passava;

- Registou-se um aumento constante de participações de militares do recrutamento local, alguns dos quais constituíam subunidades inteiras, com excelentes resultados;

- Registou-se um notável e progressivo aumento da capacidade da indústria nacional no fabrico de armamento, munições, fardamento e equipamento diversos (apesar das lacunas existentes);

- Conseguiu-se montar um serviço de informações que, pese algumas dificuldades de coordenação, prestou um excelente contributo para a decisão político-estratégica e para a coordenação das operações militares;

- Conseguiu-se montar uma rede de apoio logístico em todas as suas vertentes, algo que, possivelmente, não tem paralelo na história militar portuguesa. Este apoio logístico não se confinava às tropas e a sua acção beneficiou largamente as populações. Entre todos, destacava-se o serviço de saúde, que criou até a «mística» de que um ferido que chegasse ao hospital com vida já não morreria.

Em relação aos 13 anos que duraram as últimas campanhas ligadas à gesta descobridora e universal de Portugal, as Forças Armadas nacionais operaram um dos mais brilhantes feitos de armas de toda a sua já longa história e os bons portugueses deviam orgulhar-se muito legitimamente disso mesmo.


Portugal andava em contraciclo com os «Ventos da História» e devia ter descolonizado mais cedo


«A primeira lição que a história e a vida nos ensinou é a transitoriedade dos mitos, dos regimes e sistemas».

Jaime Cortesão


A expressão os «ventos da história» - que se tornou politicamente correcta - foi retirada de um parágrafo de um discurso do primeiro ministro britânico Macmillan, proferido na República da África do Sul, a 13 de Fevereiro de 1960, onde o político inglês se referiu aos «ventos de mudança» que sopravam por todo o continente africano. Que os ventos, quando sopram, afectam quem está no seu caminho, é uma coisa. Agora, que Portugal tivesse de aceitar a direcção que eles tomavam, já é outra coisa.

Aliás, se olharmos com atenção para os acontecimentos históricos, notamos facilmente que ao longo dos tempos os ventos foram sempre soprando com direcções e intensidades diferentes, mas sempre no sentido dos interesses da(s) grande(s) potência(s) de cada época.

Um rápido escrutínio sobre a evolução do Direito Internacional no que diz respeito à expansão ultramarina e à forma como nos afectou ilustra na perfeição o que queremos dizer. No início da expansão, Portugal procurou assegurar para si o reconhecimento do Direito às terras e gentes que ia descobrindo, ao mesmo tempo que tentava garantir a exclusividade da navegação nos mares que até então mais nnguém conhecia ou cruzara. Esta intenção, parece-nos, fazia todo o sentido. Como a autoridade supranacional de então era o Papa, diligenciou-se no sentido de que este consignasse em documentos - as bulas - esses mesmos direitos, como de facto aconteceu. As sentenças da Santa Sé eram acompanhadas ainda de direitos eclesiásticos relativamente à evangelização e estabelecimentos de dioceses. Resultado disso, acabaram por nos ser concedidos também os direitos de Padroado em África e no Oriente.

Quando os espanhóis quiseram seguir os passos dos portugueses, no intuito de usufruir das riquezas descobertas ou a descobrir, a Santa Sé tentou «dividir as águas» de modo a que os príncipes cristãos não entrassem em luta. Um objectivo que ficaria consagrado no Tratado de Alcáçovas/Toledo, de 1479/80, e no Tratado de Tordesilhas, de 1494. As potências europeias foram aceitando este statu quo, porque não estavam em condições de o contrariar, não possuíam ainda os conhecimentos nem os meios para se aventurarem no largo oceano e porque também não precisavam, já que podiam fazer todo o comércio lucrativo nos portos da Península Ibérica. Pela calada faziam guerra de corso.










Esta situação sofreu uma grande alteração por dois motivos principais: a cisão da Igreja de Roma, que deu origem ao protestantismo, ao calvinismo e ao anglicanismo, fazendo com que os países que se desligaram do catolicismo deixassem de obedecer à autoridade do papa; e a proibição, por duas vezes decretada por Filipe II de Espanha (1585 e 1595), das potências do norte, nomeadamente a Holanda e a Inglaterra, fazerem comércio na Península Ibérica. Consequentemente, estes povos tentaram ir buscar os produtos à origem. As guerras generalizaram-se e Portugal viu-se envolvido nelas. Era necessário mudar o Direito Internacional e, sobretudo, a noção do Mare Clausum, instituído por D. João II. Foi o que os holandeses fizeram, em 1608, com a teoria do Mare Liberum. À sua maneira, os ingleses tentaram adaptar a situação aos seus interesses, publicando o Acto de Navegação de 1651, que regulava o trânsito de mercadorias de e para as colónias. Portugal, entretanto, já tinha perdido todo o avanço científico de que antes dispusera, assim como deixara de ter «canhões» suficientes. Deste então, Portugal nunca mais foi capaz de influenciar os ventos da história.

Seguiram-se as questões relacionadas com a proibição do tráfico de escravos, que Inglaterra decretou a partir de 1810. Finalmente, pode dizer-se que as grandes mudanças contemporâneas dos «ventos da história» começaram na Conferência de Berlim de 1884-1885. Aqui, os direitos históricos deixaram de ter valor caso não fossem acompanhados pela ocupação efectiva dos territórios; seguiu-se a necessidade de promover a civilização dos indígenas, o chamado «fardo do homem branco». Portugal tentou, como se sabe, adaptar-se a tudo isto, o que lhe custou imensos sacrifícios e a experiência do ultimatum de 1890. Afinal, mesmo quando nos queríamos «adaptar» aos «ventos da história», não conseguíamos escapar às agressões. É certo que na altura já não havia corsários, mas havia, isso sim, companhias majestáticas, política da canhoneira e acordos secretos, assinados clandestinamente sem o conhecimento de Portugal.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, a Sociedade das Nações estabeleceu a política dos mandatos, e depois a dos duplos mandatos, em que as potências se digladiavam para ver quem controlava mais territórios umas das outras, grande parte dos quais não tinha qualquer afinidade com os novos «amos». Portugal foi sempre um mero espectador, até que chegou o fim da Segunda Guerra Mundial e começou a germinar a ideia da autodeterminação dos povos.

Outra questão que se deve ter em conta é que para impor certos interesses é preciso, muitas vezes, inventar princípios aparentemente filantrópicos. Sobre isso, o melhor exemplo continua a ser o da escravatura. É certo que houve causas genuinamente humanitárias que procuraram denunciar a chaga humana da escravatura, como foi o caso das acções levadas a cabo, em Inglaterra, ainda nos fins do século XVIII, pelo cidadão e deputado Wilberforce. Todavia, aquilo que realmente movia o governo britânico era o lucro. A Inglaterra tinha inventado a máquina a vapor e deu assim o pontapé de saída para a revolução na indústria e nos transportes. Como a produção de bens aumentou extraordinariamente, a Inglaterra precisava de conquistar mercados e eliminar a concorrência. Conseguir o fim da escravatura era o ideal: por um lado, aumentava o número de consumidores e, por outro lado, arrasava com a concorrência, «barata e desleal», afectando assim a capacidade económica dos Estados que com ela podiam competir.

Em conclusão, Portugal não estava contra os «ventos da história». Fez apenas o que sempre fez e que lhe competia de direito: defendeu-se como pôde. Assim, a essa afirmação de que deveríamos ter descolonizado mais cedo, poder-se-á responder com outras perguntas: em primeiro lugar, quando é que isso deveria ter sido feito? Em 1961, quando nos retalharam a carne e os haveres? Em 1947, só porque Nehru o exigiu? Em 1945, porque isso convinha aos russos e americanos? Em 1919, quando foram instituídos os mandatos? Em 1938, 1913 ou 1898, quando as potências estrangeiras (sobretudo a Inglaterra e a Alemanha) andavam a negociar, de forma traiçoeira, quem é que ficaria com o quê? Em 1885, para não termos de arrostar com o fardo do homem branco, aguentarmos umas dezenas de expedições militares e sujeitarmo-nos a um ultimatum humilhante?

Deveríamos ter abdicado dos nossos territórios quando outras nações armaram e subverteram povos indígenas, instigando-os contra a autoridade portuguesa, só para não passarmos pelo «aborrecimento» de ter de impor a ordem? Quando? E com que justificação? Acaso as outras potências que descolonizaram «mais cedo» ficaram livres de problemas? A descolonização correu-lhes bem? E a realidade alheia tinha, porventura, alguma semelhança com a nossa maneira de estar no mundo?

Aos inventores de mitos deixamos aqui uma solução que evitaria todos esses problemas: os portugueses não se deveriam ter lembrado de ir às Canárias (1340) e a Ceuta (1415). Tínhamos resolvido o problema da descolonização logo aí! Será que os Portugueses andaram enganados durante quinhentos anos? Será que monárquicos de várias tendências, republicanos, liberais e miguelistas, maçons e inquisidores, nobres e plebeus, reis e burgueses, tiveram uma visão tão curta, durante um período tão longo e só a solução e as ideias adoptadas no pós-25 de Abril de 1974 é que estão possuídas pelo elixir da razão?

Oliveira Salazar


Por todas estas razões, parece-nos descabido acusar o professor Salazar (e todo o regime do Estado Novo) de não ter tido a «visão» de descolonizar mais cedo. O professor Salazar não só continuou responsavelmente a obra herdada dos nossos antepassados mais ilustres, como ainda por cima a engrandeceu. Corrigiu abusos, desenvolveu, pôs ordem, estabeleceu leis, dignificou o Estado, pôs amigos e inimigos em respeito, não permitiu interferências estranhas, harmonizou economias, foi humano e tudo fez de boa mente e no interesse do engrandecimento da pátria portuguesa, livre e independente. Lutou por isso, sem desfalecer e não poucas vezes teve de carregar sozinho todo um povo, quando as dúvidas o assaltavam. Acusar o professor Salazar de ter actuado mal na questão ultramarina é uma falsidade histórica, uma desonestidade intelectual e uma injustiça flagrante, que só a ignorância ou a cegueira ideológica podem explicar. Insistir nestes termos, mais de três décadas depois dos dramáticos acontecimentos vividos no pós-25 de Abril, é um atentado à inteligência que envenena as relações sociais e compromete a construção do futuro.

Estaremos melhor agora, que andamos a combater nas guerras dos outros? Será mais digno combater no Afeganistão que no Estado Português da Índia? No Líbano que em Angola? Na Bósnia que na Guiné-Bissau? No Kosovo que em Moçambique? São estes os novos ventos da história? Ou será que o objectivo nacional é, hoje, deixarmo-nos espoliar da nossa zona económica exclusiva, como está em marcha através do que está consignado no último tratado da União Europeia, o de Lisboa? Haverá, algum dia, um vento da história a nosso favor?


A população dos territórios ultramarinos queria ser independente


«O inimigo atira pela porta da capela paroquial. Salvem-nos. Morremos portugueses».

Apelo pela rádio dos heróicos defensores de Mucaba antes de serem salvos pela acção da Força Aérea. 30 de Abril de 1961.


Esta era outra falácia recorrente. Mas para entendermos o que realmente se passou, é preciso reflectir sobre o modo como os portugueses se relacionavam com os povos dos territórios onde se fixavam.

Na verdade, a «colonização portuguesa» tinha características próprias que a individualizavam muito positivamente no concerto das nações. Começou por ter origem num alto desígnio: lutar pela cristandade e espalhar a palavra de Cristo pelas terras onde aportássemos, isto é, evangelizar. Esse propósito catapultou-nos até à Índia, num verdadeiro projecto escatológico de âmbito nacional e de alcance mundial, onde o primeiro objectivo era encontrar cristãos no Oriente, de cuja existência havia fortes indícios: os do rito do apóstolo S. Tomé, na Índia, e os coptas da Abissínia - o celebrado reino do Prestes João das Índias. Ou seja, o nosso intuito era unir os cristãos do Ocidente com os cristãos do Oriente sob o ceptro do Espírito Santo - a terceira pessoa da Trindade - pois era essa a figura que imperava no cristianismo português, sobretudo desde o reinado de D. Dinis, e indubitavelmente de inspiração templária.

Só depois deste objectivo cumprido - é essa a nossa convicção - é que veio a busca de especiarias, o que não se pode ter por desejo menos aceitável, já que não é pecado comerciar e criar riqueza. Claro que com o tempo, como é próprio da natureza humana, o primeiro desiderato foi esmorecendo, ficando ofuscado pelo segundo. A Santa Sé seguiu todo este processo com prudência, não só porque lhe levantava problemas teológicos novos (por exemplo, era tido como certo, até então, que os povos não cristãos não eram civilizados), como também porque o culto do Espírito Santo, que nessa época os portugueses professavam, bem como os ritos dos cristãos do Oriente, não eram propriamente católicos, apostólicos e romanos.

Tendo sido um projecto de âmbito nacional, que foi assumido pela coroa e que envolveu o país inteiro, de tal maneira que nobreza, clero e povo se associam sempre ao empreendimento - não é possível afirmar que a expansão portuguesa foi obra de aventureiros, de empresas privadas ou de simples acções de rapina, como aconteceu com os restantes países europeus e que se converteu, com o tempo, numa política puramente mercantilista e de exploração de recursos. Talvez por isso não lhes tenha sido difícil abandonar os territórios que ocupavam.

Com Portugal não era nada assim. Os portugueses tinham projectos e exportavam afectos. Sempre consideraram as terras e as gentes como fazendo parte da sua essência e incorporou-as de pleno na coroa. Eram, simplesmente, um prolongamento do território europeu. Os portugueses davam-se e ofereciam-se, criavam ligações de confiança e foram o único povo no mundo a oferecer armas às entidades com que contactava. A maneira de ser e estar dos portugueses foi inclusivamente reconhecida pelo papa João Paulo II na sua homilia em M'banza Congo, Angola, a 8 de Junho de 1992: «[...] Aqui, os colonizadores, apesar de tudo, conviveram com os povos que encontraram [...]». O modo como os portugueses se relacionaram com os outros povos pode ser facilmente constatado e aferido nas actuais missões de paz e humanitárias que desenvolvemos um pouco por todo o mundo. Ninguém consegue o que nós conseguimos, ninguém se relaciona como nós nos relacionámos. Por isso, Portugal e os portugueses sempre se defenderam de todos os ataques e extorsões de que foram alvo: a reacção ao ultimatum inglês, a queda de Goa, entre outros, são provas disso.










É verdade que nem tudo foi um mar de rosas e que se cometeram excessos, depredações, latrocínios. Mas tudo na vida é relativo e, neste âmbito, a acção dos portugueses em nada os pode envergonhar. A escravatura, hoje em dia tão execrada (e bem), foi durante milénios uma actividade lícita e moralmente aceitável. E lembre-se, em abono da verdade, que os principais negreiros eram os próprios régulos das zonas onde mais se exerceu o negócio de escravos. Os factos, em história, devem ser analisados à luz das referências da época em que se produziram e não com base nos conceitos éticos e morais de hoje (9). Como é óbvio, todo o lastro histórico de Portugal acabou por se reflectir nestas últimas campanhas montadas à escala mundial - note-se - contra a nação portuguesa, até à altura em que o nosso país ficou reduzido ao triângulo formado pelo «continente e ilhas».

Na altura dos massacres em angola, a população portuguesa, nomeadamente a de origem caucasiana, aguentou e castigou os insurrectos. O governo de então, patriota até à medula, agiu em conformidade. Ultrapassada a crise «Botelho Moniz», a acção política concentrou-se na resposta a dar e pode dizer-se que, salvo os comunistas, que constituíam uma franca minoria da população, toda a nação terçou armas pela defesa de Angola. Os batalhões desfilavam à partida e à chegada e eram aclamados. Quando Goa caiu, a comoção e a indignação apoderaram-se das pessoas de um modo que apenas tem paralelo no ultimatum de 1890. Declamavam-se Os Lusíadas nas ruas e as igrejas enchiam-se de fiéis rezando pelos portugueses cativos na Índia.

Com o passar dos anos, as operações de soberania e contra-guerrilha (vulgo guerra, depois apelidada de «colonial») entraram no dia-a-dia nacional sem que isso provocasse anormalias de vulto (10). A população aceitou o fardo das operações militares com estoicismo e até ao fim (1974) os batalhões foram seguindo para África - e eram constituídos lá, também - «estranhamente» completos e em boa ordem de marcha. Nunca houve problemas disciplinares graves, insubordinações ou atentados contra graduados. A percentagem de desertores era a mais baixa que se conhecia em qualquer exército contemporâneo, um fenómeno que se estendia às tropas de recrutamento local. O número de refractários era também muito reduzido e a maioria tinha que ver com problemas ligados à emigração. E não são dispiciendos os casos de emigrantes que vieram a Portugal cumprir o serviço militar e depois seguiram a sua vida.

A coesão nacional começou a abrir brechas nos meios mais privilegiados - uma constante nacional - nos que tinham acesso à universidade, sobretudo a partir da crise académica de 1969, nos chamados «filhos maus das boas famílias» e ainda em grande parte dos intelectuais, sempre deslumbrados com o que lhes chega de fora e pelo que está na moda em Paris, Londres ou Nova Iorque, já para não falar daqueles que se deixaram seduzir pelas teses marxistas. Desligaram-se da nação, julgando que apenas se estavam a desligar do Estado. E, como já vimos, até a igreja foi permeável.

No Ultramar, a maior parte da população não foi tocada pela subversão. A de origem branca ou asiática continuou a levar a cabo as suas actividades e entendia-se com a de origem indígena. Com o tempo, a interacção social melhorou muito não só devido ao aumento exponencial da educação e ao desenvolvimento económico e social, como à acção dos contingentes de militares provenientes da metrópole. Apenas em franjas pequenas da população branca, influenciadas pelos exemplos rodesianos e sul-africanos, onde imperava um apartheid entre raças, é que se verificavam algumas atitudes eticamente reprováveis. Entre alguns dos elementos mais influentes da comunidade branca começaram a despontar ideias de progressiva autonomia e de independência, que sem serem ainda preocupantes, tinham de ser corrigidas a tempo. Entre os portugueses negros, que se dividiam em numerosos grupos étnicos e linguísticos, a maioria mantinha-se fiel à bandeira das quinas. Para provar tal afirmação, basta pensar na paz absoluta que se vivia na maioria dos teatros de operações - com excepção da Guiné, dada a exiguidade do território e a extensão de fronteiras hostis - na ausência de atentados e raptos selectivos aos militares e suas famílias, na inexistência de guerrilha urbana, na confiança depositada nas tropas de origem negra, perfeitamente integradas, leais e a quem se dava acesso a todas as especialidades e missões e que em 1974 já eram mais numerosas que as de origem branca (11). E se esses exemplos não forem suficientes, acrescente-se o facto das messes militares nas cidades não terem sequer sentinela (12); das autoridades portuguesas se deslocarem a todo o lado; de nunca ter havido nenhuma área controlada exclusivamente pela subversão; e de se ter verificado um contínuo regresso das populações expatriadas, fosse voluntariamente, fosse por coacção.

Ora, nada disto poderia ter acontecido se a maioria da população indígena ou uma parte considerável dela quisesse optar pela independência e odiasse assim tanto a nacionalidade portuguesa. Há inúmeras provas de que a subversão era inspirada e sustentada a partir de fora, apoiada por potências estrangeiras. Depois, não nos esqueçamos que nos territórios portugueses que eram ilhas nunca houve subversão, até no arquipélago dos Bijagós, na Guiné, não se registou qualquer perturbação. Dito de outro modo, a guerrilha não seria capaz de sobreviver sem santuários protegidos do outro lado da fronteira. Por tudo isto se pode considerar, inclusivamente, que Portugal não enfrentou uma guerra subversiva «clássica», pois não surgiu de revoltas iniciadas no interior dos territórios. E nada do que se passou visava a autodeterminação dos povos, mas sim a substituição de soberanias e a garantia de interesses, esses sim, neocoloniais.





Fuzileiros na Guiné Portuguesa



A BA 12 (Guiné, 1966).


O facto da maioria da população indígena gostar de ser portuguesa e de que os laços mantidos eram fraternos e estavam longe de ser motivados pelo ódio, ainda hoje pode ser facilmente comprovado.

Prestei serviço durante 27 anos na Força Aérea Portuguesa, tendo entrado para a Academia Militar em 1971. Quando «fiquei pronto» em Junho de 1976, já tinham terminado as operações militares no Ultramar. Não «estive lá», portanto. Mas antes de passar à reserva estive na Guiné-Bissau, como adido de Defesa. Nunca tive problemas com qualquer cidadão guineense, fizesse ele parte das autoridades ou pertencesse simplesmente ao povo. Percorri quase toda a Guiné, muitas vezes sozinho ou acompanhado pela minha família, e nunca senti qualquer manifestação de desafecto nem tive qualquer sensação de insegurança. Andávamos à vontade no meio do mercado do Bandim...

Quase todos os dias encontrava ex-militares ou milícias que me vinham reivindicar direitos de cidadania ou de assistência social. Os pedidos de cooperação e ajuda eram (e são) constantes. Aos fins-de-semana, numerosos guineenses sentavam-se com os transístores no ouvido escutando os relatos de futebol dos grandes clubes portugueses. E quando nos sentamos com eles à mesa, passamos a estar todos em casa.

Nas outras ex-províncias, as informações que me chegam apontam no mesmo sentido. Se existem problemas é com parte da «cleptocracia» arrogante instalada em Luanda e um ou outro «ista» mais empedernido. Até os numerosos turistas portugueses que têm visitado Goa podem testemunhar o carinho com que são recebidos e tratados pelos naturais do «tempo dos portugueses» e como tudo é diferente do resto do subcontinente industânico. Será que as coisas se passariam tal qual se a acção dos portugueses por esse mundo fora tivesse sido como a propaganda inimiga pintava e como uns ignorantes deslumbrados têm feito crer desde o golpe de Estado florido a cravos? Se a nacionalidade portuguesa era assim tão execrada, como é que se explica que após 20 anos de ocupação indonésia os timorenses saíssem dos seus buracos ostentando a bandeira das quinas, religiosamente guardada?

Comparados com os povos colonizados por outros, os «nossos» negros, amarelos e mestiços são «doces». Já é tempo de acordarmos e de exorcizarmos o pessimismo que se entranhou em nós com as desgraças ocorridas no século XX e das quais ainda não recuperámos.


A guerra era injusta e actuávamos à revelia do Direito Internacional


«O Senhor comandante dirigiu-se à Câmara e fardou-se de branco, dizendo que assim morreria com mais honra. Rapazes, sei que vocês vão cumprir assim como eu e que mais vós quereis! Acabarmos numa batalha aero-naval. Fazemos parte da defesa de Diu e da Pátria e vamos cumprir até ao último homem e última bala se possível. Algumas despedidas se fizeram e até as fotografias dos entes queridos foram beijadas e guardadas nos bolsos dos calções».

Do relatório da guarnição da Lancha Vega, sobre a actuação do respectivo comandante, segundo-tenente Oliveira e Carmo, morto heroicamente nas águas de Diu, a 18 de Dezembro de 1961.


É preciso dizer, de uma vez por todas, que aqueles territórios ultramarinos, onde há séculos nos tínhamos fixado e onde tanto trabalhámos, construindo e desenvolvendo, pertenciam legitimamente a Portugal. Eram nossos!

Tal estava firmado em tratados antigos e era reconhecido por todos os países com os quais mantínhamos relações diplomáticas. A excepção fora a União Indiana, mas esse caso já foi suficientemente analisado.

Além disso, era tradição secular que o rei de Portugal considerasse todos os povos que habitavam os territórios em que nos estabelecíamos como seus vassalos e todas as Constituições portuguesas, a começar pela primeira, de 1822, definiam o território pátrio como englobando todas as parcelas espalhadas pelo mundo. Em mais nenhum outro país tido por colonizador se verificava algo parecido.

Aliás, o único problema por questões territoriais que ainda hoje prevalece é o de Portugal com a Espanha, que se arrasta desde 1801: Olivença. E quando Portugal entrou para a ONU, em 1955, entrou como Estado uno, pluricontinental e plurirracial. Ninguém colocou qualquer entrave, ou fez o mais pequeno reparo.

Já verificámos também que, na evolução da história, os «ventos» foram sempre soprando em nosso desfavor e muitas vezes parecia inclusivamente que o direito internacional ia sendo elaborado e tecido com o objectivo de despojar Portugal do seu património, ou de nos colocarem perante obrigações e dificuldades impossíveis de cumprir, para que assim desistíssemos dos nossos interesses.

Foi isso que começou a acontecer, por exemplo, a partir do momento em que nos inquiriram na ONU, ao abrigo do artigo 73.º da Carta, relativamente à existência de territórios não autónomos sobre administração portuguesa. Como a resposta foi negativa, assistimos ao facto inaudito de todas as resoluções adoptadas terem evoluído no sentido de contrariarem sucessivamente os argumentos portugueses. Daí para a frente, presencíamos ao espectáculo lamentável que foi a urdidura de uma teia de conluios políticos e diplomáticos contra um Estado-Nação dos mais antigos (senão o mais antigo) do mundo, que vivia em paz com todos e não representava qualquer ameaça para ninguém. E que praticava (com experiência de séculos) uma convivência de credos, raças, religiões, culturas, etc., a anos-luz de distância do tão apregoado «multiculturalismo» com que se pretende estabelecer um modus vivendi nos países da União Europeia, com as comunidades de imigrantes!



Ver aqui, aqui e aqui


O comportamento de parte da comunidade internacional contra Portugal, nesses tempos, devia ser considerado como uma das páginas mais negras e vergonhosas das relações internacionais. Dito de outra maneira, a experiência ensinou a Portugal que não podia confiar na comunidade e no direito internacionais para defender os seus interesses ou direitos. Na altura, o Tribunal Internacional da Haia deu razão ao nosso país no caso de Dadrá e Nagar-Aveli, e o governo indiano recusou-se a acatar a sentença. No entanto, quando a mesma União Indiana invadiu Goa em 17 de Dezembro de 1961, e essa invasão foi condenada pelo Conselho de Segurança da ONU, ficou tudo na mesma, por via do veto da URSS. Como também já vimos, melhor ou pior, Portugal sempre foi conseguindo ultrapassar os escolhos que nos eram criados, as refundações do direito internacional e os grandes «princípios» evocados.

A partir de 1945, a questão magna passou a ser a da «autodeterminação dos povos» e o direito a disporem do seu destino. À partida, nenhum país, Portugal incluído, poderia ser contra esse princípio. Por isso, a tese nunca foi refutada, em abstracto, no nosso país. Nós próprios nos tínhamos autodeterminado do reino de Leão, em 1128, e da Espanha, em 1640. E fomos capazes até de resolver, pacificamente, a questão da independência do Brasil, a qual tinha resultado de uma crise política mal resolvida e da defecção de um príncipe. Depois, a acção da Inglaterra - desejosa de ocupar o lugar que nos pertencia no comércio com aquele portentoso território - e da maçonaria internacionalista deram o empurrão decisivo.

O princípio até poderia ser válido. No entanto, interessa-nos saber se era ou não aplicável ao caso português. A resposta, quanto a nós, é negativa. Em primeiro lugar, porque as populações dos diferentes territórios estavam autodeterminadas, com a própria independência nacional portuguesa. Ao fim de um longo caminho, não isento de problemas, injustiças e atrasos, os direitos e deveres de cidadania foram convergindo para a igualdade e a equitatividade. É verdade que o desenvolvimento económico não era igual em todos os territórios, mas apenas porque ao governo central nem sempre foi possível acudir a todos eles de igual modo. Além disso, em muitos locais só foi possível civilizar depois da farmacologia ter permitido aos caucasianos estabelecerem-se nessas zonas com um mínimo de segurança relativamente à sua saúde. Na maioria dos casos a noção de individualidade encontrada não ultrapassava a da tribo. Os povos a quem submetemos ou oferecemos a nacionalidade portuguesa em nenhum caso constituíam uma nação independente. De resto, muitas destas tribos tinham migrado de outras terras e fixaram-se ou por via da submissão ou do extermínio de outras que lá estavam antes delas (algumas até tinham chegado depois do homem branco). E que se poderá dizer dos territórios que encontrámos desertos?

Não houve ainda nada parecido a uma ocupação militar, ou estado policial, como nunca houve (nem nunca passou pela cabeça de ninguém que houvesse) qualquer tipo de «reservas» destinadas aos indígenas, como há hoje no Brasil, nos EUA e no Canadá, e como já houve na Austrália e noutros países. Mais a mais, os portugueses nunca se dedicaram a exterminar raças, credos ou culturas, como aconteceu com outros povos tidos por mais avançados do que nós.

Como é que se pode chegar à conclusão que um povo se quer autodeterminar? Quando três jovens disparam contra alguém pode chamar-se a isso revolta? Ou é preciso que se juntem 10 jovens? Ou 100 jovens e outros tantos velhos? Será que é só quando se cria um partido político que visa a independência de uma parte do território? Ou é apenas quando se verifica uma separação geográfica relativamente a várias parcelas? Ou quando há substrato individualizado, cultural, étnico, religioso? E verificando-se essa condição, não será lícito aos governos e à restante população que discorda oporem-se? Todos os meios são legítimos, ou só alguns? Em que circunstâncias, por exemplo, é que o «Movimento para a Independência do Algarve» (MIA), em tempos existente, poderia pugnar pela independência daquele antigo reino? Segundo os ditames da Constituição Portuguesa? Pelo direito comunitário da União Europeia? Através do consignado na Carta da ONU? E se de repente aparecerem uns iluminados a propor um referendo para perguntar se os portugueses se querem integrar em Espanha? A soberania plebiscita-se? E se a maioria votar que quer pertencer a Espanha, a minoria restante deve acatar tal desiderato ou, pelo contrário, revoltar-se? Vamos supor ainda que os remanescentes de uma tribo de índios que habitam uma reserva do Estado de Montana, na fronteira norte dos EUA, começavam a levar a cabo acções de guerrilha, exigindo a independência do território ocupado pela reserva. Como reagiria o governo dos EUA? E se os antigos peles-vermelhas - aos quais alguns governos federais chegaram à vilania de enviar, em tempos idos, cobertores infectados com tifo - se acolhessem do outro lado da fronteira canadiana? E se o Canadá resolvesse apoiá-los? E se o governo português resolvesse apoiar um movimento de guerrilha numa das repúblicas do Cáucaso, como reagiria a Rússia? O Kosovo pode ser independente, mas o País Basco ou a Córsega não? Se Portugal tivesse comprado territórios como os EUA o fizeram (Alasca, Florida, Louisiana, parte do Texas), poderia ter ficado com eles?

O caso mais estranho, e que nos diz respeito, foi Timor-leste, que a Indonésia, durante 20 anos, pôde placidamente invadir, ocupar e fazer o que muito bem entendeu sem grande incómodo da comunidade e do direito internacionais. Certo dia, deu-se o caso de terem filmado aquele vídeo em Santa Cruz, só aí é que o governo português acordou da sua letargia e, vítima da má consciência em que vivia, resolveu fazer alguma coisa. Fez-se barulho na cena internacional e os indonésios foram obrigados a partir, do mesmo modo que foram deixados estar. Afinal, para que serve o direito internacional? Na nossa opinião, serve fundamentalmente para dar uma aura de legalidade aos interesses dos mais fortes, em cada época.













Tudo é complexo, mas uma coisa, pelo menos, se pode facilmente entender: o que importa primordialmente nas relações internacionais é o poder. Portugal, como é óbvio e não poderia ser de outra maneira, usou de tudo o que tinha para se defender das agressões e da tentativa de esbulho de que foi vítima. Parte do poder estava nas razões em que escorava a licitude dessa defesa. E não parece aceitável que vários países da comunidade internacional e os media que os serviam se arrogassem possuir a verdade absoluta e a nós nos destinasse o monopólio do erro, considerando inadmissível qualquer crítica nossa.

Como dizia Santo Agostinho«a paz é a tranquilidade na ordem». Todavia, não se deve comprar a paz à custa de injustiças, nem de mentiras. A justiça vem antes da paz. Paz sem justiça é opressão. Ninguém moralmente sadio gosta de participar numa guerra injusta, embora a justiça se reparta, por vezes, por ambos os lados da contenda. De tal modo que todos os governos procuram sempre demonstrar a licitude das guerras em que se envolvem, algo que é essencial por três motivos principais: reforça a coesão nacional e a capacidade de fazer sacrifícios por parte da população, é um lenitivo importante para assegurar o moral das tropas e ajuda a concitar apoios internacionais, além de que é um argumento passível de ser utilizado nas negociações e nas discussões do direito internacional. Daí que, por exemplo, D. João I só tenha decidido avançar para a conquista de Ceuta depois do conselho dos teólogos lhe ter assegurado que tal acto era «Serviço de Deus».

Neste sentido, o problema da justiça da guerra deve ser colocado a montante. Quando a decisão de lutar é tomada, os militares têm de actuar. Não se pode estar sempre a discutir a questão da justiça. Ora, a justiça da decisão governamental que em 1961 levou ao desencadeamento de acções militares em larga escala, acções que tinham na base a afirmação da nossa soberania, a defesa das populações e o castigo dos invasores e insurrectos, que vindos de fora das fronteiras em conivência com esses países vizinhos chacinaram milhares de nacionais em Angola, essa decisão, repito, foi absolutamente justa e correcta. O mesmo se pode dizer relativamente à decisão de defender militarmente o Estado Português da Índia da invasão da União Indiana, que sendo um país independente nem sequer teve a coragem nem a decência de nos declarar guerra. Tal como foi lícita e correcta a opção de defender a Guiné e Moçambique quando esses territórios começaram a ser vítimas de ataques pelo tempo que fosse necessário.

A justiça do procedimento é de uma clareza cristalina: tratava-se de um acto de legítima defesa. Além do mais, tinha sido declarado por uma autoridade legítima, com justa causa e recta intenção (S. Tomás de Aquino); como último recurso e com meios apropriados (Victória e Suarez). Por isso, os portugueses tinham o direito de fazer a guerra e no fazer a guerra (jus bello e jus in bello). Mais, a nossa defesa foi motivada por agressões (ofensas), ao mesmo tempo que era um acto natural, pois destinava-se a salvaguardar a vida de todos e de cada um. As tropas portuguesas nunca violaram o Direito da Guerra e raramente quebraram preceitos humanitários.

Além de se tratar de um direito de legítima defesa era, outrossim, um dever, já que ninguém no seu juízo perfeito poderia querer deixar à sua sorte territórios que nos pertenciam por direitos históricos inalienáveis e uma longa lista de sacrifícios, para não referir todas as vidas que se perderam por amor e dedicação àquelas terras; nem tão-pouco abandonar populações que veneravam a bandeira das quinas ou fazer letra morta de um extenso património cultural e moral da nação. Por isso, os portugueses ficaram e lutaram. Como sempre haviam feito.

E afinal de contas, para quem é que a guerra era injusta?

Já vimos que não era injusta para nenhum país estrangeiro, pois não estivemos em guerra com nenhum e nenhum foi agredido por Portugal. Seria injusta para algum povo que pretendíamos submeter dentro das nossas fronteiras? Mas quais, se todos éramos portugueses? Se todos usufruíamos das mesmas leis? Acaso havia alguma população escravizada? Acaso alguém era mantido debaixo de terror policial ou militar?

Será que Portugal importunou algum povo ou autoridade que estivesse fora das fronteiras de Portugal? A resposta é não, como todos sabem. Teria sido intenção dos portugueses expandir-se para outro território e ficar com algo que não lhes pertencesse já? Não, três vezes não. Então, porque é que a nossa paz incomodava tanta gente?







Visto isto, parece-nos que se houve alguém que tinha todo o direito para se sentir injustiçado, esse alguém éramos nós, os portugueses, que vivíamos de bem com os nossos vizinhos, não tínhamos querelas com ninguém, oferecíamos o nosso sangue, a nossa civilização e a nossa nacionalidade aos povos dos territórios que, ao longo dos séculos, foram sendo integrados no todo nacional. Povos cujas idiossincracias foram respeitadas, que beneficiaram dos progressos da nossa civilização, que viram o seu nível de vida melhorar consideravelmente, que conheceram a promoção gradual da igualdade de direitos e deveres, enfim, que foram lentamente integrados e assimilados sem terem sofrido qualquer tipo de segregação ou quaisquer imposições intoleráveis ou descabidas. Em suma, toda essa sorte de «muitas e desvairadas» gentes fazia parte de uma mesma sociedade, a portuguesa. Sendo certo que nem sempre tudo correu da melhor maneira, a verdade é que ninguém no mundo, até hoje, conseguiu fazer melhor que nós.

Essa era a nossa forma de vida e a única coisa que pedíamos era que nos respeitassem. Ora não só não nos respeitaram e não nos compreenderam, como ainda por cima nos agrediram. E, então, a velha raça portuguesa que nos corre nas veias desde S. Mamede, tocada nos seus brios e dignidade, levantou-se altaneira, conduzida por um homem de excepção e resolveu defender-se. Clamou, como se fazia desde o senhor rei D. Afonso II, «Mouros em terra, moradores às armas!», e foi à luta.

É de lamentar, por isso, que tal gesta, que mostrou o povo português no seu melhor, como já se não via desde os tempos em que os revolucionários imperialistas napoleónicos nos invadiram a metrópole, e cujos grão-capitães não conduziam uma campanha tão bem desde Afonso de Albuquerque, tenha tido o fim negro e achincalhante de uma «debandada de pé descalço» como alguém insuspeito já lhe chamou (13). Foi assim que se consusbtanciou uma grande traição. E os seus autores, à falta de um tribunal internacional de justiça de Haia que os condene, devem, no mínimo, ser devidamente aferidos pelo tribunal da História.


A solução para a guerra era política e não militar


«Se não ganhássemos o de além, poderíamos perder o de aquém».

Gomes Eanes de Zurara


À semelhança de muitas outras atitudes, discussões e comportamentos, também passou a ser commumente aceite, ou, se quiserem, politicamente correcto e tranquilizador do espírito, afirmar que a solução da guerra em África era «política» e não «militar» e que as Forças Armadas, pela sua acção, garantiram o tempo suficiente para que essa solução fosse encontrada. A frase foi primeiramente proferida em Lisboa, durante a leitura do primeiro comunicado ao país da Junta de Salvação Nacional, em 26 de Abril de 1974. A partir daqui, a confusão de conceitos e de ideias instalou-se, porém, nada de substantivo veio a público. A questão já tinha sido abordada no livro Portugal e o Futuro, escrito por Spínola (ou por quem o ajudou nesse intento), mas sem especificar o que queria dizer exactamente com isso. Todavia, não deixa de ser curioso (apesar de se ter revelado dramático), que o então famoso general se tenha esquecido do antigo princípio clausewistiano de que a «guerra é a continuação da política por outros meios», querendo passar a fazer da política a continuação da guerra. Ignoramos se alguém que o rodeava lhe terá chamado alguma vez a atenção para isto.

Além de mito, a frase é uma falácia. Vejamos porquê. A decisão para acabar com uma guerra - mesmo em caso de desaire militar - é política, assim como também a decisão de a travar é, acima de tudo, política. Se dúvidas houver, lembre-se que as decisões políticas devem reflectir os interesses nacionais, neste caso dos portugueses, e não dos seus inimigos. Ora, tendo o governo português e os portugueses reagido em legítima defesa contra agressões violentas, vindas do exterior e apoiadas por potências estrangeiras, a territórios e populações que eram legitimamente nossas, por direito e por devoção, e como essa defesa obrigava a desencadear e manter operações militares, caberia naturalmente às Forças Armadas ocuparem-se dessa missão. É essa a razão da sua existência. Iniciadas as hostilidades, estudado o inimigo e apreciadas as ameaças, ficou estabelecido como objectivo político a defesa intransigente da soberania portuguesa em todos os seus territórios, a defesa do território e a protecção das suas populações, bem como a salvaguarda do património cultural e espiritual da nação. Além disso, instituiu-se um conceito estratégico que nas palavras do ministro da Marinha, o almirante Pereira Crespo, se pode enunciar da seguinte maneira (14):

a. Mostrar uma vontade firme de resistir e de vencer (o inimigo teria de acreditar que a luta em que estávamos empenhados era para nós vital e de que nunca desistiríamos, fosse por fadiga, fosse por traição);

b. Acelerar o desenvolvimento económico e social dos territórios ultramarinos, aumentando a participação dos portugueses de raça negra na administração dos negócios públicos. (O inimigo teria de optar entre os sacrifícios de uma luta de guerrilha e a sua integração numa sociedade em pleno desenvolvimento, na qual poderia participar);

c. Receber, como irmãos e sem qualquer preconceito, aqueles que, tendo lutado contra nós, desistissem de tal luta.

Esta estratégia obrigava a uma guerra de desgaste, cuja duração dependia, essencialmente, da resistência do inimigo. Parece-nos evidente que a estratégia dos inimigos, neste ponto, era idêntica à nossa, embora de sinal contrário, isto é, pretendia impor-nos uma guerra de longa duração, que se arrastaria o tempo que fosse necessário, até nos levar ao cansaço e ao desgaste, o que por sua vez criaria tensões internas que enfraqueceriam a nossa vontade de lutar e obrigariam eventualmente o governo português a mudar de política.

Todavia, ao contrário de Portugal (que ainda assim tentou substituir a liderança política na Guiné-Conacri por uma que lhe fosse favorável, através da operação «Mar Verde»), os movimentos subversivos dispunham do apoio de vários países e de «quintas colunas» portuguesas, para, por meio de um golpe de Estado, substituir o governo de Lisboa por outro ideologicamente mais próximo das teses independentistas (ou por compromissos assumidos) e negociar assim a capitulação.

Os defensores da «solução política» versus«solução militar» costumavam cair ainda noutro paradoxo: esqueciam-se que uma solução política, num contexto complexo de relações internacionais e de guerra total, apoia-se não só na força militar, mas também no âmbito estratégico, económico, financeiro, social, diplomático e psicológico. Em todos eles estavam a ser desenvolvidos vários esforços e era necessário, para tal, de mais tempo. E assim sendo, as Forças Armadas não seriam as únicas a determinar as condições que deveriam estar na base das decisões políticas, nem o timing em que estas deveriam acontecer. Quando se diz que a guerra durava há demasiado tempo, o que é que isso quer dizer concretamente? Alguém se pode atrever a definir um prazo para o tempo que uma guerra deve durar?






No plano das contendas internacionais, é possível isolar quatro grandes formas de coacção: políticas, económicas, diplomáticas e militares. Ora, o conflito que estamos a analisar não fugiu à regra. Em termos militares, costuma-se ouvir dizer que uma guerra de guerrilha é impossível de vencer militarmente. Não é verdade, como o provam as vitórias inglesas na guerra da Malásia (1946-57) e no Quénia (1952-1960), bem como as várias tentativas de subversão falhadas que os cubanos, após a vitória de Fidel Castro, tentaram fazer em vários países da América do Sul (por exemplo, na Venezuela, na Guatemala, no Peru, na Colômbia e na Bolívia). No entanto, uma vitória militar como essas, aparentemente, não era aplicável ao nosso caso, mesmo quando se sabia que em 1973, o inimigo tinha praticamente desistido de lutar em Angola. As tácticas utilizadas pela guerrilha permitiam atacar em pequenos grupos e escolher a altura e o local para o fazer, já que podiam atravessar as fronteiras quando lhes aprouvesse (relembre-se que nas ilhas africanas que pertenciam ao território português nunca se verificou qualquer tipo de subversão). Podiam, portanto, prolongar a luta indefinidamente. Ora, para os aniquilarmos teríamos de os perseguir sistematicamente nos territórios onde se refugiavam, porém, uma decisão dessas conduziria, quase de certeza, a uma guerra clássica ou, então, criaria problemas militares e diplomáticos de muito difícil previsão.

Por outro lado, a guerrilha - como também já vimos - não tinha qualquer hipótese de bater as Forças Armadas portuguesas, que estavam muito bem estruturadas, eram numerosas (em termos relativos) e actuavam no seu próprio território. O inimigo teria de subir a parada e constituir forças de exército regular que conseguissem suplantar o nosso potencial, como aconteceu, por exemplo, na Indochina contra os franceses e americanos. Ora, na altura não se conseguia vislumbrar qualquer hipótese do inimigo, mesmo contando com o apoio dos exércitos regulares de alguns países limítrofes, de conseguir atingir esse objectivo. Além disso, tanto a Rússia como a China mostravam muita relutância em fornecer tanto meios militares mais sofisticados como pessoal para realizar operações desse género. Assim, tudo indicava que a solução para a guerra não passava pelo campo militar.

No âmbito diplomático, o impasse era idêntico, não havendo perspectivas de que fosse possível encontrar uma solução para qualquer dos lados. Os sucessivos ataques desferidos pelos inimigos de Portugal na ONU, OUA, etc., nunca tiveram quaisquer resultados práticos e a sua repetição e ineficácia acabou por cair numa indiferença generalizada. Por outras palavras, tornaram-se irrelevantes.

Do nosso lado, era inviável «obrigar» a URSS e seus satélites ou aliados a mudar a sua política de apoio à guerrilha, afinal, estava a defender os seus interesses. De igual modo, estava fora de questão conseguir convencer os dirigentes dos países que tinham fronteiras com as nossas províncias ultramarinas a desistir de conceder apoio ao inimigo. Mesmo que o quisessem (e alguns, como o Senegal e o Malawi, até queriam), não o poderiam dizer publicamente, tendo em conta a política seguida por praticamente todos os países de maioria negra e árabe do continente africano.

No âmbito económico, era igualmente impossível obter uma solução para o conflito. Uma acção da nossa parte teria de ser feita não contra o PAIGC, a Frelimo, a FNLA ou o MPLA, mas sim contra as potências que os apoiavam, pois eram estas que forneciam toda a logística que permitia à guerrilha sobreviver. Ora, tal estava completamente fora das nossas possibilidades. A pressão que eventualmente poderíamos exercer sobre o Zaire e a Zâmbia, no que tocava à importação e exportação de mercadorias através dos nossos portos e caminhos-de-ferro, estava reservada para situações críticas, sendo preferível, por enquanto, mostrar boa vontade e garantir uma boa vizinhança.

O inimigo também não tinha força para prejudicar a economia de Angola e Moçambique e só muito dificilmente o fazia na Guiné, o que no contexto geral era irrelevante. E se no campo internacional era possível que nos conseguisse causar sérios problemas económicos ou até impedir de realizar trocas comerciais no nosso espaço ultramarino, através da interdição das linhas de comunicação marítima, por exemplo, isso iria levantar problemas geopolíticos delicados no equilíbrio mundial, pelo que nunca foram tentados.

A única solução para ambos os lados da contenda era pois obter a vitória pela via política. Ora, o objectivo do inimigo passava por fazer com que Portugal entregasse os territórios ultramarinos. De que forma? Esse «pormenor» parecia irrelevante. Para as potências comunistas, nomeadamente a URSS, o mais importante era conseguir que o poder fosse entregue a movimentos marxistas e não a outros, que teriam de ser excluídos ou eliminados. O resultado final da estratégia era a substituição de soberanias, não a autodeterminação dos povos. Após a independência, os movimentos, reféns da ajuda recebida, teriam o apoio dos países que a forneceram e poderiam quebrar quaisquer compromissos que tivessem feito. A potência «colonizadora», neste caso Portugal, ficaria de pés e mãos atados e a mais pequena objecção seria imediatamente qualificada de «tentativa de ingerência» ou tique neocolonialista.




Já vimos que a estratégia para se alcançar esse objectivo político implicava o desgaste do nosso exército através de operações de guerrilha ou então precipitar a substituição do governo de Lisboa por outro favorável à retirada portuguesa dos territórios africanos. Note-se que a primeira via ajudava e conduzia à segunda. E se as actividades de guerrilha podiam ser deixadas aos movimentos que lutavam contra nós, já para subverter a metrópole era preciso contar com o apoio tanto de algumas grandes potências, como de alguns portugueses pouco dignos desse nome e que se prestassem à infâmia. E foi isso precisamente que aconteceu. A subversão foi dirigida preferencialmente aos meios estudantis, donde sairiam os oficiais e os sargentos milicianos que iriam dirigir as tropas portuguesas, ao mesmo tempo que procurava explorar todos os sinais de descontentamento que pudessem existir entre os militares do quadro permanente.

A primeira movimentação deu-se logo em princípios de 1969, quando os sargentos fizeram saber do seu descontentamento (e com razão) relativamente a uma actualização geral de vencimentos, que vinha piorar a sua já difícil situação económica. O problema foi corrigido, não se tendo verificado uma politização desse movimento, como chegou a ser tentado (15). Em simultâneo, algumas organizações clandestinas levaram a cabo actos de sabotagem na metrópole.

No entanto, o inimigo insistiu principalmente na solução política, não descurando, porém, a acção militar e diplomática. Foi para fazer face a esta estratégia do inimigo que também o governo português se viu obrigado a definir uma solução política, nomeadamente através de acções de contra-guerrilha, durante o tempo que fosse necessário de modo a causar desgaste no inimigo, que inevitavelmente dariam origem a divisões internas e criariam um ambiente de desmoralização generalizada, ao ponto de fazer com que deixassem de acreditar na vitória e perdessem assim a vontade de lutar. No fundo, pretendia-se que os guerrilheiros chegassem à conclusão que era mais vantajoso permanecerem portugueses, ou seja, plenamente integrados no todo nacional. Para tal, era importante não descurar nenhum âmbito de actuação.

Por isso é que não cabia aos militares dar tempo aos políticos para eles encontrarem uma solução política; cabia sim aos políticos dar aos militares (e aos diplomatas, empresários, investidores, etc.) as condições necessárias para que eles pudessem cumprir a sua parte no esforço comum, a fim de que fossem atingidos os objectivos políticos definidos! O que, à excepção do caso da Índia, não se pode dizer que não tivesse sido feito (16).

Resta agora especular sobre outras possíveis soluções políticas que Portugal poderia ter aplicado. A primeira, defendida por alguns, mesmo dentro do regime, era mudar a estrutura política nacional, quer através de outras alternativas de autonomia ultramarina, confederação ou federação (tese defendida pelo general Spínola no livro Portugal e o Futuro), quer transformando o regime numa democracia do tipo ocidental, como pretendia a oposição «democrática» e «liberal». Do nosso ponto de vista, esta discussão não fazia qualquer sentido tendo em conta o problema que se tinha entre mãos, já que as forças inimigas não iriam mudar a sua política ou as suas exigências, qualquer que fosse o tipo de regime ou de organização político-administrativa que os portugueses decidissem adoptar. Por outro lado, a forma como nós estávamos a conduzir a guerra não tinha de ser alterada, fosse qual fosse a natureza das instituições a estabelecer. Além disso, a organização política do Estado português era um assunto interno nacional e o que se viesse a decidir em Lisboa não poderia ir à revelia do sentimento dominante em cada um dos territórios, sobretudo em Angola e Moçambique, pois eram aqueles que maior peso relativo viriam a deter.

Outra hipótese que chegou a ser equacionada passava por fazer um referendo ou um plebiscito, perguntando às populações ultramarinas qual o destino que pretendiam para as suas terras. A vivência, os testemunhos e a informação existentes na altura não admitem qualquer dúvida: os resultados seriam esmagadoramente favoráveis à manutenção de uma pátria portuguesa pluricontinental e multirracial. Dito de outro modo, se tivesse sido essa a solução escolhida, os interesses portugueses não seriam afectados.

Ainda assim, e deixando de parte a discussão sobre a legitimidade de se referendar a soberania, seria uma ingenuidade acreditar que o inimigo aceitaria um resultado que lhe fosse desfavorável; ou que quisesse até sujeitar-se a esta prova, dadas as suas conhecidas debilidades e faltas de apoio interno. Além disso, e na hipótese de concordar com essa solução, faltava saber se ele estaria disposto a colaborar honestamente na sua realização e a acatar as decisões maioritárias. De outro modo, os resultados jamais seriam aceites pela comunidade internacional.





Mesmo que um ou outro grupo de guerrilha aceitasse participar, provavelmente com o objectivo de colher alguns dividendos, era pouco provável que desmantelassem as suas organizações clandestinas ou que depusessem incondicionalmente as armas, para assim poderem reiniciar a luta quando lhes aprouvesse. Acreditar que os países comunistas, que apoiavam a subversão à distância e ansiavam por se instalar nos nossos territórios, iriam desistir dos seus intentos por causa de um referendo, usando métodos tidos como democráticos, seria uma ingenuidade ainda maior.

Políticos e simples cidadãos, nacionais e estrangeiros, e até diferentes comentadores e «adivinhos» tanto na década de 60 do século XX como, já no período pós-revolucionário, as desgraças ocorridas na fase das independências (a que, por decoro, não chamamos pelo nome de descolonização), defenderam que se deveria já ter concedido a independência aos territórios de além-mar, nomeadamente a Angola e Moçambique (17), de modo a que se pudessem criar «novos Brasis» e constituir, dessa forma, uma comunidade de países de expressão lusíada, ou seja, com uma matriz portuguesa a uni-los. Todavia, esta solução seria outra ingenuidade, impossível de realizar, que além disso traria graves consequências. Com efeito, dificilmente essa solução seria realizável enquanto esses movimentos inimigos não fossem vencidos. Mas se isso acontecesse, os grupos armados da guerrilha não teriam qualquer hipótese de vir a participar no poder, já que não possuíam apoio nem estrutura para tal. Depois, uma comunidade de países de inspiração portuguesa iria impossibilitar que esses países caíssem na órbita comunista. Além disso, a permanência de uma larga comunidade branca seria igualmente um entrave a esses desígnios e, por isso, seria duramente combatida.

Ficar ligado a Portugal significava continuar na área de influência ocidental, exactamente o contrário daquilo que o bloco marxista pretendia. É importante não esquecer que estávamos no «último pico» da Guerra Fria. Ou seja, caso Angola e Moçambique se tornassem independentes em circunstâncias que fossem favoráveis tanto para os portugueses como para esses novos países, o mais certo era que a guerra de guerrilha continuasse, apoiada em organizações já existentes, que não seriam desmanteladas. Ora, sem a presença dos meios metropolitanos, Angola e Moçambique não teriam qualquer capacidade para se defender, além de que a vulnerabilidade das suas fronteiras (incluindo a aérea e marítima) aumentaria desmesuradamente. E, nessa altura, Portugal não poderia ajudar militarmente os novos Estados. Infelizmente, muitos dos pseudo-eruditos que viviam naqueles territórios não foram capazes de perceber estas evidências.

Finalmente - a não ser que alguém consiga apontar mais alguma - restava como solução política a tão apregoada via das negociações com o inimigo. Deve começar por dizer-se que as negociações em tempo de guerra não são um fim, mas um meio. Um meio para um dos contendores alcançar a vitória (ou com outro objectivo específico) ou então tentar evitar a derrota. Ora, como Portugal não estava a perder a guerra, não fazia qualquer sentido entabular negociações com o objectivo de evitar uma catástrofe maior. E, no primeiro caso, só fazia sentido negociar partindo de uma posição de força e com objectivos claros que pudessem fazer balancear decisivamente a contenda em favor dos nossos interesses. Em casos mais raros, um dos contendores, pelas posições que conseguiu conquistar, pode julgar-se vencedor à partida e, como tal, tentar impor uma solução ao inimigo, fazendo com este capitule sem mais luta - caso, por exemplo, de Hitler em relação à Inglaterra, após ter conquistado a França. De qualquer forma, uma negociação faz-se sempre Estado a Estado, o que não era, manifestamente, o caso.

No contexto do conflito que travávamos, seria muito difícil, diríamos mesmo impossível, negociar qualquer solução de compromisso, pois tal implicava que não houvesse um vencedor declarado; além disso, era preciso ter em conta que não estaríamos a negociar apenas com os grupos guerrilheiros, mas também com as potências, sobretudo as comunistas, que os apoiavam (a UNITA ilustra bem o que acabámos de afirmar, já que foi possível chegar a um entendimento com esse movimento - não marxista - que não só o neutralizou face aos nossos interesses como ainda por cima começou a combater os movimentos rivais). De facto, tanto o MPLA em Angola, como a Frelimo em Moçambique, nunca aceitaram negociar coisa alguma a não ser a independência, quaisquer que fossem as circunstâncias em que esta viesse a ser obtida. Perante isso, o governo português ia negociar o quê?




António de Spínola


A excepção a estes casos foi a Guiné e teve como intermediário o presidente Senghor, do Senegal, a quem repugnava a influência que a Guiné-Conacri poderia vir a ter sobre a Guiné portuguesa. Os contactos começaram em 1971, através dos bons ofícios de um terceiro governo. Senghor defendia que a Guiné deveria ser independente no âmbito de uma comunidade luso-afro-brasileira, extensiva, naturalmente, às restantes províncias e estava disposto a discutir essa questão com o governo português (18). Lisboa reagiu bem a esta iniciativa e enviou um alto representante a Dacar propor diligências preparatórias (19). Por razões que só o então presidente senegalês saberia explicar, esta démarche não teve continuação. Em meados de 1972, Senghor fez saber ao governador da Guiné que gostaria de falar com ele. Autorizado pelo governo, Spínola encontrou-se com Senghor em Cap Skiring, na fronteira norte da Guiné, mas em território senegalês. Dessa conversa resultou uma proposta de encontro entre Spínola e Amílcar Cabral, onde seria negociado um cessar-fogo, após o que se acordaria que o PAIGC seria integrado nas estruturas portuguesas e passaria a colaborar no governo do território. Daí se evoluiria para uma consulta às populações sobre o seu destino futuro.

As propostas foram analisadas em Lisboa com profundidade, tanto a nível do governo, como a nível do Conselho Superior de Defesa Nacional, e ainda por diversas personalidades. Ficou decidido - e bem - não prosseguir as negociações. Em primeiro lugar, porque ao sentar Spínola e Amílcar Cabral à mesma mesa, o governo de Lisboa estava a reconhecer, implicitamente, que o PAIGC era uma força beligerante respeitável, algo que seria aproveitado, como é lógico, pelos outros movimentos. Tal facto teria amplas repercussões (como tudo o resto) na imprensa internacional. O PAIGC não se limitaria, naturalmente, a fazer reivindicações apenas sobre a Guiné, procuraria englobar Cabo Verde, onde nunca se tinha disparado um tiro; a partir do momento em que aceitássemos um cessar-fogo, ficaríamos com as mãos amarradas para fazer fosse o que fosse, ao passo que o PAIGC conservaria toda a liberdade para fazer o que bem entendesse. E havia a hipótese de nos serem preparadas várias armadilhas. De resto, não se percebia ainda muito bem como seriam as relações entre a tropa portuguesa e os guerrilheiros. Independentemente do que acontecesse, o início das negociações seria sempre visto como uma vitória para o inimigo e teria uma acção moralizadora nas suas hostes.

Mesmo na suposição de que tudo corresse bem, seria impensável que Sekou Touré e a URSS aceitassem tal acordo. Amílcar Cabral seria facilmente denunciado como revisionista ou como traidor e a luta prosseguiria apoiada em grupos mais pequenos. Ora, o efeito de tudo isto sobre o moral das tropas portuguesas poderia ser catastrófico, a confusão ficaria rapidamente instalada e sobreviria depois uma desmobilização psicológica, pois a mensagem que se estaria a transmitir era que a guerra tinha chegado ao fim e que, portanto, o regresso a casa estava próximo. Para além de tudo isso, nenhuma decisão deveria ser tomada em relação à Guiné que não tivesse em conta o seu impacto nas restantes parcelas de Portugal, nomeadamente Angola e Moçambique. Spínola foi informado de que as soluções tinham de ser pensadas tendo em conta o contexto global do conflito, ou seja, não podiam ser vistas apenas pela fresta de Bissau. Nesse sentido, o general foi convidado a ir conhecer a realidade dos outros teatros de operações o que aceitou. Foi nesta entrevista com o chefe do governo que este último proferiu a célebre frase que apontava para a possibilidade de uma derrota militar na Guiné, o que muito escandalizou o general, que pelos vistos nunca aceitou nem digeriu a argumentação apresentada, tendo regressado a Bissau visivelmente transtornado. A partir de então, espalhou-se a ideia de que a solução era «política» e não militar; que os militares deram tempo e até encontraram soluções para a guerra, que os políticos em Lisboa é que não queriam, ainda por cima não se importando com uma derrota militar (o que trouxe ao de cima o espectro da Índia). Daí para a frente, as coisas só pioraram. O «acto» seguinte foi a elaboração do livro Portugal e o Futuro.

Eis pois os «mitos» e as falácias que corroeram a sociedade portuguesa. O chefe do Governo, Marcello Caetano, apesar das suas grandes qualidades intelectuais, do seu patriotismo, da experiência política e de ser uma pessoa de bem, não teve a fortaleza nem contou com os apoios necessários para lutar e contrariar esses mitos. Além disso, era contrário à política integracionista desenvolvida até à sua tomada de posse. A sua matriz cultural em termos de «colonização» era racista e próxima da anglo-saxónica, como evidenciado por variadíssimas tomadas de posição ao longo da sua vida.

Mais a mais, esqueceu-se que a autoridade, por vezes, também se tem de fazer respeitar pela força. Os restantes membros do governo, nomeadamente os que ocupavam as pastas relacionadas com a segurança e a defesa, afirmaram-se surpreendidos com o golpe do 25 de Abril. O almirante «pai» Tomás era um bom homem. Santos Costa estava reformado e o general Kaúlza de Arriaga neutralizado. É caso para dizer, saudoso padre Américo, que não estiveste só neste mundo!

Os novos poderes apressaram-se a fazer de Spínola e de Costa Gomes (a sua antítese) marechais. Em boa verdade, não o mereciam. E isto apesar de durante anos ambos terem tido uma acção de comando militar muito relevante na contra-subversão. O primeiro, porque a sua vaidade lhe embotou o senso e por se ter revelado uma nulidade política; o segundo, por graves falhas de carácter. Tanto um como outro por terem contribuído decisivamente, por acção, omissão ou incapacidade, para a derrota mais catastrófica e desonrosa de toda a História de Portugal. Que ficou consubstanciada na ignomínia a que ainda hoje se chama «descolonização».







Quanto aos «rapazes», vieram a revelar-se apenas isso: rapazes. Com a excepção de indivíduos como Melo Antunes, que tinha mais maturidade ou estudos, ou de Vasco Gonçalves (entre outros), que se comportaram como verdadeiros agentes do Kremlin. Felizmente, os «rapazes», quando se aperceberam do rumo trágico que as coisas levavam, conseguiram (a custo) parar o descalabro (na metrópole) a 25 de Novembro de 1975. Sobrevivemos. Mas é apenas isso que até hoje temos feito. Quanto aos mitos e às falácias, viraram verdade oficial (in Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa, Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 458-504).



Notas:

(1) Recentemente, no dia 25 de Setembro de 2008, num colóquio realizado no Centro Nacional de Cultura, onde se discutiu a situação económica, as finanças e as obras públicas nos últimos anos do marcelismo, a uma pergunta da assistência sobre se a economia e as finanças nacionais de então teriam permitido a continuação das operações militares, o Eng.º Xavier Pintado respondeu claramente, afirmando que além de tudo ser sustentável, a guerra não constituía entrave ao desenvolvimento, e deu vários exemplos de obras grandiosas que se encontravam em execução ou previstas no âmbito do Plano de Fomento em vigor.

(2) Com o tratado de paz assinado com o reino de Marrocos em 1774, por exemplo, garantiu-se a paz, que ainda subsiste nos dias de hoje, num processo que tem decorrido exemplarmente.

(3) Acordo Geral de Comércio e Tarifas.

(4) Embaixador Franco Nogueira.

(5) Bula Manifestus Probatum, de 23 de Maio de 1179, do Papa Alexandre III.

(6) Como aliás se verificou, com as dificuldades que a Frelimo sentiu para tomar conta da situação, antes e depois da independência.

(7) Dados obtidos em entrevista com o major-general Martins Rodrigues, em Abril de 2008. Este oficial falou com o jornalista Nuno Victor, testemunha dos eventos, na ilha do Sal, em Maio de 1974.

(8) Nos ataques a Guidage e Guilege foram interceptadas muitas comunicações rádio em espanhol, pelo que se pode concluir que os ataques estavam a ser dirigidos por instrutores cubanos. No ataque a Cumumbori, (apesar da operação ser do conhecimento e aparente anuência das autoridades senegalesas), o batalhão de Comandos africano ainda teve que emboscar uma coluna mecanizada do Exército daquele país, que se aproximou demasiado do local onde o ataque estava a ser efectuado, causando-lhe baixas e destruindo algumas viaturas (dados obtidos  em entrevista, em 19/09/08, ao director-adjunto Fragoso Allas, director da DGS na Guiné, na altura dos acontecimentos).

(9) A escravatura ainda continua a ser prática corrente em alguns países africanos, nomeadamente de matriz cultural muçulmana. Por exemplo, na Mauritânia, só em 2007 é que foi publicada legislação que proibia, de jure, a prática da escravatura.

(10) Compare-se, por exemplo, com o que se passou durante a Primeira Guerra Mundial: houve distúrbios, agitação política, greves, racionamento, etc., tendo-se chegado ao assassinato do Presidente Sidónio Pais...

(11) Na Guiné havia, em 1974, um batalhão de comandos, 14 companhias e 53 pelotões na tropa regular e 45 companhias e 23 grupos especiais de milícias; em Angola havia 115 grupos especiais de tropas, num total de 3560 efectivos para além do recrutamento da província para as unidades regulares, que ascendia a 42,4 por cento do total. Em Moçambique existiam 83 grupos especiais (GETE, GEP, etc.) e desde 1971 que o recrutamento local era superior ao quantitativo metropolitano. Sérgio Lima Bacelar, Portugal e as Campanhas de África 1961-1974, Estratégia Operacional, Estrutural e Genética, IAEM, CSCD, 1997/98, op. cit., p. 33.

(12) Além de não terem sentinelas, a maioria dos cozinheiros e empregados de mesa eram negros. Ora, se os autóctones odiassem tantos os «colonizadores» e os movimentos subversivos tivessem um mínimo de implantação, certamente não seria difícil infiltrar um elemento que pudesse envenenar a comida.

(13) António José Saraiva, entrevista ao semanário Expresso 22/4/1989, p. 15-R.

(14) Manuel Pereira Crespo, Porque perdemos a Guerra, Lisboa, ed. Abril, Centro do Livro Brasileiro, 1977, p. 53.

(15) Manuel Pereira Crespo, op. cit., p. 51.

(16) É evidente, também, que cabia ao poder político envidar todos os esforços para acabar com o conflito no mais curto espaço de tempo, procurando todas as soluções possíveis consentâneas com o interesse nacional. E ter o cuidado de envolver, na justa medida, todos os sectores da população e sem deixar transparecer a ideia de que se estava a lutar para «empatar» e não para ganhar.

(17) Embora sem nunca terem definido uma data.

(18) A páginas 189 do seu livro Depoimento, o então chefe do Governo português faz esta afirmação: «Ao governo português nunca repugnou esta ideia». O que se estranha face à política prosseguida e às afirmações propaladas. Mas revela, mais uma vez, a ambiguidade em que navegava a determinação de Marcello Caetano.

(19) O dr. Alexandre Ribeiro da Cunha, director do Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar.




Ver aqui















Ver aqui



Da gente ilustre portuguesa e do pátrio Marte

$
0
0
Escrito por Luís de Camões




Castelo de Guimarães



- Como?! Da gente ilustre portuguesa
Há-de haver quem refute o pátrio Marte?!
Como?! Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte
Há-de sair quem negue ter defesa?!
Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?!

Os Lusíadas (Canto IV, XV).



Castelo de S. Jorge















Porta de Martim Moniz


















Ver aqui


A escola fixista

$
0
0
Escrito por Miguel Bruno Duarte






«O que entre nós acontece, acontece em geral nos outros países, embora alguns se tenham conseguido defender melhor do que nós das inevitáveis consequências de um "ensino superior" que, nos últimos decénios, só consegue não ser uma instituição caduca por ser uma instituição vazia. Os professores, agarrados aos privilégios tradicionais do ofício, constituem-se cada vez mais num sindicato de classe e fazem dos corpos docentes universitários uma associação de socorros mútuos. Movidos pela má consciência do seu magistério vazio, confiam a perduração do ofício e a segurança do emprego à adopção de doutrinas cada vez mais acessíveis, mais fáceis e mais degradadas, de doutrinas que tudo vão concedendo à dispensa de preparação cultural, de estudo documental e de reflexão intelectual e que lisonjeiam, portanto, o atrevimento raciocinante da juventude mais apressada, mais oca e mais afirmativa, de doutrinas acessíveis às formas mais comuns da ignorância. As universidades acabaram, deste modo, por se fazerem instrumentos para a formação de comunistas ou criptocomunistas, meios para a divulgação do comunismo do qual já se disse, com irrefutáveis razões, que é "a única doutrina acessível a todos os estúpidos". Assim se criou aquilo que, numa expressão já corrente, se designa por "marxismo universitário", mistura manhosa de comunismo e criptocomunismo que facilitará a obtenção de emprego bem remunerado numa sociedade dominada por complexos socialistas, que satisfará para toda a vida as estreitas carências intelectuais dos alunos menos dotados, mas que será, para os outros, os mais dotados, reflexivos e sérios, um obstáculo ou um malefício de formação escolar a cuja remoção vão ter de dedicar depois os melhores anos da sua vida». 

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).







O texto que se segue foi já devidamente actualizado para uma reediçãoespecialmente revista de Noemas de Filosofia Portuguesa.


«A escravidão é a perda do valor pessoal, a abdicação da palavra própria, da realidade da parcela. É, no mundo humano, a direcção da pessoa por uma lei exterior; seria, no mundo físico, a exaustão completa da qualidade, a sua representação em pura quantidade, a supressão em cada massa de sua qualidade de inércia, a integral redução a puro geometrismo».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).


Segundo a tradição escolar, o ensino diferencia-se fundamentalmente em três graus: o elementar, o médio e o superior. Ora, estes três graus correspondem às três idades da formação da personalidade: a infantil, a adolescente e a juvenil. Implica, portanto, um movimento gradativo que está de acordo com os ritmos e as disposições da natureza humana, podendo até mesmo dizer-se que tem sido universalmente cumprido.

Contudo, convém chamar a atenção do leitor para o que, oportunamente, mais nos importa, que é, in mente, o ensino liceal, não só pela virtude conferida ao aperfeiçoamento superior da natureza moça, como também por ser o lugar onde, por princípio, se deveria manifestar o despertar da vida intelectual e sentimental dos adolescentes, a que primacialmente subjaz o princípio de individuação mercê do qual, da potência ao acto, cada indivíduo se sabe distinto e se reconhece diferente dos outros.

São, pois, os anos em que cada estudante tende a desvelar e a descobrir aquilo a que os pais e os professores propriamente designam por vocação, ou mais particularmente aqueles atributos inigualáveis e características únicas com que a própria natureza o dotou e agraciou. É, aliás, por isso que o justo paradigma do ensino liceal deve sobretudo apelar para uma multiplicidade tão variegada de cursos quanto é, de facto, expectável a progressiva diferenciação entre os indivíduos; depois, como essa diferenciação não oferece limites, ou é, por outras palavras, tão misteriosamente inclusiva quanto imprevisível, aquele paradigma é naturalmente suceptível de imperfeição; porém, nunca deve o ensino deixar de se organizar no sentido de disponibilizar aos adolescentes o maior número possível de cursos com vista à formação liceal por excelência.

Sabemos, infelizmente, que o ensino médio do nosso tempo faz e prepara o contrário. Apesar da dispersão ilusória e formalista das opções escolares em várias especialidades ou em múltiplas especializações, temos, de facto, vindo a observar que a indiferença suscitada por um tal ensino face à singularidade dos indivíduos e, portanto, assaz propiciador de um nivelamento uniformizante, denuncia como prioridade dominante a implementação de um ensino único, igualitário e, por consequência, válido para todos.

Daí a desilusão perante a actual situação confrangedora do ensino médio, a que convém necessariamente ligar as profundas implicações com os demais graus de ensino, nomeadamente o superior e o das primeiras letras. Desta forma, é na idade mais delicada e sensível da formação da personalidade que desde logo verificamos uma tendência negativa e até contraproducente no que à afirmação individual do ser humano se reporta, dado que a «unificação» ou a tão proclamada socialização do ensino apresenta-se segundo três directivas que designadamente passam pela subordinação do ensino à utilidade social, pela difusão da aprendizagem em grupo e pela adulteração do ensino por via da indústria do audiovisual.

Ora, no que toca à primeira das directivas supramencionadas, é evidente que a subordinação do ensino à utilidade social, que o mesmo é dizer às circunstâncias transitórias e contingentes da actividade técnica e económica, tem como efeito imediato uma clara incompatibilidade com a arte e o saber desinteressados. Tal situação, de resto, consolida e proporciona uma adversidade ao pensamento livre, sem o qual não pode haver existência civilizada que esteja no mais perfeito acordo com os princípios universais infundidos no espírito humano. Aliás, a abdicação que daí decorre tornou-se igualmente possível por razões que, incontestavelmente, consistem no abandono ou no esquecimento daquela visão sistemática e unitiva que faz, de todo o verdadeiro magistério, um modo de coexistência iniciática no qual se relacionam as manifestações naturais da realidade vivida e os superiores significados da transcendência principial.






Por contrapartida ao triunfo opiniático que exalta a cultura como um fenómeno social total, convém ainda reconhecer que, só no ensino propriamente situado, pode a filosofia elevar os homens ao universal concreto e verídico, sem o que tudo permanece, na ordem política, jurídica e económica, inteiramente destituído de qualquer significado superior. É por isso que para nós, Portugueses, se nos impõe conceber as supernas e profundas razões do nosso modo de filosofar, contrariando assim o falso e abstracto universalismo na base do qual, pairando uma Europa socialista aparentemente unida, se atacam as inconfundíveis fundações espirituais das entidades nacionais que de alguma forma ainda resistem e cada vez mais, pela legitimidade histórica que as caracteriza e assiste, teimam em se posicionar e afirmar como tais. Demais, avultando como um Mestre da tradição oculta portuguesa, Sampaio Bruno, o autor e livre-pensador de O Encoberto, também nos ensina, de acordo com José Marinho, «que não se compreende a filosofia senão quando se cria», (1) o que, em abono da verdade, significa que as causas de geração da nossa nacionalidade, isto é, da autenticidade e originalidade do pensamento português, quedam na ordem de um compromisso inevitável de realização lógica que não se coaduna com as representações de uma gramática geral e, portanto, válida para todos os povos.

Podemos, então, francamente deduzir que a finalidade última do ensino é o saber omnímodo que não se confunde, anula ou cousifica numa espécie de uniformidade ideológica, rotundamente sectária ou vulgarmente partidária, sob pena de cairmos na inevitável estatização da cultura, ou numa intervenção administrativa, técnica e profissionalizada do Estado em todos os domínios da actividade cultural. Atendamos, decididamente, que o nobilíssimo acto de educar não consiste em forçar as novas gerações a, custe o que custar, se adaptarem à organização social hodierna, por, nessa medida, conduzir a um anacronismo inevitável; além de que, nem sequer um tal acto se há-de projectar com vista à futura organização social, porque, na verdade, volver-se-ia tão-só em mero utopismo; assim, qualquer movimento educativo deve, antes de mais, saber operar, mobilizar e despertar nos adolescentes as poderosas virtualidades de superação criadora que, por sua natureza endógena, transcendem os fins propostos pela utilidade técnica, que só realmente valem quando, nalgum dado momento, surgem como o resultado proporcionalmente equilibrado do conhecimento, ou quando, proporcionando o esperado auxílio, simplesmente se configuram enquanto operações na matéria secundadas no cálculo, na experimentação ou no engenho constituinte da extensão científica.

Se, entretanto, o ensino apenas tiver por finalidade a subordinação à utilidade social, então todo ele será aquilo que, na sua exacta medida, for a sociedade. Ora, nesta surpreendente situação, como poderá, então, o adolescente desenvolver e afirmar a sua própria individualidade perante um ensino que se apresenta com as características gerais e abstractas da sociedade contemporânea, tais como as que manifestamente assinalam a preponderância da comunicação cibernética, da tecnologia militar e do emergente sistema preconizador de novos valores planetários em que influem, decisivamente, centros de poder politicamente unificados? Como poderão, de resto, os estudantes, eventualmente ditos, realizar a individuação no pensamento e, simultaneamente, darem-se conta da trama menos visível e caleidoscópica da percepção quando a cultura predominante, em sua opressão devoradora, se limita a ser o produto socializado e arregimentado das convicções partilhadas pela opinião pública mundial? E não terá ainda a subordinação do ensino à utilidade social uma agravada condição que se manifesta na cisão extrema com um certo e determinado tipo de clarividência que vai de Platão a Bergson, evidenciando, pura e simplesmente, até que ponto a civilização ocidental se encontra esvaziada de conteúdo e formas substanciais de pensamento? Aliás, toda esta decadência fora, em muitos aspectos, previamente estudada por pensadores esclarecidos como Hegel, Nietzsche, Oswald Spengler e Leonardo Coimbra, como se, porventura, prenunciassem, ainda que obscuramente, aquilo que já se nos afigura ser, em termos explícitos, o desenvolvimento irreversível das sociedades totalitárias num mundo globalmente programado por uma miríade de agências e organizações intergovernamentais que visam, sobretudo, a abolição das soberanias nacionais mediante a erosão gradual dos direitos de propriedade e das consequentes disposições de autogoverno de cada indivíduo em particular.

Sabemos, assim, que a utilidade social opõe sérios obstáculos à actividade intelectiva do homem, até porque já sempre foi dado reconhecer, desde a Antiguidade clássica, a conveniência para depurar ou afastar o exercício do pensamento das prementes preocupações de ordem sócioeconómica. Aliás, não foi por acaso que Aristóteles logrou afirmar ter sido o Egipto o berço da matemática em virtude do ócio usufruído pela casta sacerdotal. (2) Logo, a actividade especulativa do pensamento é algo que, pela sua verdade, condição e destino eminentemente espirituais, deve, por princípio profiláctico, permanecer aquém de qualquer ocupação mundana ou materialmente afim, conquanto, dada a sua imperiosa necessidade, obstaculiza e perturba a divina propensão do homem para a ética e para a liberdade.

Quem, no lance, é absorvido ou desviado para objectivos de incessante laboração, em que avultam as cumulativas exigências sociais, sabe perfeitamente quanto tempo ainda lhe resta para a íntima e transfigurante vida do pensamento. E se o ensino, tal como se encontra actualmente organizado, permite que o estudante possa repartir a sua atenção mental por actividades que de sua natureza lhe são espiritualmente nocivas, então teremos de admitir que existe, de facto, um perigo iminente para a sua integridade psiconoética. Por conseguinte, a divisão do trabalho, quer seja social ou industrialmente considerada, jamais poderá servir de modelo para a justa organização do sistema escolar, a não ser que se pretenda impor aos estudantes o critério igualitário da unidimensionalidade pensante, que é, no fundo, o que eventualmente permite, da sua parte, uma mais dócil aceitação dos variadíssimos estereótipos que tão correntemente abundam na sociedade colectivista contemporânea. (3) No mais, este modelo de vertente sociológica é, além de superficial e supérfluo, algo que se apresenta como indubitavelmente exterior à alma humana, visto rasurar todas as diferenças individuais que caracterizam e singularizam o ímpeto libertador da alma juvenil.

A segunda directiva reporta-se, por seu turno, à chamada “pedagogia de grupo”, que, difundida em meados do século passado, depressa chegou a manifestar os seus efeitos nefastos no âmbito da personalidade dos adolescentes. É, demais, através deste tipo de procedimento escolar que podemos, curiosamente, perceber que os estudos apresentados por um determinado grupo de alunos acabam por ser apenas realizados por um ou dois desses alunos, limitando-se os restantes a comparecer e a receber a correspondente habilitação do esforço alheio.

Ora, este proceder que é, visivelmente, tão desonesto como procaz, também nos leva a surpreender algo que, de profundamente negativo, não menos perpassa nos habituais métodos e metodologias do corpo docente. Deste modo, não estranhamos o facto de haver quem, versado no assunto, tenha especialmente criticado a forma como, em termos didácticos, os professores preparam e conduzem em grupo a normalização da actividade docente: «A orientação simonista da educação nas escolas portuguesas, na medida em que vai substituindo os professores por “agentes de ensino” e, recentemente, por “trabalhadores de ensino”, que devem proceder todos da mesma maneira, utilizar os meios audiovisuais, dar os mesmos programas, servir-se dos mesmos textos, constitui a própria negação da escola, no objectivo, nem sequer disfarçado, de fazer se não fez já, dos portugueses um povo de medíocres, isto é, de seres destituídos de memória». (4)

Movida, na sua generalidade, pela má consciência de um falso e degradado ensino, a classe dos professores, predominantemente sindicalizada, caracteriza-se, no essencial, por limitar a perduração do ofício e a segurança do emprego à compulsiva transmissão de um conjunto de temáticas que já vêm na linha de uma ordem programática pré-estabelecida, e, portanto, em tudo adaptáveis às formas mais comuns de ignorância que normalmente afligem a juventude mais oca e raciocinante. Aliás, parte do que explica a afirmação abrupta e impensante da juventude, encontra-se, por vício ou defeito do sistema escolar, na deplorável ausência de preparação elementar dos jovens estudantes no que principalmente respeita à capacidade de leitura e de expressão escrita, isto para não falar na dispensa de preparação cultural, de estudo documental e de reflexão intelectual que, quase por inteiro, define, por mais incrível que pareça, a classe privilegiada dos professores.

Consequentemente, não obstante a medíocre tarefa a que tão prosaicamente se entregam os tutores da «disciplina de Filosofia», a verdade é que os principais atributos e qualidades a exaltar no sublime exercício do magistério filosofal são, acima de tudo, a vocação autêntica para a missão espiritual, bem como a consagrada e fiel propensão para a máxima realização especulativa. Assim, ao termos por certo que a vocaçãoé já algo de si bem diferente daquilo que o vulgo amiúde designa por aptidão, tal é o que nos permite concluir que a filosofia não pode nem deve ficar meramente subordinada a um conjunto de estéreis metodologias inadequadas ao puro pensamento. Nem, de resto, é salutar que se exija ao filósofo um avolumar enciclopédico de infindáveis e fastidiosos conhecimentos, porque até nos parece assaz fundamental que se possa contrariar, por totalmente desnecessária, a erudição palavrosa e o discorrer semi-sapiente do que é manifestamente caduco, inútil e desprovido de valor escatológico superior. Logo, temos apenas por indispensável o desenvolvimento em acto da unidade sófica do saber e, nessa medida, a floração em liberdade do singular artista da palavra.

Temos igualmente observado que são raros os professores que no ensino médio, terminadas as provas ou as provações academicamente exigidas, dão a conhecer o resultado escrito da sua reflexão intelectual. Não há assim, entre nós, nenhum género actualizado de especulação filosófica, cuja actividade aparece tão mal considerada em Portugal, senão mesmo restringida à investigação e à participação em congressos nacionais e internacionais.

Não esqueçamos, porém, que quanto mais a escola se desnacionaliza, tanto mais tenderá a exigir de cada agente de ensino a estipulada obediência aos programas internacionalmente vigentes. Desta forma, estamos perfeitamente cientes de que a destruição metódica do ensino em Portugal, mercê da interferência estrangeira na Universidade, se deve sobretudo à acção de programas planeados para a adopção utópica de um universalismo abstracto e igualitário, tal qual o especialmente preconizado nas instituições-chave do super-estatismo transnacional. (5)

Comprometidas na socialização radical da natureza humana estão, sem dúvida, as chamadas «Ciências da Educação», conquanto, sob a bandeira pedagógica, minam substancialmente o professorado a fim de o submeter a estranhos e abstractos métodos de educação hipotética. Não admira, pois, que os portugueses tenham efectivamente perdido a confiança nas faculdades de decisão e autonomia próprias, acabando assim por se tornarem no alvo dos mais nocivos agentes de intoxicação e de infecção social. Daí, portanto, o nosso mais vivo repúdio pela actividade oriunda de tais metodólogos, de modo que consideramos inútil e até prejudicial o praticismo proveniente das várias instituições aparentemente científicas a que tais metodólogos se encontram particularmente associados.


De entre todos os prejudiciais factores que mais contribuem para a queda da civilização cristã, é a monitorização programada da educação aquele que mais possibilidades oferece para o enfraquecimento e a desorientação dos povos, (6) o que, aliás, já vem na sequência da dissolução da árvore genealógica da família, actualmente consignada na legislação igualitária. Logo, tratando-se de uma época especial, como a nossa, em que prepondera o globalismo multipolar, não há nada como podermos vir a restabelecer, segundo a melhor tradição clássica, o perdido magistério por via do qual só o verdadeiro educador, consciente da sua missão espiritual, poderá garantir a infusão universal do seu pensamento conceitual e imaginal.

Por fim, temos a terceira directiva, que consiste na adulteração do ensino por intermédio da tecnologia audiovisual, a que juntamente acresce a perniciosa técnica da socialização grupal. Ora, tudo isto assenta no facto de que o agente especializado, mais particularmente entendido como um “agente de mudança” na sociedade globalizada, deve sobretudo transmitir ao estudante um conjunto prescrito de parâmetros eco-políticos mediante uma tão sofisticada quão eficiente estratégia de mistificação, para assim promover uma espécie de didáctica linear em que a vida conceptual da palavra, já entretanto preterida por uma nomenclatura ao serviço do “desenvolvimento sustentável”, passa a ser doravante substituída por um manual de programação comum, bem como pelo emprego fraudulento dos meios audiovisuais que transformam o ensino em algo de simplesmente instrumental perante o que, acima de tudo, deveria constituir a magistralidade singular do professor e a perfectibilidade individual do aluno. Por conseguinte, um tal aparentado processo de comunicação, baseado essencialmente no monopólio virtual da informação, nega substantivamente os fins espirituais do que poderia, porventura, vir a ser a nossa melhor tradição liceal, em que o eixo real da educação mormente perpassa pela centralidade pluridimensional da pessoa humana, tanto na sua imaginação criadora como na auspiciosa intuição do seu destino sobrenatural.

Depois, convém ainda salientar que os processos de ensino pela imagem podem, de facto, suscitar um entorpecimento disfuncional no acto de captar a tessitura complexa do real, já que a fabricação automativa e sugestiva de imagens origina, naqueles que diariamente sofrem o seu efeito hipnótico, uma visualização apática que paralisa a conceptibilidade concêntrica da inteligência humana. Preterida assim a visão conceptológica aristocratizada, o ensino interactivo multimédio obstrui, alfim, o movimento ascensional do intelecto activo, também ocasionalmente evidente na sequência propagandística de diapositivos cuja projecção, convidando à visualização passiva, não exibe nem encerra qualquer conteúdo cognitivo inteligível. De resto, é já perfeitamente claro que os novos programas de educação, posto que interrelacionados e cada vez mais assentes num sistema global de redes digitais interligadas, terão por principal objectivo substituir, passo a passo, e momento a momento, o ensino oral da literatura, da filosofia e da história pelo que, no futuro iminente, tenderá a concretizar-se na vitoriosa internacionalização de um sistema de censura universal do pensamento. Numa palavra, tudo concorre para a negação das doutrinas filosóficas, artísticas e religiosas inspiradas na sabedoria clássica, como também tudo o mais se impõe mediante os processos fraudulentos da historiografia contemporânea, através dos quais se procede ao revisionismo da História universal, por um lado, e da História nacional, por outro.

Apesar de tudo, consta ainda que a maior parte dos professores ainda esperam, na melhor das hipóteses, encontrar nos novos métodos de difusão do ensino a compreensão objectiva dos principais problemas que afligem a humanidade. E a par disso consta igualmente que o acentuado e desequilibrado aumento da instrução torna cada vez mais difícil e complexa a interacção da vida social, já que hoje em dia ninguém poderá, decerto, realizar a total abrangência daquilo que na ordem tecnocrática veio, infelizmente, subverter a tradição outrora consagrada no culto, na cultura e na civilização. Somos, pois, levados a crer que a instrução cessa quando se transforma em divulgação e, nessa medida, em subsequente vulgarização do que, por sua natureza exógena, jamais se coaduna com o espiritualmente realizável.

É sobretudo com base no exclusivo da especialização técnica, tão fundamente prejudicial a todo o ensino, que a estratégia de eliminação da diferença se cumpre inexoravelmente. A escola assim programada representa um racionalismo estático que mais corresponde ao predomínio da sobrevaloração técnica sobre a desvalorização artística, o que deveras favorece, na esfera funcional da tecnocracia prepotente e autoritária, as comprometidas inteligências que mais pesam na política internacional. Aliás, eis, de resto, a razão por que pertence ao pensador experimentado, avisado do que significa o culto da ciência no processo que, segundo Rudolph Joseph Rummel, levou ao democídio durante o século XX, saber o quanto a escola fixista não representa, por defeito irrevogável, o dinamismo do aperfeiçoamento integral do ser humano. Por outro lado, tal é também o que permite explicar por que é que as universidades, exclusivamente voltadas para o princípio da especialização redutora, acabaram por ficar espiritualmente inoperativas ao determinarem um agente técnico por cada área, disciplina ou especialidade didáctica, num esforço que, além do mais, obsta à realização do fim último preconizado no e pelo universal concreto.

O enorme potencial que a plataforma comum tecnológica pode hoje fornecer ao homem, torna-se, mais do que nunca, extremamente perigoso para as artes da palavra, na exacta medida em que prepara e generaliza a degenerescência da expressão oral e escrita. Deste modo, não é de admirar que tão poucas pessoas saibam propriamente ler e escrever, já que o sintoma de um tal fenómeno perpassa em numerosos documentos escritos que constantemente denunciam a ausência de fluidez adjectiva que mais se assemelha a uma fonação moribunda. Por sua vez, a degradação contínua da eloquência vai dando lugar a uma larga onda de discussões polémicas que são, infelizmente, evidências assustadoras na impropriedade linguística da palavra humana. E, a par disso, atente-se à situação catastrófica a que tem sido conduzida a tradicional aprendizagem do ler, do escrever e do contar, a começar no primeiro ano do ensino onde se cultivam as primeiras letras, que deve, aliás, ser justamente compreendido como o natural prolongamento da fala que as mães ensinam aos filhos, sem o que graves prejuízos irreparáveis resultarão para o seu desenvolvimento ulterior.


Nestas circunstâncias, há sempre quem, porventura, julgue que o poder criador da palavra não oferece, por vago e retoricamente inútil, qualquer tipo de compatibilidade com a objectividade científica, normalmente identificada com a abstracção matemática, ou até com os avanços da tecnologia, por mais tangíveis e visíveis, mas indubitavelmente inertes. Porém, em muitos casos, isso só prova, ou prontamente revela que as pessoas que foram mentalmente condicionadas nas instituições escolares e universitárias, tendem, de facto, a assinalar uma tendência defeituosa no precipitado acto de julgar. Aliás, não por acaso se ouvia antigamente dizer serem, à partida, bastante consideráveis as diferenças daquilo que ao espírito era dado observar quando descia da capital à província, ou da cidade à vila, a ponto de melhor discernir, por tradição e amor à terra, o essencial do acidental. Por conseguinte, a distância que separa da natureza os homens públicos, familiares das repartições administrativas e das mais próximas ou distantes instituições de ensino, num protagonismo efémero e ilusório de que a maior parte é, ao fim e ao cabo, vítima, configura uma verdade que por ora desafia os mais desatentos e os mais desprevenidos.

Enfim: se é certo que a vida cosmopolita não se esgota simplesmente no prestígio da organização tecnoburocrática, ou até na insidiosa propaganda que sopra dos centros de operações da inteligência global, é também curial que se diga não ter uma tal vida a mais directa relação com o transcurso cíclico da Natureza, frequentemente serena, encantadora e a desafiar quem mormente ignora o poder criador de Deus.


Notas:

(1) José Marinho, O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Porto, 1945, p. 31.

(2) Aristóteles, Metafísica, Madrid, Editorial Gredos, 1990.

(3) Quanto à análise do economista Frederico Hayek sobre o avanço do socialismo nos países da Europa Central, o seu valor reside na afirmação de que a instauração de um regime autoritário na esfera de existência de um povo começa, pois, numa forma única e esmagadora de organização que, à laia de um chefe ou de um grupo, acaba por se impor pela força ditatorial da opinião homogénea. Convém, aliás, exemplificar como tamanho empreendimento encontra terreno propício nos sectores e domínios da presente educação, para onde, de resto, vão sendo mobilizados os elementos intelectualmente mais fracos de uma sociedade: «(…) há todas as razões para considerarmos verdadeiro que, quanto mais elevada for a educação e a inteligência de um indivíduo, mais as suas opiniões e seus gostos se singularizam e, portanto, mais resistência oporá em dar a sua concordância a uma hierarquia de valores que lhe proponham. A prova disso é que, quando queremos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, temos de descer às regiões sociais de níveis morais e intelectuais mais baixos e nos quais predominam os instintos e os gostos mais primitivos e grosseiros. Não quer isto dizer que a maioria do povo tenha um nível moral baixo, mas significa apenas que a maior parte das pessoas com valores éticos muito semelhantes são pessoas de níveis baixos. Como se o denominador comum mais baixo fosse o que reúne o maior número de pessoas. Se for necessário constituir um grupo bastante numeroso e forte para impor aos outros as suas concepções éticas da vida, esse grupo nunca será recrutado entre os que possuem gostos altamente singularizados e desenvolvidos. Será antes recrutado entre aqueles que formam as “massas”, no sentido pejorativo do termo, entre os menos originais e independentes, entre os que não hesitem em se servir do peso do seu número para apoiarem os seus ideais privados» (Frederico Hayek,O Caminho para a Servidão, pp. 219-220).

(4) António Telmo, «O Discurso do Método a seguir nas Escolas», in Bárbara, n.º 1, 1997, p. 20.

(5) Consideremos ainda, no que concerne ao processo de desnacionalização escolar, o proeminente testemunho de Álvaro Ribeiro: «Dada a acumulação e a convergência de todos os indícios, é lícito admitir – o que eu sinceramente creio – que essa actividade desnacionalizante e desnacionalizadora está a ser efectivamente comandada, não por homens conscientes da subtil delinquência em que se encontram envolvidos, mas por um espírito difícil de discernir na puridade da sua essência, mais facilmente conhecido pelos seus propósitos e efeitos inegáveis» (Álvaro Ribeiro, «O Homem Português», in As Portas do Conhecimento, pp. 308-309).

(6) É lícito admitir, nas condições do mundo contemporâneo, que entre a vida escolar e a uniformização sociológica da humanidade, existem implicações extremamente subtis a que conviria, desde já, atender: «Nós sabemos perfeitamente – temo-lo sentido na carne, se é que não mesmo na alma – que a hora é poderosamente anti-filosófica. Hoje, porventura mais realmente do que na época em que viveu e pensou Leonardo Coimbra, o positivismo e o materialismo dominam quase impantemente a vida das sociedades, dos Estados e dos homens. É, desde logo, uma ousadia abordar os problemas pedagógicos numa perspectiva filosófica. O que os poderes nacionais e internacionais querem que façamos – poderes políticos, económicos, sociais e culturais – é executar os programas pedagógicos que nos fornecem já feitos: executá-los à luz dos princípios, meios e fins que os informam e acompanham. A verdade é que – apesar das reiteradas declarações em contrário – esses poderes não querem que nós pensemos a educação do homem com a liberdade e a radicalidade com que o homem deve pensar tudo e deve principalmente pensar-se a si próprio» (Manuel Ferreira Patrício, A Pedagogia de Leonardo Coimbra, Teoria e Prática, Porto Editora, 1992, p. 9).






UN "Environmental" Schemes Advance World Government

$
0
0
Written by Alex Newman








Imagine a future in which the “carbon emissions” of everything you do — literally everything — are tracked, monitored, and controlled by a global authority. Each nation has been allocated a “carbon budget” by this global authority based on its historical emissions. America, which industrialized early on, has a tiny budget, while India, where most people still live in appalling conditions, would have a somewhat larger one. National governments, which serve as administrative units for global and regional authorities, have divided up their carbon budgets among their populations. No more than one child per family is allowed, a policy pioneered by the Communist Chinese dictatorship, which top United Nations climate bureaucrats often tout as a model of climate sense and sustainability. If you exceed your carbon budget, watch out.

Sound far-fetched? It isn’t. In fact, in its “Fifth Assessment Report,” or AR5, the UN Intergovernmental Panel on Climate Change calculated a “carbon budget” for humanity that it claims must be adhered to if humanity is going to have a “50 percent” chance of keeping alleged man-made warming below 2 degrees Celsius. “Limiting the warming caused by anthropogenic CO2 emissions alone with a probability of >33 per cent, >50 per cent, and >66 per cent to less than 2°C since the period 1861–1880, will require cumulative CO2 emissions from all anthropogenic [man-made] sources to stay between 0 and about 1560 GtC [gigatons of carbon], 0 and about 1210 GtC, and 0 and about 1000 GtC since that period respectively,” the summary claims. “An amount of 531 [446 to 616] GtC, was already emitted by 2011.”

In response, the European Union and national governments started plotting how to divvy that budget up. “Justice demands that, with what little carbon we can still safely burn, developing countries are allowed to grow,” declared Indian Prime Minister Narendra Modi the day before the UN climate summit in Paris got under way. In Europe, national and EU policymakers also hopped on the bandwagon. “The publication of a carbon budget by the IPCC increases the urgency and importance of the UN proc­ess and of future COP [UN Conference of the Parties] meetings,” Conservative Party Parliamentarian Tim Yeo declared. “Work should start at once on the establishment of a fair apportionment of emissions country by country, based on the principle of contraction and convergence. Greater efforts must be made to develop a worldwide emissions trading system since cap and trade is the one policy tool whose successful deployment could guarantee that the IPCC carbon budget is met.”

A crucial component of the “New World Order” sought by globalists, as well as a key justification for it all, is the global environment and the climate. The argument is essentially that the climate and the environment do not respect borders, so governance must be globalized too. When it comes to imposing “global governance” on humanity, the UN and the establishment behind it have three primary agreements and mechanisms to underpin it all: Agenda 2030, Agenda 21, and the Paris Agreement on climate change. All three are interrelated under the banner of “sustainable development,” but each has its own unique role to play. Taken together, though, it is clear that concerns about the “global environment” represent one of the pillars upon which the edifice of “global governance” is being built. And unfortunately for Americans, the trio of global schemes is still being implemented domestically.


Agenda 2030 


The UN Agenda 2030, often dubbed the Sustainable Development Goals (SDGs) or the Post-2015 Agenda, is one of the international agreements being used to impose a global government on humanity. Adopted in September of 2015, the deal, formally entitled “Transforming Our World: the 2030 Agenda for Sustainable Development,” calls for radical, centrally directed changes in the lives of every person on the planet. There are 17 “Goals” in all, with 169 “targets,” that, taken together, would replace liberty, self-government, free markets, and nationhood with totalitarian technocratic rule at the global level. Reading the document, that much becomes clear.

Mass-murdering communist and Islamist dictators expressed fervent approval of the plan. Indeed, the regime controlling mainland China, which has murdered more of its own citizens than any other government in history, boasted publicly of its “crucial role” in developing Agenda 2030. Former NATO chief Javier Solana, a socialist, touted the plan as the next “Great Leap Forward.”

Then-UN Secretary-General Ban Ki-moon also made clear the significance, calling the agreement the global “Declaration of Interdependence,” even as he was busy touting the UN as the “Parliament of Humanity.” (Emphasis added.) Speaking at the opening ceremony of the UN confab that adopted the scheme, Ban called Agenda 2030 a “universal, integrated and transformative vision for a better world.” “We need action from everyone, everywhere,” he continued. “We must use the goals to transform the world…. Institutions will have to become fit for a grand new purpose.”










The text of the agreement makes clear the nature of the scheme. “This Agenda is a plan of action for people, planet and prosperity,” reads the preamble. “All countries and all stakeholders, acting in collaborative partnership, will implement this plan.” The preamble also claims the UN goals will “free the human race from the tyranny of poverty,” though nearly 80 years of UN anti-poverty efforts have done little to reduce poverty. The scheme also claims it will “heal” the planet, or “Mother Earth” as the UN agreement refers to it. Not-so-subtly purporting to usurp the role of God, the UN even claimed that the “future of humanity and of our planet lies in our hands.” “This is an Agenda of unprecedented scope and significance,” boasts the document. “Never before have world leaders pledged common action and endeavor across such a broad and universal policy agenda.”

The specifics are even more troubling. In fact, as this magazine documented extensively in a January 2016 special report, Agenda 2030 is essentially a road map to global totalitarian rule over humanity. For instance, in Goal 4, Agenda 2030 demands the indoctrination of all children worldwide, with kids described in the agreement as “critical agents of change” who will rely on the Sustainable Development Goals to “channel their infinite capacities for activism into the creation of a better world.” Indeed, children worldwide must be so thoroughly indoctrinated that they will not just submit to the UN ideology known as “sustainable development,” but actually go out and “promote” it. “By 2030, ensure that all learners acquire the knowledge and skills needed to promote sustainable development, including, among others, through education for sustainable development and sustainable lifestyles,” Goal 4 explains, adding that children must also be indoctrinated into “global citizenship” and the UN’s perverse view of “human rights” that is totally at odds with the God-given rights recognized by America’s Founders.

The UN Agenda 2030 mandates national and international wealth redistribution, too. Goal 10 commits to “reduce inequality within and among countries.” (Emphsis added.) That, the agreement continues, will “only be possible if wealth is shared and income inequality is addressed.” Also part of the plan is to “ensure that all men and women, in particular the poor and the vulnerable, have equal rights to economic resources,” Agenda 2030 continues. This is, of course, the language used by communists and socialists for more than a century, and now it is enshrined into what globalists dub “international law.” But even wealth redistribution is just the socialist start; the governments agreed to take control over the means of production: “We commit to making fundamental changes in the way that our societies produce and consume goods and services.” Government-controlled “universal health coverage” and “vaccines for all” are also mandated.


Feds Still Implementing Agenda 2030 


While many conservatives believed the election of Donald Trump meant the excesses of the Obama years were over, vast swaths of the federal bureaucracy are still implementing Agenda 2030 and the rest of the UN’s globalist agenda. In 2011 and again in 2016, the Obama administration’s Environmental Protection Agency (EPA) quietly signed a deal with the United Nations Environment Programme (UNEP), vowing to cooperate on everything from climate-change “education” to imposing UN Agenda 2030. The EPA-UNEP agreement, which went almost entirely unnoticed until now, bypassed normal constitutional and legislative procedures and facilitates what one leading critic described as the “globalization” of the U.S. government. And so even while President Donald Trump has announced that America would withdraw from the UN Paris Agreement on “global warming” and other UN schemes, federal bureaucrats are still dutifully working to implement them all.

The so-called Memorandum of Understanding (MOU), which was sent to The New American magazine by a high-level source within the environmental movement, claims that the “UNEP and the EPA share common goals and objectives” and that the EPA and the UN will “consolidate, further develop and intensify” the “cooperation” and “effectiveness” of the two in achieving “their common goals and objectives.” Under the plan, the EPA purports to have the power to cooperate with other governments and international organizations “to protect the environment globally.” And among the goals outlined in the document, the joint EPA-UNEP scheme provides the “framework” via which the UN and the EPA can cooperate in the “implementation of the 2030 Agenda for Sustainable Development, including the Sustainable Development Goals, and through which they may intensify such cooperation.”

Under the agreement, the EPA and the UNEP agree to cooperate on a broad range of initiatives. Among the areas where the two vow to work together with governments around the world is the implementation of UN environmental agreements, including the changing and enforcing of laws and regulations to meet UN demands. The scheme also calls for working together on “education,” including on “climate change.” No doubt the signatories intended to promote the discredited UN-backed hypothesis that human emissions of CO2, which account for a fraction of one percent of all the “greenhouse” gases in the atmosphere, were driving catastrophic global warming. Indeed, among the actions to be taken in the MOU is “responding to climate change” by cooperating on reducing energy use and emissions of CO2, an essential gas exhaled by humans that is known to many scientists as the “gas of life.”












See here and here




The agreement purports to commit the EPA and the U.S. taxpayers who fund it to help the UNEP and other governments in “Transitioning to a Green Economy.” That specific clause calls on the EPA and the UN to promote UN programs such as the “10-Year Framework of Programs,” a Marxist-style global scheme that aims to use government to make production and consumption “sustainable” as mandated under Agenda 2030. Obviously, the only way to do that is through government control of consumption and production, the very essence of communism. The entire “sustainable development” agenda is totalitarian to the core, calling for government control over every aspect of human life — even your mind. A 2014 report on the “Green Economy” by the UN claims everyone must “alter their worldview, profoundly and dramatically.” A separate UN report entitled “Working Towards a Balanced and Inclusive Green Economy: A United Nations System-wide Perspective” went even further: “Transitioning to a green economy requires a fundamental shift in the way we think and act.”

It was not immediately clear how the EPA under the Trump administration was dealing with the MOU. But according to the terms of the scheme and an official at the agency who e-mailed The New American, it will remain in force for five years from the date it was signed, with the option to extend it at any point prior to its expiration. The EPA acknowledged receipt of questions from The New American, including a question on whether the scheme was still in force under Trump, but the agency did not offer much in the way of answers, only saying that it was still active while referring questions on substance to other bureaucracies.

Property-rights watchdog Tom DeWeese, president of the liberty-minded American Policy Center, told The New American that the UN-EPA agreement is a threat to America. “This MOU is part of the globalization of our own government,” said DeWeese, author of the new book Sustainable: The WAR on Free Enterprise, Private Property and Individuals. “It clearly demonstrates the hidden inner workings of our government agencies with United Nations agencies and why it is so dangerous. The EPA is part of a United Nations Environment Programme (UNEP) permanent council of government agencies that meet behind closed doors, creating policy and agreements that are not presented to or approved by our elected Congress. This is the standard operating procedure used by the UN and its globalist agents to avoid our Constitution. For them our founding document is just a troublesome nuisance. Even as President Trump walks away from the Paris Climate Accord, with this MOU in place the EPA has still agreed to its basic implementation.”


Agenda 21 


Before Agenda 2030, there was UN Agenda 21, the global body’s first publicly released global plan to totally reorganize and regiment every aspect of human life under a planetary regime. And naturally, as with Agenda 2030, the U.S. federal government has played a key role in imposing it on America and the world. Literally everything — from education, labor, and healthcare to oceans, agriculture, and the environment — falls under the purview of the UN scheme. And in their own documents, the globalists behind Agenda 21 were remarkably transparent about the scope of the plan. In AGENDA 21: The Earth Summit Strategy to Save Our Planet, one of the public versions of the plan designed for a broad audience after the UN’s 1992 Earth Summit in Rio de Janeiro, the globalists laid it all out. “AGENDA 21 proposes an array of actions which are intended to be implemented by every person on Earth,” the document reads, calling for “specific changes in the activities of all people.”

“Effective execution of AGENDA 21 will require a profound reorientation of all human society, unlike anything the world has ever experienced — a major shift in the priorities of both governments and individuals and an unprecedented redeployment of human and financial resources,” continues the document. “This shift will demand that a concern for the environmental consequences of every human action be integrated into individual and collective decision-making at every level…. There are specific actions which are intended to be undertaken by multinational corporations and entrepreneurs, by financial institutions and individual investors, by high-tech companies and indigenous people, by workers and labor unions, by farmers and consumers, by students and schools, by governments and legislators, by scientists, by women, by children — in short, by every person on Earth.” Obviously, that means you, too.

Top globalists at the summit made that agenda clear from the podium, too. Maurice Strong, who served as the secretary-general of the UN’s Earth Summit that developed Agenda 21, framed the “sustainable development” agenda starkly. “Current lifestyles and consumption patterns of the affluent middle class — involving high meat intake, use of fossil fuels, appliances, home and work air conditioning, and suburban housing are not sustainable,” he said. No word on whether the fancy UN conferences funded by taxpayers in exotic locations, where globalists arrive in fleets of private jets, are to be considered sustainable.






The deal was originally signed by George H.W. Bush amid praise for what he called the “mammoth” Agenda 21 scheme. “Let me be clear on one fundamental point: The United States fully intends to be the world’s preeminent leader in protecting the global environment,” Bush said after the UN summit in Rio that created the plan. The next year, President Bill Clinton helped make good on that threat, signing Executive Order #12852 to create the “President’s Council on Sustainable Development” to help “harmonize” U.S. environmental policy with the UN’s Agenda 21. Under the illegal order, every agency of the federal government was ordered to work with state and local governments to help impose “sustainable development” on the nation. In a report, the president’s council wrote: “We need a new collaborative decision process that leads to better decisions, more rapid change, and more sensible use of human, natural and financial resources in achieving our goals.”

Much of Agenda 21 policy has been imposed on local communities via the UN-linked group ICLEI — Local Governments for Sustainability. On its website, the outfit boasted of its role, saying it works to “mobilize local governments to help their countries implement multilateral environmental agreements.” The group also works to “connect cities and local governments to the United Nations and other international bodies.” One of ICLEI’s programs is “designed to aid local governments in implementing Chapter 28 of Agenda 21, the global action plan for sustainable development,” the group revealed on its website. Essentially, through ICLEI and other front groups, as well as federal government bribes and pressure, the UN has been getting its agenda implemented even in small-town America by clueless local authorities. While The John Birch Society and others have greatly slowed down the implementation of this UN program, it continues to be implemented across America and worldwide.


Paris Agreement 


In Agenda 2030, Goal 13 is: “Take urgent action to combat climate change.” The targets under Goal 13 include more climate indoctrination of children, trillions of dollars in wealth redistribution from the poor and middle class in the West to the kleptocrats ruling Third World countries, and more. The UN agreement also touts the UN “Framework Convention on Climate Change” (UNFCCC) as “the primary international, intergovernmental forum for negotiating the global response to climate change.” And for now, at least, the Paris Agreement, negotiated at the UNFCCC event in Paris is the primary mechanism to make that happen. That is both good news and bad news for those who oppose the UN’s scheming.

In the final weeks of 2015, the UN and its member governments, including then-U.S. President Barack Obama, came together in the French capital to sign the Paris Agreement. This writer was there as a correspondent for The New American. Of course, Obama and the globalists at the summit knew the global scheme would never be ratified by the U.S. Senate as required by the U.S. Constitution of all treaties. And so, instead, Obama called it an “executive agreement” and ordered federal agencies to implement it by regulation and executive decree. All of it was done under the guise of stopping global temperatures from rising more than two degrees over pre-industrial levels, as if the UN had any idea how temperatures would be affected. In the real world, the UN and its climate prophecies have been wildly and consistently wrong.

Among the radical goals of the agreement was the restructuring of the global economy, as multiple UN bigwigs explained publicly. The goal of the climate negotiations was to “intentionally transform the economic development model, for the first time in human history,” said then-UN climate czar­ina Christiana Figueres, echoing a phrase she used repeatedly over a period of years. Also on the agenda was phasing out cheap and abundant energy over the coming decades, at least as far as the United States was concerned. Another key component: redistributing the wealth of Western taxpayers to Third World regimes and the UN. And finally, the deal sought to empower the UN to oversee a planetary “climate” regime with jurisdiction over emissions of carbon dioxide — in other words, power over everything, as even human breathing releases CO2.


Local and State Governments 


Everything was going according to plan until Donald Trump, who on the campaign trail publicly described the man-made global-warming hypothesis as a “hoax,” was elected to the presidency. One of his promises was to quit sending money to the UN for the “hoax.” And about six months into his presidency, he announced publicly that the U.S. government would be withdrawing from the Paris Agreement after the allegedly required four years of waiting time had passed. His base was excited, and celebrations broke out among conservatives.

But the threat is far from over. For one, the U.S. government is still technically involved. Second, the federal government continues to fund many of the globalist organizations and foreign governments that are busy implementing the Paris Agreement, ranging from the UN and the World Bank to Third World regimes around the world. And finally, more than a few state and local governments have vowed to continue implementing the illegal schemes with or without the feds. At least a dozen states and many more cities have vowed to implement the Paris Agreement. In the case of California, authorities have even defied the U.S. government by signing that state’s own “climate” deal with the communist regime ruling China.





















New York City, led by Mayor Bill “The Bolshevik” DeBlasio, announced on May 1 that it would become the first American city to “submit” a review of its “progress” on implementing Agenda 2030 directly to the UN.

“We needed a starting point [from the UN], but all of the activation — whether it is around zero hunger, gender equity, clean water and sanitation — starts in our communities,” said NYC Commissioner of International Affairs Penny Abeywardena. “City and local authorities are ground zero for all of that work. Although these commitments were made by national governments, the 2030 Agenda recognizes the critical role that local authorities and communities have in achieving the Global Goals…. As a thriving city of 8.6 million residents and proud host to the United Nations, New York City is uniquely positioned to help achieve the Global Goals by amplifying, sharing, and learning from policies and best practices from cities and states.”

If Americans hope to avoid the horrors of totalitarian global governance, it will require organized action at all levels. Ensuring that these policies do not take root at the local level is key, and everyone can help. At the national level, Americans must pressure Congress and the White House to begin dismantling the whole “sustainability” apparatus within the federal government. Beyond simply ripping up the EPA-UN agreement, Americans should work to dismantle the unconstitutional EPA itself, as the U.S. Constitution does not delegate any authority over the environment to the federal government. Next, the U.S. government should withdraw from the UN, which Trump properly described on the campaign trail as an enemy of freedom and the United States. Legislation in Congress, the American Sovereignty Restoration Act (H.R. 193), would accomplish that, and more. Passing that would neutralize Agenda 2030, Agenda 21, and the Paris Agreement (in The New American, 15 August 2018).


As ilhas afortunadas

$
0
0
Escrito por Fernando Pessoa







Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

Mensagem




No regresso do Congresso Mundial de Filosofia do Direito

$
0
0
Entrevista a Orlando Vitorino




Busto de Jorge Frederico Hegel (Berlim).



À medida que íamos conversando, ambos nós, entrevistado e jornalista, iamo-nos deixando dominar pela gravidade do assunto. A conversa começou pelo Congresso Mundial de Filosofia do Direito, realizado o mês passado em Bruxelas, no qual Orlando Vitorino, nosso entrevistado, participou a convite da organização. Uma vez que escrevemos para um jornal de grande público e dado que, a ser Orlando Vitorino, conhecido como homem do teatro, do cinema e ambientes e pugnas afins, diremos que ele é também autor de uma longa «Introdução Filosófica à Filosofia do Direito de Hegel». É a autoria deste livro, bem como de alguns outros ensaios com alguma difusão no estrangeiro (lemos, na mais recente obra de Alfred Sauvy, a discussão de um desses ensaios) que justifica o convite para participar naquele Congresso.

A conversa travou-se durante uma vagarosa tarde deste prolongado Verão. Se o dizemos e se, além disso, poderíamos falar no sol, no entardecer, na calmaria, é apenas para observarmos que nem sempre esta doçura meridional, que os povos do Norte nos invejam, há-de amolecer, numa exterior amenidade de viver, ou simples preguiça, a consciência dos problemas que a todos nós mais ou menos tarde, mais ou menos brutalmente, acabarão por se nos impor.


O retorno do direito à filosofia 


J. – Porquê um Congresso Mundial de Filosofia do Direito? Porquê filosofia do direito? 

O.V. – Já houve quem, com autoridade, afirmasse que o reaparecimento da filosofia do direito é o grande acontecimento do nosso tempo. Não é difícil compreender: o direito é o que exprime e condiciona a existência civilizada dos homens, e o grau de aperfeiçoamento que o direito atinge exprime o grau de civilização dos povos. Importa, portanto, pensar o direito, e só a filosofia dá verdadeiro sentido, ou universal sentido, ao pensar e, portanto, ao que se pensa. Há evidentemente um saber do direito que se afirma independente da filosofia e que até repudia a filosofia. Foi este tipo de saber que caracterizou a ciência jurídica de diversas épocas, a do século passado por exemplo. Chamou-se, ele, no século passado, positivismo, e era o resultado da tranquila confiança que os juristas puderam depositar no formalismo do direito que, por sua vez, era o resultado da segura organização burguesa das sociedades. Quando esta segurança se viu ameaçada – ameaça que começou a ser efectiva a partir da Primeira Guerra Mundial, – abalou-se a confiança dos juristas, o formalismo do direito entrou em crise e novamente se recorreu à filosofia.

J. – Com a finalidade de pensar o direito? 

O.V. – Em termos muito gerais, sim, com essa finalidade. Mas o que imediatamente se pede à filosofia é a determinação dos conteúdos reais das formas jurídicas. As crises do direito surgem sempre que os homens verificam que as formas jurídicas a que ainda estão ligados perderam o conteúdo, a matéria, a realidade que lhes foi própria. Ficam, então, formas abstractas e vazias. E como pertence à natureza das formas jurídicas o poder de efectividade, como são coercivas e obrigatórias, a abstracção em que caíram cria uma situação caótica e dramática. Por exemplo: quanto maior é a socialização, menos realidade possui o conteúdo burguês da propriedade, a forma jurídica passa a constituir uma abstracção vazia, o seu inevitável poder coercivo passa a ser motivo dos mais absurdos conflitos e a sua perduração acaba por apenas servir ou para encorajar a corrupção ou para manter oligarquias monstruosas (grupos de pressão económica, com se diz na linguagem corrente). O que importa, portanto, é determinar o conteúdo real que corresponde à forma jurídica da propriedade.

J – Trata-se, pois, de um saber que investiga. A filosofia será o instrumento desse saber. Não é assim? Essa situação reflectiu-se no congresso? 

O.V. – Sem dúvida. De modos variados, evidentemente. Desde a preocupação de conceber a lógica adequada ao dinamismo formal do direito – o congresso subordinava-se ao tema geral do «Raciocínio Jurídico» – até à procura de fundamentos filosóficos para as transformações sociais e políticas do mundo de hoje. Este último aspecto era o que pareceu interessar mais aos alemães e aos americanos, sobretudo aos americanos. Compreende-se. São eles os senhores do mundo e o que querem saber refere-se a esse senhorio. Por exemplo: como conceber a realidade, enquanto conteúdo de formas jurídicas, da autonomia política dos povos africanos e como adequar-lhes as formas existentes do direito. Um representante americano foi até ao ponto de discutir o estatuto jurídico dos homossexuais. Aliás, os americanos estão de tal modo interessados na filosofia do direito que propuseram uma próxima reunião nos Estados Unidos com a oferta de pagarem todas as despesas dos congressistas.

J. – A filosofia do direito não é, pois, um saber desinteressado, académico, teórico… 

O.V. – Quer você dizer: trata-se de um saber que importa imediatamente à vida quotidiana de todos os povos e de todos os homens. É isso mesmo.


As instituições portuguesas perante a filosofia do direito 


J. – Esse retorno – que você tão claramente justificou – dos juristas à filosofia do direito também se verifica em Portugal? 

Foi o Vitorino quem nos perguntou: 

O.V. – Que lhe parece?

J. – Há quem diga que Portugal é um país de juristas... 

O.V. – Com maior rigor: Portugal é um país governado, há vários séculos, por juristas. O que também se compreende, pois o Estado sempre tem sido considerado entre nós como uma instituição jurídica. Salazar chegou a dizer que «o Estado é uma pessoa».



J. – Não é isso que você pensa? 

O.V. – Eu antes penso que o Estado é a efectividade do direito. Isto é: quando se diz que não há direito sem efectividade (por exemplo: as leis contêm a obrigatoriedade de serem cumpridas), o Estado garante e representa essa efectividade. Não se trata, pois, de uma instituição e, muito menos, de uma pessoa. Nem sequer de um análogo delas.

J. – Qual, então, a situação da filosofia do direito em Portugal? 

O.V. – Fora das instituições posso dizer que só eu me tenho dedicado ao estudo da filosofia do direito. E não por via do direito, mas por via da filosofia. Foram as leituras de Aristóteles e de Hegel que me levaram a escrever um livro sobre filosofia do direito. Durante as últimas décadas, as nossas duas universidades apenas tiveram um único professor, aliás notável, de filosofia do direito: Cabral de Moncada. A cadeira é, porém, subsidiária do curso de direito, apenas frequentada pelos alunos que «tiram» o 6º ano! Afastado Cabral de Moncada, tem ela sido leccionada, tanto em Coimbra como em Lisboa por «assistentes» no início (o que é também um absurdo) da carreira docente ou por professores «regentes» de outras especialidades: Direito Internacional, por exemplo. Um destes professores, Afonso Queiró, chegou a afirmar notável capacidade especulativa que, porém, parece ter sido desviada para outros interesses.

Aos actuais assistentes, Baptista Machado e Sousa e Brito, será de desejar que se lhes dêem condições e «dignidades» que os não desviem da filosofia. O primeiro já se distinguiu, em dois prefácios que publicou à tradução de livros famosos, por uma rara e actualizada erudição, com larga informação germânica. A descrição que lhe faço ficará completa com a referência a duas personalidades excepcionais que, em face dos obstáculos com que depararam, se desviaram também da filosofia do direito: António José Brandão, que chegou a candidatar-se à regência da cadeira e hoje se dedica a administrar o Banco de Portugal, e António da Silva Leal, que se mantém interessado e informado, mas nada escreve ou, pelo menos, publica.

J – Você é formado em Direito, Orlando Vitorino? 

O.V. – Não. Sou licenciado em Filosofia.

J – A Fundação Gulbenkian promoveu, no mês de Agosto, creio que sob a orientação de um dos seus administradores, também professor de Faculdade de Direito, Ferrer Correia, um curso internacional de Direito Comparado. Realizado assim à margem do ensino universitário, esse curso pode apresentar alguma relação com a filosofia do direito? Você também é funcionário da Fundação Gulbenkian, não é verdade? 

O.V. – Há sectores da ciência do direito que são especialmente propícios para suscitar nos juristas o interesse pela filosofia. Em primeiro lugar, o Direito Penal. Depois, o Direito Internacional em que é especialista e sábio o prof. Ferrer Correia. O Direito Comparado, isto é, a comparação de formas, leis, processos e instituições pode ser visto ou como um saber necessário à resolução de certos problemas, à redução de certos conflitos, ao julgamento de certas questões em que há oposição de determinações jurídicas diferentes, ou como uma dialéctica entre formas, conceitos e até sistemas jurídicos que, embora divergentes, estão igualmente seguros na efectividade do Direito que os diversos estados representam. Só assim, só visto como uma dialéctica, pode o Direito Comparado aproximar da filosofia. Foi nesse sentido, que ao inaugurar o curso, o prof. Ferrer Correia declarou que o Direito Comparado podia representar hoje o que o Direito Natural representou nos fins do século XVIII. Como sabe, o Direito Natural foi a designação que então recebeu a Filosofia do Direito. Todavia...

O Direito Comparado só pode representar o que representou a Filosofia do Direito (ou o Direito Natural), para a substituir. Os estudos comparativos – Direito Comparado, Literatura Comparada, etc – foram valorizados e preconizados, precisamente com essa finalidade, pelo positivismo.


O novo aristotelismo 


J. – A situação que assim nos descreve não está de acordo com a actualidade do direito que V. foi encontrar no Congresso de Bruxelas. Portanto... 

O.V. – O que importa não é a actualização ou desactualização de um ensino, de uma mentalidade, até de uma cultura. O que importa é o acordo com a verdade. A desactualização nada significa quanto à verdade. Também a persistência do aristotelismo em Portugal foi apresentada, durante dois séculos, como um anacronismo condenatório. Houve, todavia, um momento em que o próprio Álvaro Ribeiro explicava a persistência do positivismo como um modo de fazer perdurar o realismo aristotélico. E, entretanto, o aristotelismo reassumiu, em toda a Europa, o magistério da cultura e do saber. O tão difundido estruturalismo é um prolongamento dos métodos de classificação de Aristóteles. Neste mesmo Congresso de Filosofia do Direito, raras foram as comunicações, mais raros foram os intervenientes que não se referissem a Aristóteles. Quem participasse nas discussões da minha secção (a do «lugar do raciocínio jurídico em relação com os outros tipos de raciocínio») diria que Aristóteles voltou a ser o filósofo por excelência.






J. – Perante as posições concretas, reais ou imediatas que, como V. disse há pouco, os congressistas de outros países assumiram no Congresso de Bruxelas, como se situaram os congressistas portugueses? 

O.V. – Não me pergunte isso em relação apenas aos portugueses. Na mesma nossa situação se encontraram os representantes da maior parte dos países, desde a Bulgária à Espanha. Até os russos. Aquelas posições concretas e imediatas foram assumidas sobretudo pelos americanos, pelos alemães e um tanto pelos ingleses e brasileiros. Nós, os outros, situamo-nos mais ou no domínio teórico (a minha comunicação, por exemplo, que era a única portuguesa, tinha por tema «O Raciocínio da Injustiça») ou sobretudo os franceses e os espanhóis, no domínio historicista. Neste domínio, os espanhóis têm hoje muito a dizer, pois o regresso ao magistério aristotélico dará especial interesse e fecundidade à revisão da chamada «escolástica espanhola» que dominou até à época do iluminismo e do direito natural, portanto até ao triunfo da burguesia, as zonas mais seguras da vida espiritual europeia. Os congressistas espanhóis – Delgado Pinto, L. Perena, V. Abril – apresentaram , com efeito, comunicações sobre Suarez e Pedraza na secção de história. Na minha secção, os espanhóis – que eram todos professores universitários – deixaram-se infelizmente vencer pela valorização tipicamente universitária, tanto em Espanha como em Portugal, da ciência germânica, fizeram traduzir as suas comunicações em alemão mas recusaram-se depois a discuti-las, precisamente porque teriam de o fazer em alemão.

J. – O castelhano e o português não eram reconhecidos como línguas oficiais do Congresso?

O.V. – Não. Nem uma nem outra. O que é lamentável e injusto. Apenas se reconhecia, como acontece na generalidade das reuniões internacionais, o inglês, o alemão e o francês.

J. – Lamentável e injusto, diz você… 

O.V. – Decerto. Tanto o castelhano como o português figuram entre as cinco línguas mais faladas no mundo, ao lado do inglês, do chinês e do russo (estas duas divididas em múltiplos dialectos) e muito acima do francês e do alemão. Além disso, ambos representam povos com contribuições decisivas e profundas para a cultura universal e, no caso, para a filosofia do direito. Desde a «escolástica espanhola» – que pertence também aos portugueses, pois Molina e Suarez viveram e ensinaram em Coimbra e Évora – até ao pensamento de Miguel Reale que figura entre os mais significativos filósofos do direito contemporâneo.

J. – Miguel Reale é brasileiro. 

O.V. – Decerto. O que, para o caso, não importa. Além disso, do ponto de vista da cultura ou, se quiser, do meu ponto de vista, a unidade da língua é mais importante do que a separação dos Estados.


Seria libertador, para o direito português, adoptar uma concepção como a de Miguel Reale 


J – Há influência de Miguel Reale na actual filosofia do direito? 

O.V. – Sem dúvida. A sua principal concepção – a da teoria tridimensional do direito – é reconhecida, adoptada e difundida por pensadores tão significativos como o espanhol Luiz Recasens e o italiano Luigi Bagolini. Aliás, seria libertador e fecundo, para o actual direito português e o rígido formalismo em que se encontra, o estudo e a adopção de uma concepção como a de Miguel Reale. Ela nos levaria a considerar o direito na sua plenitude. Miguel Reale mostra como a plenitude do direito é composta pela «vigência», que é o que os nossos juristas só consideram pela «eficácia» e pelo «fundamento». Tem aqui um breve trecho em que o próprio Miguel Reale sumaria a sua concepção. Leia: a validade do direito está simultaneamente «na vigência, ou obrigatoriedade formal dos preceitos jurídicos, na eficácia, ou efectiva correspondência social com o seu conteúdo, e no fundamento, ou valores capazes de o legitimar numa sociedade de homens livres».

A conversa com Orlando Vitorino não terminou aqui. Falámos ainda de política e direito, com a concepção de Orlando Vitorino de que tudo o que há de positivo na política é o direito; falámos da Espanha e do Brasil e no que há de previsível no nosso futuro «caso os portugueses não queiram que o país seja apenas uma empresa industrial, hoteleira e turística»; falámos do entusiasmo com que os brasileiros vivem a sua pátria e de como está já alterada a realidade das autonomias nacionais e se está alterando a respectiva noção; falámos no desdém que os meios portugueses de maior influência social manifestam pela cultura e pelo saber e de como se incentivam e alimentam produtos pseudoculturais para justificar esse desdém. Mas tudo o que dissemos depois do que aqui fica escrito estava já distante da filosofia do direito, tema desta entrevista. (in Diário de Notícias, ano 107, n.º 37946, Lisboa, 28 Out. 1971, pp. 17, 18 e 19).










Viewing all 478 articles
Browse latest View live